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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

ESTUDOS

A “maior humorista de todos os tempos” - A sátira antifeminista na imprensa portuguesa [1885­‑1914]

Gabriela Mota Marques1

Coordenadora do Serviço de Cultura, Museus e Património Cultural no Município de Aveiro


RESUMO

O distanciamento entre os paradigmas ou as representações sociais convencionadas para as mulheres e os seus verdadeiros comportamentos e atributos está na origem de ideias, de [pre]conceitos e de imagens desfavoráveis sobre a feminilidade e coloca em causa os papéis de género. É esse o território propício para o antifeminismo.Ultrapassando o sentido restrito que o associa à oposição ao feminismo e às intenções de emancipação e de reivindicação de direitos, o antifeminismo engloba as interpretações, os estereótipos e as tradições enraizadas sobre a natureza imperfeita e a inferioridade femininas. O artigo centra­‑se no registo humorístico explorando os significados diretos e implícitos que o riso sobre o feminino e as mulheres proporcionam enquanto objetos risíveis.

Palavras­‑chave: antifeminismo; género; riso; representações sociais.

 

ABSTRACT

The distance between the paradigms or representations socially defined for the women and their behaviors, as well as their attitudes and attributes is the source of ideas, prejudices and unfavorable images about the femininity, in the same way that endangers the gender roles. That is the propitious territory for antifeminism. Overcoming the narrow sense of the term that identifies it as the opposition to feminism and the intentions of emancipation and vindication of women rights, antifeminism also includes interpretations, stereotypes and rooted traditions about the female imperfect nature and inferiority. In this article, emphasis is placed on the satirical writing and cartoons, exploring the direct and implicit meanings that laughter about femininity and the women provide as risible objects.

Keywords: antifeminism; gender; laugh; social representations.

 

Do singular à pluralidade: antifeminismos ou antifemininos?

Em estrito senso poder­‑se­‑á ser levado a associar o antifeminismo a uma reação ou, como refere Michelle Perrot (1998), ao “antídoto e a esconjuração” do feminismo (p. 8), motivo pelo qual, segundo as palavras de Valerie Sanders, “the definition of antifeminism naturally hinges on how we perceive feminism” (Wagner, 2009, p. 4). Nesse sentido, o antifeminismo é tido como um antagonismo à ação das feministas “et a toute idée d'égalité des sexes” (Rochefort, 1998, p. 146), tal como é revelador de oposição a uma maior visibilidade das mulheres e ao seu assumir de novos papéis e novas profissões, em paralelo com a reivindicação de direitos políticos e sociais, que se regista na transição entre o século XIX e século XX. A sua condição social e a natureza biológica constituem o âmago da problemática. Uma querela entre o sexo e o género, entre as mulheres e o ser feminino (Thébaud, 2008).

Estas alterações na realidade feminina e às suas formas de vida na transição de Oitocentos para a centúria seguinte levam Chistine Bard, evocando Annelise Maugue, a afirmar que “a «idade de ouro» do antifeminismo é a Belle Époque, marcada, na Europa, por uma vigorosa afirmação da autonomia feminina que desperta o interesse do público de uma forma sem precedentes (Offen, 2000) e provoca uma «crise de identidade masculina»” (Bard, 1999, p. 8). Nesta perspetiva, o antifeminismo está correlacionado com uma posição e uma reação, essencialmente, dos homens que surgem enfraquecidos face à crescente visibilidade e emancipação femininas. Em causa está o debate sobre os valores, os próprios géneros e os seus papéis intrínsecos, bem como um questionar da masculinidade em si e dos seus preceitos abalados pelas alterações políticas e resultantes do próprio modelo masculino burguês (Patrick, 1998). Alguns setores, por outro lado, refletem ideias antifeministas ao discutirem o feminismo como uma forma de perda da feminilidade e de uma crescente masculinização e virilização (Vaquinhas, 2005), como se o género feminino estivesse a desvanecer e a fundir­‑se no género oposto. Questiona­‑se, pois, o direito à igualdade na diferença revelando, como referem Gisela Bock e Anne­‑Marie Sohn, uma noção de masculinidade, a par com a de feminilidade, como uma construção social e não como um mero dado biológico, ou seja, antevendo o poder diferenciador dos géneros. De acordo com a referida Gisela Bock (1989), uma abordagem biológica das relações entre sexos constitui um modelo estático e reducionista que se transforma num obstáculo ao conhecimento, razão pela qual só num contexto de género se depreendem a dinâmica e a complexidade, das relações e das vivências e se estabelecem as fronteiras, bem como os pontos de contacto entre homens e mulheres. Além disso, como refere Anne­‑Marie Sohn (2002), a construção de um dos géneros é sempre efetuada em relação direta com o outro que funciona como uma referência implícita.

As questões de género assentes nas relações sociais construídas social e culturalmente (Aguado e Ortega, 2011) estão no cerne do entendimento e da discussão em torno do feminismo e, por inerência, do antifeminismo. Aliás, a relação direta entre eles explica­‑se, antes de mais, pela filiação etimológica dos vocábulos, bem como pelo facto de a sua grande expressividade se manifestar em simultâneo e de forma implícita, traduzindo­‑se na justaposição cronológica entre a já referida “idade de ouro” do antifeminismo de Annelise Maugue e a “Belle Époque dos feminismos” afirmada por Anne Cova (2007, p. 35). Não obstante esta intrínseca relação, o significado de antifeminismo tem uma maior abrangência que ultrapassa as questões feministas. Por isso, ainda que o termo utilizado se conserve e se tenha generalizado, mais do que o antifeminismo, deve considerar­‑se a existência de antifeminismos, tendo em linha de conta que sob esse conceito podem congregar­‑se formas diferentes de atuação e de razões que motivam a oposição à feminilidade. O mesmo, aliás, regista­‑se com o próprio feminismo que assume facetas distintas e diversos movimentos (Perrot, 2007) de acordo com os contextos, os lugares e os momentos. É essa a perspetiva de Christine Bard (1999) e de Irene Vaquinhas (2005), que expressa a possibilidade de que “se fale com inteira propriedade de feminismos no plural” (p. 44).

A terminologia mesmo num sentido de pluralidade continua, no entanto, a expressar uma certa filiação no feminismo e nas razões que lhe estão associadas. De certo modo, isso pode traduzir­‑se num constrangimento de análise e numa limitação dos argumentos, que deixa de fora outras realidades do mundo feminino, as quais podendo parecer, numa perspetiva preliminar, de menor importância e até insignificantes, são fundamentais para a sua compreensão e para a perceção do lugar das mulheres no todo social.

Os vários estudos sobre a temática têm, também, centrado o seu discurso nas questões da condição social feminina e nas objeções às conquistas feministas na sociedade contemporânea. É essa a referência de Ana Aguado e Teresa Ortega (2011), tal como o é a linha do artigo Antifeminismo de Ana Vicente (2009) e do artigo de Maria Bernardete Flores (2005), que refere o antifeminismo como “mais racional e articulado, opera(ndo) pari passu, com o feminismo, na medida em que se propõe ser o antídoto às «trágicas» consequências morais da luta das mulheres”. Esta segunda autora reforça a ideia de que “a emancipação feminina surge como uma ameaça à ordem de um mundo fundado sob a hierarquia sexual, de dominação masculina” (pp. 52­‑54), o que fomenta o antifeminismo masculino enquanto recusa da igualdade de sexos.

Tomando como referência a noção de que o cerne da discussão se prende com o entendimento dos géneros e dos seus papéis sociais e culturais e, num sentido mais profundo, com os próprios valores e conceções da masculinidade e da feminilidade, o antifeminismo vai mais longe e começa a expressa­‑se muito antes de o feminismo ganhar corpo. Nesta perspetiva, mais do que utilizar o termo antifeminismo(s), deverá considerar­‑se, preferencialmente, o recurso e afirmação do antifeminino e de reações antifemininas, uma expressão também utilizada por Carlos Almeida Veloso (1986) e, em especial, por José Eduardo Franco (2008).

Assim, para além da oposição às reivindicações feministas às quais o vocábulo se reporta numa primeira instância, o antifeminismo ganha contornos de um certo desconforto e de crítica direta ao universo feminino na sua globalidade, mesmo quando não está em causa a luta pela independência financeira, pelo direito de voto, pela prática de uma profissão tradicionalmente varonil ou pela sua desvinculação da figura referencial masculina da família: o pai, o marido ou o irmão. O seu cerne são as mulheres em si enquanto seres biológicos e género social. É a sua própria identidade que se (re)define no decurso das ruturas e continuidades do processo histórico.

A sua forma de agir e de pensar; a sua condição física e intelectual; a sua posição no seio da hierarquia familiar; a sua vida numa esfera do privado e no meio público são, só por si, os motivos de crítica e oposição às mulheres e às manifestações da sua feminilidade, assim como são as razões pelas quais as atitudes antifeministas, ou antifemininas, ultrapassam no tempo o aparecimento dos movimentos feministas da Época Contemporânea. Tais atitudes antifemininas são, deste modo, o reflexo das relações de género e das representações sociais e da identidade definidas para os homens e as mulheres num determinado contexto sociocultural e num dado momento. Partindo desse pressuposto Michelle Perrot afirma que o antifeminismo ganha forma, em cada época, centrando­‑se em tipos de mulheres e de atitudes femininas tidas como subversivas. Ana Vicente, ainda que privilegie uma abordagem da ação antifeminista como antítese do feminismo, afirma que, o século XIX vem, apenas, “organizar” o antifeminismo de um modo formal fazendo­‑o perder o seu carácter “latente e integrador” reconhecendo­‑o como uma tradição enraizada. Segundo a autora, a sociedade e as civilizações sempre foram definidas e pensadas sob o ponto de vista de uma assimetria dos géneros com preponderância do masculino. É nesse sentido que, em seu entender, se pode interpretar a forma como são definidas as estruturas sociais e as vivências em sociedade (Vicente, 2009), manifestadas, neste caso, como uma recusa da igualdade preconizada como ameaça à ordem e aos poderes instituídos (Bard, 1999). Por esse facto, os períodos de governação autoritária que dominam parte do século XX são também momentos de grande evidência antifeminista (Vaquinhas, 2005), como o exemplificam o Franquismo, em Espanha, e o Estado Novo, em Portugal, em que a ideologia dominante preconiza o regresso feminino ao lar e a glorificação da maternidade, como fatores fundamentais para a consolidação da instituição família (Muñoz­‑Sánchez, 2004).

Contrariamente a outros termos como anti­‑sufragismo e anti­‑sufragista presentes nos discursos e publicações do último quartel do século XIX, em particular nos países anglo­‑saxónicos, onde os movimentos feministas revelam já forte projeção, o vocábulo “antifeminismo” permanece ausente dos dicionários e textos, razão pela qual se assume que a sua divulgação será um resultado dos alvores do século XX. Segundo Tamara Wagner (2009), a primeira manifestação do termo, no Reino Unido, surge no prefácio da obra Saint Joan de George Bernard Shaw, em 1924. A própria designação de “feminismo” (Mayeur, 1997, p. 424) começa a ser utilizada, oficialmente, nesse país apenas no final do século XIX, em 1894 (Wagner, 2009; Offen, 2000), dois anos antes de surgir na Alemanha e bastante mais tarde que em França, onde o mesmo vocábulo aparece referenciado, já em 1871, numa tese de medicina, com o significado de uma patologia que se identifica com a feminização masculina (Cova, 2007). No ano seguinte (1872) surge sob a forma do adjetivo feminista no panfleto L'Homme­‑Femme, de Alexandre Dumas (Bard, 1999; Offen, 1987). A associação do termo feminismo ao universo da medicina, num sentido de feminização do sexo masculino, é, segundo Karen Offen, atribuída a Charles Fourrier, nos alvores de Oitocentos (Offen, 1987) e antevê a justificação da filiação biológica nos discursos da diferença entre géneros.

O conceito que está na origem do termo feminismo associa­‑se, portanto, à medicina e, como tal, à matriz física e natural que, à luz da ciência do século XIX, determina a condição secundária e inferior das mulheres. Esse virá a ser, aliás, um dos assuntos de relevo para as feministas, que interpretam e assumem o mesmo termo num sentido de género e de representação social, com um intuito de mutabilidade do paradigma que se afasta do cariz físico e redutor do sexo.

No que respeita ao antifeminismo a realidade é um tanto diferente. Identificado, frequentemente, com o conceito de misoginia, num sentido de ódio às mulheres e ao que elas representam como as geradoras dos males do mundo e até como inimigas das suas congéneres, a noção desenvolve­‑se em torno de uma perceção do feminino como género e enquanto expressão de uma construção social, ainda que fundamente os seus argumentos nos desígnios da natureza. As suas manifestações através da censura, da hostilidade, da interdição e da discriminação ou até com recurso às agressões físicas revelam essa grande amplitude do conceito e as implicações na sociedade (Bard, 1999), bem como reforçam a sua relação com a misoginia.

Em Portugal a utilização do termo antifeminismo revela­‑se mais precoce face aos exemplos europeus. Uma das primeiras referências encontradas regista­‑se em 1909, pelas palavras do Dr. Júlio de Mello de Mattos, proprietário e agricultor, que assume ter feito “profissão de fé anti­‑feminista” e que se conserva “o mêsmo feroz anti­‑feminista”. O seu discurso surge num longo artigo que dedica ao público feminino com o título A mulher na agricultura divulgado na revista Gazeta das Aldeias, uma publicação vocacionada para os agricultores e para a comunidade rural em geral (Mattos, 1909). Ao longo texto, o autor vai explicando a importância da participação das mulheres nas várias tarefas ao lado do esposo, mas devendo manter uma atitude feminina e não feminista, pelo que expressa o seu desagrado perante a mulher muito sábia e aquela que “aspira a deputada, a engenheira, a officiala de diligências, a camarista, a amanuense de repartição”, a qual, no seu entender, constitui um “monstro na natureza” (Mattos, 1909, p. 98).

A afirmação de um pensamento antifeminista por Júlio de Mello de Mattos não é uma novidade na revista, uma vez que, nesse mesmo artigo, o articulista expressa já o ter efetuado anteriormente. Neste sentido, a noção e consciencialização do significado do vocábulo está já bastante vincada nos finais da década de 1900 com uma conotação de oposição às ideias de autonomia e de emancipação femininas.

Em Maio de 1911, Ana de Castro Osório utiliza o termo num artigo publicado no jornal O Tempo, ao referir­‑se a uma das fações da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas que “se declarou abertamente anti­‑sufragista, anti­‑feminista e exclusivamente livre­‑pensadora (…)” (Osório, 1911 citado em Esteves, 1998). Cinco anos mais tarde, Antero de Figueiredo recorre também ao termo na sua obra A Arte na Educação da Mulher ao referir­‑se a si próprio: “Eu, antifeminista, sou mais amigo da mulher que os feministas, mais amigo dela que ela própria, pois não a quero destronar das suas prestigiosas complexidades de ser ultrassensível, frágil, carinhosa e bela” (Figueiredo, 1916, p. 8). O mesmo propósito assume o republicano Raul Proença numa carta dirigida a Ana de Castro Osório (Vicente, 2007). No primeiro Congresso Feminista e da Educação, decorrido em 1924, o vocábulo volta a fazer parte dos discursos de vários intervenientes como Adelaide Cabete e Arnaldo Brazão (Cova, 2007). Ainda nos Anos 20, Júlio Dantas, na sua obra As inimigas do homem, refere­‑se aos “manifestos lançados pelos clubs anti­‑feministas (…)” (Vicente, 2007, p. 65).

Pela relação temporal e etimológica haverá uma certa correspondência entre a difusão dos dois termos, os quais se tornam comuns, apenas, nos alvores de Novecentos. Essa aceção é consubstanciada pelas repercussões das ações ocorridas pelo mundo e, em particular, após o aparecimento de estruturas associativas femininas que evidenciam a condição social feminil, de que é exemplo a criação do Grupo Português de Estudos feministas (1907), da Liga Republicana das Mulheres Portuguesa (1909) e da Associação de Propaganda Feminista (1912). Não obstante, registam­‑se alguns exemplos anteriores. Um dos percursores é Oliveira Martins (1924) que, em Julho de 1888, dedica uma das suas crónicas ao feminismo.

Mais do que os conceitos apresentados em publicações especializadas, o antifeminismo e as ações antifemininas manifestam­‑se de modo natural na sociedade em resultado da própria mentalidade e da conduta social revelando uma proveniência longínqua. Para além dos discursos fruto dos normativos sociais, o antifeminismo está presente nas abordagens humorísticas explorando o potencial de crítica que lhe está inerente.

 

O “poder” humorístico e caricaturável do feminino

Ao afirmar que as mulheres são as principais humoristas de todos os tempos, Leonel Cardoso coloca nelas o alvo principal de comentários e de sátira (Cardoso, 1938, p. 22). Não só pela perspetiva que a sociedade tem da sua forma de agir e de ser, mas muito por conta da sua tendência para o exagero e, indiretamente, pela falta de discernimento e de consciência de serem elas próprias quem motiva e fomenta esses mesmos comentários. Nesse sentido, são as mulheres as primeiras responsáveis pela sua posição como matéria passível de caricaturar. No entanto, esta leitura deverá ser efetuada com nuances, uma vez que a intenção que fundamenta a sátira feminina não é a mesma para todos os caricaturistas e não assume sempre um cariz difamatório. Atendendo à perspetiva de Jorge Barradas, para quem as mulheres são o tema predileto, a caricatura é entendida como uma “fonte criadora de beleza” e não como arma política usada para atingir outros fins e personalidades (Humorgrafe, 1997, s/p).

O mote e o objeto da caricatura sobre as mulheres podem revelar diferentes representações do feminino. Pela caricatura e pela crítica ilustrada e gráfica tentam­‑se satirizar as suas pretensões e o desejo de autonomia, bem como o seu lado fútil e leviano. No fundo, pela caricatura ridiculariza­‑se a sua atitude e, deste modo, procura reduzir­‑se a sua importância (Queluz, 2006). Há na sátira a tentativa de desvalorizar os comportamentos desviantes tidos como desmoralizadores confirmando um ideal social conservador e a manutenção da “hierarquia tipificada dos elementos femininos” (Silvestre, 2009, p. 10). Para além do ataque à conduta das mulheres, as caricaturas sobre o feminino expressam uma certa sensualidade e exuberância que procura realçar pela imagem a falta de seriedade e de rigor no que ela faz, bem como a sua vertente sedutora e malévola. Deste modo, não se critica, diretamente, o papel de mãe, mas sim o de mulher fútil, vaidosa, seguidora de modas levando­‑a a desempenhar de modo incorreto a função maternal e a denegrir o valor feminino da abnegação, do amor ao outro e da simplicidade. Alguém que pensa em si e se esquece da sua missão e do seu papel no seio familiar.

Ao explorar a conduta feminina, a caricatura está, de modo implícito, a questionar as relações homens­‑mulheres. Em causa está, também, a dicotomia entre o espaço público e privado, entre a rua e o lar, bem como o questionar da própria autoridade masculina e da autonomia feminina. Satirizam­‑se, portanto, as esposas pelo facto de não se subjugarem aos maridos e não se prontificarem a obedecer­‑lhes e a fazer o que eles mandam. São as mulheres respondonas, licenciosas, preguiçosas, solitárias e emancipadas que são focadas, isto é, aquelas que Solange Vernois (2009) identifica como mulher­‑leão. Também as mulheres que leem e que querem saber mais do que os simples romances são motivo de sátira. Em paralelo a estas, as mulheres autoras e artistas são vistas como uma figura subversiva e até proto feminista, uma vez que esse comportamento demonstra uma procura de visibilidade e de afirmação da sua criatividade, a qual é, na essência, um valor masculino.

A preocupação da imprensa em difundir a imagem de uma personagem feminina superficial ou, de certa forma, um tanto egocêntrica, a par com a proliferação de artigos dedicados às questões domésticas e aos seus papéis tradicionais (Banner, 1984), procura ajudar a manter as ideologias e os valores dominantes, contribuindo para fixar os comportamentos e estabelecendo a ordem e o controlo sociais. Neste contexto, o recurso à sátira representa um veículo privilegiado de criação ou de reforço dos estereótipos, já que é à criação de imagens que os estereótipos, enquanto elementos de resistência, de estabilidade e de reprodutibilidade, recorrem para apreender e representar o mundo (Abreu, 2004).

De acordo com Michael Pickering (2004), são precisamente os estereótipos femininos aqueles que mais perduram no tempo e que sofrem mutações podendo, ainda, atuar como “major ideological devices” e como formas nem sempre adequadas de ver o outro (pp. 22­‑23). Além disso, como refere Adam Wojtaszek (2004), os estereótipos sobre as mulheres “are utilised mainly at the non­‑verbal level” (p. 219), reforçando a importância da imagem na sua transmissão. Assim, aliado ao discurso caricatural que se pretende emitir está o próprio grafismo das figuras representadas, o qual é sinónimo de exagero e de provocação e que, no caso feminino, se traduz, frequentemente, na apresentação de mulheres que, fisicamente, são a antítese dos cânones de beleza ou cujos atributos femininos são exageradamente delineados.

Nesse capítulo, a divulgação dos meios de comunicação que se associa ao desenvolvimento das sociedades modernas e que permitiu um crescente contacto com outros grupos sociais e outras realidades, surge como elemento privilegiado de estabelecimento e reforço dos estereótipos (Pickering, 2004) e das representações sociais e de género. No universo dos estereótipos destacam­‑se, precisamente, os de género, sejam eles de traços, associados às características psicológicas, ou estereótipos de papéis referentes às representações sobre as funções de cada sexo (Matias, 2004). Nos inícios do século XX, às tradicionais perspetivas caricaturáveis sobre a mulher associa­‑se a consciência de que a caricatura poderá contribuir para a afirmação das reivindicações femininas e, nesse sentido, estar ao serviço da difusão dos ideais feministas. Gustave Kahn explora esta questão na sua obra La femme dans la caricature française, publicada em 1907, atribuindo, ainda, um forte potencial misógino à caricatura que tem como assunto a feminilidade (Vernois, 2009).

Numa análise dos trabalhos de diversos caricaturistas do século XIX e da sua época, Kahn aborda as formas como as mulheres são vistas aos olhos dos homens, os grandes produtores e consumidores da imprensa. Os encantos femininos e a sua beleza são dois dos temas focados. A beleza, tida como um capital social e um dos valores femininos que encanta o sexo masculino, surge associada à noção da eterna juventude e da doçura, motivo pelo qual, quando se mostra uma versão feminina excessivamente magra e seca ou gorda e feia se tenta demonstrar que é essa vertente que conduz ao desvio dos ideais feminis. A revista A Sátira, publicada em 1911, expressa­‑o nas frequentes caricaturas e nos artigos que se centram nos temas femininos.

O tema da burguesia em ascensão com o estigma do “novo­‑rico” constitui um outro motivo de sátira social da época. As mulheres burguesas, que ostentam socialmente a fortuna e a posição da família, são, neste universo, um dos filões explorados. Elas são a imagem da banalidade do mundo moderno, pelo que, como refere Séverine Thivillon (2003), toda a frivolidade e espírito insaciado que as rodeia, nos alvores do século XX, “redonne à la femme une place de choix dans le panthéon caricatural” (p. 14).

Para além da crítica sobre a sociedade burguesa, os caricaturistas revelam um certo fascínio pelas mulheres das classes populares que trabalham nas indústrias, no campo e nos trabalhos domésticos. Grupos sociais como as operárias mas, em particular, as criadas de servir, as costureiras e as empregadas de balcão são alvos preferenciais representando­‑se como mulheres ignorantes, fáceis e permissíveis às investidas dos homens e, por isso, menos sérias e recomendáveis para constituir família. Essa imagem perdura na sátira escrita, presente em piadas, anedotas e nos textos humorísticos constantes em publicações como A Chacota. Semanário Humorístico (1900­‑1902), A Risota (1908) e O Zé (1910­‑1914).

Rafael Bordalo Pinheiro detém, neste capítulo, um lugar especial que contraria a tendência para centrar a caricatura do feminino em figuras de âmbito citadino e burguês. A sua Maria da Paciência, fiel companheira de Zé Povinho, representa a imagem da portuguesa conservadora e ultrapassada com uma raiz, eminentemente, provinciana. Além disso, para justificar o ressurgir da sua publicação O António Maria, cria as personagens do António e da Maria, cabendo a esta “a personificação da fúria sertaneja e alfacinha” e “a pontinha de fel, era o dynamite, era o venenosinho do capote e lenço, introduzindo­‑se todos os dias na santa beatitude do atelier” (O António Maria, 1891, p. 2). Realça na afirmação a natureza malévola das mulheres como fonte e sinónimo dos comentários corrosivos e atrevidos que vão caracterizar o periódico.

A entrada no universo das profissões até então masculinas e a crescente instrução tornam­‑se, também, motivo de caricatura assumindo, por um lado, um intuito de diversão dos leitores e, por outro, um sentido depreciativo, enquanto sintoma de uma certa oposição à mudança por parte da opinião pública. Rachel Soihet (1998) refere idêntica situação ao analisar a posição da sociedade brasileira perante as mulheres ditas emancipadas e intelectuais, na transição do século XIX para o século XX. Na perspetiva desta autora, a falta de seriedade da questão, quando comparada com outros assuntos com maior peso na sociedade, explica porque é abordada na ótica humorística, o que, no entanto, não lhe retira um sentido de violência simbólica.

Outro dos temas alvo dos humoristas centra­‑se nas mulheres independentes e modernas que vivem por conta própria, o que reflete, em certa medida, um questionar dos princípios morais da sociedade burguesa de onde emerge essa nova figura feminina, ou mulher nova (Offen, 2000), os quais conduzem ao desregramento, à imoralidade e à perda dos fundamentais valores femininos. As mulheres bem conceituadas pertenciam, tradicionalmente, ao mundo do privado. A sua modernidade simboliza “os vícios e as virtudes da vida moderna” (Oliveira, 2004, p. 4).

Esta relação direta entre a caricatura e os costumes e hábitos sociais urbanos é uma nota crescente ao longo do século XIX e no século XX, muito por conta da difusão da imprensa. As revistas femininas são, contudo, colocadas num segundo nível, já que incidindo no universo das mulheres (Lopes, 2005) surgem alheadas da realidade social e económica da sua época. Ainda que sendo “o principal espaço público de debate feminino” (Lopes, 2005, p. 602), os problemas que debatem são de importância relativa ao seu género centrando­‑se nas incertezas e nas inconstâncias da forma de ser dessas mulheres e revelando­‑as, frequentemente, como seres consumistas (Oliveira, 2004). Não obstante, como verifica Paulo Guinote (1997), alguns títulos fogem a este rótulo de revista para entreter a população feminina com “condições de reunir capacidades literárias, os meios financeiros, a disponibilidade de tempo para apreciar devidamente revistas de grandes ambições iniciais e aparato gráfico” e expressam “preocupações com a educação feminina e a propaganda de ideais feministas” (pp. 136­‑137). O facto de a criação de alguns periódicos femininos ter surgido da iniciativa masculina, como refere Ana Maria Costa Lopes (2005) poderá ter contribuído para essa maior abrangência e pertinência dos assuntos focados.

A representação satírica em torno da figura feminina com o intuito de moralização social e de garante de conformidade com as normas não é, contudo, sempre de leitura direta na imprensa. Isso é visível em situações em que o texto pode orientar no sentido de mulheres consentâneas com os seus papéis tradicionais, mas a imagem revelar mulheres modernas, independentes (Queluz, 2006). Através da imagem caricatural expressa­‑se, ao mesmo tempo, a norma e a mudança. Também as mulheres representadas na ilustração podem não ser as mesmas que se retratam na caricatura. No primeiro caso, a representação expressa um registo da realidade social do momento em que é produzida revelando figuras femininas convencionais, nos seus espaços privados, por posição à caricatura que a introduz em novos ambientes e associados aos tempos modernos.

Para além da presença feminina com um objetivo de mostrar e de criticar a sociedade e as normas vigentes, a sua figura é, ainda, um dos elementos centrais da sátira e da caricatura com fins políticos. Mostra­‑o a sua escolha para incarnar personagens que simbolizam regimes, nações, conceitos abstratos e formas de poder (Gomes, 2000). A Justiça, a Liberdade, a Guerra, a Economia, bem como a Crise, a Despesa pública e a Igreja ou a Europa são, num contexto político­‑económico complexo dos finais do século XIX, temas recorrentes da impressa.

Esta incorporação dos conceitos sociais e abstratos nas mulheres não se restringe à Época Contemporânea nem se limita a um discurso crítico da sociedade. Na centúria de Oitocentos, o grande destaque vai, no entanto, para a representação do conceito de Nação e, em particular, dos regimes políticos materializados nas figuras da República e da Monarquia. Ainda que a interpretação varie segundo a autoria, o propósito da imagem e o contexto nacional, a primeira é frequentemente mostrada como uma jovem mulher, vistosa e atraente por contraste com a segunda que se apresenta num corpo de uma idosa como exemplo das tradições já ultrapassadas oscilando entre uma personagem de formas avantajadas, símbolo da grandeza e do exagero, e a magreza extrema, num sinal claro de estado decrépito e moribundo.

Herdeira da propaganda da Revolução Francesa e do ideal de Liberdade incarnada por uma figura feminina, a imagem da República é também associada a mulheres, regra geral de grande porte e peito farto interpretado como uma “promesse de générosité et d'abondance” (Agulhon e Bonte, 1992, p. 29). Uma figura sedutora e atraente à qual os homens se submetem e se ajoelham promovendo uma analogia entre a força (Perrot, 2003) e a função maternal, considerada por Alicia Mira como o verdadeiro elemento que define a identidade feminina (Mira, 2011).

A par da ilustração e da caricatura, as artes são também difusoras das mulheres, dos valores femininos e das suas diferentes imagens, revelando, em algumas delas um cariz antifeminista. Isso não se deve, apenas, ao facto de, durante séculos, o ofício de artista ter sido quase exclusivo dos homens, a quem se reconhece qualidade e perfeição, mas, também, pelos temas abordados nas obras. Representações da sensualidade e da luxúria, bem como de tentações são personificadas por figuras femininas (Eva, Salomé ou Belkiss), as quais, segundo Umberto Eco (2005), simbolizam “o desregulamento dos sentidos”. Além disso, alguns dos temas expressam mesmo uma forma de mostrar a violência e os castigos sobre as mulheres como punição pelos seus atos e pela sua maldade, incluindo­‑se, entre eles as cenas bíblicas e religiosas. No fundo como refere o mesmo autor, está­‑se perante uma “estética do mal” repleta de personagens femininas que “desafiam toda a regra moral, pela doença, pelo pecado e pelo prazer procurado na dor” (p. 337).

As imagens de mulheres perversas, pecadoras e sedutoras personificadas por várias figuras femininas, ao longo do tempo, conduzem no caminho da criação do paradigma da femme fatale (Offen, 2000), caracterizada como um ser enigmático, maquiavélico, estéril e insaciável, ao qual se é incapaz de resistir, levando à perdição e ao pecado. Ela representa o que Umberto Eco (2005) identifica como “a humanização de Satanás” (p. 323) e será referência como um dos tipos feminis que, muito embora identificado com um espírito decadentista, no período finissecular (Vernois, 2009; Derydt, 2003), irá marcar o século XX, com a sua presença assídua nas artes plásticas e de palco (Oliveira, 2004). A sua definição identifica­‑a como uma forma privilegiada para a materialização da misoginia, distanciando­‑se da figura da esposa que representa os valores femininos do dever, educação, família e da continuidade da espécie (Legido­‑Garcia, 2004).

Ainda que, segundo Véronique Liard (2009), esta mulher “apparait souvent comme un simple motif sans valeur discursive” (p. 2), na perspetiva de Christel Derydt (2003), “l'art et la littérature fin­‑de­‑siècle reposent essentiellement sur la femme et sur la terreur qu'elle suscite” (p. 8) provocado pelo seu poder sedutor. É este sentimento simultâneo de ameaça e sedução que faz das mulheres e das suas atitudes “l'une des cibles privilégiées des caricaturistes” (Liard, 2009, p. 2) e dos artistas no geral.

O simbolismo que lhe é atribuído como a incarnação dos extremos – o bem e o mal – vem refletir uma perspetiva, vincadamente, masculina da arte (Danguy, 2009). Poderá isso conduzir a que o âmbito da caricatura e da sátira seja, predominantemente, masculino. Revela, ainda, que os homens têm a capacidade de rir de si e com os seus congéneres, assim como riem das mulheres, ainda que os motivos de cada um desses alvos do riso sejam distintos. Contudo, não mostra a capacidade ou o desejo de rir com elas, o que explica uma separação dos dois universos, quer na forma quer nos conteúdos do riso.

As mulheres, por seu lado, riem­‑se dos homens e da realidade feminina circunscrita à sua vida e ao ambiente quotidiano em que se movem (Humorgrafe, 2001), o que nem sempre poderá significar a capacidade de efetuar uma verdadeira autoanálise e um rir de si mesmas. Mostram­‑no os esparsos exemplos que se prendem com um registo do humor escrito, como sucede com Maria O'Neill, colaboradora da revista A Sátira, em 1911 (O'Neill, Fevereiro 1911, Março 1911, Junho 1911).

Não obstante esta realidade, é de autoria de Cacilda de Castro o artigo intitulado O riso que a revista Illustração Portugueza publica, em 1909. Ao longo de sete páginas a autora vai descrevendo os motivos que levam ao riso e identifica os seus diferentes tipos. Além disso, faz um percurso pelo entendimento e uso do riso e dos objetos risíveis desde a Antiguidade, época em que rir era um ato “desassombrado” livre das peias que o Cristianismo, posteriormente, lhe introduziu até à atualidade.

A descrição pormenorizada que faz das distintas perceções do domínio e do papel do riso, como arma e como instrumento de controlo social, para além de ser benéfico para o espírito humano, revelam um discernimento e poder de análise femininos sobre a questão que em nada se distancia do discurso masculino. Como refere Cacilda de Castro “É preciso que o mundo ria connosco para não rir de nós e redobre a gargalhada (…)” (Castro, 1909, p. 629).

 

Conclusão

O antifeminismo, enquanto conceito e prática social adversa às mulheres, nas suas diferentes vertentes, insere­‑se num jogo de identidades e de manifestações em torno das imagens e da realidade do universo feminino, num determinado momento. Por este facto, não pode ser reduzido ao seu significado restrito, enquanto opositor do feminismo e das ideias feministas que proliferam na transição do século XIX para o século XX, mas, pelo contrário, englobar os discursos e as imagens negativas, de censura e reparo, sobre o género feminino e sobre a sua forma de ser e agir, as quais se fundam na tradição cultural e nas regras assentes pelos grupos dominantes. Mais do que antifeminismo devem, assim, considerar­‑se as reações e as linhas de pensamento antifemininas, as quais, para além de ridicularizarem e subjugarem as mulheres, podem querer esconder ou impedir que se autonomizem os valores femininos, garantindo, desta forma, a manutenção da ordem social, dos papéis de género convencionados e o ancestral domínio masculino.

A sociedade em mudança neste fim de século questiona­‑se sobre os seus atos e os seus intervenientes com o intuito de atingir a perfeição e expulsar os agentes que motivam os seus males. Nesta ambivalência, entre as representações sociais e a realidade, há um hiato que dá corpo a manifestações de oposição a grupos e a instituições dando maior expressão ao antifeminismo.

A imprensa com o seu caráter informativo e formador de opiniões tem responsabilidades crescentes neste processo contribuindo para construir o género e estabelecer as representações e diferenças entre o masculino e o feminino à luz dos valores dominantes. No fundo, a imprensa atua como um mecanismo que desperta, combate e educa a sociedade realizando, em simultâneo, a sua autoanálise, uma vez que o emissor, a mensagem e o recetor integram o mesmo grupo, ainda que nem sempre no mesmo quadrante. A denúncia, os reparos e as críticas antifeministas visam atingir os setores que não cumprem os ditames e repor a ordem, podendo fazê­‑lo num discurso moralizador construtivo ou que, pelo contrário, ridiculariza as mulheres.

A crítica humorística detém neste contexto, uma função relevante como reguladora da moral e da norma, uma vez que sob o espectro do riso refletem­‑se problemas e questões sensíveis da sociedade. O riso permite realizar alertas e chamadas de atenção sobre um determinado tema, mostrando a sua importância e funcionando como um elemento de aferição da realidade. A presença frequente de assuntos femininos entre os motivos de sátira mostra quanto as mulheres são uma temática comum, de interesse público e como a sua presença e os seus papéis de género são determinantes na sociedade. Por outro lado, a constância dos temas femininos na imprensa humorística torna­‑se, simultaneamente, num veículo transmissor, quer das ideias vigentes, quer das novas tendências da vida feminina. Pelo rir se denuncia e se dá a conhecer uma nova realidade.

O crescente número de artigos de humorismo gráfico dedicado à vida feminina que se regista com a entrada do século XX, ganhando terreno ao predomínio da caricatura política verificado nas últimas décadas do século XIX, pode, precisamente, ser entendido como o resultado dessa maior visibilidade das mulheres e da sua atuação. Contudo, apesar de na primeira década de Novecentos, em Portugal, se assistir ao aparecimento dos movimentos coletivos de cariz feminista, não são estes os que despertam o grande interesse da sociedade. A avaliar pelos contributos dos leitores de algumas publicações, continuam a ser os comportamentos e qualidades femininas os que sobressaem e acerca dos quais mais se pronunciam. São, portanto, os valores femininos e os seus atributos, físicos e psicológicos, os que contam na construção do género.

Neste contexto, o comentário gráfico recai, maioritariamente, sobre os predicados e qualidades femininos, a partir dos quais se vão delinear os seus comportamentos e atitudes. Não obstante, a primordial missão da maternidade ou o desempenho de uma função considerada feminina por natureza são inquestionáveis à luz do riso e representam os fatores que contribuem para a valorização das mulheres e da sua condição, bem como para a estabilidade social.

A destrinça entre as questões que são passíveis de humorismo e as que se devem conservar na esfera da condição feminina está bem interiorizada na consciência da sociedade consubstanciando a dualidade entre o eterno feminino e as mulheres como demónios aperfeiçoados.

 

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Notas

1Doutorada em História Contemporânea pela Universidade de Coimbra com a dissertação Demónios Aperfeiçoados. O Antifeminismo na imprensa portuguesa [1885­‑1914]. É Mestre em História Económica e Social Contemporânea, no âmbito da qual apresentou a tese Cabelos à Joãozinho. A “Garçonne” em Portugal, nos Anos 20.Foi docente do Ensino Secundário e desde 2001 é técnica superior no Município de Aveiro desempenhando. Autora de vários artigos na área da história social e económica, história do género, património cultural e museus.