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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.24 no.3 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.15309/23psd240311 

Artigo

Vídeos sobre automutilação em adolescentes: à luz da fenomenologia de martin heidegger

Videos about self-mutilation in adolescents: in the light of martin heidegger's phenomenology

1Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, Rio Grande do Norte, Brasil


Resumo

O objetivo do estudo foi analisar, à luz do referencial de Martin Heidegger, o conteúdo dos vídeos postados no site do YouTube® referentes a automutilação em adolescentes. Trata-se de um estudo qualitativo, a coleta de dados ocorreu durante o mês de fevereiro de 2022. A amostra do estudo foi composta por 63 vídeos, que foram transcritos na íntegra e submetidos a análise temática indutiva, à luz do referencial de Heidegger. Identificou-se três categorias: caracterização dos adolescentes e da automutilação, motivos e as sensações trazidas pela automutilação aos adolescentes. Os adolescentes são, em maioria, do sexo feminino, tendo como método o corte. Dentre os motivos destaca-se o bullying, e quanto às sensações, os adolescentes relataram a substituição da dor emocional pela dor física. A compreensão da automutilação pelos diferentes atores sociais que compartilham a existência com os adolescentes é essencial para a redução das dores e a harmonia do Dasein com o mundo.

Palavras-Chave: Automutilação; Adolescente; Comportamento autodestrutivo; Psicologia do adolescente; Existencialismo

Abstract

The objective of the study was to analyze, in the light of Martin Heidegger's framework, the content of videos posted on the YouTube® website referring to self-mutilation in adolescents. This is a qualitative study, data collection took place during the month of February 2022. The study sample consisted of 63 videos, which were transcribed in full and subjected to inductive thematic analysis, in the light of Heidegger's framework. Three categories were identified: characterization of adolescents and self-mutilation, motives and sensations brought about by self-mutilation in adolescents. Adolescents are mostly female, using the method of cutting. Among the reasons, bullying stands out, and as for the sensations, the adolescents reported replacing emotional pain with physical pain. The understanding of self-mutilation by the different social actors who share existence with adolescents is essential for reducing pain and harmony between Dasein and the world.

Keywords: Self-mutilation; Adolescent; Self-injurious behavior; Psychology adolescent; Existentialism

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define a violência como o uso da força física ou poder, através de ameaças ou atos, contra uma pessoa, contra si próprio ou contra um grupo, que pode resultar em danos psicológicos, subdesenvolvimento, privação, ferimentos e morte. A violência é classificada em três categorias, são elas: interpessoal, que ocorre contra outra pessoa ou um pequeno grupo de pessoas; coletiva, praticada contra grandes grupos (estados, organizações políticas, milícias e terroristas); autoinfligida, em que o indivíduo inflige atos de violência contra si mesmo (WHO, 2002).

A violência autoinfligida, também denominada autoprovocada, abrange tentativa de suicídio, suicídio consumado, automutilação, com ou sem ideação suicida, e a ideação suicida (Abreu et al., 2018). Dessa forma, a automutilação consiste na realização de agressão, provocados intencionalmente, tendo como alvo seu próprio corpo e como principal causa o alívio de sentimentos emocionais. Assim, estes métodos servem como refúgio para aflições familiares, de relacionamentos ou da vida cotidiana como um todo (Santos et al., 2018).

As manifestações da automutilação são divididas em níveis de gravidade. Na modalidade leve, nota-se atos de morder-se a boca, os lábios e fazer arranhões na pele, havendo consciência na realização desses atos. Na forma moderada, podem-se encontrar batidas, arranques de cabelo, inserção de objetos embaixo da unha ou da pele e esculturar-se. Na forma grave efetua-se atos de cortar-se, queimar-se com objetos quentes, ferir a pele propositalmente, lesionar ferimentos ou outras áreas do corpo (Fonseca et al., 2018).

Neste contexto, mediante a ocorrência desses eventos, a autolesão e o suicídio são a terceira causa de morte entre os adolescentes, correspondendo a 62 mil óbitos no mundo (WHO, 2021; WHO, 2017). Na Europa, a violência autoprovocada constitui-se a principal causa de morte em adolescentes (Bahia et al., 2020).

No Brasil, no ano de 2020, foram registradas 13.835 mortes por lesões autoprovocadas, sendo a maioria dos casos nas regiões Norte e Sudeste. A população mais jovem e do sexo masculino tem predomínio nas ocorrências. Nota-se que, com o passar dos anos, ocorre aumento de mortes por lesões autoprovocadas voluntariamente nos adolescentes. Os dados mostram a incidência em adolescentes na faixa etária de 10 a 19 anos, identificando-se assim, a prevalência de casos principalmente em indivíduos de 15 a 19 anos de idade (Brasil, 2022).

A adolescência compreende a faixa etária de dez a dezenove anos, caracterizada por períodos de transformações físicas, emocionais, sociais, e vulnerabilidade à modificações da saúde emocional. Acentua-se a essa fragilidade a exposição aumentada aos fatores tais como estresse pela contrariedade, exploração da identidade, visualização de divergências nas realidades pelas mídias sociais e ambições para o futuro, relacionamentos com colegas e familiares, bullying e problemas socioeconômicos (WHO, 2021). A adolescência é um período da vida em que mudanças físicas, emocionais e sociais são características marcantes entre aqueles que a vivem. No entanto, para além disso, os adolescentes veem-se de maneira distinta e buscam compreender o mundo e as pessoas também de outro modo (Abreu et al., 2018).

Assim, para alguns, esse processo pode ser caracterizado por inquietações e sofrimentos. Por isso, alguns comportamentos podem ser compreendidos como manifestações desses sofrimentos vivenciados neste momento de vida, como por exemplo, a automutilação. Neste sentido, através da Lei 13.819 de 2019 foi instituída a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, que possui dentre os objetivos prevenir a violência autoprovocada, promover a saúde mental e controlar os seus determinantes e condicionantes. Juntamente, abrange os familiares e pessoas próximas às vítimas a receberem assistência psicossocial e informa e sensibiliza a sociedade sobre a temática, além de articular os serviços de saúde, educação, comunicação, imprensa e polícia (Brasil, 2019).

Dentre as opções para a atenção aos adolescentes que praticam a automutilação, tem-se a psicoterapia, orientada pela fenomenologia-existencial, que tem como objetivo auxiliar o indivíduo fornecendo ferramentas, como o autoconhecimento e a autonomia psicológica, para a resolução de situações ao qual está vivenciando e possa assumir a própria existência (Almeida & Basseto, 2020).

Desta forma, Heidegger aborda diversos conceitos fundamentais para a prática do existencialismo fenomenológico. Dentre eles está o Dasein, ser-no-mundo, angústia e decisão, sendo um meio para a compreensão da prática da automutilação em adolescentes a partir da própria existência (Moreira, 2010).

Diante disso, tem-se como questionamento quais as motivações e sensações ocasionadas pela automutilação relatadas pelos adolescentes em uma plataforma de vídeo? O estudo justifica-se pelas lacunas apresentadas na literatura científica, uma vez que estudos sobre a automutilação em adolescentes são escassos (Montini & Stefhan, 2019), principalmente de abrangência nacional, que abordam as implicações da automutilação3 e as causas em adolescentes (Lima et al., 2021).

Estudos sobre a automutilação são de fundamental importância para auxiliar as equipes de saúde, e do campo profissional da enfermagem, a ter um olhar diferenciado, no que diz respeito à identificação dos sinais desses casos, produzindo um cuidado ampliado voltado à escuta do adolescente, ofertando apoio em todas as áreas, principalmente, na saúde emocional.

Além disso, torna-se essencial investigar e compreender os motivos e sentidos que levam o adolescente a praticar a automutilação, para que assim possamos pensar em um olhar que compreenda o cuidado a esta problemática. Assim, o objetivo deste estudo foi analisar, à luz do referencial de Martin Heidegger, o conteúdo dos vídeos postados no site do YouTube® referentes a automutilação em adolescentes.

Método

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo qualitativo, exploratório e de base documental. A pesquisa qualitativa permite a compreensão indutiva e interpretativa de fenômenos sociais através dos dados coletados a partir de fatos, ideias e opiniões, bem como possibilita o entendimento de como as pessoas compreendem o mundo (Soares, 2019).

A pesquisa documental consiste na utilização de documentos como fonte de informação, na qual os documentos não se restringem a textos escritos, mas incluem filmes, pôsteres, fotografias e vídeos, sendo este último a fonte utilizada neste estudo (Sá-Silva et al., 2009).

Referencial teórico

Para o referencial teórico utilizou-se a teoria de Martin Heidegger, que se trata da fenomenologia existencial, e aborda o ser-no-mundo (Dasein). Para Heidegger, o homem interroga o sentido para a própria vida e está a todo momento relacionando-se com outras coisas (corporeidade), a procura de algo que não os pertencem a partir do corporar (modo-de-ser). Esta existência pode ser interrompida pela relação entre a habitação e as coisas ao redor, a partir da busca da familiaridade e a ilusão da segurança, tornando-se uma existência impessoal (Heidegger, 1989; Heidegger, 2001; Werle, 2003).

Procedimento

A busca foi realizada na internet através do site YouTube®, que possui abrangência nacional e internacional e permite visualizações, compartilhamentos e postagens gratuitas por pessoas de forma digital.

A coleta de dados ocorreu no mês de fevereiro de 2022 na plataforma YouTube® a partir de três etapas, são elas: aplicação dos termos de busca, leitura de títulos e análise do conteúdo do vídeo na íntegra.

Para a seleção dos termos de busca, inicialmente realizou-se uma busca exploratória com a aplicação do termo “Automutilação”, na qual observou-se as palavras recorrentes a fim de elaborar uma estratégia que abrangesse o maior número de vídeos que respondessem ao objetivo. Assim, na primeira etapa, aplicou-se os termos de busca “Automutilação” e “Minha história”, associados pelo operador booleano “AND”, sem o uso de filtros. Nesta etapa foram encontrados 471 vídeos.

Na segunda etapa, realizou-se a leitura dos títulos, para inclusão dos vídeos criados por adolescentes, em que houvesse o relato de vivências com a automutilação, e exclusão dos relatos que contam a vivência de outras pessoas, campanhas de conscientização, entrevistas e vídeos que não abordaram a automutilação. Sendo assim, foram excluídos 362 vídeos, dos quais 254 foram vídeos de campanhas de conscientização, 43 entrevistas com profissionais e 65 não abordaram a automutilação, restando então 109 vídeos.

Posteriormente, seguiu-se com a terceira etapa em que os vídeos foram analisados na íntegra ao qual foram excluídos 46 vídeos, pois não eram relatos de automutilação criados por adolescentes. Ao final, a amostra foi composta por 63 vídeos.

Análise de Dados

Os vídeos foram transcritos na íntegra e codificados de 1 a 63 (ex. A1, A2, A3, e assim por diante até o A63), em seguida iniciou-se a análise temática indutiva que permite a identificação de temas semelhantes entre os discursos sem considerar os interesses do pesquisador ou codificação pré-existente (Braun & Clarke, 2006).

A análise indutiva é realizada através de seis etapas, são elas: familiarização com os dados, geração de codificação (temas semelhantes e pouco frequentes), agrupamento por temas, revisão dos temas, definição e nomeação dos temas, e produção do relatório temático (Braun & Clarke, 2006).

Assim, identificou-se três temáticas: caracterização dos adolescentes e da automutilação, motivação para a automutilação e as sensações deixadas pela automutilação. Para facilitar a extração dos dados utilizou-se um instrumento para a coleta dos dados, contendo as informações: idade, sexo, ano de publicação do vídeo, método utilizado na automutilação, motivos e sensações ocasionadas pela automutilação.

Aspectos éticos

A realização do estudo dispensou a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa por ter utilizado dados secundários, de acesso público.

Resultados

A partir dos vídeos selecionados, emergiram três categorias de análise, intituladas: caracterização dos adolescentes e do ato de automutilação; os motivos que levaram os adolescentes a praticarem a automutilação e as sensações trazidas pela automutilação aos adolescentes.

Caracterização dos adolescentes e do ato de automutilação

A maioria dos adolescentes, com publicações de vídeos no Youtube® sobre este tema, foram do sexo feminino (56; 88,88%), que referiam ter entre 8 a 18 anos quando iniciaram os comportamentos de automutilação. Ademais, na amostra deste estudo 6 (9,52%) eram meninos e em 1 (1,58%) vídeo não continha a informação do sexo.

Dentre os métodos de escolha para automutilação através do relato dos próprios adolescentes, identificou-se o corte, queimaduras e ingestão de medicamentos, sendo o corte o método mais procurado para a prática da automutilação, sendo um refúgio de suas dores e inquietações.

As vezes quando a galera chora se alivia, desabafa e tal, só que eu cheguei num ponto que isso não tava mais funcionando e aí eu comecei a me cortar, eu pegava gilete eu nem conseguia tirar a lâmina direito, eu lembro que eu nem tinha paciência para conseguir tirar a lâmina da gilete, aí eu pegava a gilete e ia esfolando na minha pele e tenho marcas até hoje na real. (A1)

Eu tentei achar um jeito de descontar em mim a dor que eu estava sentindo, então eu comecei a me queimar em parte do corpo em que ninguém visse, mas me queimar não estava adiantando muito, então foi aí que eu achei uma lâmina, eu comecei a me cortar constantemente. (A31)

Eu comecei a tomar os remédios do meu irmão, graças a Deus nunca me deu nada, e aí os problemas começaram a aumentar na escola, eu me sentia excluída, em casa eu sentia falta de um pai e uma mãe ao meu lado a partir daí eu larguei os remédios do meu irmão, eu comecei a me queimar com cigarro da minha mãe, mas não era suficiente e então eu me encontrei com as lâminas do meu pai. (A62)

Para as meninas participantes desta pesquisa, os relatos expressaram que o ato de se cortar é realizado quando não há como partilhar seus sentimentos e sofrimentos, dessa forma, tal gesto articulou-se como expressão destes sentimentos, tornando-se, com o passar do tempo, um ato vicioso.

Percebemos ainda que alguns dos adolescentes já superaram a automutilação, entretanto outros adolescentes expressaram senti-la como um vício, de modo a, em seus vídeos, alertarem para que outros adolescentes não realizem o primeiro corte, como visto nos trechos a seguir:

Eu peço uma única coisa a todos vocês, nunca faça seu primeiro corte, por favor, pois eu não consigo mais parar. (A9)

Por isso te imploro, nunca faça seu primeiro corte, ele será o primeiro de muitos, um caminho sem volta. Pode se passar anos, mas você volta a fazer. (A23)

Motivos dos adolescentes para a prática da automutilação

Dentre os motivos que precederam os atos de automutilação, a partir dos relatos de adolescentes dos vídeos que compõem esta pesquisa, destacou-se o bullying, o fato de decepcionar alguém, briga com os pais ou entre os pais. Sobre isso, destacamos algumas falas a seguir:

Em 2012 eu tive vários problemas na escola, problemas de convivência, problemas nas redes sociais e eu acabava me cortando, vou ser real mano, eu acabava me cortando e me mutilando e também tive um problema de tricotilomania que era arrancar todos os fios da minha sobrancelha um por um e eu tirava com a mão por causa da minha ansiedade. (A1)

Tudo começou a mais ou menos 1 ano atrás, brigando com meus pais, por qualquer coisinha que seja. Sempre tinham motivos para implicar comigo, eu comecei a tomar remédios impulsivamente. (A9)

Eu era uma menina feliz, porém cometi algo errado com uma pessoa que eu amo muito! … nunca me perdoei por isso, deixei quem mais amo mal, até que veio a depressão, o desejo de suicídio, tentei me matar tomando remédios impulsivamente. Tarde da noite fui parar em um pronto socorro e encaminhada para um psiquiatra, faço tratamento fiquei bem e fui liberada até que me encontrei com as lâminas, elas prometiam me aliviar. (A23)

Pai, mãe, brigas, me sentia excluída, sem rumo. (A39)

As pessoas me faziam sentir a pior pessoa do mundo, diziam coisas, tipo: feia, aberração, doente mental, doida, puta, etc., eu estava completamente sozinha, eu precisava de alguém, que me fizesse parar de me sentir um lixo, mas eu não tinha ninguém. Então comecei a me cortar. (A50)

Para além deste estudo, o bullying, a carência de afeto e a ausência de gerenciamento das emoções tem sido citado como fatores de risco para o comportamento autolesivo. Diante de tais eventos negativos que ocorrem na vida dos adolescentes, a automutilação surge como um refúgio para estes acontecimentos, uma forma de lidar com suas dores, muitas vezes desvelando-se como a única possibilidade para atravessar seu sofrimento, sobre isso, alguns adolescentes mencionam:

O mundo me causa muita dor e eu desconto em mim mesma, acho que se cortar não é idiotice. (A33)

Eu era uma menina feliz, tipo palhaça de turma, até que um dia, pessoas começaram a me machucar, me abandonar, comecei a me sentir muito sozinha. Então ela me ofereceu sua amizade e companhia, no começo achei que um corte seria o suficiente, mas não foi e hoje coleciono cicatrizes. 2015 está sendo muito difícil, perdi todas minhas amizades e a única que sobrou sinto que já estou perdendo, não tenho apoio nem companhia de ninguém, só das lâminas e das minhas músicas. (A36)

Entretanto, alguns adolescentes reconhecem que o ato de se automutilar reflete circunstâncias negativas pessoais, como visto nos trechos a seguir:

Se cortar é muito do sentimento de se sentir inútil e pensar que tipo nunca vai melhorar e que você tá na merda total, como se a vida fosse continuar na mesma para sempre. (A1)

Se você pensar em fazer seu primeiro corte por favor pare, a lâmina é uma amiga falsa, ela só quer te destruir. (A50)

Os problemas só aumentaram, na escola eu me sentia excluída, em casa eu sentia falta de um pai e de uma mãe ao meu lado, a partir daí eu larguei os remédios e comecei a me queimar, mas parecia que não era o suficiente. Então eu me encontrei com as lâminas, e até hoje eu me corto. (A9)

Na escola eu sentia-me excluída, em casa eu sentia falta de um pai e de mãe ao meu lado. A partir daqui perdi o resto das forças. Então encontrei-me pela primeira vez com as lâminas. (A29)

Isso começou mais ou menos há dois anos com brigas em casa e na escola, no começo eu só chorava sozinha no meu quarto, mas isso não durou muito, comecei a tomar coquetel de remédios, no começo até que ajudava mais não durou muito. Comecei a me cortar. (A58)

E a única coisa que resta é te cortares. Machucar o próprio corpo por seres culpada de tudo o que acontece. E as pessoas que disseram que nunca te iriam abandonar foram embora não foi? Que disseram que iriam ajudar a superar isso, não fizeram. Neste momento a nossa única companheira é a lâmina. E por fim mudou tudo. Já não sabes quem és. Mas sabes que não és a mesma. Não te sentes à vontade de fazer mais nada e acabasse por isolar. E aí começam a surgir os pensamentos suicidas. (A61)

Sensações ocasionadas pela automutilação aos adolescentes

Os cortes são realizados como resposta a sentimentos aos quais os adolescentes não conseguem lidar, dentre eles a raiva, angústia e inferioridade, na tentativa de substituir a dor emocional por uma dor física. Neste sentido, destacamos alguns trechos que nos aproximam desses sentimentos:

Peguei e me cortei porque estava com raiva, e raiva é cortar aqui, queria trocar a dor emocional pela dor física vindo da raiva, então eu senti raiva, senti angústia e tristeza e quis descontar no braço. (A45)

A gente cortava cada parte do que a gente mais odiava de todo o nosso corpo, cada parte que as pessoas falavam que a gente era feio, a gente cortava aquela parte. (A46)

É uma coisa que a gente faz para se aliviar, aliviar em questão não alivia, eu me toquei que o que eu fazia era só destruir o meu corpo, não me fazia bem, eu saía com os braços enfaixados. (A37)

Discussão

A autolesão foi encontrada com maior frequência em meninas pela diferença que há na consciência das emoções, por isso a autolesão surge como uma alternativa para lidar com as emoções. Tais dados corroboram com um estudo desenvolvido na China, em que 85,6% dos casos de automutilação acontecem em meninas (Cheon et al., 2020).

Na Coreia do Sul, a autolesão prevalece no sexo feminino com um percentual de 13,4%, enquanto que o sexo masculino apresenta percentual de 4,7% (Jeong & Kim, 2021). O comportamento autodestrutivo é relatado como um ato vicioso em que, muitas vezes o adolescente tenta parar e não consegue pela sensação de prazer obtido a partir do autocorte (Lopes & Teixeira, 2019).

Os métodos diferem quanto ao gênero: as meninas tendem a realizar cortes e arranhões em braços e pernas, enquanto que os meninos utilizam-se de métodos mais agressivos como bater a cabeça, lesionar o rosto, peito e órgão genitais (Moreira et al., 2020).

Destaca-se que a adolescência se constitui como um momento da vida em que o indivíduo já possui seu corpo maduro, entretanto são vistos como seres que não possuem maturidade. Sendo assim, os adolescentes são impostos a uma moradia ao qual por mais que seus corpos estejam prontos para realizar diversas atividades, são impedidos pela alegação da não maturidade, o que ocasiona em reação de rebeldia, além de sentimentos como insegurança e depressão pela falta de olhares que tinha quando criança (Calligaris, 2000).

Até então, os adolescentes, antes crianças existiam conforme os pais, com a adolescência o indivíduo passa a ter sua própria existência com a vivência e experiências diversas. Diante disso, é iniciado o Dasein “ser-no-mundo”, que para Heidegger significa a existência para diferentes possibilidades como cobranças, sentimento de culpa, sonhar, fazer planos, compreender a finitude da vida e ao mesmo tempo o sentimento de angústia que surge com a possibilidade do nada. Além disso, a existência de algo e a escolha necessária em momentos da vida também acarretam em angústia através de questionamentos sobre a escolha certeira de possibilidades (Gonçalves, 2015).

Para Heidegger a nossa existência é caracterizada por um caminho não linear, marcado por um início, fim e recomeços e neste processo o indivíduo possui a liberdade de reagir de acordo com o que tem sentido, sendo a escolha por não reagir também uma resposta (Silva, 2021). Neste sentido, a adolescência deve ser refletida como construída e reconstruída, sendo pensada a partir de uma reflexão histórica e epocal (Santana & Purificação, 2018), o que nos permite indagar: o que, no horizonte do nosso tempo, tem desvelado silenciamentos a sofrimentos em adolescentes de tal maneira que sejam seus corpos cortados que estejam anunciando, comunicando as suas dores?

Importante ressaltar que o bullying e a dificuldade de relacionamento interpessoal é retratado pela literatura como fatores que tem estado relacionado ao comportamento autolesivo em adolescentes, que corrobora com os dados de outro estudo (Gonçalves, 2015) o qual aborda dimensões de risco que estão associadas às relações interpessoais, como o bullying, cyberbullying, rejeição, a influência de mídias sociais, e dificuldade de relacionamento; apontando também para questões familiares como os conflitos familiares.

Além destes aspectos, alguns fatores sociais como problemas familiares, na infância e de relacionamento também são evidenciados na compreensão deste fenômeno. Percebemos que, assim como, apontado na literatura e visto nos trechos de fala de nossos participantes, o bullying e dificuldade nas relações interpessoais, em especial, familiares, foram trazidos como provocadores de sofrimento e relacionados à ocorrência das automutilações (Brito et al., 2021).

Fatores psicológicos também estão relacionados com o comportamento autolesivo, dentre eles, a lida com situações depressivas, com presença de ansiedade, raiva, culpa, tristeza, impulsividade, solidão e desregulação emocional (Raupp et al., 2018; Tardivo et al., 2019). Ainda sobre a solidão, que pôde ser vista nos relatos em destaque de nossos participantes, estudos (Almeida et al., 2018; Fortes & Macedo, 2017) trazem que a sensação de solidão é vivenciada de maneira significativa e que o fato de compreenderem que não há com quem partilhar a dor psíquica, a torna insuportável.

A recusa à solidão, muitas vezes, é utilizada como defesa, o que atrapalha o encontro consigo mesmo (Almeida & Naffah Neto, 2019). A solidão descortina toda a nossa fragilidade, indigência, finitude, nosso ser-para-a-morte. Frente às fragilidades que se anunciam no contato com a solidão expressa pelos adolescentes ouvidos, o corpo, os cortes, as cicatrizes anunciaram-se como forma de aplacar esse desamparo. Ao mesmo tempo que afugentam a dor do sofrimento, marcam, corporalmente, que a dor é componente do seu existir, lembrado e relembrado em meio às cicatrizes, marcas e rastros deixados a cada dor vivida.

A dor sentida possui duas vertentes, a primeira consiste em não reconhecer a própria dor, e a segunda, corresponde a falta de um outro indivíduo que possa ouvir sobre suas dores, sendo esta última que agrava ainda mais o reconhecimento do sofrimento de si mesmo (Fortes & Macedo, 2017).

Visualiza-se ainda que o corpo é alvo para o alívio de sentimentos gerados a partir de vivências. Neste sentido, Heidegger traz que existem duas formas de corpo: o vivo (corporeidade) e o material (corporar). O corporar se restringe a forma única como o indivíduo se relaciona no mundo e a corporeidade consiste em como o corpo se relaciona com o que está ao seu redor, sendo assim possível por ser espacial (Heidegger, 2001). O modo como adolescentes que se autolesionam corporam no mundo, desvelam suas dores e sofrimentos, desvelam seu modo-de-ser no mundo com os outros.

Podemos perceber nas falas o peso da voz do outro sobre quem se é, a raiva vivenciada cotidianamente, a angústia e o corpo como sofrente. Lembramos de Heidegger em seu conceito sobre a existência impessoal, a qual, impera a vida mediana, aquela em que o Dasein perde-se no espaço aberto da opinião pública [Öffentlichkeit], a qual tudo devora e nivela por baixo e determina o que cada um deve fazer (Werle, 2003). Somos retirados dessa impessoalidade, pela manifestação da angústia, a qual nos anuncia o estranhamento diante de nós mesmos, conferindo a nós um sentimento de cortar a palavra, como pensou Heidegger (Heidegger, 1989), evoca o vazio, e a dor, trazido em trechos de muitos adolescentes que encontraram nos cortes a possibilidade de “materializar” essa dor corporalmente.

O dano corporal intencional é realizado para diminuir e/ou comunicar uma angústia (Moreira et al., 2020). De maneira semelhante, outro estudo (Corrêa et al., 2022) assume que o ato de se cortar confere um papel regulador das emoções, de autopunição e marcador da angústia.

A adolescência tem se mostrado um momento da existência humana que traz presente sentimentos intensos e marcado por intensificar as questões relativas a relacionamentos interpessoais, quer seja com a família, amigos ou por questões amorosas. Tem sido um momento da vida humana marcado por compreensões que ora a identificam como crise, ora por questões corporais e fisiológicas. Ouvir relatos de jovens que se automutilam é ouvir sobre suas existências como adolescentes. Ouvimos sobre solidão, bullying, dores que encontraram em seus corpos, em suas marcas, cicatrizes autoprovocadas, o anúncio das vulnerabilidades por eles sentidas, vividas.

Neste contexto, a automutilação em adolescentes, a partir dos relatos presentes nesta pesquisa, desvela-se como possibilidade de lida diante de situações vividas, sentidas, não compreendidas pelos próprios adolescentes, quer seja para afugentar as próprias dores ou até mesmo tentar se encontrar frente a vivências que exigem confrontos do indivíduo.

Mencionamos como limitação do estudo o uso de dados secundários oriundos de uma plataforma de vídeo e os dados públicos, que pode resultar em ocultação de informações sobre a automutilação neste público. Além disso, a busca também consiste em uma limitação, uma vez que a mesma somente foi feita no idioma português.

Este estudo convoca a realização de outros estudos neste tema para que se possa pensar a saúde mental de adolescentes e provocar a construção de políticas de atenção em saúde a esse público na intenção de abrigá-los frente às vulnerabilidades por eles vividas.

Para além disso, permite aos profissionais de saúde, em especial de enfermagem, ampliarem o conhecimento e percepção sobre a temática, de forma a aprimorar a assistência, especificamente a escuta ativa.

A partir da fenomenologia de Heidegger compreendemos acerca da existência de adolescentes, sendo o corporar do adolescente vivenciado por angústias, conflitos emocionais e familiares, bullying, depressão, ansiedade e raiva e a corporeidade refletida através de cortes, queimaduras e intoxicação devido às dores ocasionadas pelo ser-no-mundo.

Devido o maior entendimento sobre a sua existência, as meninas desvelam suas dores através da automutilação com maior frequência quando comparadas aos meninos, substituindo as dores emocionais pelas físicas. Neste sentido, ressaltamos que a existência do adolescente é vivida por diversos atores sociais, aos quais torna-se importante a compreensão do fenômeno da automutilação, a fim de reduzir as dores e permitir o Dasein de forma harmoniosa com o mundo.

Sugere-se que mais estudos sejam desenvolvidos sobre esta temática, a fim de compreender melhor o fenômeno da automutilação entre os adolescentes, bem como a abrangência desse estudo para outros idiomas, para obtenção de um panorama mundial acerca deste fenômeno.

Contribuição dos autores

Kalyne Bezerra: Conceitualização, Aquisição de financiamento, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição;

Joyce Lima: Investigação, Metodologia, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição;

Gustavo Tavares: Investigação, Visualização, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição;

Ana Karina Azevedo: Conceitualização, Investigação, Metodologia, Administração do projeto, Recursos, Supervisão, Validação, Redação - revisão e edição;

Jonas de Oliveira: Aquisição de financiamento, Metodologia, Administração do projeto, Validação, Redação - revisão e edição.

Referências

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Recebido: 03 de Fevereiro de 2023; Aceito: 04 de Dezembro de 2023

Autor de Correspondência: Kalyne Bezerra (kalyneearaujo@gmail.com)

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