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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.19 no.1 Lisboa abr. 2018

https://doi.org/10.15309/18psd190119 

A qualidade das vivências parentais em três famílias homoparentais Portuguesas

The quality of parental living in three Portuguese homoparent families

Francis Anne Carneiro 1, Pedro Alexandre Costa 1, Henrique Pereira 2, & Isabel Leal 1

 

1WJCR - William James Center for Research, ISPA – Instituto Universitário, Lisboa Portugal; fcarneiro@ispa.pt; pcosta@ispa.pt; ileal@ispa.pt

2 Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal. hpereira@ubi.pt

 

RESUMO

Estudos internacionais sustentam que são os processos e as dinâmicas familiares determinantes para o ajustamento psicossocial das crianças e não a orientação/identidade sexual dos pais/mães. Quanto às famílias homoparentais por adoção, não foram encontradas diferenças significativas nos níveis de stress parental ou de envolvimento afetivo quando comparadas com famílias heteroparentais por adoção. Contudo, em Portugal a investigação sobre famílias constituídas por mães/pais lésbicas/gays é ainda escassa. A presente investigação teve como objetivo avaliar as dinâmicas familiares e o enquadramento social de famílias de pais gays/mães lésbicas, recorrendo à metodologia qualitativa através da Análise Temática. Foram conduzidas entrevistas semi-estruturadas a três famílias de mães lésbicas/pais gays por adoção. Identificaram-se três principais temas: Motivação para a parentalidade e experiências durante o processo de adoção; Não reconhecimento legal de uma das figuras parentais; e Experiências de Parentalidade. Nas três famílias verificou-se uma forte motivação para a concretização do projeto parental. Por outro lado, o estigma institucional a que foram sujeitas durante o processo de adoção parecem ter influenciado negativamente o seu bem-estar. A qualidade relacional e o elevado envolvimento parental minimizaram os efeitos das dificuldades encontradas em favor do elevado desejo de constituir uma família com filhos.

Palavras-chave: mães lésbicas, pais gays, adoção, análise temática

 

ABSTRACT

International studies sustain that are the family processes and dynamics that determine child's psychosocial adjustment and not parents' sexual orientation/identity. According to the literature, no significant differences were found between adoptive same-gender and different-gender parented families on levels on parental stress levels or emotional closeness. In Portugal, research about lesbian/gay parented families is still scarce. The present study aimed at evaluating the family dynamics and social climate of lesbian mothers/gay fathers using a qualitative methodology through Thematic Analysis. Three adoptive same-gender parented families were interviewed using a semi-structured script. Three main themes were identified: Parental motivations and experiences during the adoption process; Non-recognition of one of the parental figures; and Parental experiences. The three families presented a strong motivation to accomplish a parental project. Nevertheless, the institutional stigma that these parents faced may have negatively influenced influence their well-being. The relationship quality and a strong parental involvement minimized the effects of the difficulties faced in favor of a strong desire to create a family with children.

Key-words: lesbian mothers, gay fathers, adoption, thematic analysis

 

O conceito de família tem sofrido alterações significativas ao longo dos tempos. A família tradicional, outrora considerada a única possibilidade, tem vindo a ceder o seu lugar a diversificadas configurações nomeadamente as famílias constituídas por mães lésbicas e pais gays. Os primeiros estudos sobre famílias constituídas por mães lésbicas ou pais gays iniciaram-se em 1978 após marcos importantes referentes à igualdade de género liderados pelos movimentos feministas e de libertação gay (Patterson, 1992), e com um maior acesso a técnicas de reprodução assistida, dá-se na década de 1990's o fenómeno Lesbian Baby Boom (Patterson, 1994). Desde essa altura, a investigação sobre as famílias constituídas por mães lésbicas ou pais gays começaram a aumentar (Clarke, 2002). A maioria dessa investigação debruçou-se sobre as famílias reconstituídas após a auto-identificação da mãe como lésbica ou do pai como gay – famíliasnão-tradicionais. Mais recentemente tem aumentado exponencialmente o número de famílias planeadas através de adoção, inseminação assistida ou outras formas de coparentalidade – familias modernas (Golombok, 2015), que carecem ainda de investigação mais aprofundada e sistemática.

Diversas revisões sistemáticas de literatura e estudos de meta-análise revelaram a não existência de diferenças significativas entre crianças criadas em famílias homoparentais e em famílias heteroparentais nos principais índices de desenvolvimento e de ajustamento psicossocial infantil, nomeadamente (1) desenvolvimento psicoemocional; (2) preferências sexuais; (3) experiências de estigmatização; (4) comportamentos de género; (5) ajustamento comportamental; (6) identidade de género; (7) desenvolvimento cognitivo; (8) qualidade da relação entre pais/mães-crianças (Anderson, 2002; Carneiro, Tasker, Salinas-Quiroz, Leal, & Costa, 2017; Crowl, Ahn, & Baker, 2008). De facto, sustenta-se que os fatores determinantes para o ajustamento psicossocial das crianças são os processos e dinâmicas familiares e não a orientação ou identidade sexual dos pais ou das mães (Tasker, 2005). Farr, Forsell, e Patterson (2010) realizaram um dos primeiros estudos comparativos entre famílias constituídos por mães lésbicas/pais gays e mães/pais heterossexuais, revelando não existir relação entre a configuração familiar e o ajustamento psicossocial das crianças. Mais, não foram encontradas diferenças nos níveis de stress parental ou no nível de envolvimento afetivo entre mães lésbicas/pais gays e mães/pais heterossexuais (Bos, 2010; Tornello, Farr, & Patterson, 2011). Contudo, outros estudos têm revelado que as famílias homoparentais podem confrontar-se com maior discriminação e situações de stress durante e após o processo de adoção do que famílias heteroparentais (Berkowitz, 2011;Gianino, 2008).

Em Portugal, a discriminação legal de famílias homoparentais tem sido alvo de debate social e político, tendo a Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP) tomado uma posição favorável ao reconhecimento das mesmas (Ordem dos Psicólogos Portugues, 2013). Por conseguinte, a impossibilidade legal de adoção por casais do mesmo género foi eliminada em 2016 (Lei nº 2/2016), seis anos após a aprovação da igualdade no acesso ao casamento civil (Lei nº 9/2010). Tais mudanças deverão levar a um aumento e a uma maior visibilidade destas famílias, como é sugerido num estudo de Costa e Bidell (2017) em que perto de 60% das pessoas gays, lésbicas e bissexuais em Portugal afirmaram a intenção de ter filhos. Contudo, apesar do crescente interesse científico no que diz respeito ao bem-estar destas famílias, existe em Portugal um preocupante vazio na literatura. Assim, o presente estudo teve como principal objetivo avaliar as dinâmicas familiares e o enquadramento social de famílias de pais gays/mães lésbicas através de entrevistas a um grupo de três famílias por adoção.

 

Método

Participantes

O grupo de participantes foi constituído por três famílias de pais gays/mães lésbicas por adoção, e a sua seleção foi feita através de uma amostragem não-probabilística intencional. As principais características sociodemográficas dos participantes encontram-se descritas no Quadro 1.

 

 

Caracterização sociodemográfica das famílias em estudo

Material

Foi utilizado um questionário sociodemográfico e um guião de entrevista semi-estruturado elaborado para este estudo e constituído por diversas questões relacionadas com as experiências de parentalidade, a motivação para a parentalidade e processo de adoção, e enquadramento social e experiências de discriminação.

Procedimento

Foram estabelecidos contactos com diversas associações LGBT Portuguesas, e solicitada a divulgação do estudo junto de famílias homoparentais. As famílias interessadas em participar no estudo contataram o investigador principal (segundo autor) para marcação de uma entrevista presencial. No inicio da entrevista foi explicado às famílias os objetivos do estudo, forma de participação e possibilidade de desistência, e solicitada a assinatura de um consentimento informado. Foi também explicado às famílias que a sua participação seria anónima e que os dados recolhidos seriam tratados com confidencialidade. Todos os procedimentos foram seguidos de acordo com os Princípios Éticos para investigação com seres humanos da Declaração de Helsínquia. Importa salientar que as entrevistas foram realizadas entre 2012 e 2014, anteriores à mudança de lei.

Plano de Análise

As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas de forma integral para posterior Análise Temática (Braun & Clarke, 2006). Para cada entrevista transcrita realizou-se em primeiro lugar uma leitura aprofundada da mesma, permitindo um contacto exaustivo com o material recolhido. Numa segunda leitura os dados foram analisados e codificados pelo primeiro e pelo segundo autor, discutidos e resolvidas as discordâncias na codificação, e posteriormente agrupados em temas. A análise temática adotou uma abordagem indutiva (ou bottom-up), o que significa que os temas foram identificados com base nos dados sem um sistema de códigos a priori, e seguiu um paradigma construtivista (Braun & Clarke, 2006).

 

Resultados

De acordo com os objetivos do presente estudo, foram identificados os seguintes temas: (1) Motivação para a parentalidade e experiências durante o processo de adoção; (2) Não reconhecimento legal de uma das figuras parentais; e (3) Experiências de Parentalidade.

Motivação Para a Parentalidade e Experiências Durante o Processo de Adoção

Todos os participantes referiram uma forte motivação e um desejo antigo para concretizar um projeto parental por adoção, apesar de todos os obstáculos e da complexidade do processo: “Eu sempre quis ser mãe adotiva, sempre quis, não sei explicar porquê, nem tem explicação ser mãe, pronto, sempre quis ser mãe adotiva” (Beatriz, Família 2). Ou, de acordo com outro pai:

Lembro-me da primeira vez pensar nisso e desejar ser pai por volta dos dezasseis anos, quando surgiu o primeiro bebé na família (…) Lembro-me de pensar assim ‘Ah, gostava de ser pai, porque acho que seria capaz'. Não foi só um daqueles desejos idealizados e pronto, não foi mesmo, tive aquela experiência” (Luís, Família 1).

Não obstante o forte desejo de constituir uma família com filhos, devido aos impedimentos legais e estigma institucional, os casais que pretendiam adotar tiverem que omitir a relação afetiva que mantinham com a/o sua/seu companheira/o, assim como negar a existência de uma segunda figura parental ou não seriam aceites como candidatos à adoção:

“Não tinha nada a esconder, e também o que tinha de ocultar ocultei, contei o que tinha de contar e pronto, como fui casado ajudou, depois disse que tive outras relações mas pronto, acabei por não ter filhos, não sabiam é que as outras relações eram homossexuais. E pronto acredito que o divórcio possa ter ajudado um bocado” (Guilherme, Família 3).

Por outro lado, apenas uma das figuras parentais era reconhecida como tal, o que significa que existia um receio constante que algo pudesse acontecer que provocasse uma disrupção na família ou no próprio processo de adoção: “E claro nesses períodos, quando havia uma marcação da segurança social, lá tirávamos umas fotos nossas de casa e a Filipa nunca estava” (Beatriz, Família 2). Este receio é promotor de stress parental acrescido e potencialmente disruptor da estabilidade familiar durante o processo de adoção.

Não Reconhecimento Legal de uma das Figuras Parentais

Este tema surge associado ao anterior uma vez que a impossibilidade legal de um casal do mesmo género adotar uma criança coloca as famílias numa situação de ansiedade nas vivências familiares e de desproteção do ponto de vista social e legal, no sentido em a/o mãe/pai “social” não tem reconhecido nenhum direito ou responsabilidade sobre a criança, podendo mesmo ver quebrada a relação vinculativa e o contacto com o mesmo/mesma:

“Isso é um problema sobretudo, como a Beatriz estava a dizer, a família dela, enfim, é problemática e para mim existe o medo enorme de que se acontecer alguma coisa à Beatriz me tirem a Susana. Oficialmente eu não sou, não sou nada. No dia-a-dia sou tudo, mas oficialmente não...não sou nada. E isso é muito problemático quando se tem uma criança. É um pesadelo. (…) Se eu soubesse que era uma pessoa grata na família dela (…) percebe? Eu acho que ia sossegar em relação a esse assunto” (Filipa, Família 2).

O não reconhecimento legal de um/a dos/as pais/mães coloca-as/os numa situação de não existência enquanto figura parental. Durante o processo de adoção, estes/as mães/pais veem-se forçadas/os a esconder ou mesmo anular o seu lugar na família para não perderem a possibilidade de adotar uma criança. Mesmo após a adoção estar concretizada, vivem diariamente com o receio de que poderão perder a filha/filho caso algo suceda ao/à mãe/pai legal. Esta situação é descrita como suscitando grande tensão, medo, e sentimento de injustiça.

Experiências de Parentalidade

Apesar das dificuldades no processo de adoção e do stress causado nas vivências familiares, em todas as famílias a qualidade relacional apresenta-se como positiva, no sentido em que as mães e os pais deste estudo apresentam como basilares da relação mãe/pai-filha/filho o afeto e o diálogo/comunicação.

Desde o início, surgiu uma coisa que eu acho que é mesmo positiva, surgiu não, foi logo desde o início que foi o vínculo (…) essa parte do vínculo foi muito bom, porque eu também cultivei muito, eu também estimulei muito a expressão emocional, digo sempre todos os dias que gosto muito dele, aliás como vê, nós somos muito… afetuosos, e os beijinhos, e aquelas coisas todas que nós cultivamos. Tenho o retorno dele. Portanto essa parte foi muito positiva porque isso também gerava algum sentimento de compensação face ao stress, face às preocupações (…) Sabe aquela sensação de abraçar um miúdo, o teu filho, ele chama-te de papá- ele chama-me papá pelo menos seiscentas vezes por dia, papá isto, papá aquilo… papáaaa, papáaaa, mas sabe tão bem. Depois no fim da noite, vamos despedir e digo ‘qual é o filho mais lindo do coração de todo o mundo' e ele diz ‘amo-te muito, és o papá mais lindo do mundo” (Luís, Família 1).

Apesar das dificuldades acrescidas que o Luís possa sentir por ser pai solteiro, parece que tudo é, de certo modo, compensado/equilibrado pelo forte vinculo que estabeleceu com o seu filho. Igualmente, ao sentir-se reconhecido enquanto pai pelo filho, a sua identidade paterna fortalece-se e consolida-se dia após dia. Este sentimento foi também descrito nas outras duas famílias, particularmente pelos/as mães/pais não reconhecidos legalmente. Apesar de todas as frustrações sentidas pela falta do seu “lugar” na família, os afetos e o reconhecimento espelhado pelas filhas/filhos provavelmente ajudarão a proteger a sua identidade e a potenciar a sua resiliência no dia-a-dia contra estas agressões psicológicas de grande impacto quotidiano.

 

Discussão

Nas três famílias participantes, verificou-se uma forte motivação para a concretização do projeto parental, bem como a existência de relações mães/pais-filha/filho onde predominam os afetos e a proximidade. A qualidade das relações estabelecidas entre pais/mães-filhos/as encontra-se em grande medida relacionada com o envolvimento parental (Gameiro, Martinho, Canavarro, & Moura-Ramos, 2008; Tornello et al., 2011), isto é, o modo como as figuras parentais cuidam, investem e canalizam os recursos para o desenvolvimento dos/as seus/suas filhos/as. Por outro lado, a pressão social e o estigma institucional a que estas famílias estão sujeitas podem atuar como fator de risco para o seu bem-estar, como se verificou durante o processo de adoção. A par de uma maior preocupação em relação à ocultação da configuração familiar assim como com o bem-estar das crianças poderá ocorrer uma maior vigilância parental comparativamente às famílias tradicionais (Farr & Patterson, 2013). Mais, o facto de estas crianças serem adotadas requer por parte das mães ou dos pais uma maior atenção e cuidado com as suas necessidades específicas.

De acordo com estas famílias, não obstante as dificuldades encontradas antes e durante o processo de adoção, nomeadamente, o não reconhecimento de uma das figuras parentais, parece prevalecer a qualidade relacional e um elevado envolvimento parental por parte de ambas as figuras que minimizam os obstáculos encontrados em favor do elevado desejo de constituir uma família com filhos. De facto, estudos internacionais têm reportado que o stress parental nestas famílias não é significativamente superior ao de famílias heteroparentais por adoção (Bos, 2010; Tornello et al., 2011). Tem sido sugerido que existem fatores que permitem a estas famílias a gestão da discriminação e a promoção da resiliência, tais como o modo como é revelada à criança o seu processo de adoção e a sua configuração familiar e a forma como as famílias divulgam a sua configuração nos vários contextos sociais, nomeadamente a escola da criança e a aproximação a outras famílias não-tradicionais (Costa, Pereira, & Leal, 2012). Coimbra de Matos (2007) reforça também que o preconceito e a estigmatização que as crianças possam sentir têm o seu impacto diluído desde que tenham contato com pessoas capazes de a esclarecer e dar respostas às suas questões específicas, como é sugerido que as mães e pais neste estudo o façam de forma adequada. Futuros estudos deveriam ter em conta estes fatores de resiliência, procurando avaliar os processos intra- e extra-familiares que permitem minimizar os efeitos de um contexto social estigmatizante e potenciar o bem-estar das crianças e da famíla.

Uma importante limitação deste estudo diz respeito ao facto de este grupo de participantes ser constituído por apenas três famílias, o que não permite a generalização das suas experiências para a população de famílias homoparentais por adoção. Futuros estudos deveriam recrutar um maior e mais diverso número de famílias por adoção, procurando assim reforçar os resultados encontrados no presente estudo. Todavia, este foi o primeiro estudo sistemático a ser realizado em Portugal com famílias homoparentais por adoção, abrindo caminho para novas investigações. Por outro lado, tendo em conta as recentes alterações, seria igualmente pertinente conduzirem-se investigações que averiguassem as repercussões da aplicação da lei nas famílias constituídas por duas mães ou por dois pais, em particular nos casos de adoção. Apesar do reconhecimento legal atual existirão, de facto, mudanças ao nível do enquadramento social? Caso existam, que mudanças estarão a ocorrer?

 

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Recebido em 07 de Dezembro de 2017/ Aceite em 31 de Dezembro de 2017

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