O suicídio é uma característica especificamente humana, presente nas sociedades desde os primórdios, e ainda hoje é um dos comportamentos mais paradoxais e difíceis de compreender, prever ou evitar em todas as partes do globo. Esse fenômeno humano, distribuído por todo o mundo e em todas as culturas, vêm se impondo na contemporaneidade como um importante foco de estudo e como um grande problema de saúde pública, devido ao seu impacto e frequência cada vez maiores (WHO, 2017)
A Organização Mundial de Saúde aponta que aproximadamente 800.000 pessoas se suicidam por ano em todo o mundo e que pelo menos seis pessoas são diretamente afetadas por essa morte (WHO, 2017). Isso significa 1 suicídio a cada 40 segundos, com uma taxa de 11,4/100.000 pessoas (WHO, 2014). Para cada pessoa que comete suicídio, estima-se que 20 outras realizam tentativa (WHO, 2017). No Brasil, o oitavo país em número absoluto de casos, são registrados cerca de dez mil suicídios todos os anos. Em pouco mais de uma década, de 2000 a 2012, houve um aumento de mais de 10% na quantidade de mortes no país (CFM, 2014).
Uma série de estudos rastreou fatores de risco e fatores de proteção relacionados ao suicídio e outros tantos estudos tentam compreender os mecanismos neurobiológicos (Lippard et al., 2014), psicológicos (Joiner & Silva, 2012) e sociais (Sachs-Ericsson et al., 2015) que o norteiam. Dentre os fatores identificados que se relacionam com o aumento de risco de suicídio estão presentes: Sexo masculino, adultos jovens e em idade avançada, viúvos, solteiros e divorciados, ausência de filhos, residir em grandes centros urbanos, consumo de álcool e drogas, crise financeira, histórico de lar desfeito na infância, presença de doença mental e doença física e tentativa prévia de suicídio. Os fatores protetores para comportamento suicida incluem sexo feminino, residir em menores centros urbanos ou na zona rural, presença de religiosidade, presença de grande número de filhos, guerra e estado civil casado (Joiner & Silva, 2012).
Pacientes portadores de doenças físicas pensam e tentam se suicidar com mais frequência do que a população geral, especialmente quando apresentam mais de um diagnóstico clínico (Druss & Pincus, 2000). Nesses casos, o impacto e sofrimento físico e emocional causados pelo adoecimento oncológico é particularmente intenso. O diagnóstico de câncer, isoladamente, aumenta o risco de suicídio de um indivíduo em duas vezes e meia, especialmente, no primeiro ano após o diagnóstico (Fang et al., 2012). O risco apresenta-se maior no momento do diagnóstico, nos três primeiros meses e após os dois primeiros anos, considera-se também o risco aumentado no caso de diagnóstico de tumores progressivos (WHO, 2000). Estudos apontam as características associadas ao suicídio em pacientes com câncer. São elas: sexo masculino, idade avançada, não estar casado, desemprego, baixo nível educacional, presença de ansiedade, depressão ou estresse pós-traumático relacionado com o diagnóstico de câncer, tipo de câncer e estágio avançado de doença.
Apesar dos investimentos para que se entenda o que leva alguém a esse ato tão extremo, ainda não há maneira de predizer a ocorrência de um suicídio. De uma perspectiva existencial, pertencer a um grupo, sociedade ou família e contribuir com sua manutenção e funcionamento são consideradas necessidades básicas de uma existência humana digna e valorosa, porque se opõem à ideia da vida como mera sobrevivência. As frustrações ou ausência de ambas as necessidades são determinantes para a formação do pensamento e do comportamento suicida (Joiner & Silva, 2012). Segundo o Modelo Psicológico Interpessoal - MPI, o núcleo do pensamento suicida é formado pelas ideias de alienação, o oposto ao senso de pertencimento e da onerosidade ou fardo para os outros, o oposto ao senso de contribuição. A alienação é definida como pertencimento frustrado e implica que existe uma falta de cuidado recíproco nas relações (Cero et al., 2015) . Já a onerosidade é definida pela percepção de tornar-se responsabilidade de outra pessoa, acarretando demandas de alguma espécie de responsabilidade ou cuidado para as outras pessoas e da parte do indivíduo a percepção de sentir-se um "peso" (Cero et al., 2015). De acordo com a teoria, essas duas percepções são condições necessárias para os estados mentais geradores do pensamento suicida e ambas podem estar exacerbadas em indivíduos com condições clínicas de saúde comprometida, adoecimento crônico, perda de independência e idade avançada.
Apesar de que pensamentos suicidas, em algum momento da vida, possam passar pela cabeça de grande parte das pessoas (Paykel et al., 1974), agir de forma sintônica a isso exige uma condição mental muito peculiar, dado que é um comportamento que desafia e suplanta o instinto de sobrevivência. Para a execução de uma tentativa de suicídio é necessário que o indivíduo esteja dessensibilizado do medo relacionado ao suicídio e da dor envolvida no ato (Smith & Cukrowicz, 2015), de forma que, além do senso de alienação e de onerosidade, o indivíduo apresente o que chamamos de destemor aprendido (Joiner & Silva, 2012).
A dessensibilização destas percepções, ou destemor aprendido, desenvolve-se com a habituação de contato com o medo e com a dor; realidades bastantes comuns em pessoas adoecidas cronicamente, traumatizadas ou violentadas e auxilia no entendimento do porquê o maior preditor de suicídio é a presença de uma tentativa prévia de suicídio (Joiner & Silva, 2012; Smith & Cukrowicz, 2015).
O Modelo Psicológico Interpessoal tem como ferramentas padrão-ouro para avaliar os parâmetros discutidos de onerosidade percebida e alienação o Interpersonal Needs Questionnaire - INQ (Joiner & Silva, 2012; Van Orden et al., 2012). e para avaliar a destemor aprendido a Acquired Capability for Suicide Scale - ACSS-FAD (Van Orden et al., 2012). O estudo dos trabalhos publicados sobre tradução e validação destes instrumentos psicométricos em outros países será o objeto de pesquisa deste artigo, a partir da revisão bibliográfica da literatura. A construção da INQ e da ACSS-FAD surgiu a partir do interesse no comportamento humano, especificamente do suicídio. Joiner et al. (2012) refere que o objetivo foi encontrar respostas para as seguintes perguntas: O que leva seres humanos a sentirem-se um peso para os que o cercam? Por que algumas pessoas não conseguem sentir-se parte da sociedade/família em que estão inseridas? E o que ocorre para que alguns indivíduos passem ao ato em uma tentativa de suicídio e outros não?
As respostas e as consequências para as questões mencionadas acima são complexas como o próprio ser humano. A forma como o indivíduo se percebe em sociedade não necessariamente coincide como é considerado pelos outros. Logo, é socialmente relevante e necessário utilizar escalas, como ferramentas para a compreensão,rastreio e prevenção do comportamento suicida (Joiner & Silva, 2012; Van Orden et al., 2012). Tendo em vista o impacto crescente do suicídio na contemporaneidade e ao considerar o adoecimento oncológico como um fator que coloca os pacientes diante dessa possibilidade de modo mais direto e impactante que na população geral, se mostra de extrema importância uma revisão de literatura em que se pesquise sobre a tradução e a validação destes instrumentos psicométricos em outros países, para que se proceda a tradução e validação das mesmas para o português do Brasil. A identificação de fatores associados à ocorrência de pensamento ou tentativa de suicídio através destas escalas pode colaborar com a prevenção de comportamentos suicidas, especialmente em situações de risco aumentado, como na população oncológica.
Diante disso, o objetivo desse trabalho foi investigar os artigos publicados sobre tradução e validação em outros países dos seguintes instrumentos psicométricos: Interpersonal Needs Questionnaire (INQ) e da Acquired Capability for Suicide Scale (ACSS-FAD). O mesmo foi realizado através de uma revisão bibliográfica integrativa.
Método
Realizou-se uma revisão de literatura integrativa, método a partir do qual se organiza a síntese do conhecimento pesquisado e a aplicabilidade disto na prática, baseando-se em conhecimento científico (Souza et al., 2010)
Pesquisa de Artigos
A revisão foi elaborada através de pesquisa em diversas bases de dados, a partir do Portal Pesquisa Integrada da Biblioteca do A.C Camargo Cancer Center. Foram encontrados artigos nas seguintes bases de dados: Pub Med, Science Direct, Researchgate e Jesar.su.edu.pk.
Por meio de busca ativa, foram selecionados e utilizados os descritores a seguir: Acquired Capability for Suicide Scale - ACSS, Interpersonal Needs Questionnaire - INQ, psychometric properties, validation, suicide, validity. As pesquisas foram realizadas por meio dos descritores citados, especificamente na língua inglesa e não foi delimitado limite temporal em relação ao período de publicação, a fim de ampliar as possibilidades de resultados. Também foram realizadas buscas manuais, a partir de pesquisas no site do Laboratory for the Study and Prevention of Suicide-Related Conditions and Behaviors, da Florida State University.
Seleção de Artigos
Ao utilizar esses critérios de busca, foram avaliados artigos a partir do título e resumo. Após este momento inicial, foram eliminados os que não tratavam sobre a tradução e a validação das escalas. A partir dos resultados obtidos, foram selecionados 11 artigos que preenchiam os critérios delimitados, abordando a tradução e validação dos instrumentos da Teoria Interpessoal do Suicídio nos respectivos países em que foram realizados os estudos. E a análise de conteúdo seguiu Primeiro o proposto por Bardin (1977) em três etapas: seleção dos estudos, descrição dos estudos e resultados dos estudos, elencados no Quadro 1.
Resultados
Ao realizar a revisão bibliográfica foi possível observar, a partir dos dados da literatura, que os estudos apresentaram resultados que fortalecem os construtos apresentados no MPI (Joiner & Silva, 2012). Também foi realizada a comparação entre a metodologia e os resultados encontrados em cada um e articular semelhanças e diferenças entre eles. Há particularidades que são esperadas nas pesquisas, principalmente ao considerar que são populações de países diferentes, com faixa etária diversificada e outras diferenças entre as amostras como, por exemplo, ser adulto ou adolescente, população geral ou população com algum diagnóstico clínico, ter a coleta realizada em uma internação decorrente de tentativa de suicídio, entre outros.
No estudo feito na Alemanha, a escala INQ mostrou boas propriedades psicométricas como instrumento para acessar os constructos de onerosidade percebida e alienação (Hallensleben et al., 2016). As normas fornecidas permitiram que os pesquisadores comparassem a pontuação da amostra com valores de referência de uma amostra representativa de base populacional. No estudo realizado na França (Siefert-Boukaidi et al., 2013), a INQ teve uma significante correlação com risco de suicídio, desesperança, depressão e vulnerabilidade social. A consistência interna foi elevada. Os resultados apontam para a validação do constructo, mas ainda são necessários estudos complementares a fim de estabelecer isso.
Autor/Ano | País | Instrumento | Objetivos |
Glaesmer et al., 2013 | Alemanha | INQ | Investjgar as propriedades psicométricas da versão alemã do INQ em uma amostra de estudantes de graduação. |
Hallensleben et al., 2016 | Alemanha | INQ | Investigar dimensionalidade e propriedades psicométricas da versão alemã do INQ em uma amostra da população geral |
Podlogar et al., 2016 | Eslovênia | INQ | Tradução e validação da escala INQ em adolescentes provenientes de duas regiões da Eslovênia com os maiores índices de suicídio. |
Zhang et al., 2013 | China | INQ + ACSS | Testar a validade da Teoria Interpessoal do Suicídio em estudantes universitários chineses |
Suh et al., 2017 | Coréia do Sul | INQ + ACSS | Testar a proposição da Teoria Interpessoal do Suicídio em uma amostra de estudantes de graduação da Coréia e comparar com os dados de estudantes de graduação nos EUA. |
Siefert-Boukaidi et al., 2013 | França | INQ | Realizar uma adaptação francesa ao INQ e examinar a validade do constructo do INQ-F no setting clínico. |
Baertschi et al., 2017 | França | INQ | Investigar a aplicabilidade do ITPS numa população com questões de suicídio em um departamento de emergência |
Costa et al., 2018 | Portugal | INQ | Apresentar estudos de validação do Interpersonal Needs Questionnaire (INQ-15) para a população portuguesa. |
Lliceto et al., 2019 | Itália | INQ | Traduzir o Interpersonal Needs Questionnaire (INQ‐15) para o italiano |
Spangenberg et al., 2016 | Alemanha | ACSS | Investigar dimensionalidade e propriedades psicométricas da versão alemã do ACSS-FAD em uma amostra da população geral |
Shakir et al., 2017 | Paquistão | ACSS + INQ | Verificar o efeito moderador do bem-estar psicológico na associação entre não pertencimento e onerosidade percebida e o risco de capacidade adquirida para o suicídio entre pacientes com câncer no Paquistão. |
Com a pesquisa na população da Suíça (Baertschi et al., 2017), considerou-se os três fatores da Teoria Interpessoal do Suicídio: onerosidade percebida, alienação e destemor aprendido. Os profissionais de saúde consideraram as escalas úteis para o manejo com pacientes que apresentam questões de risco e ideação suicida. A aplicação da escala que mensura onerosidade percebida e alienação (INQ-15) pôde ser implementada e integrada à intervenção clínica da instituição, com pacientes em atendimento após tentativa de suicídio.
Para a população portuguesa (Costa et al., 2018), foi realizada pesquisa em três fases: primeira fase com amostra de controle com adultos da população portuguesa, segunda e terceira fase com amostra de estudantes universitários. A análise dos componentes principais demonstrou a existência dos três fatores pertinentes a Teoria Interpessoal do Suicídio e verificou-se igualmente uma adequada consistência interna, validade convergente e validade referenciada pelo critério risco de suicídio. Na segunda fase, foi possível demonstrar a validade preditiva das escalas do INQ-15 em cinco meses e a validade referenciada pelo critério ideação suicida. Na terceira fase, os resultados apoiaram a validação das escalas do INQ-15 e confirmaram a estrutura fatorial de três fatores, obtida no primeiro estudo. No último estudo, foi confirmada a estabilidade temporal das duas escalas do INQ-15 com duas semanas de intervalo.
Com a população da Itália (Lliceto et al., 2019), os resultados obtidos com a análise de multigrupo apoiaram a adequação do modelo de dois fatores para mensurar o senso de alienação e a onerosidade percebida. O modelo é invariável em toda a comunidade. Concluiu-se que o INQ‐15 é uma medida válida e confiável de para avaliar ambos os constructos. Implicações para pesquisa, avaliação e intervenção em ideação suicida foram amplamente discutidas.
A partir do estudo realizado com amostra de estudantes universitários da Coreia do Sul e EUA (Suh et al., 2017), na comparação dos resultados para o constructo de alienação, observa-se que os resultados são equivalentes entre as amostras. Esta equivalência também foi observada em relação à onerosidade percebida. Destacam-se diferenças culturais e comportamentais, considerando as particularidades de cada região.
Na pesquisa realizada no Paquistão (Shakir, 2017), os resultados mostraram que a diminuição do nível de bem-estar psicológico fortalece a relação entre a capacidade adquirida para suicídio e o senso de alienação, conforme preconiza a Modelo Psicológico Interpessoal com os três fatores. Por outro lado, alto nível de bem-estar não produz nenhum efeito na relação entre alienação e capacidade adquirida para suicídio na amostra de pacientes com câncer. Desta forma, foi possível demonstrar a validade preditiva das escalas do INQ-15 e confirmar a estrutura fatorial de três fatores propostos pela Teoria Interpessoal do Suicídio.
No estudo realizado na Eslovênia (Podlogar et al., 2017), havia a particularidade da amostra ser composta por estudantes adolescentes, provenientes das duas regiões com maior índice de suicídio na população nacional. Foi observada relação entre o fator de risco associado ao excessivo consumo de álcool e baixa autoestima. Diante dos resultados encontrados, concluiu-se que a escala não poderia ser validada, pois ficou em evidência a necessidade de ajustes para a população delimitada, devido às suas características específicas.
Discussão
Foram realizadas pesquisas utilizando a Acquired Capability for Suicide Scale (ACSS-FAD) e a Interpersonal Needs Questionnaire (INQ) em diversos países entre 2013 e 2019. A Interpersonal Needs Questionaire foi desenvolvida por Van Orden, para ser utilizada na pesquisa sobre as causas da ideação/comportamento suicida, assim como para ser empregada na clínica para acessar o risco de suicídio (Van Orden et al., 2012). A INQ utiliza uma escala Likert de 7 pontos para medir as respostas, de “Não é verdadeiro para mim” até “É completamente verdadeiro para mim”, com uma opção central “É verdadeiro até certo ponto”. A escala tem 15 itens, é auto-aplicável, e também pode ser administrada oralmente (Joiner & Silva, 2012). A escala Acquired Capability for Suicide Scale foi desenvolvida por Ribeiro, para mensurar o destemor aprendido, através de 7 itens. Trata-se de uma escala Likert auto-aplicável de 4 pontos, que vão de “não concordo” a “concordo plenamente”. O total de pontos pode variar de 0 a 28, sendo que resultados com valores mais elevados indicam maior nível de destemor em relação à morte (Ribeiro et al., 2014).
No presente estudo foram analisadas publicações que utilizaram a escala INQ nos seguintes países: Alemanha, Coréia do Sul, Eslovênia, França, Itália, Paquistão, Portugal e Suíça. Já a escala ACSS-FAD foi aplicada nos estudos realizados na Alemanha, China, Coréia Do Sul e Paquistão. De forma geral, não foi discutido no artigo da Coréia do Sul acerca da aderência às respostas. Também observa-se que a amostra é composta por estudantes universitários, que receberam estímulo em forma de créditos estudantis como incentivo. Destacam-se também diferenças nas formas de aplicação propostas: com o grupo selecionado na Coréia do Sul os participantes responderam o material impresso em papel. Na amostra dos Estados Unidos, as pesquisas foram em formato digital. Não foi avaliado neste estudo alterações em decorrência do método. O estudo realizado na Alemanha menciona que houve 30% de recusa para participação e 13% foram excluídos por não completarem as questões propostas e indica que estes enfrentaram dificuldades no preenchimento.
Verifica-se que diferenças entre as propostas de estudo e também entre o público escolhido para a amostra podem acarretar diferenças na dinâmica do processo e resultados. Outras pesquisas não especificaram a porcentagem de recusas e dificuldades dos participantes ao responderem às escalas, mas discorreram de forma mais detalhada em relação à análise dos resultados e desafios interculturais.
É importante destacar que há semelhanças nos dados da literatura, como o crescente aumento de tentativas e de suicídios concretizados a nível global, corroborando com dados da Organização Mundial de Saúde (WHO, 2017), nos quais há a estimativa de que aproximadamente oitocentas mil pessoas morrem em decorrência de suicídio por ano. Trata-se de uma questão de saúde pública e se faz necessário mobilizar pesquisas e programas em torno da prevenção, promoção de saúde, tratamento adequado às pessoas com comportamento suicida e conhecimento/atendimento multiprofissional. Os estudos de tradução e validação das escalas mostraram consenso acerca da Teoria Interpessoal do Suicídio, que considera a importância dos três constructos como preditores de comportamento suicida, incluindo ideação e tentativas. Isto pôde ser confirmado em diferentes populações e culturas.
Destacam-se também diferenças ao realizar a análise da revisão bibliográfica. Uma delas foi a diversidade do público escolhido para compor as amostras. A pesquisa realizada com a população da Coréia do Sul e Estados Unidos teve como público escolhido estudantes universitários. O estudo realizado com a população alemã também teve parte da sua amostra focada em estudantes. Portugal realizou a validação em três fases, nas quais a segunda e terceira fase tiveram os estudantes universitários como a amostra populacional selecionada.
Com a população da Eslovênia, o público-alvo foi de estudantes, mas havia a particularidade de serem adolescentes recrutados em duas regiões, com os maiores índices de suicídio do país. No entanto, a escala não foi validada por ter sido identificada a necessidade de adaptações para este público específico. Uma questão levantada foi o consumo de álcool enquanto fator de risco importante para a população desta amostra. Conclui-se que consumo de álcool e onerosidade percebida são fatores importantes para observar em estudos futuros e adaptações, mas principalmente trata-se de uma questão a ser considerada para a prevenção do suicídio.
No estudo realizado em Portugal, para a primeira fase da pesquisa foram selecionados indivíduos adultos da população geral. No estudo realizado na Alemanha também foi selecionada parte da amostra com a população geral alemã. Outro público escolhido para realização de estudos foi o de pessoas com algum diagnóstico clínico ou hospitalizadas em decorrência de tentativas de suicídio, como o estudo no Paquistão (pacientes com diagnóstico oncológico) e o estudo com a população da Suíça (pacientes atendidos em emergência psiquiátrica decorrentes de tentativa de suicídio). O estudo realizado na França também foi focado em pacientes atendidos após tentativa de suicídio. Nestes estudos, o adoecimento é percebido da perspectiva do paciente que enfrenta perdas (de saúde, de autonomia e qualidade de vida) e, devido a isso, passa a se sentir um fardo para sua rede social e familiar. Nos estudos realizados com participantes em contexto de adoecimento, a onerosidade percebida demonstra-se muito relevante entre os três fatores determinantes da Teoria Interpessoal de Suicídio.
É preciso considerar que para algumas culturas, principalmente as orientais, a onerosidade percebida tem uma dimensão particular. Dentro deste contexto específico, as relações interpessoais e o papel do sujeito no grupo têm ênfase maior do que na individualidade. Nestes casos, sentir-se um peso para o grupo terá um significado diferente do experienciado em outras culturas. Já em culturas ocidentais, verificou-se que o sentimento de não pertencimento é mais frequente, principalmente na população jovem, na qual os resultados mensurados destacaram esse fator. Na população dos Estados Unidos foram obtidos resultados que indicam maior índice de Capacidade Adquirida para Suicídio. No estudo, questiona-se sobre quais fatores culturais e/ou sociais proporcionam estes resultados e a exposição à violência é cogitada como possibilidade.
A religiosidade e o papel que esta exerce nos indivíduos de determinada população é uma questão a ser ressaltada. No Paquistão, país em que a religião predominante é o islamismo, é possível observar que a mesma ocupa um lugar muito particular na vida da população. Ao considerar a realidade dos pacientes oncológicos, naquele país, a questão do suicídio trata-se de um grande tabu, no qual eutanásia ou morte assistida estão fora de qualquer possibilidade e o suicídio em si é fortemente condenado, entendido como motivo de desonra para a pessoa que se suicida e para sua família. O julgamento social inibe e prejudica as discussões sobre o tema até mesmo para fins preventivos. No entanto, se comparamos com o estudo realizado na Suíça, percebeu-se que a temática do suicídio tem outra representação social, sem a forte influência da religião.
O estudo realizado na Suíça destaca como uma questão importante a necessidade de que profissionais de saúde que atendem pacientes com queixas relacionadas a ideação suicida recebam treinamento adequado para ofertar o melhor cuidado. A pesquisa aponta sobre a importância de ter à disposição ferramentas para triagem e rastreio do risco de suicídio. A partir deste tipo de consideração, se faz importante pensar sobre a implementação das escalas baseadas no Modelo Psicológico Interpessoal (MPI) associadas ou não a outros instrumentos para rastrear o risco na população, seja esta de adultos, estudantes universitários ou pacientes com diagnósticos em saúde mental ou clínicos diversos.
A partir da revisão bibliográfica de estudos para tradução e validação das escalas que compõem a Teoria Interpessoal do Suicídio em diversos países, e mesmo diante da pluralidade de fatores, culturas e questões a serem consideradas, a aplicabilidade se mostrou adequada e foram obtidos resultados com boa consistência interna com os instrumentos. Logo, mostrou-se relevante considerar a possibilidade da tradução e validação das escalas para o português do Brasil, a fim de observar a aplicabilidade da teoria e de suas escalas no país.
Considera-se de extrema importância ter à disposição de diferentes profissionais, principalmente os da área da saúde, instrumentos para triagem e rastreio do risco de suicídio. Assim, é possível desenvolver pesquisas sobre um tema tão atual, além de possibilitar a adequada avaliação, prevenção e encaminhamento para tratamento.