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Psicologia, Saúde & Doenças

versão impressa ISSN 1645-0086

Psic., Saúde & Doenças vol.24 no.3 Lisboa dez. 2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.15309/23psd240332 

Artigo

Hanseníase: quando o silêncio revela o estigma e o preconceito

Leprosy: the silence disclosing the stigma and the prejudice

1Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, Minas Gerais, Brasil.

2Secretaria de Estado da Saúde de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.

3Programa de Pós graduação em Promoção de Saúde e Prevenção da Violência, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.


Resumo

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa que carrega forte estigma social. As décadas de internação compulsória em colônias resultaram no surgimento de comunidades em seus entornos que são importantes do ponto de vista epidemiológico e histórico pela alta prevalência da doença e pelas pessoas que viveram as consequências do isolamento e do estigma. Neste artigo é apresentado um estudo de análise do banco de dados, resultado de atividade de educação em saúde e prevenção da hanseníase, realizada em escolas de uma região de ex-colônia em Minas Gerais. O objetivo foi avaliar o conhecimento e os sentimentos sobre a hanseníase entre os estudantes. Para análise, utilizou-se estatística descritiva. Foram analisados 325 questionários respondidos por estudantes com idade entre 10 e 19 anos. Os resultados evidenciaram desconhecimento em relação à doença. O menor conhecimento em relação à doença se relacionou com sentimentos de indiferença e o maior conhecimento a angústia ou medo e altruísmo. Mais de 30% dos estudantes disseram nunca ter ouvido falar sobre hanseníase, mesmo morando em região de ex-colônia, o que sugere um silêncio que pode ser causa e consequência do estigma social que dificulta o controle da doença. Dessa forma, é necessário investir em educação em saúde em hanseníase nas áreas de ex-colônias como medida de vigilância epidemiológica e combate ao preconceito.

Palavras-Chave: Hanseníase; Educação em saúde; Estigma social; Promoção de saúde

Abstract

Leprosy is an infectious disease that carries a strong social stigma. Decades of compulsory hospitalization in colonies resulted in the emergence of communities in their surroundings that are important from an epidemiological and historical point of view. Usually they have a high prevalence of the disease and people who have experienced the consequences of isolation and stigma. This article presents a database analysis study, the result of health education and leprosy prevention activities, carried out in schools in an ex-colony region of Minas Gerais. The objective was to assess knowledge and feelings about leprosy among students. For analysis, descriptive statistics were used. We analyzed 325 questionnaires answered by students aged between 10 and 19 years. The results showed lack of knowledge about the disease. Less knowledge about the disease was related to feelings of indifference and greater knowledge to anguish or fear and altruism. More than 30% of students informed they have never heard about leprosy, even living in an ex-colony region, which suggests a silence that can be the cause and consequence of the social stigma that makes it difficult to control the disease. Thus, it is necessary to apply in health education in leprosy at areas of former colonies as a measure of epidemiological surveillance and prejudice fighting.

Keywords: Leprosy; Health education; Social stigma; Health promotion

A hanseníase é uma doença infectocontagiosa, considerada negligenciada pela Organização Mundial de Saúde e que tem grande relevância epidemiológica e social, pois além de ser potencialmente incapacitante, quando não tratada precocemente, traz impregnada em si o estigma social e o preconceito (Brasil, 2020; Organização Mundial da Saúde, 2016).

Durante milhares de anos a hanseníase conhecida como lepra, designação que também foi utilizada para outros tipos de doença de pele, era tratada como algo da dimensão religiosa, da punição divina sobre os pecadores. Diante do total desconhecimento sobre seu agente etiológico, forma de transmissão, desenvolvimento e, principalmente tratamento, a doença amedrontava a sociedade. Assim, o isolamento social do doente para proteger a sociedade era uma prática comum e legitimada para lidar com a enfermidade (Carvalho, 2015; Ferreira, 2019; Maciel, 2007; Savassi et al., 2014; Sobrinho et al., 2016).

A Colônia Santa Izabel, localizada na cidade de Betim em Minas Gerais, foi uma das instituições pioneiras no Brasil com o objetivo de isolar pessoas com diagnóstico de hanseníase. Inaugurada em 1931, chegou a abrigar milhares de doentes e foi cenário para histórias de vidas marcadas pela separação, preconceito e estigma. As pessoas doentes internadas compulsoriamente tinham sua individualidade massacrada dentro das colônias, viviam cercadas por correntes, separadas da sociedade e dos entes queridos, além de terem seus direitos civis básicos negados (Carvalho, 2015). Essa política contribuiu para manter o estigma milenar a respeito da doença que, mesmo com a mudança do nome de lepra para hanseníase, ainda está muito presente nos dias atuais (Neiva & Grissotti, 2019).

No início da década de 1960, o isolamento compulsório de pessoas com hanseníase foi extinto através do decreto governamental de número 968/1962, no entanto, na prática foi na década de 1970 que os antigos hospitais-colônias foram sendo desativados, em função possibilidade de cura da doença e da possibilidade de tratar o paciente em ambulatórios (Brasil, 1962; Ferreira, 2019).

Com a abertura das correntes que separavam o território da instituição, na década de 1980, a comunidade da Colônia Santa Izabel se expandiu atraindo outros moradores e se tornou um bairro populoso no município. Estudos com familiares de ex-internos em colônias mostraram a extensão do estigma social e preconceito entre essas pessoas (Lana, 1997; Pinheiro & Simpson, 2017).

O interesse em conhecer como crianças e adolescentes da comunidade em torno de uma ex-colônia percebem a hanseníase e que conhecimento e sentimentos têm sobre a doença, com objetivo de planejar novas ações de promoção em saúde, foram motivações que levaram a essa pesquisa.

Método

A pesquisa utilizou o banco de dados secundário, construído a partir de um projeto de educação e promoção de saúde, desenvolvido pela Casa de Saúde Santa Izabel da Fundação Hospitalar de Minas Gerais - FHEMIG.

Participantes

O projeto “Conversando sobre Hanseníase” foi desenvolvido, no período de 2017 e 2018, em parceria com duas escolas públicas municipais localizadas próximas a área de ex-colônia de hanseníase e contemplou estudantes do ensino fundamental da rede pública de Betim. As escolas juntas atendiam 909 alunos do ensino básico ao fundamental. O projeto foi proposto em quatro etapas: 1) parceria com a escola; 2) aplicação dos questionários; 3) educação em saúde na escola; 4) avaliação clínica das crianças e familiares. O projeto tinha como objetivo a vigilância epidemiológica e a educação em saúde e foi realizado com consentimento de pais e alunos.

Procedimento

O material obtido dos questionários aplicados nas duas escolas, na segunda fase do projeto, deu origem a um banco de dados que se revelou fonte importante para avaliar o conhecimento e o sentimento dos alunos sobre a doença e a existência do estigma social. A análise desse banco de dados deu origem à pesquisa aqui relatada.

A revisão da literatura foi feita por meio eletrônico nas bases de dados da Biblioteca Virtual em Saúde - BVS usando os descritores: hanseníase, estigma social, preconceito, psicanálise e educação em saúde.

Foi feita análise descritiva dos dados. Para melhor entendimento da relação entre o conhecimento/informação, os sentimentos e temor da doença foi criado um indicador composto pelas oito perguntas sobre causa, contagiosidade, hereditariedade, sintomas e problemas causados, atribuindo valores numéricos às respostas. Para análise dos dados foram utilizados a plataforma de software de análise estatística avançada IBM SPSS versão 20.0 e o Programa R 4.0.

Aspectos Éticos

O estudo faz parte da pesquisa Saúde e Violência: Subsídios para a formulação de Políticas de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência - SAUVI que abrange a utilização de dados institucionais de serviços de saúde do município. Foi desenvolvida pelo Núcleo de Promoção da Saúde e Paz do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG sob o número CAAE 2235212.2.0000.5149.

Resultados

Foram respondidos 325 questionários que correspondeu a 35,7% dos estudantes de ambas as escolas. A população compunha-se, em sua maior parte, por crianças e adolescente de 10 a 14 anos de idade (63,7%) e 71,4% eram de cor não branca declarada. Em relação ao domicílio, metade dos entrevistados residiam com cinco ou mais pessoas e para 56,3% as moradias tinham sete cômodos ou mais.

Para análise do conhecimento/informação sobre hanseníase, as respostas foram analisadas a partir do relato dos estudantes sobre ter ou não ouvido falar sobre a doença. O Quadro 1 mostra os resultados encontrados.

Quadro 1 O conhecimento/ informação sobre a hanseníase de estudantes de escolas públicas de uma região de ex-colônia em MG, relacionado a já terem ouvido falar sobre a doença 

Variáveis explicativas Já ouviu falar em hanseníase Total
Não Sim Não informado
N % N % N % N %
Acredita que a hanseníase tem cura?
Não 33 35,5 63 27,8 0 0,0 96 29,5
Sim 55 59,1 154 67,8 4 80,0 213 65,5
Não informado 5 5,4 10 4,4 1 20,0 16 4,9
Qual a causa?
Desconhecimento /Estigma 49 52,7 172 75,8 3 60,0 224 68,9
Conhecimento 3 3,2 26 11,5 0 0,0 29 8,9
Não informado 41 44,1 29 12,8 2 40,0 72 22,2
É contagiosa?
Não 55 59,1 149 65,6 3 60,0 207 63,7
Sim 28 30,1 71 31,3 1 20,0 100 30,8
Não informado 10 10,8 7 3,1 1 20,0 18 5,5
É hereditária?
Não 33 35,5 138 60,8 3 60,0 174 53,5
Sim 38 40,9 81 35,7 0 0,0 119 36,6
Não informado 22 23,7 8 3,5 2 40,0 32 9,8
Já viu algum doente?
Não 73 78,5 83 36,6 1 20,0 157 48,3
Sim 10 10,8 137 60,4 3 60,0 150 46,3
Não informado 10 10,8 7 3,1 1 20,0 18 5,5
Quais sinais e sintomas da doença?
Negativo 36 38,7 76 33,5 1 20,0 113 34,8
Positivo 23 24,7 131 57,7 1 20,0 155 47,7
Não informado 34 36,6 20 8,8 3 60,0 57 17,5
Quais problemas são provocados pelas doenças?
Negativo 38 40,9 93 41,0 0 0,0 131 40,3
Positivo 18 19,4 104 45,8 2 40,0 124 38,2
Não informado 37 39,8 30 13,2 3 60,0 70 21,5
Total 93 100,0 227 100,0 5 100,0 325 100,0

Dos 325 respondentes, 227 (69,8%) estudantes afirmaram que já ouviram falar de hanseníase, mal de Lázaro, morfeia ou lepra, termos ainda usados pela população para designar a doença. Entre esses estudantes, 67,8% responderam que a doença tem cura, 75,8% denotaram desconhecimento sobre a causa e 65,6% acreditavam que seria uma doença não contagiosa. Quando perguntado quais eram os sinais e sintomas da doença, 57,7% dos alunos apresentaram informações corretas, e 45,8% souberam relatar possíveis problemas decorrentes da doença.

O cenário das percepções e dos sentimentos manifestados pelos alunos em relação à hanseníase foi avaliado a partir de duas perguntas e quatro casos fictícios, conforme Quadro 2.

Respondendo sobre o que sentiam ao ouvir referências sobre a hanseníase, 42,2% revelaram sentimentos de indiferença, 31,7% revelaram angústia/medo e 11,4% apresentaram sentimentos ligados ao altruísmo como curiosidade, interesse e preocupação, independentemente de ter ou não ouvido sobre a doença anteriormente.

Em relação ao sentimento ao ver um doente de hanseníase, entre os alunos que ouviram falar da doença, 20,3% relataram sentimentos ligados à angústia/medo, 18,9% manifestaram sentimentos altruístas e 14,1% sentimentos de indiferença. Chama atenção que 42,7% dos alunos mesmo já tendo visto um doente de hanseníase não responderam sobre o sentimento que tiveram.

Quadro 2 A perceção/sentimento sobre a hanseníase de estudantes de escolas públicas de uma região de ex-colônia em MG, relacionado a já terem ouvido falar sobre a doença. 

Variáveis explicativas Já ouviu falar em hanseníase Total
Não Sim Não informado
N % N % N % N %
O que sente ao ouvir referências sobre o assunto?
Altruísmo 6 6,5 31 13,7 0 0,0 37 11,4
Angústia/ Medo 26 28,0 75 33,0 2 40,0 103 31,7
Conceitos 1 1,1 12 5,3 0 0,0 13 4,0
Indiferença 38 40,9 99 43,6 0 0,0 137 42,2
Não informado 22 23,7 10 4,4 3 60,0 35 10,8
O que sentiu ao ver um doente de hanseníase?
Altruísmo 7 7,5 43 18,9 1 20,0 51 15,7
Angústia/ Medo 4 4,3 46 20,3 1 20,0 51 15,7
Desconhecimento 3 3,2 9 4,0 0 0,0 12 3,7
Indiferença 6 6,5 32 14,1 0 0,0 38 11,7
Não informado 73 78,5 97 42,7 3 60,0 173 53,2
Caso 1 (Professora)
Preconceito 5 5,4 71 31,3 0 0,0 76 23,4
Transigência 2 2,2 47 20,7 1 20,0 50 15,4
Não informado 86 92,5 109 48,0 4 80,0 199 61,2
Caso 2 (Feirante)
Preconceito 3 3,2 61 26,9 0 0,0 64 19,7
Transigência 4 4,3 57 25,1 1 20,0 62 19,1
Não informado 86 92,5 109 48,0 4 80,0 199 61,2
Caso 3 (Carro)
Preconceito 20 21,5 35 15,4 0 0,0 55 16,9
Transigência 71 76,3 187 82,4 5 100,0 263 80,9
Não informado 2 2,2 5 2,2 0 0,0 7 2,2
Caso 4 (Trocador)
Preconceito 2 2,2 16 7,0 1 20,0 19 5,8
Transigência 4 4,3 101 44,5 0 0,0 105 32,3
Não informado 87 93,5 110 48,5 4 80,0 201 61,8
Total 93 100,0 227 100,0 5 100,0 325 100,0

No questionário foram incluídos casos fictícios com o objetivo de apresentar situações do cotidiano de uma região de ex-colônia, a fim de se verificar o comportamento das pessoas diante da doença e do doente. As respostas foram agrupadas em atitudes de preconceito e de transigência.

O primeiro caso tratava de uma professora prestes a se casar que descobre ter hanseníase. Entre aqueles que já haviam ouvido sobre a doença, 48,0% não responderam e 31,3% marcaram respostas ligadas a atitudes e medidas preconceituosas, tais como, que a professora deveria ser aposentada, internada, aguardar seis meses sem dar aulas ou adiar o casamento. Apenas 20,7% demonstraram transigência nas respostas, afirmando que ela poderia continuar professora e noiva como antes do diagnóstico.

O segundo caso era sobre um homem curado, mas com deformidades relacionadas à hanseníase, e que gostaria de ter uma banca como feirante em um mercado local. Entre os alunos que já haviam ouvido falar da doença, 26,9% demonstraram atitudes/comportamentos de preconceito como não poder comercializar alimentos, não ter ou ter menos fregueses enquanto 25,1% responderam com atitudes/comportamentos de transigência, afirmando que o feirante teria fregueses normalmente.

A terceira situação tratava da venda de um carro em ótimo estado por uma pessoa que sabidamente teve hanseníase e ficou curada. A maior parte dos alunos (80,9%), independentemente de ter ou não ouvido falar sobre a doença, responderam que comprariam o carro, tendo uma atitude de transigência em relação à situação. Vale salientar que entre aqueles que já haviam ouvido falar de hanseníase 15,4% não comprariam o carro dessa pessoa.

A situação quatro se referia a um homem sadio que visitava regularmente os pais que tiveram hanseníase, estavam curados e moravam em área de ex-colônia. Ele trabalhava como trocador e seu patrão tomou conhecimento da situação da família. O grupo de alunos que ouviu previamente sobre a doença, 44,5% mostrou-se transigente para com o filho, afirmando que ele poderia continuar trabalhando como antes e não ser despedido ou transferido para a manutenção.

Chama atenção que nas situações hipotéticas um, dois e quatro, o percentual de respostas em branco chegou a mais de 92% entre aqueles que nunca ouviram falar sobre a hanseníase.

Buscando avaliar a percepção da gravidade atribuída à hanseníase foi perguntado quais doenças eles consideravam ser as mais temíveis, entre todas as que conheciam.

As respostas foram agrupadas de acordo com as doenças citadas com maior frequência: câncer; HIV/AIDS, arboviroses (dengue/ zika/ chikungunya/ febre amarela), hanseníase; e as de menor frequência foram agrupadas como outras. O câncer foi citado por 58,3% como a pior doença e teve como justificativa sua associação com a morte (80,5%,). Arboviroses, HIV/AIDS e hanseníase tiveram percentuais próximos (12,3, 9,0 e 8,0%, respectivamente). As duas primeiras foram associadas à ideia de morte pela maioria, enquanto a hanseníase, para 35,3% se relacionou com o estigma social, 23,5% com a ideia de morte e 17,6% com os sentimentos de angústia/medo, conforme Figura 1.

Figura 1 Distribuições cruzadas entre as doenças mais temidas e o motivo para isso, por estudantes de escolas públicas em região de ex-colônia em MG 

Observou-se que o temor da hanseníase, entre os alunos que a citaram em uma das opções como doença mais temida, a mediana do índice de conhecimento/informação sobre a doença esteve em 50%, com uma grande variação na distribuição entre os quartis. Entre os alunos que não citaram a hanseníase, o índice de conhecimento/informação ficou no segundo quartil com mediana de 37,5%. Para os que não informaram, a mediana foi de 25%, com distribuição no primeiro e segundo quartis (Figura 2).

Figura 2 Boxplot comparativo entre o indicador Conhecimento/Informação e o temor à hanseníase entre estudantes de escolas públicas em região de ex-colônia em MG. 

A relação entre o indicador de conhecimento/informação sobre a hanseníase e os sentimentos apresentados pelos alunos, ao ouvirem referências sobre o assunto, revelou que o altruísmo foi o sentimento mais citado por aqueles que atingiram um nível médio de 50% de conhecimento/informação correto sobre a hanseníase. O nível de conhecimento dos que relataram angústia/medo ficou com a mediana em 50%. Entre os que não informaram, o índice de conhecimento teve mediana de 25%, enquanto os que demonstraram indiferença ou relataram conceitos e não sentimentos sobre a doença, a mediana do índice de conhecimento/informação foi 37,5%, conforme Figura 3.

Figura 3 Boxplot comparativo entre o indicador Conhecimento/Informação e o Sentimento em relação à hanseníase entre estudantes de escolas públicas em região de ex-colônia em MG. 

Discussão

Esses dados trazem a reflexão de como o conhecimento e as informações recebidas são fatores importantes para o comportamento das pessoas diante de uma situação, como uma doença. Permitem também verificar que sentimentos e reações negativas, em relação à hanseníase, ainda são bastante presentes, mesmo em lugares onde se imaginaria que a desinformação e o preconceito seriam mais brandos, como em uma região de ex-colônia.

A psicanálise aponta que o preconceito surge das pequenas diferenças entre os indivíduos. Essas diferenças são vistas com estranheza e geram sentimentos de repulsa e hostilidade. A sociedade se une em torno de um padrão colocado como ideal, o que torna um semelhante ao outro e aquele que foge desse padrão é hostilizado. Assim, nessas práticas de exclusão, estigmatização e discriminação encontramos a intolerância em relação às diferenças entre os indivíduos (Herzog, 2019).

É revelador o fato de que cerca de 30% dos estudantes informaram nunca ter ouvido sobre a hanseníase, considerando que vivem em área de ex-colônia. De certa forma isso sugere um silêncio, não só das famílias, mas também da comunidade onde se inclui as escolas. Assim o silêncio que persiste diante da hanseníase demonstra o quanto ela ainda é tida como um tabu a ser evitado. De acordo com a psicanálise há uma interdição ao objeto que é considerado estranho, tornando-o algo que não pode ser falado, revelado ou vivido (Freud,1913).

As informações sobre uma doença influenciam na percepção e no sentimento que a sociedade e as pessoas terão em relação a ela e ao doente. A percepção é uma capacidade cognitiva pela qual o homem toma conhecimento de si mesmo, dos outros e do mundo a sua volta. A partir da percepção, os sinais interiores e exteriores são interpretados e significados pelo sujeito, gerando comportamentos, sentimentos e crenças. Assim, a forma como as pessoas percebem a hanseníase e os seus sinais pode resultar em atitudes altruístas e transigentes ou discriminatórias e preconceituosas.

Para os que haviam ouvido sobre a doença, as informações corretas sobre a cura, os sinais, os sintomas e os problemas provocados pela hanseníase foram mais frequentes. No entanto, a maioria dos estudantes mostrou desconhecimento sobre a contagiosidade da doença, fato esse que pode levar a ausência de preocupação com a sua ocorrência. Esse desconhecimento dificulta o diagnóstico precoce e a adesão dos doentes ao tratamento, além de distanciar as pessoas do problema real da doença. Isto é grave quando se sabe que o diagnóstico e tratamento precoces são essenciais na prevenção de incapacidades causadas pela hanseníase (Brasil, 2020).

Alguns estudos semelhantes realizados com crianças e adolescentes sobre o conhecimento da hanseníase corroboram os dados obtidos pela pesquisa. Um estudo, realizado com estudantes e professores, demonstrou que o conhecimento e o entendimento sobre a hanseníase é deficiente entre eles. Nos depoimentos foi possível perceber a manutenção de estigmas e tabus, mesmo entre os alunos que tinham um envolvimento maior com a hanseníase, por serem filhos ou netos de pessoas que já apresentaram a doença (Cavaliere & Grynszpan, 2008). Outro estudo realizado com adolescentes ficou evidente a confusão que é feita entre a hanseníase e outras doenças. Do mesmo modo que observado nesta pesquisa, crenças como não ter cura e causar a morte foram frequentes, e aspectos como a etiologia, a transmissão, o diagnóstico e o tratamento eram desconhecidos por muitos (Freitas et al., 2019).

Embora a prática da mera transmissão de informação não seja suficiente para mudar o significado de uma doença, cristalizado no imaginário social das pessoas, as informações transmitidas por um grupo cultural geram outros significados e a possibilidade de sua reformulação (Santos et al., 2015).

O significado de uma doença para o indivíduo que recebe um diagnóstico está condicionado ao meio que ele está inserido e a hanseníase continua sendo uma doença que traz experiências dolorosas e difíceis (Loures et al., 2016). Mitos, tabus e crenças circulam no imaginário das pessoas causando reações como a angústia e o medo e desencadeando mecanismos de defesa como a indiferença e o preconceito (Paixão et al., 2021; Correa, 2021). Por causa do medo da discriminação muitos indivíduos adoecidos pela hanseníase, ocultam o diagnóstico pelo receio de vivenciar situações de discriminação e preconceito, o que causa preocupação por se tratar de uma infecção transmissível e por colocar o indivíduo adoecido em situação de vulnerabilidade por falta de suporte de uma rede de apoio (Cruz et al., 2021).

Com a descrição de casos fictícios, o objetivo foi verificar a presença de atitudes preconceituosas e discriminatórias ou de transigência para com a pessoa acometida pela hanseníase. Os casos traziam a complexidade do relacionar-se com o outro no cotidiano. Mostram como a ambiguidade está presente nas ideias que as pessoas têm da hanseníase e como isso reflete no comportamento delas. O preconceito e a transigência podem estar presentes no indivíduo, ao mesmo tempo, gerando reações controversas diante da hanseníase e do doente. Ora o indivíduo pode comprar um bom carro que pertenceu a uma pessoa curada de hanseníase, ora acredita que o feirante também curado não pode comercializar alimentos.

Os sinais, sintomas e sequelas da hanseníase se misturam no imaginário das pessoas, o que também foi observado nessa pesquisa. Sinais e sequelas são marcas corporais visíveis que caracterizam a doença e reforçam o estigma e foram citados por muitos alunos: “dedos tortos e caídos, perda dos membros, lesões, manchas pelo corpo”. Dessa forma, a pessoa com as marcas da hanseníase torna-se o próprio tabu, materializando uma ameaça e, assim, não é somente a doença que é temida, mas a pessoa doente também.

As manchas pela pele e a falta de sensibilidade foram os sinais e sintomas da hanseníase mais mencionados corretamente pelos alunos, o que também foi confirmado por outros estudos (Freitas et al., 2019; Leite et al., 2015). A presença de manchas é algo que marca e diferencia os doentes dos “sadios”, e representa uma marca na história de vida e nas memórias dessas pessoas. Essa mancha representa algo que não sai, como se o acometido pela hanseníase jamais ficasse livre dela, mesmo quando curado. Observa-se que são justamente estas características as mais divulgadas nas campanhas midiáticas do Ministério da Saúde do Brasil.

O estigma parte de algo que é objetivo, visível e corporal (Goffman, 1982) e vai tendo sua dimensão social construída, a partir dos valores, das crenças da sociedade que classifica o que é tido como normal ou não. Assim, o estigma social toma uma dimensão que não mais precisa da presença da marca visível no corpo do indivíduo. A hanseníase não precisa mais marcar o doente com suas manchas e deformidades visíveis para lhe causar discriminação, medo e angústia. Basta o diagnóstico para que o estigma social acompanhe e atormente a pessoa acometida pela hanseníase (Loures et al, 2016).

Ao analisar as doenças mais temidas pelo grupo, o câncer foi a doença mais citada, o que se explica pela sua alta prevalência e letalidade, representando uma doença potencialmente ameaçadora à vida no imaginário popular. A citação das arboviroses (dengue/ zika/ chikungunya/ febre amarela) possivelmente se relacionou ao momento epidemiológico em que a pesquisa foi realizada e à gravidade das mesmas (Donalísio et al., 2017; Cavalcante & Tauil, 2017). No caso da infecção por HIV/AIDS, bastante lembrada pelos estudantes, é uma doença em que o estigma ainda permanece (Parker, 2012; Zambenedetti & Silva, 2015). Para o fato de a hanseníase aparecer entre as quatro primeiras doenças mais temidas, deve-se considerar algumas possibilidades: o próprio viés da intervenção que se referia à hanseníase, o fato de ser realizada em área de ex-colônia e, ainda, o fato de que ela representa mesmo uma ameaça.

Algumas doenças carregam em suas histórias forte estigma, mesmo tendo origens diferentes. Elas provocam medo e afetam as relações sociais, familiares e o trabalho por causa do julgamento, da ignorância e do preconceito que as acompanham (Costa et al, 2014). A hanseníase é exemplo de como uma representação em torno de uma doença pode trazer sentimentos exagerados de medo e angústia.

Assim, é necessário discutir, dialogar, falar sobre a doença, pensar e repensar sua forma de abordagem, considerando a problematização da representação social e do estigma. Observou-se que o índice médio de conhecimento/informação correta sobre a doença esteve abaixo dos 50% entre o grupo estudado e a desinformação favoreceu a manutenção do estigma, crendices, preconceitos e de sentimentos negativos como a angústia, o medo e a indiferença em relação a doença. À medida que o conhecimento sobre a hanseníase é construído e disseminado, seu significado metafórico de perigo também vai se atenuando (Carvalho, 2015). Saber o nível do conhecimento, levando em conta especificidades de comunidades e populações, permite pensar e repensar estratégias de enfrentamento a hanseníase que possibilitem a desconstrução de tabus e estigmas sobre a doença.

Este estudo teve algumas limitações. O instrumento que gerou o banco de dados não foi criado para a pesquisa, mas sim para uma intervenção em saúde. Sua análise, entretanto, contribuiu para o conhecimento e para a reflexão sobre a realidade que envolve as comunidades de ex-colônia de hanseníase. As ex-colônias de hanseníase se mostram locais repletos de histórias, vivências e aprendizagem em relação à doença e às pessoas acometidas por ela.

Os dados não podem ser generalizados pois são específicos de um grupo, contudo possibilitou analisar o comportamento, o conhecimento e os sentimentos de crianças e adolescentes, público em que as intervenções em saúde podem se amplificar na comunidade.

A pesquisa mostrou que os alunos entrevistados não possuem informações importantes e básicas acerca da doença, incluindo sua contagiosidade, mesmo vivendo em regiões próximas de ex-colônia de hanseníase, onde moram muitas pessoas remanescentes da política de isolamento compulsório da doença. Evidenciou também que um silêncio persiste sobre o tema, o que pouco colabora para a superação do estigma social da doença e do preconceito.

Contribuição dos autores

Débora Alves: Conceitualização, Curadoria dos dados,, Análise formal, Investigação, Metodologia, Redação do rascunho original, Redação - revisão e edição.

Ana Andrade: Conceitualização, Curadoria dos dados, Metodologia, Análise formal, Redação - revisão e edição.

Maria Ribeiro: Conceitualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Metodologia,Redação - revisão e edição.

Marcelo Araújo: Conceitualização, Curadoria dos dados, Análise formal, Metodologia, Redação - revisão e edição.

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Recebido: 22 de Dezembro de 2021; Aceito: 26 de Setembro de 2023

Autor de Correspondência: Débora Tolentino (deboragabriele@hotmail.com)

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