A despeito do avanço na área científico-tecnológica, que muito tem contribuído para a descoberta de novas medicações, tratamentos, cura para doenças e o aumento da expectativa de vida, o distanciamento das relações humanas tem se intensificado. A perspectiva integral do ser humano é uma meta perseguida na medicina, pois a formação médica ainda se mantém fundamentada no modelo biomédico, que compreende o corpo humano como máquina, sendo a doença um desvio biológico em relação à norma e que precisa ser tratada a qualquer custo.
Esse modelo é pautado nos ideais positivistas, caracterizado pelo conhecimento técnico e fragmentado, que garante que o médico seja especialista no tratamento das doenças, porém insuficiente na relação com a pessoa doente (Canguilhem, 2005; Cano, 2014; Chinato et al., 2012). Dessa forma, uma proposta de mudança paradigmática do sistema vigente defende a revisão nos currículos de medicina, das disciplinas fragmentadas e predominantemente teóricas, para currículos mais flexíveis, modulares, dirigidos para a aquisição de competências e habilidades profissionais, que assegurem a integralidade da atenção e humanização do atendimento prestado aos indivíduos (Rossi & Batista, 2006; Silva et al., 2015).
No contexto hospitalar, as condições ambientais e a doença por si só já geram no indivíduo sentimentos de medo e insegurança, que podem ainda ser intensificados de acordo com os aspectos presentes no contexto vivenciado. Moré et al. (2009) destacam que as peculiaridades de cada setor hospitalar vão influenciar na dinâmica relacional e comunicacional. O setor de Clínicas Médicas, que constitui o contexto pesquisado no presente estudo, apresenta como características a indefinição, investigação e espera diagnóstica, o que contribui para diálogos imprecisos frente às incertezas e, consequentemente, maior exigência das habilidades comunicacionais do profissional (Moré et al., 2009).
Manter processos de comunicação com pacientes e familiares não é tarefa fácil, principalmente quando se trata de comunicar más notícias, definidas como as notícias que alteram de forma drástica e negativa a perspectiva dos pacientes e familiares em relação ao futuro, ou seja, informações que ameaçam a vida e o bem-estar psicossocial dos indivíduos (Borges et al., 2012; Buckman, 1992; Díaz, 2006). O impacto ocasionado pela má notícia, não é apenas para quem recebe a informação, mas também para quem a transmite, visto que o médico precisa lidar com suas próprias reações emocionais e concepções relacionadas ao adoecimento e morte. Nessas situações é comum que o médico resista em informar o diagnóstico ao paciente de forma explícita, utilizando-se de termos técnicos, eufemismos ou a própria omissão dos fatos, o que dificulta o entendimento da informação (Pereira, 2005).
O conjunto complexo de aspectos que constituem a comunicação humana se caracteriza pela forma, conteúdo e a linguagem presentes nos processos interacionais. As significações implícitas e a pragmática da comunicação favorecem a compreensão dos efeitos da mesma no comportamento humano (Nieweglowsky & Moré, 2008). Para Watzlawick et al. (1973) todo comportamento é uma forma de comunicação em si mesmo, tanto as palavras quanto o silêncio, tudo possui valor de mensagem. Nesse sentido, não é possível não se comunicar e a forma como ocorre a comunicação é tão relevante quanto o seu conteúdo.
Tendo em vista as peculiaridades envolvidas no ato comunicacional, principalmente, no que se refere à comunicação de más notícias por parte dos profissionais de saúde, alguns instrumentos e protocolos são utilizados com o intuito de estruturar e aprimorar tal tarefa, como o protocolo Spikes, desenvolvido por Buckman (1992). Esse protocolo se caracteriza como um relevante modelo de comunicação de más notícias por proporcionar foco, orientação, reflexão e facilitar a aprendizagem dos profissionais de saúde (Araújo & Leitão, 2012; Lino et al., 2011; Traiber & Lago, 2012).
Em virtude da relevância da complexidade da tarefa atribuída ao profissional de medicina para comunicar más notícias ao paciente e familiares, o presente estudo teve como objetivo compreender como se dá o processo de comunicação de más notícias na perspectiva de residentes de medicina da Clínica Médica, bem como suas percepções acerca da formação profissional; da utilização de protocolos ou metodologias específicas para a comunicação de más notícias; das habilidades e dificuldades pessoais que podem auxiliar ou prejudicar esse processo; e das estratégias e recursos utilizados para lidar com as próprias emoções e as reações do paciente e da família.
Método
Trata-se de uma pesquisa qualitativa que busca compreender os significados que os sujeitos atribuem as suas ações e relações (Minayo, 2010). O local da coleta de dados foi um hospital universitário do sul do Brasil, que possui uma circulação diária de 3.500 pessoas e atende exclusivamente pelo Sistema único de Saúde (SUS). Presta assistência em vinte e sete especialidades, tanto a nível ambulatorial quanto hospitalar, com serviços de emergência, média e alta complexidade. Oferece residência médica em vinte e uma especialidades, cuja duração varia entre um e três anos. A especialidade da Clínica Médica foi escolhida para o presente estudo, pois se caracteriza como um contexto de imprevisibilidade gerada pela necessidade de investigação e espera por diagnósticos, sendo, portanto, um campo onde a comunicação de más notícias ocorre frequentemente.
Participantes
O número de participantes da pesquisa foi definido tendo em vista a totalidade de vagas (14) oferecidas por ano para a especialidade de Clínica Médica, sendo sete residentes do primeiro ano (R1) e sete do segundo ano (R2). Para essa pesquisa, foi critério de exclusão os residentes que estavam em estágio externo e os residentes que não faziam parte exclusivamente da Clínica Médica. Dessa forma, doze residentes de medicina (sete R1 e cinco R2) participaram da pesquisa. Ao longo do estudo, os entrevistados foram citados pelo ano da residência (R1 ou R2) seguido do número referente à ordem em que foram entrevistados (E1, E2...), além de serem identificados pelo sexo masculino, com o intuito de manter preservadas as suas identidades.
Material
Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista semiestruturada, com oito questões baseadas em quatro temáticas específicas (formação acadêmica, uso de protocolos ou instrumentos, sentimentos e vivências, bem como estratégias e recursos utilizados), com o intuito de compreender de forma descritiva e exploratória como se dá, para o residente, o processo de comunicação de más notícias.
Procedimento
A coleta de dados foi realizada nas salas de aula da medicina, do referido hospital, após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, da universidade a qual o hospital está vinculado, através do parecer consubstanciado CAAE: 89514218.9.0000.0121. Os residentes foram abordados por meio do procedimento Snowball (Bola de Neve), em que participantes iniciais de um estudo recomendam novos participantes (Trochim, 2006). Todos receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, conforme a Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que garante a manutenção do sigilo e os aspectos éticos. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas na íntegra e posteriormente procedeu-se à análise de conteúdo (Bardin, 2011).
Resultados
A partir da análise dos dados provenientes das entrevistas, foram definidas quatro categorias principais, subcategorias e elementos de análise que discorrem sobre: a concepção dos residentes acerca da comunicação de más notícias; da formação profissional; dos critérios utilizados para a comunicação de más notícias; e os desdobramentos do processo de comunicação.
Concepção de Comunicação de Más Notícias
Essa categoria versa sobre o significado do termo comunicação de más notícias, a partir da concepção dos residentes. Da análise em conjunto dos dados emergiram três subcategorias decorrentes dos conteúdos que se destacaram no discurso dos entrevistados. A primeira subcategoria, denominada “Impacto emocional” demonstra que os participantes identificaram como comunicação de más notícias, as informações que precisam ser passadas ao paciente e/ou familiar e que, provavelmente, vão provocar alguma reação emocional negativa nestes: “vai causar dor nessa pessoa, provavelmente vai causar uma preocupação, um sentimento no qual ela vai ter que trabalhar a respeito” (R1/E3).
Nesse sentido, o entrevistado R1/E4 também exprime a amplitude e relatividade do termo ao exemplificar que uma má notícia “pode ser desde uma informação sobre a mudança de prescrição até sobre a comunicação de uma doença incurável”.
A segunda subcategoria, “Diagnóstico e prognóstico desfavorável”, destaca resultados que apontam que quatro entrevistados apresentaram uma compreensão mais restrita quanto ao termo ‘comunicação de más notícias’, descrevendo-o como a transmissão de informações difíceis, relacionadas exclusivamente ao diagnóstico e/ou prognóstico desfavorável, conforme apresenta o participante R1/E2:
É comunicar para o paciente diagnósticos ruins, com desfechos ruins no geral assim [...] porque acho que é muito mais fácil você comunicar o diagnóstico de uma doença que a gente vai conseguir tratar. O problema é quando tem que falar de uma doença que não vai ter tratamento e talvez até tenha tratamento, mas o tratamento é uma quimioterapia, vai ser um tratamento com mais sofrimento, isso que é difícil (R1/E2).
Já a terceira subcategoria, nomeada como “Complexidade e preparação”, possibilitou observar que alguns dos entrevistados destacaram a complexidade inerente à tarefa de comunicação de más notícias, indicando ser necessária uma preparação para que se consiga realizar a tarefa de forma adequada. O participante R1/E6 descreve esse aspecto em uma de suas falas:
Mas eu acho assim, o principal você falar a notícia pro paciente, dizer o que ele tem, dizer o prognóstico, dizer como vai ser feito, falar as palavras certas, porque as vezes você fala uma palavra e o paciente não entende, então falar a palavra certa pra ele entender [...] eu acho o mais importante (R1/E6).
Formação Profissional
A percepção dos entrevistados quanto a formação profissional foi descrita nessa categoria, através da avaliação da forma como foram e estão sendo capacitados para a comunicação de más notícias, bem como daquilo que identificaram como relevante nesse processo de ensino-aprendizagem, constituindo duas subcategorias referentes à prévia ou atual preparação para tal atividade.
Através do “Preparo teórico e prático” identificou-se que os participantes apontaram majoritariamente, que tiveram algum tipo de contato com a temática ao longo da graduação, seja mediante aulas teóricas, ou por meio de professores que proporcionaram treinamento com simulações, orientações e feedbacks. No entanto, consideraram o ensino acadêmico insuficiente, ao contrário da aprendizagem desenvolvida com a residência médica atual, que tem proporcionado a prática supervisionada por profissionais experientes e capacitados na temática de comunicação de más notícias. Os participantes também atribuíram como positiva a presença da residência em Cuidados Paliativos no hospital, uma vez que visualizavam essa especialidade como sendo mais preparada tecnicamente para tal tarefa, proporcionando trocas proveitosas entre residentes. Estes aspectos destacam a relevância do acadêmico/residente de medicina ter profissionais como modelos na prática, que alterem o foco do que fazer para o como fazer, conforme evidencia o participante R1/E5:
[...] Então, eu acho que essas simulações são boas assim, mas para o passo inicial, né? Pra quebrar o gelo, mas aprender mesmo tem que acompanhar alguém experiente que já tem experiência com isso pra ir vendo como ele faz, como ele se aproxima do paciente, o jeito que fala, o jeito que se coloca, os gestos, né? Acho que não tem muito jeito assim, é com experiência do dia a dia, vendo os outros fazerem pra depois você começar a fazer sozinho, porque apesar de simulação ajudar um pouco, a prática é muito diferente, né? (R1/E5).
Ainda em relação à aprendizagem da comunicação médica, foi observado entre os participantes a indicação de uma hierarquia existente nas relações - acadêmico, residente e docente - ilustrada pelo participante R1/E6: “Durante a faculdade a gente não lida muito com isso, quem dá a notícia é o médico, não é o interno” (R1/E6).
A subcategoria “Preparo emocional” possibilitou identificar nas narrativas dos participantes, elementos relativos à falta de preparo emocional do médico para lidar com a temática das más notícias, e a necessidade de mudanças no currículo e no pensamento médico para que seja possível investir em uma assistência humanizada e não apenas técnica. O relato a seguir caracteriza as questões relacionadas ao preparo e a falta do mesmo para a atuação do médico:
Acho que não é só o fato de ter uma matéria de como dar notícias ruins, mas é um preparo emocional, porque eu tenho a impressão de que a gente não tem um preparo emocional, então se a gente não consegue verbalizar isso até pra gente, como a gente consegue falar isso pra alguém e pensar no outro? A gente não tem isso, a medicina ainda é muito fria né, ela não tem esse contato, essa questão da morte, a gente não tem esse vínculo. Então é muito mais do que implantar essa matéria, mas é uma mudança de pensamento médico, que é uma coisa mais complicada, né? (R1/E4).
Critérios Utilizados para a Comunicação de Más Notícias
Nessa categoria, a aprendizagem e o desenvolvimento das habilidades comunicacionais foram descritos pelos participantes como produtos da prática informal cotidiana, atrelados a observação e acompanhamento de professores e outros médicos mais experientes, sem a indicação clara de técnicas estruturadas ou protocolos a serem seguidos. Nesse sentido, os entrevistados se referiram à metodologias ou estratégias para decidir sobre o quê, quando e como comunicar más notícias ao paciente e familiares.
A maioria dos participantes relatou seguir alguma metodologia, mesmo que informal, para comunicar más notícias, ou seja, a partir da formação acadêmica, da prática cotidiana, das trocas com a equipe de Cuidados Paliativos e das metodologias utilizadas pelos staffs que os acompanham na residência. Alguns ainda afirmaram a contribuição do protocolo Spikes, apesar de relatarem não o seguir de forma sistemática: “Eu tento usar um pouco o protocolo Spikes assim, mas na hora acaba saindo de uma forma totalmente inesperada. Acho que quando a gente acaba seguindo ele, acaba indo um pouquinho melhor, assim [...]” (R1/E8). Tomando como base as seis etapas do protocolo Spikes, que é um acrônimo em inglês, foram observadas semelhanças entre os critérios referidos por alguns residentes em suas atividades de comunicação de más notícias, e as etapas do protocolo Spikes.
A primeira etapa do protocolo se refere ao Planejamento da comunicação (S - Setting up the interview), etapa citada por sete participantes, principalmente no que diz respeito à preparação do contexto: “[...] o que eu faço é me preparar já pensando nas eventuais dúvidas que o paciente ou que a família vai ter. Assim que eu estiver preparado, tiver as informações, ver também o contexto, se o familiar está muito nervoso [...]” (R1/E5). Avaliação da percepção do paciente (P - Perception), etapa citada como critério por cinco entrevistados: “antes de começar a comunicar, normalmente eu pergunto o que o paciente entende da situação, né? Isso torna as coisas mais fáceis” (R2/E10). I - Invitation, apenas cinco dos participantes verbalizaram que costumavam seguir essa etapa para investigar o que o paciente queria saber sobre sua condição clínica:
Acho que o critério é sentir o paciente, perguntar ‘você sabe o que o você tem?’ Às vezes fala ‘ah não, não sei... não faço ideia’.... ‘E você quer saber? Quer que te explique?’ Alguns até não querem, outros querem, então acho que é dando abertura pro paciente e aí diante do que eles nos expõem [...] aí a gente vai vendo, se dão abertura, se não dão. Mas é mais o quanto que o paciente naquele momento consegue, né? (R1/E9).
O Convite ao diálogo (K - Knowledge), etapa citada somente por quatro participantes, refere-se à importância de priorizar a transmissão das informações de forma gradual, quando se oferecia tempo para o paciente assimilar o conteúdo comunicado:
Quando a gente tá na emergência, o paciente já vem grave, já não tá numa evolução boa e a gente já tem que conversar com a família sobre isso, é a parte mais difícil [...] do que quando a gente tá acompanhando alguém que tá há mais tempo internado, que a gente já tem um certo vínculo, acho que acaba sendo um pouco mais fácil do que nessas situações extremas, né? (R2/E1).
O comportamento de Expressar emoções (E - Emotions), considerada a etapa referente à expressividade emocional e ao comportamento de responder de maneira empática às emoções manifestadas pelos pacientes e familiares após a comunicação das más notícias. Foi citada por oito residentes: “Por exemplo, uma coisa que eu sempre falo quando eu comunico é assim ‘deve estar sendo muito difícil pra ti estar passando por isso’, principalmente quando eu falo pra algum familiar, daí é o momento que [pausa] sabe? Deixar transparecer que eu compreendo, tô me compadecendo com a dor deles” (R2/E10).
A etapa nomeada Organizar planos e síntese das informações (S - Strategy and summary), buscava retomar as informações fornecidas e apresentar as possibilidades de cuidados e tratamentos. O conteúdo referente a esse item não foi mencionado por nenhum dos participantes.
Desdobramentos do processo de comunicação
Tendo em vista a complexidade do processo de comunicação de más notícias, principalmente frente às reações emocionais que são despertadas de forma singular tanto nos profissionais quanto nos pacientes e familiares, essa categoria se constituiu de duas subcategorias “sentimentos” e “enfrentamento psicológico”. Na primeira subcategoria, foram abordados os sentimentos mais citados pelos entrevistados, isto é, o que identificaram sentir acerca do processo de comunicação de más notícias.
Praticamente todos os entrevistados relataram ambivalência quanto ao envolvimento emocional com a situação, denominada por alguns como empatia. Ou seja, o comportamento de se colocar no lugar do paciente e compreender o seu sofrimento foi caracterizado como positivo, porém não saber lidar com os sentimentos suscitados por essa relação acarreta ansiedade e sofrimento para si:
Não quero me tornar uma pessoa fria, eu só queria segurar essa lagriminha, não precisava, mas eu acho que isso é importante pro paciente também de saber que quem tá cuidando dele é uma pessoa que tem sentimentos, que entende o sofrimento da situação [...] então eu também não quero cortar isso totalmente de mim, né? Mas é uma coisa difícil conseguir equilibrar até que ponto eu mantenho um sentimento de solidariedade, de empatia e não sofrer pelo paciente (R1/E2).
Essa dificuldade foi apontada de forma mais frequente pelos residentes do primeiro ano, enquanto os do segundo ano perceberam que a mesma vai sendo amenizada com a prática, rotina e, consequentemente, aumento da segurança. Em contrapartida, os participantes destacaram outras características que dificultam a comunicação, como o vínculo, o tipo de doença e a identificação com o paciente. Os sentimentos de impotência, frustração e fracasso também foram comuns nos discursos dos participantes, conforme evidencia a fala a seguir:
Normalmente é uma coisa que acaba sendo desconfortável, não sei se desconfortável é a palavra, [...] chato [...] não é a mesma coisa de dar uma notícia de que um bebê nasceu, né? Acaba gerando um pouquinho mais de aflição, assim pra gente [...] dá uma sensação que a gente, algumas vezes, não todas, que a gente perdeu a batalha [...] algo assim (R1/E8).
A segunda subcategoria, relativa ao enfrentamento psicológico, refere-se às atitudes apresentadas pelos residentes para lidar com as próprias reações emocionais e o manejo para gerir as reações dos receptores da comunicação de más notícias. A maior parte dos participantes, antes de descrever o manejo adotado diante das situações adversas, especificou que suas ações variavam de acordo com a reação apresentada pelo outro, no caso o paciente e/ou familiares: “cada um tem uma reação, mas eu tento me adaptar de acordo com a reação deles [...]” (R1/E2).
Em suas narrativas, os residentes mencionaram que frequentemente se disponibilizavam a responder as dúvidas de pacientes e familiares após a transmissão da má notícia, como forma de tentar amenizar os sentimentos suscitados: “Eu falo, espero a pessoa raciocinar, digerir e ver como ela vai reagir, caso ela não tenha reação [...] muitos pacientes não têm reação no momento, e alguns se isolam [...] aí eu fico ‘disponível’, qualquer coisa, se quiser conversar depois...’” (R1/E3).
Outros comportamentos citados pelos participantes puderam ser caracterizados como estratégias de enfrentamento focalizadas no problema, como após a comunicação com o paciente, encaminhá-lo para outros profissionais (psicólogo, assistente social e psiquiatra), especificar os planejamentos em relação ao prognóstico e tratamento, solicitar para equipe de enfermagem a liberação de visitas dos familiares e promover o alívio da dor com medicamentos. Ou estratégias de enfrentamento focadas na emoção, identificadas nos relatos dos entrevistados, ao citarem comportamentos que costumam realizar após a comunicação de má notícia como: chorar, utilizar da comida como escape e a busca por apoio com amigos, professores ou psicólogo. Ou ainda, a estratégia que combina o foco no problema e na emoção, evidenciada pelos participantes através das seguintes narrativas: “eu sou o médico, preciso dar um suporte, preciso estar forte” (R2/E10) e “eu não foco na notícia e na‘dó’ [compaixão] da pessoa sabe? Eu fico focado em qual é o objetivo: ‘ah eles entenderam?’” (R2/E9).
Discussão
A palavra concepção, adotada nesse estudo para ser aplicada às perspectivas que os residentes construíram sobre a comunicação de más notícias amplia a possibilidade de respostas, dando maior enfoque para a particularidade do indivíduo, ou seja, qual sua percepção e compreensão sobre o termo, em detrimento da definição teórica (Rossi & Batista, 2006). Já a percepção de que a comunicação de más notícias pode provocar alguma reação emocional negativa, se assemelha ao que é definido por Borges et al. (2012), os quais destacam que a má notícia tem um caráter mais amplo do que uma informação relacionada exclusivamente ao diagnóstico ou prognóstico ruim, ou seja, é caracterizada como “má” tendo em vista as emoções que provocam nos agentes envolvidos, não sendo possível analisá-la isoladamente.
A comunicação de más notícias foi descrita como a representação do sentimento de fracasso médico em ter que lidar com a perda da onipotência ao comunicar a incurabilidade ou a falta de tratamento para a doença. Os participantes, de modo geral, referiram a necessidade de preparo prévio para a comunicação de más notícias, pois o conteúdo da notícia altera o modo de comunicá-la. Tais dados corroboram os resultados do estudo de Monteiro e Quintana (2016), sobre comunicação de más notícias em contexto de unidade de terapia intensiva (UTI), que enfatizam a necessidade de preparo frente à dificuldade de ter que lidar com os sentimentos envolvidos, tanto do emissor, quanto do receptor da mensagem.
Nos processos comunicacionais entre médico e paciente, os entrevistados ressaltaram a necessidade de ultrapassar a mera informação do diagnóstico, prognóstico e tratamentos das doenças. Destarte et al. (2012) referem alguns fatores que podem afetar a comunicação, como o nível de instrução, cognição, diferentes idades e aspectos socioculturais que merecem ser igualmente atentados para que a comunicação possa ocorrer de forma satisfatória.
Os participantes evidenciaram ainda que a formação recebida em seus treinamentos anteriores à residência, em sua grande maioria, estava calcada na objetividade e controle emocional. Essa postura “controlada” pode ser compreendida como o produto da formação médica baseada no modelo positivista, em que predominam a neutralidade e a objetividade. No entanto, apesar de parecer oferecer algum resguardo emocional, demanda muita energia para que o profissional tente manter tal controle (Canguilhem, 2005; Cano, 2014).
A análise dos resultados em conjunto demonstrou que o modelo biomédico, pautado em ideais positivistas, ainda prevalece na formação, com a exaltação da onipotência médica e o predomínio da cura em detrimento do cuidado. Em contrapartida, os participantes descreveram o modelo de ensino-aprendizagem ofertado na residência como efetivo, destacando a importância da prática cotidiana supervisionada por professores/médicos experientes na comunicação de más notícias. Tal fato demonstra a relevância do papel do professor como modelo de atuação profissional ética, integral e humanista, visto que suas atitudes interferem diretamente na formação médica dos residentes.
A residência médica proporciona a construção de um processo ensino-aprendizagem calcado na prática, com o residente como o agente e o preceptor o mediador. Para Gilbert et al. (2006), ao se estudar os discursos médicos de residentes, observa-se que estes além de especializados, se encontram em construção “[...] não apenas em termos teórico-técnicos, mas também culturais, como lentes através das quais o médico dá significado ao mundo” (p.104). Nesse sentido, Gilbert et al. (2006) ressaltam que o residente representa aquele que recém ingressou num período de especialização, cujo caráter além de um rito de passagem, se constitui na transição de um nível de status para outro: de aluno para profissional.
Para Silva et al. (2015), embora as Diretrizes Curriculares Nacionais para a graduação de medicina e as orientações da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) defendam a redução da dicotomia existente entre teoria e prática, orientando que o estudante tenha contato precoce com o paciente nos locais de atendimento, ainda prevalece o modelo biocêntrico de saúde. Isto é, foca-se na tríade: queixa, doença e prescrição de tratamento, em detrimento da pessoa doente e do significado atribuído ao adoecimento, já que tais aspectos não atingem o treinamento profissional.
A fragmentação e dificuldade de integração, somadas à comunicação entre as próprias especialidades médicas, acaba sendo refletida nas questões pedagógicas. Dessa forma, há, mesmo que de forma velada, uma hierarquia entre um campo de ciência sobre o outro, entre o médico e o acadêmico, entre o médico e o paciente (Silva et al., 2015). Tal dicotomia afasta a compreensão biopsicossocial de ser humano e o cuidado médico humanizado. A inclusão de conceitos sobre humanização no currículo da formação médica, não garante a formação de médicos humanizados, uma vez que tal conteúdo pode ser ministrado por um professor que não perceba o sentido na mudança proposta e atue de forma contrária ao que ensina. Isso indica que questões históricas e culturais estão fortemente impregnadas nesse processo (Silva et al., 2015).
A reflexão sobre os aspectos emocionais em temas como a morte e o morrer representa importante parte da formação médica, conforme destacam Monteiro e Quintana (2016), pois não refletir sobre tais temáticas e as dificuldades pessoais para abordá-las com pacientes e familiares, pode acarretar dificuldades na comunicação, mesmo que o ensino teórico e técnico em medicina tenha sido excelente. Nesse sentido, a referência da utilização e seguimento de protocolos como o Spikes, que objetiva facilitar o momento da comunicação de más notícias (Sombra Neto et al., 2017), representou para os participantes, a possibilidade de imprimir algum controle emocional à temas sensíveis durante a comunicação médico-paciente-familiares. Embora a utilização do protocolo Spikes não tenha sido citada por todos os participantes para comunicar más notícias, foi possível perceber semelhanças entre os critérios que os residentes citaram em suas práticas e as etapas do protocolo Spikes (Araújo & Leitão, 2012; Baile et al., 2000; Lino et al., 2011; Traiber & Lago, 2012):
S - Setting up the interview: trata-se da preparação do médico para a comunicação da má notícia, recapitulando o histórico e informações sobre o caso clínico, bem como a preparação do espaço físico e o envolvimento de familiares;
P - Perception: verificação de quanto o paciente já possui de informação ou conhecimento sobre seu quadro clínico;
I - Invitation: identificação de quanto o paciente deseja saber sobre sua doença;
K - Knowledge: transmissão gradual das informações, objetivando a reduzir o impacto da notícia e disponibilizar tempo para que ocorra a assimilação da informação. A repetição da informação e a prevalência de uma linguagem acessível em detrimento de linguagem técnica, também foram citadas como recursos para facilitar a compreensão da notícia. Em contrapartida, alguns participantes pontuaram que dependendo do contexto, como por exemplo, o ambiente de urgência e emergência, muitas vezes não havia tempo para realizar uma preparação gradual e a notícia precisava ser dada de forma imediata. Os residentes ressaltaram essas situações como mais difíceis, pela falta de vínculo com o paciente e a família;
E - Emotions: expressão das emoções referentes ao comportamento de responder empaticamente às emoções manifestadas pelos pacientes e familiares após a comunicação das más notícias; e
S - Strategy and summary: retomada das informações fornecidas e apresentação das possibilidades de cuidados e tratamentos.
A despeito de toda contribuição oferecida pelo protocolo Spikes, o processo de comunicação de más notícias é algo subjetivo. Sendo assim, não é possível prever e se preparar para todas as reações que possam emergir dessa situação. Assim, por mais tecnicamente preparado que esteja, o médico não estará isento de ter que lidar com os sentimentos dos pacientes e os próprios sentimentos provocados com o ato comunicacional (Monteiro, 2013). Alguns participantes mencionaram o sentimento de ansiedade antes de realizar uma comunicação de más notícias, aspecto também observado no estudo de Seabra e Costa (2015), realizado em Portugal e que visou compreender as percepções de médicos recém-formados em relação à preparação para a comunicação de más notícias. Os resultados descreveram a ansiedade e insegurança como resultados do desconhecimento das reações e emoções que a informação causará no paciente e familiares.
Outro ponto ressaltado pelos participantes se refere à complexidade inerente ao processo de comunicação de más notícias, pois se trata de um momento associado a fragilidade e sofrimento tanto para quem está recebendo, quanto para quem está comunicando a notícia. Este fato foi observado através dos relatos dos residentes acerca das dificuldades para estabelecer um equilíbrio entre o sentimento de empatia com a situação do paciente e o envolvimento emocional gerador de sofrimento no profissional. Na tentativa de lidar com tais sentimentos, os residentes referiram o uso de algumas estratégias de enfrentamento, sendo predominante a racionalização como tentativa de controlar as reações emocionais e manter a objetividade tão exigida na prática médica. O conjunto de estratégias e habilidades desenvolvidas pelas pessoas visando o manejo de situações estressantes, e que exigem alguma adaptação é descrita como enfrentamento ou coping (Seidl et al., 2001).
As estratégias de enfrentamento se caracterizam por focarem o problema, a emoção, ou a combinação de ambos. O enfrentamento focalizado no problema é caracterizado pelo engajamento no manejo ou modificação do problema que é fonte de estresse, a fim de controlar o dano ou ameaça. O enfrentamento com foco na emoção é descrito através de comportamentos com a função de minimizar, regular as respostas emocionais diante das situações tidas como estressantes, podendo ser atitudes de afastamento, esquiva e reações negativas como raiva e tensão (Seidl et al., 2001).
O uso da racionalização pelo médico, foi abordado por Cano (2014) como uma estratégia de enfrentamento que combina o foco no problema e na emoção, numa tentativa de utilizar os fatos para solucionar os problemas e neutralizar os sentimentos e reações emocionais. Essa postura “controlada” pode ser compreendida como o produto da formação médica baseada no modelo positivista, em que predominam a neutralidade e a objetividade. No entanto, apesar de parecer oferecer algum resguardo emocional, demanda muita energia para que o profissional tente manter tal controle (Canguilhem, 2005; Cano, 2014).
Ao analisar as respostas dos entrevistados, percebeu-se a predominância do enfrentamento focalizado no problema, que se refere às estratégias ativas que buscam alterar a realidade e modificar o que está causando grande estresse ou ameaça (Seidl et al., 2001). Sentimentos de frustração, fracasso e impotência podem se fazer presentes, destarte, Monteiro e Quintana (2016) alertam ainda sobre o outro extremo do sentimento de fracasso, relacionado à euforia frente às notícias boas, como exemplificou o participante R1/E8, no seu relato sobre o nascimento de um bebê. Na sua prática diária, construída na relação com o paciente, o médico se depara constantemente com a tensão de vivenciar sentimentos muito bons ou muito ruins.
Como limitações desse estudo, aponta-se a abordagem da perspectiva da comunicação de más notícias apenas de uma especialidade médica, bem como a atribuição de significados somente pelo viés dos residentes de medicina. Sugere-se que estudos futuros sobre essa temática possam propor e avaliar a eficácia de novos modelos de treinamento que, considerem em sua formação, os aspectos emocionais e relacionais, bem como estudos que incluam as perspectivas de professores e preceptores, pacientes e familiares.
O investimento teórico/prático na formação médica, relativo às técnicas comunicacionais sistematizadas, com um maior enfoque aos aspectos emocionais e relacionais, além de subsidiar o manejo dos sentimentos suscitados no processo de comunicação de más notícias, está comprometido com a prática médica humanizada e ética, que, por sua vez, preza por uma assistência integral e uma relação médico-paciente de qualidade.