Da autora de Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital
Maria Lacerda nasceu em 16 de maio de 1887, em Manhuaçu, pequena cidade de Minas Gerais (MG), historicamente voltada à atividade agrícola. Dos 6 aos 10 anos, frequentou um Colégio de Irmãs de Caridade, onde conheceu as “diferenças de critério para ‘julgar’ e ‘castigar’ os atos inocentes das meninas ricas e pobres, das brancas e das de cor, tudo olhado com severidade do pecado e do inferno (...), a consideração especial em torno das alunas de famílias ricas e filhas de políticos, a exploração das meninas de cor, a serviço das outras” (Leite, 1982, p. 18). Da reflexão, crítica às instituições católicas, é possível apreender o cuidado da autora em considerar as possíveis desigualdades entre mulheres - percepção pouco notada em mulheres de seu tempo e classe social que se identificavam com o feminismo. Aos 17 anos, casou-se com Carlos de Moura e, ao longo da primeira década como “Senhora Lacerda de Moura”, levou a “vida que toda recém-casada leva”: bordou, coseu, pintou, tocou piano, passeou, conversou inutilmente, dormiu bem e comeu melhor, leu “romancezinhos”. Não engravidou. Também não engravidou depois de obter o diploma de normalista e de ter se tornado professora da Escola Normal de Barbacena (MG). Em um de seus mais importantes livros, A mulher é uma degenerada, de 1924, Maria Lacerda achou por bem expor suas rotinas e sua esterilidade, a fim de provar que não foi a atividade intelectual que a tornou “degenerada” enquanto mulher, como alguns homens da época defendiam, como o médico Miguel Bombarda (Moura, 1932, p. 25).
Durante a década de 1910, dedicou-se ao ensino e à aprendizagem: publicou seu primeiro livro, Em torno da educação (1918), e integrou a Comissão Executiva do Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, onde conheceu algumas senhoras notáveis, como Stella de Carvalho Guerra Duval (1879-1971), então integrante do grupo feminino “Damas da Cruz Verde”. É provável que esse contato tenha acentuado o interesse de Maria Lacerda pelas questões femininas, especialmente no que diz respeito à possibilidade de emancipação do “sexo frágil” por meio de uma instrução que o preparasse para a autonomia integral. Morando em São Paulo, fez parte de associações feministas, aproximando-se da leader Bertha Lutz (1894-1976) e da Liga pela Emancipação Intelectual da Mulher - que antecedeu a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Mas, em dado momento, decepcionou-se: “Cheguei à conclusão de que o meio não é a associação, não é a união das mulheres para a defesa dos seus direitos, que elas confundem com velharias e cumplicidades reacionárias. Ao falar em direitos só lhes ocorre o voto, o qual deveria ter sido reivindicado há 100 anos atrás…” (Leite, 1982, p. 18). Assim, abdicou da identidade “feminista”, porque, tal como algumas de suas companheiras anarquistas e comunistas, enxergava o feminismo como bandeira que fora cooptada por mulheres de elite preocupadas exclusivamente com a obtenção do sufrágio.
Como colaboradora de O Combate, jornal anarquista e operário de São Paulo, Maria Lacerda de Moura escreveu diversos artigos e participou de algumas querelas importantes. Uma delas foi com Plínio Marques, então deputado do Paraná, que, em 1925, defendeu uma emenda constitucional que tornaria “facultativo” o ensino do catolicismo nas escolas públicas do Brasil. À proposta, a escritora respondeu da seguinte forma: “No Brasil, procuramos nos acorrentar ainda mais ao tradicionalismo, à reação contra todo o progresso e contra todos os ideais novos de ‘après la guerre’, e fazemos questão de defender o que já está esfarrapado pela ação do tempo, da evolução humana” (Moura, 1925, p. 1).
Em 1928, Maria Lacerda declarou para o Brasil e para a Itália o seu antifascismo e acabou por se tornar alvo da violência dos adeptos da doutrina em ascensão. No dia 8 de agosto, o aviador italiano Carlo Del Prete (1897-1928) sofreu acidente no Rio de Janeiro, ao realizar manobras aéreas arriscadas. Gravemente ferido, foi a óbito no dia 17 daquele mesmo mês. Sua perda foi dramaticamente lamentada por Il Piccolo, periódico do Partido Fascista situado em São Paulo. Monsenhor Lari, sacerdote italiano, assim disse aos jornalistas do dito periódico: “Os sentimentos manifestados por esse grande aviador foram de uma extraordinária sublimidade. Era um homem completo, com três noções exatas e profundamente elevadas: a da religião, a da pátria e a da família” (Silveira, 1942, p. 5). Acontece que parte considerável da imprensa brasileira, aparentemente sem qualquer relação com o fascismo de Mussolini, começou a repetir as palavras de Il Piccolo, enaltecendo Del Prete, o “herói fascista” que, lamentavelmente, falecera em terras tupiniquim. Mas uma opinião destoante veio a público, a de uma mulher, Maria Lacerda de Moura, que escreveu:
É a caricatura do heroísmo. Não confundamos o delírio esportivo aviatório-militarista de um Del Prete, com o heroísmo, o humanismo e a ciência de um Amundsen, até hoje e talvez perdido para sempre, à mercê dos icebergs, atrás de um Nobile, outro grande herói no campeonato dos vôos célebres… Que qualificativos devemos dar a Amundsen, o pesquisador cientista, que, não sendo o “orgulho da raça”, lá se foi perder entre as montanhas flutuantes de gelo à procura de Nobile - o esportista patriota camisa-preta? (Moura, 1928, p. 1)
Segundo a análise do escritor e jornalista Joel Silveira para o periódico Diretrizes, realizada 14 anos depois da publicação do fragmento acima, “o artigo de O Combate não era artigo de uma feminista apenas” - o jornalista escreveu com base no conteúdo do livro A mulher é uma degenerada -, “era trabalho de uma combatente, de alguém que se levantava corajosamente contra o fascismo”. As respostas de Il Piccolo e de outras folhas fascistas à atitude corajosa de Maria Lacerda não tardaram:
Que dizer? O nojo supera a indignação. Talvez fosse melhor calar, fosse melhor deixar grunhir no seu lodaçal a pérfida autora do artigo, que deve possuir um útero gasto no lugar do coração. (...) Uma mulher? Qual! Uma fêmea digna das sarjetas de todas as cidades, sem distinção de “fronteiras”.
Ainda uma palavra sobre Maria Lacerda de Moura. Não é digna do nome de mulher a “indivídua” que enlamêa o martírio coroado do sacrifício. Não é digna do nome de brasileira a “indivídua” que nega Deus, que nega a Pátria, que nega a Família. Quem é capaz de semelhante delito coloca-se fora da sociedade. É um anárquico digno apenas da vigilância da polícia. É um fanático merecedor de camisa de força.1
Como é possível notar, os conteúdos são marcados por violência e misoginia; seus autores atacaram Maria Lacerda por ser antifascista e, mais, por ser uma mulher antifascista. Na altura, havendo alguma sanidade, estudantes de Direito do Largo São Francisco se organizaram e foram até a sede de Il Piccolo, no centro da paulicéia, determinados a empastelar o jornal, numa demonstração de apoio à Maria Lacerda de Moura e seus respectivos posicionamentos.
Entre 1928 e 1937, Maria Lacerda viveu em uma comunidade autogestionada em Guararema, interior de São Paulo, onde amadureceu suas idéias e fortaleceu seu engajamento na luta contra o fascismo, o imperialismo, o clericalismo. No mesmo período, publicou alguns outros livros, como Civilização, tronco de escravos (1931), Amai e… não vos multipliqueis (1932) e Han Ryner e o amor plural (1934). De acordo com Jussara de Miranda, “Maria Lacerda de Moura busca em Han Ryner os fundamentos para defender o amor plural (...). O ponto de partido do autor é o entendimento de que a grande revolução se daria através do amor guiado pela leveza, sem cobranças e possessividades. A verdadeira fidelidade, segundo o filósofo, era a fidelidade da alma” (Miranda, 2006, p. 87). Maria Lacerda representava e defendia tudo aquilo que era motivo de aversão e ojeriza para aqueles que flertavam, abertamente ou não, com o fascismo. Para o ideal fascista de mulher, era uma aberração da espécie: culta, sedenta pelo saber, dona de si, corajosa, a favor da emancipação integral dos indivíduos e, portanto, grande crítica das instituições opressoras.
O fascismo como “contrarrevolução”: diálogos possíveis com Luce Fabbri
É possível notar, portanto, que, mesmo antes da concretização de um Estado nazifascista na Alemanha, Maria Lacerda buscou alertar a população brasileira - que mal conhecera os valores de um Estado democrático, devido à tradição política do país - sobre os elevados riscos inerentes à doutrina despertada após a Primeira Grande Guerra e em ascensão desde então. George Orwell escreveu que “Uma dúzia de anos atrás, quem quer que previsse o alinhamento político de hoje (1939) teria sido considerado um lunático” (Orwell, 2017, p. 20); e é provável que Maria Lacerda, sobretudo devido à sua condição feminina, tenha sido apontada como louca, histérica e oportunista - vide o tratamento que recebera dos jornalistas de Il Piccolo. Apesar disso, ela não deixou a “pluma” e, em 1934 - ano em que Hitler se tornou “fuhrer” -, publicou Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital2. Para compreendê-lo melhor, deve-se levar em conta a trajetória pessoal e profissional daquela que o escreveu: uma autora anarquista, profundamente anticlerical, devota à ciência, decepcionada com os rumos da Revolução Bolchevique - tal como Emma Goldman (1869-1940). A principal hipótese da referida obra se expressa nos seguintes termos:
No desespero de causa perdida, porque o século da consciência livre não mais aceita os dogmas, a Igreja, indiretamente, servindo-se dos desvarios e da degenerescência provocada pela última guerra, subvenciona, por intermédios do capitalismo, seu aliado de todos os tempos - polpudas somas aos aventureiros ousados - para fazer renascer os Autos da Fé e a Santa Inquisição - através do braço secular do Estado burguês cristianíssimo, em plena decomposição. (Moura, 2012, p. 33)
Assim como Luce Fabbri (1908-2000), anarquista ítalo-uruguaia, Maria Lacerda tendeu a acreditar que, diante de um mundo em transformação (catalisada pela Grande Guerra), a Igreja e o Capitalismo, instituições em ruínas, teriam se unido como num último suspiro com a finalidade de resistirem por mais algum tempo.
Falecida em março de 1945 - antes, portanto, do término oficial da Segunda Guerra -, Maria Lacerda conservou em vida e até certa altura uma visão positiva e progressista do século XX, denominado por ela como “o século da consciência livre”. Ao longo do livro expressou tal opinião: “O progresso contínuo das ciências naturais vai, das cidades aos campos, dispersando as trevas densas da Idade Média, e as multidões desertam das igrejas, onde, de gerações em gerações, arrastam-se para rezar a um deus monstruoso, produto da ignorância humana” (Moura, 2012, p. 94). Herdeira de uma das vertentes do Iluminismo, expressa pelo Socialismo, Maria Lacerda acreditava e divulgava que “a razão deveria emancipar a humanidade, que a sociedade civil deveria ser livre e atuar sobre uma sólida opinião pública que geraria tanto o dissenso como o consenso” (Silva & Silva, 2018, p. 299). Mesmo ciente das possíveis ameaças advindas da outra vertente iluminista, abraçada pela burguesia e focada especialmente no progresso material e na acumulação financeira, Maria Lacerda parece mesmo ter cultivado alguma esperança no projeto de emancipação dos indivíduos, dados os visíveis esforços despendidos pelas mulheres e pelos trabalhadores, por exemplo, desde a segunda metade do século XIX. E, como a Grande Guerra e, posteriormente, a Crise de 1929 se revelaram como evidências do desastre daquela vertente liberal-burguesa, ela e todos aqueles que sonhavam e fomentavam um novo rearranjo social tiveram algumas razões para crer no possível desenvolvimento de uma revolução que pudesse dissipar as velhas instituições responsáveis por séculos de escravidão, ignorância e fanatismo.
Mais do que o esforço de compreender o fascismo, o livro de Maria Lacerda pode ser lido como uma espécie de manifesto anticlerical, que buscou, a partir de referências a determinados fatos históricos e de uma bibliografia especializada, evidenciar os males promovidos pela Igreja Católica Romana, desde Paulo até Pio XI - o então papa. Ao se assumir como intelectual, a escritora criticou severamente a instituição eclesiástica, numa atitude bastante corajosa para a época e o lugar.
Logo no início do livro, expôs uma análise relacional importante: “Quando digo Cristianismo, eu me refiro à ordem social burguesa-capitalista (...). O Estado confundiu-se de novo com a Igreja, não no sentido divino como outrora, mas no domínio político-econômico” (Moura, 2012, p. 7). Ela observou que, ainda que o Estado tivesse passado por transformações estruturais ao longo do tempo, sempre houve uma constante: o seu vínculo com a Igreja. Assim, afirmou que, quando o Império Romano do Ocidente deu lugar, em meados do século V, a outra configuração de poder, a Igreja - institucionalizada desde Constantino - manteve-se como a única instituição social, a única força organizada verdadeiramente e que pôde resistir ao vendaval. Durante a Idade Média e a Modernidade Ocidental, os papas, herdeiros dos prestígios dos Césares, tornaram-se símbolos dos poderes espiritual e temporal: “Constantino deu poder à Igreja. Clóvis lhe legou uma fortuna imensa e domínios fabulosos” (Moura, 2012, p. 27). A Revolução Francesa, marco de ruptura que inaugurou a Era Contemporânea, não conseguiu superar o tradicional vínculo: “A Igreja benzeu as armas da República Francesa do mesmo modo que as de Luís XIV e do mesmo modo que sagrou a Napoleão”. E continuou: “Depois da Revolução Francesa, os governos, os tronos, os príncipes, as repúblicas… todos se apoiaram na Igreja com receio de novas revoluções” (Moura, 2012, p. 35). Maria Lacerda construiu, portanto, uma narrativa de longa duração que pretendeu evidenciar a capacidade da Igreja de sobreviver em tempos de mudanças, uma vez que, historicamente, aqueles que conduziram as revoluções temiam, de forma um tanto ou quanto incoerente, transformações demasiadamente radicais. Restava saber se, diante da crise do Estado burguês, a Igreja continuaria a resistir e, se sim, como.
Luce Fabbri acreditou que o fascismo operou na lógica da “contrarrevolução preventiva”. Filha de Luigi Fabbri (1877-1935), importante nome do anarquismo italiano e autor do livro La contro-rivoluzione preventiva (1921), ela reforçou as teorias do pai, afirmando que o fenômeno fascista “foi essencialmente o produto de um medo feroz de todos os que usufruíam de alguma situação mais ou menos estável (...) diante de uma enigmática revolução que parecia inevitável” (Fabbri, 2019, p. 12). Ainda segundo a autora, ao contrário do que pregara o Partido Fascista, Mussolini não conduziu uma revolução, e sim assumiu um poder a ele mesmo conferido, para que pudesse defender os valores tradicionais, nomeadamente, a pátria, a propriedade privada, a ordem, a família e, claro, a religião.
(…) contra a ralé - que, aproveitando, às vezes, as oportunidades oferecidas por uma democracia ainda que tímida e o terror dos privilegiados em relação à Revolução Russa - caminhava (ou acreditava fazer isso) para uma conquista de condições iguais de fato, não apenas legais, mas econômicas, sociais, culturais. Naquela época, todos pensávamos que a ênfase estava no econômico. Hoje, analisando, depois de quarenta anos, minhas memórias de infância, vejo nitidamente o quanto era importante, não só para seus protagonistas, mas também para os intranquilos observadores, o espetáculo dessas bibliotecas noturnas municipais, cheias de operários ávidos por discutir e estudar, que liam livros de história, de sociologia e, por vezes, de filosofia, com a intenção de se instruírem, para não abandonarem o trabalho braçal, mas para fazê-lo melhor e também para se expressarem e dialogarem com firmeza. Esse tipo de ascensão social dava medo e infundia ódio contra os operários: medo e ódio semelhantes ao propagado pelas minorias brancas sobre as maiorias negras em certos Estados de origem colonial. A hostilidade racial, facilmente despertada, de maneira irracional, em indivíduos e grupos doentes que possuem um complexo de inferioridade, é, em suas manifestações de massa, um simples disfarce do medo da igualdade, medo de perder posições “de poder”. (Fabbri, 2019, pp. 25-26)
O acerto de contas com o passado, o distanciamento dos fatos e a maturidade intelectual permitiram que Luce Fabbri fizesse uma análise mais ampla e cuidadosa a respeito do fascismo, extrapolando a crítica à Igreja e ao Estado burguês, enxergando o problema para além do viés econômico. Entretanto, ela e Maria Lacerda - que, apesar de todos os interesses partilhados e das amizades em comum, nunca chegaram a se encontrar - parecem ter concordado que, de fato, o fascismo se revelou como força contrarrevolucionária, apresentando-se como a opção mais viável e covarde àqueles que, por distintas razões, sentiram-se fortemente ameaçados pela atmosfera das novidades do pós-Guerra.
Civilização x barbárie: Diálogos com Hannah Arendt
Para Maria Lacerda, os limites entre o capitalismo imperialista e o fascismo eram praticamente imperceptíveis. Assim, a modernidade ocidental - que delegava a si mesma a autoria da destruição das estruturas feudais e a responsabilidade pelo incremento do uso da razão humana - expressou nitidamente suas contradições no momento em que optou por um projeto permeado pela barbárie, como forma de atender às ambições das elites econômicas. O advérbio “nitidamente” importa, uma vez que as contradições do Estado burguês já estavam postas, por exemplo, nas práticas imperialistas desenvolvidas em África e Ásia. No entanto - e Hannah Arendt desenvolve isso em As origens do totalitarismo (1951) -, tal contradição deixa de ser omitida sobretudo a partir do momento em que a própria Europa Ocidental se torna palco de atrocidades; e, nesse sentido, o Holocausto é a grande evidência da barbárie.
Embora tenha analisado brevemente o tratamento conferido aos judeus pela Alemanha nazista, Maria Lacerda deixou evidente a sua compreensão acerca de tal política imperialista/racista: “Hitler é o responsável pelas vítimas sem conta, imoladas no altar do racismo, cuja ação social consiste em varrer da Alemanha todos os judeus e todos os partidos políticos que não sejam o nazista” (Moura, 2012, p. 11); “O clericalismo é o pai do fascismo. Mussolini e Hitler são os dois braços seculares da Igreja neste momento histórico. Representam o desespero do Cristianismo pretendendo reorganizar os Autos de Fé e acender outra vez as fogueiras da Inquisição” (Moura, 2012, p. 7). Na altura em que escreveu o livro, a autora não tinha condições de saber que o grande capital - que “no início dos anos 1930 não queria particularmente Hitler, e teria preferido um conservadorismo mais ortodoxo” - acabou por colaborar seriamente com o Partido Nazista quando este chegou ao poder, “a ponto de usar trabalho escravo de campos de extermínio para suas operações durante a Segunda Guerra Mundial” (Hobsbawm, 1995, p. 132). Ainda assim, ela parece ter reconhecido que a exploração do trabalho, vigente como (talvez a principal) estrutura do Estado burguês, seria levada ao extremo pelo nazifascismo no ambiente europeu - pois, se novamente considerarmos as práticas imperialistas, a exploração da força de trabalho era realidade mais do que (im)posta nas colônias e nos protetorados, pelo menos desde a segunda metade do século XIX.
Mantendo a relação entre o Cristianismo e o Capitalismo, Maria Lacerda recuperou o Eclesiástico: “O escravo trabalha quando o castigam, doutra sorte não cuida senão de descansar; afrouxa-lhe tu as mãos e verás como ele busca a liberdade” (citado em Moura, 2012, pp. 22-23); e François Guizot: “O trabalho é a garantia da eficácia contra a disposição revolucionárias das classes pobres. A necessidade incessante do trabalho é o lado admirável de nossa sociedade. O trabalho é um freio” (citado em Moura, 2012, p. 23). No projeto de barbárie nazista, o mesmo trabalho libertaria (referência à frase presente na entrada de Auschwitz I) os judeus - ou seja, o “outro”, alvo do “nacionalismo racista” - de sua condição.
Como vimos, para Maria Lacerda e Luce Fabbri, a contrarrevolução foi embalada pelo fanatismo e pela violência. A escassez de pensamento crítico e, por conseguinte, da capacidade de fazer julgamentos tornou as massas desprovidas de humanidade, permitindo a “banalização do mal” - expressão utilizada por Arendt em suas análises acerca do funcionamento do III Reich, especialmente no que diz respeito ao antissemitismo. O “outro”, inimigo - fosse judeu, negro, cigano ou comunista -, foi barbaramente eliminado, já que um Estado total ou totalitário não permite a diferença, a heterogeneidade - elemento imprescindível à democracia e ao espaço público, local onde as diferenças se revelam. No livro em análise, Maria Lacerda usou com frequência a expressão “novas Cruzadas” como forma de se referir aos atos de violência comandados e efetivados pelo nazifascismo:
Como no tempo das Cruzadas, o Papa abençoa Mussolini e a Igreja denomina “o homem da providência” ao Duce - chefe dos bandidos que assassinaram covardemente a Matteotti, a Amendola, a Don Minzone… Mussolini, no momento atual, guardadas as proporções, representa admiravelmente Inácio de Loyola quando procurou reerguer a Igreja criando a Cia de Jesus, renovando-lhe as forças, cultivando-lhe novas raízes no fastígio e no terror. (Moura, 2012, p. 10)
Ora, para Luce Fabbri, a Itália se tornou um Estado totalitário, não na ocasião da “Marcha sobre Roma”, em 1922, mas sim no momento em que Mussolini assumiu, em discurso político (em 3 de janeiro de 1925), a responsabilidade pelo assassinato de Giacomo Matteotti (1885-1924), uma das grandes lideranças socialistas da Itália. A busca pela onipresença do Estado, a que nada escapa, visa também a eliminação de qualquer possibilidade de resistência, pois, ao ameaçar a existência física de um corpo, exclui totalmente a liberdade do indivíduo (Fabbri, 2019, p. 29).
O legado das mulheres antifascistas
Em entrevista concedida a Jeanne Bordeaux (um pseudônimo, possivelmente), e publicada em O Combate (1927), Mussolini expressou suas opiniões acerca da mulher (assim mesmo, no singular) e dos papéis sociais a serem representados por ela:
(...) representam um agradável parênteses da vida, e como tal, desempenham um importante papel na existência do homem. (...) toda a vez que tentam realizar qualquer coisa de grandiosa falharam vergonhosamente. Por exemplo: nenhuma das pinturas célebres que enriquecem as galerias das nações civilizadas foi executada por uma mulher. (...) são um agradável passatempo, um meio de ornar nossa vida com um pouco de fantasia, mas nunca devem ser tomadas a sério. (...) são, ainda, uns crédulos e confiantes animalzinhos. (p. 2)
Em Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital, Maria Lacerda alertou seus leitores a respeito da tradicional “fobia” da Igreja em relação à mulher e, a fim de demonstrar seu apontamento, novamente resgatou o Eclesiástico, quando Salomão diz: “Aquele que agrada a Deus fugirá dela” (citado em Moura, 2012, p. 47). Este repúdio, segundo a autora, expressou-se de maneira muito significativa nas experiências nazifascistas, pois, se o fascismo é o filho do clericalismo e se corresponde a uma contrarrevolução, é perfeitamente cabível identificá-lo também como fenômeno antifeminista, ou seja, como uma resposta conservadora às transformações realizadas nas relações entre os gêneros.
Quando escreveu o livro em análise, ela não deixou de refletir a respeito do aproveitamento da Igreja e da ideologia fascista - ambas muito bem relacionadas com o fanatismo - da vulnerabilidade presente nas mulheres e nas crianças. Disse, por exemplo, que “Através da ignorância, da tenacidade incultural da mulher, da teimosia feminina doentia e passional, através da sentimentalidade sensitiva do sexo emotivo e através da inocência curiosa da criança - o clero estende os seus tentáculos de Briaréu, por todos os rincões do mundo” (Moura, 2012, p. 19). E, para embasar historicamente o seu ponto, recordou a importância de Clotilde - persuadida pelo bispo de Reims - no processo de conversão de Clóvis, seu marido; e da influência da mãe de Inácio de Loyola, que substituiu suas leituras de cavalaria pelas hagiografias.
Herdeiro da tradição cristã, o capitalismo também demonstrou sua ojeriza às mulheres: às mais abastadas, restringiu as possibilidades de atuação, limitando-as ao casamento heterossexual e monogâmico, e à maternidade; às pobres, escravizou, munindo-se dos discursos médicos acerca das limitações físicas e mentais do corpo feminino; e às colonizadas, bestializou e hipersexualizou, tornando-as exemplos vivos de subalternidade3. Apesar disso (ou justamente por isso), e a despeito da frequente invisibilidade das mulheres na tradição historiográfica - sobretudo das mais pobres -, muitas delas se posicionaram contra as estruturas que as limitavam e as inferiorizavam. As mais abastadas tenderam a se agarrar à causa sufragista; as mais pobres fortaleceram os movimentos obreiros, dinamizando suas pautas; as colonizadas, mais afetadas pelo poder total imperialista, resistiram como puderam. Contra o fascismo, atuaram de maneira mais direta, como as Mujeres Libres (1936-1939), em Espanha4; ou por meio da atividade intelectual, tal como fizeram Maria Lacerda, Luce Fabbri, Hannah Arendt e outras.
Maria Lacerda faleceu no dia 10 de março de 1945. Não viu o término oficial da Segunda Guerra, mas, com alguma certeza, ficaria ainda mais desesperançosa ao presenciar o desenvolvimento das tensões entre Estados Unidos e seus apoiadores/dependentes e URSS e seus apoiadores/dependentes. Estadunidenses e russos, aqueles que, na linguagem bélica e odiada pela anarquista brasileira5, receberam as honras por terem livrado o mundo do nazifascismo, e que, após 1945, colocariam o mesmo mundo em constante medo, dada a ameaça iminente de uma guerra nuclear.
Maria Lacerda era crítica das instituições de poder e não acreditava, pelo menos na altura em que escreveu Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital, na capacidade de transformação oferecida por qualquer forma de Estado. Dizia que “O gênero humano não sabe viver sem o rebento do capataz, sem os donos e os senhores, sem o chicote do feitor, a quem prestar homenagem máxima da sua eterna imbecilidade servil” (Moura, 2012, p. 115). No entanto, por enxergar as obscuridades de seu tempo e sociedade, e por evidenciar os possíveis motivos que deram forma ao seu ambiente social, é possível notar em suas obras e em seu exemplo pessoal uma vontade imensa de despertar os indivíduos, sobretudo as mulheres, para a racionalidade, a solidariedade, a liberdade e o “amor engajado”; para que, um dia, pudessem todos viver sem amarras, guiados exclusivamente pela consciência.
A covardia mental é a mais poderosa das forças reacionárias. Respeitar, repetir, louvar - palavras de ordem social. Discos de gramofone… Aprender a pensar e ter o heroísmo de pensar em voz alta não é privilégio do sexo forte. (...) É mais fácil e mais cômodo vender-se à glória de um dia, à glória de picadeiro e arquibancadas patrióticas e religiosas, à sedução dos aplausos inconscientes das multidões, aos uniformes das academias, às condecorações e títulos honoríficos, ao prestígio social. (Moura, 1929, p. 2)
O apostolado do artista - também dos homens e mulheres que tiverem alma de artista - é a atitude do esteta da humanidade nova, a suprema resistência à reação e à ferocidade bestial do troglodita, despertada pelos aventureiros do poder no banditismo do dominismo absolutista dos imperialismos nacionalistas, é o aproveitamento das energias inquietas, buscando unir todos os povos dos continentes, todos os povos do mundo inteiro, unindo todas as raças, saltando por sobre todas as fronteiras, num anseio eloquente de liberdade, num gesto apolíneo de beleza - para a solidariedade de todas as mãos, em busca do pão para todas as bocas e um raio de lua para cada consciência. (Moura, 2012, p. 124)
O primeiro fragmento acima, retirado do jornal carioca A Manhã, pode ser comparado, de certa forma, ao conceito arendtiano de “banalidade do mal”. O segundo é o parágrafo final de Fascismo: filho dileto da Igreja e do Capital, que tem conteúdo muito similar à mensagem final do livro de Luce Fabbri, Fascismo: definição e história6. As três autoras em evidência fizeram, cada qual à sua maneira, o apelo à racionalidade, esta que, para a historiadora ítalo-uruguaia, representaria a oposição da patologia provocada pelo fascismo, sobretudo em sua fase totalitária.
Das três autoras, Hannah Arendt é, com certeza, aquela que mais se dedicou ao estudo do totalitarismo, compreendido por ela como um fenômeno particular do III Reich e da URSS pós-1930. Muitos(as) estudiosos(as) se debruçaram (e assim continuam a fazer) sobre a vasta e densa produção da filósofa. Portanto, não foi a intenção deste trabalho fazer qualquer análise mais aprofundada a respeito das percepções de Arendt acerca do fascismo e do totalitarismo, mas relacionar algumas destas, quando pertinentes, aos discursos de Fabbri e, especialmente, aos de Maria Lacerda. Luce e Hannah tiveram certo privilégio que a escritora mineira não compartilhou: ambas se desenvolveram em ambientes propícios à fermentação de debates intelectuais. Maria Lacerda passou parte significativa de sua vida a pensar sozinha. Por outro lado, sua integridade física foi menos ameaçada, quando comparada às da anarquista italiana e da alemã judia - apesar dos acontecimentos, já mencionados, envolvendo os fascistas de Il Piccolo, em São Paulo. O jurista Celso Lafer, estudioso de Arendt, comentou: “entendo que o particularismo de sua experiência de judia alemã diante do nazismo traduziu-se na mensagem universal de liberdade” (Lafer in Arendt, 2007, p. 342).
O Adolf Eichmann apresentado por Arendt, em Eichmann em Jerusalém, parece ser um exemplar do “ressentido cooptado”, do “gigante despertado” descrito por Luce Fabbri em Fascismo: definição e história: “De uma vida rotineira, sem significado ou consequência, o vento tinha soprado para a História, pelo que ele entendia, ou seja, para dentro de um Movimento sempre em marcha e no qual alguém como ele - já fracassado aos olhos de sua classe social, de sua família e, portanto, aos seus próprios olhos também - podia começar de novo e ainda construir uma carreira” (Arendt, 1999, p. 45). Na altura de sua primeira publicação, o livro de Arendt chocou parte importante da opinião pública, da comunidade judaica e dos acadêmicos. Muitos esperavam dela a confirmação do caráter diabólico daquele que foi um dos grandes responsáveis pela “Solução Final”. Não aconteceu. Ao invés disso, Arendt o apresentou como um homem comum, que, quanto mais falava, mais revelava a sua incapacidade de articulação e, consequentemente, a sua incapacidade de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Em outras palavras, a filósofa evidenciou que o grande crime cometido por Eichmann e por tantos outros “burocratas” do Estado totalitário alemão foi o de ter perdido a capacidade de pensar, de distinguir entre o verdadeiro e o falso, o bem e o mal, de fazer julgamentos - um novo tipo de crime, já que o réu em questão estava sendo acusado, direta ou indiretamente, pela morte de milhões de judeus e também pela injúria provocada àqueles que sobreviveram e aguardavam alguma justiça. A Segunda Guerra, com todos os seus horrores, acabou sendo responsável pela consolidação do chamado “crime contra a humanidade”, um tipo de crime que já era realidade frequente em diversas regiões periféricas do globo, embora tenha preservado até meados dos anos 1930 parte significativa da população branca do Hemisfério Norte.
Despersonalizado, Eichmann tornou-se um mero cumpridor de ordens, contribuindo para a concretização de uma sociedade uniformizada e, portanto, avessa a qualquer traço democrático. No capítulo V de A condição humana, Arendt afirma que a vida sem discurso (responsável pela revelação) e sem ação (equivalente à realização, ao início) está morta para o mundo; “deixa de ser uma vida humana”. A ação precisa do discurso para se revelar, e ambos necessitam de um ambiente em que as pessoas estejam umas com as outras. Em outras palavras, a revelação só se dá no espaço público, plural (Arendt, 2007, pp. 192-193). É por isso também que a autora considera que a Alemanha nazista operou na perspectiva totalitária, uma vez que teria “atomizado” a sociedade, destruindo as diferenças, tornando os sujeitos meros feixes de funções orgânicas. O totalitarismo é a negação da natalidade. Hannah Arendt nos ensina que um homem bom não corresponde ao patriota, ao “pai de família”, ao “provedor”, aquele que janta na presença da esposa e dos filhos e que frequenta as missas dominicais - tal como um Del Prete, e sim aquele que pensa criticamente, que tem a coragem de fazê-lo em voz alta, que aceita a pluralidade, que coloca o bem coletivo acima de qualquer recompensa individual.
Mas como nós podemos viver em um mundo onde alguma coisa como o Holocausto é possível? Na busca por tentar compreender a noção de amor mundi proposta por Arendt, Samantha Rose Hill, outra estudiosa da teórica alemã, escreveu o texto “What does it mean love to the world?”, publicado no OpenDemocracy, no contexto da ascensão das chamadas “novas direitas”7. O texto é curto, complexo, mas sintético; e, logo de cara, busca separar o amor mundi (engajado e político) do amor na forma como tradicionalmente é pensado. Complementando a sua idéia a respeito do mal banalizado, Arendt nos diz que amar o mundo exige acertar as contas com este mesmo mundo, o que significa assumir um compromisso de distanciamento crítico do que acontece em nosso entorno. “To be thinkers not just joiners.” Amar o mundo equivale à promessa de continuar existindo, de não renunciar ao mundo, mesmo que ele se revele demasiado insuportável para se viver. Aprender a amar o mundo significa aprender a pensar, a ser cidadão(ã) engajado(a). E que ironia... logo uma mulher - um “ornamento”, um “serzinho crédulo”, um “animalzinho”, segundo Mussolini - chamaria a atenção para isto: para amar o mundo, é preciso controlar os impulsos do sentimento e do afeto (forças antipolíticas) e seguir em direção ao pensamento crítico.