A saúde é uma preocupação de tal modo importante que o terceiro Objectivo de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas é exactamente “Saúde de qualidade” (Global Compact Network Portugal, s.d.). Alinhado com tal, uma míriade de estudos tem focado a saúde de variadas populações e tem evidenciado diversos correlatos e preditores da mesma. Entre estes encontra-se a religião, operacionalizada de múltiplas maneiras, tal como a saúde. Aliás, o crescente interesse científico pela influência da religião e espiritualidade na saúde e bem-estar foi apresentado recentemente por MacDonald (2023) como uma das razões para se considerar uma psicologia positiva da religião e espiritualidade.
Já em 1998 Ellison e Levin escreviam que o interesse pela relação entre religião e saúde (física e mental) tinha crescido muito nos últimos anos. Ao rever a literatura, nomeadamente as revisões do fim da década de 1980, incluindo estudos de 1800s, referiram que esta, baseada em amostras muito diversas (em termos sociodemográficos, religiosos e clínicos), apresentava evidência convincente da variação das taxas de morbilidade e mortalidade em função das religiões e denominações religiosas, e evidência, ainda que com um pouco menos de consistência, de que, em média, elevados níveis de envolvimento religioso estavam moderadamente associados a melhor estado de saúde. Em estudos mais recentes, mais robustos, revistos pelos autores, mantinham-se os efeitos positivos do envolvimento religioso na saúde fisica e mental e em aspectos do bem-estar psicológico (diversos constructos relacionados). Mencionaram, também, que existiam alguns estudos a revelar que a relação entre religião e saúde nem sempre é positiva.
Sendo os constructos religião/espiritualidade multifacetados e abrangendo uma diversidade de indicadores, Masters et al. (2023) seleccionaram para a sua revisão narrativa quatro cuja relação com a saúde física tem sido frequentemente estudada: frequência de serviço religioso, coping religioso/espiritual, orientação religiosa e oração. Concluíram que a evidência sugere fortemente que a frequência de serviço religioso está associada a longevidade e mortalidade por todas as causas, havendo alguma evidência de que também está relacionada com a mortalidade por causas específicas. Quanto ao coping, concluíram que o coping religioso/espiritual positivo está associado a melhor saúde física e o negativo a pior ajustamento e saúde física. Também a orientação religiosa intrínseca está associada a indicadores de melhor saúde. Relativamente à oração, os resultados positivos não são tão gerais, podendo ser mais provável os indivíduos recorrerem à oração quando a sua saúde está deteriorada.
Shafranske (2023), por seu turno, reviu a literatura sobre a relação entre religião/espiritualidade e saúde mental, concluindo que, em geral, a religião/espiritualidade está (positivamente) associada a melhor saúde mental e adaptação, ainda que, sendo as relações complexas, por vezes a religião/espiritualidade esteja associada a maior ansiedade, depressão e esforços.
Num estudo longitudinal, junto de 766 Afro-Americanos com 21 ou mais anos, avaliados por entrevista telefónica, Clark et al. (2018) identificaram alguma evidência de efeitos directos de crenças e comportamentos religiosos em alterações em comportamentos de saúde. Os comportamentos religiosos estavam associados a maior consumo diário de fruta e maior probabilidade dos homens terem realizado um teste de PSA de T2 para T3 (i.e., de cerca de 2,5 anos após as entrevistas em T1 para cerca de 5 anos depois das mesmas). Nesses marcos temporais, constatou-se alguma evidência de que as crenças religiosas estivessem relacionadas com maior probabilidade de ter consumido álcool no mês passado (modelo SHLOC - locus de controlo de saúde espiritual - activo) mas uma menor probabilidade de binge drinking (modelo SHLOC passivo). Todavia, muitas das suas hipóteses não foram confirmadas. P.e., as crenças religiosas não predisseram menor sintomatologia depressiva e melhor funcionamento emocional. Também não foi encontrada evidência de mediação pelo SHLOC activo da relação religiosidade-saúde. Quanto ao SHLOC passivo, entre alguns comportamentos e resultados relacionados com a saúde, verificou-se que quanto mais os participantes se envolviam em comportamentos religiosos, mais consideravam que Deus estava no controlo e menos esforços individuais eram necessários no âmbito da saúde.
Shiba et al. (2023), recorrendo a dados longitudinais de 8951 adultos (18 ou mais anos) do Reino Unido, recolhidos semanalmente, estudaram a associação entre a frequência de participação religiosa online durante um confinamento no Reino Unido devido à pandemia de COVID-19 (23/3 - 13/5/2020) e 21 indicadores de bem-estar psicológico, bem-estar social, comportamentos pró-sociais/altruísticos, distress psicológico e comportamentos de saúde. O módulo religião, que avaliava, retrospectivamente, através de uma questão, a frequência de participação religiosa online durante o confinamento, foi administrado nas semanas 14 (20-26/6/2020) e 15 (27/6-3/7/2020), sendo as respostas agrupadas nas categorias: não, <1/semana ou (1/semana. Constataram que a participação religiosa online mais frequente estava associada a menor prevalência de pensamentos de auto-mutilação quando comparada a não participação; e uma associação com maior bem-estar psicológico (i.e., satisfação com a vida e felicidade) para a participação intermitente (<1/semana) mas não para a participação mais frequente ((1/semana) quando comparada a não participação. Para além destes resultados, identificaram pouca evidência de que a participação religiosa online estivesse associada a outros índices de saúde e bem-estar subsequente.
No Irão, um estudo transversal, com 316 indivíduos residentes na comunidade, com mais de 60 anos, independentes funcionalmente e sem défices cognitivos ou mentais, revelou que, entre os componentes do comportamento promotor de saúde, “a responsabilidade com a saúde” foi o único significativamente relacionado com a orientação religiosa: os que tinham orientação religiosa interna demonstraram mais responsabilidade com a saúde do que os que tinham orientação religiosa externa (Bakhtiari et al., 2019). Adicionalmente, os modelos de regressão linear múltipla não revelaram nenhuma relação significativa entre o score total de comportamento de saúde e orientação religiosa.
Estes exemplos, mais ou menos recentes e diversificados, mostram uma tendência geral, bem como diversas excepções nas relações saúde-religião.
Uma outra variável central no âmbito da saúde é o auto-cuidado. A Organização Mundial de Saúde define auto-cuidado como “a capacidade dos indivíduos, famílias e comunidades para promover saúde, prevenir doença, manter a saúde e lidar com a doença e incapacidade com ou sem o apoio de um profissional de saúde” (World Health Organization, 2021, p. 1). Considera que “as intervenções de auto-cuidado encontram-se entre as abordagens mais promissoras e excitantes para melhorar a saúde e o bem-estar”, estando associadas a diversos resultados melhorados: “maior cobertura e acesso; redução das disparidades na saúde e aumento da equidade; aumento da qualidade dos serviços; melhor saúde, direitos humanos e resultados sociais; custo reduzido e uso mais eficiente de recursos e serviços de cuidados de saúde”, com locais de acesso tão variados como os serviços de saúde, as plataformas e tecnologias digitais e as residências pessoais (World Health Organization, 2022, p. xii). Tendo em consideração a definição de auto-cuidado e a investigação previamente sintetizada, a religião e a espiritualidade afiguram-se como recursos valiosos para o auto-cuidado.
Paralelamente, o auto-cuidado está intimamente relacionado com outra linha de investigação em saúde, que tem explorado o uso do que é conhecido internacionalmente como CAM - Medicina Complementar e Alternativa - e cujos resultados suportam alguma preocupação com o crescimento deste uso. É de referir que, em Portugal, o Serviço Nacional de Saúde (s.d.) optou pela expressão “Terapêuticas Não Convencionais (TNC)”, i.e., “as práticas que partem de uma base filosófica diferente da medicina convencional e aplicam processos específicos de diagnóstico e terapêuticas próprias”, sendo “reconhecidas como TNC a acupuntura, homeopatia, osteopatia, medicina tradicional chinesa, naturopatia, fitoterapia e quiropraxia (Lei n.º 71/2013, de 2 de setembro)”.
A literatura da especialidade, já com um volume considerável, tem-se focado em variados aspectos, nomeadamente, no (frequente) uso de CAM, seus correlatos sociodemográficos, clínicos e psicológicos, nos motivos para usar e não usar CAM, sua segurança e eficácia, entre outros, ainda que se mantenha uma elevada divergência quanto à definição de CAM e, consequentemente, das práticas que a integram (cf., p.e., Meneses, 2021). Independentemente destas questões, é importante sublinhar que as práticas de CAM podem ser implementadas por profissionais e/ou pelo utilizador, elemento que poderá complexificar a interpretação de alguns dos resultados da investigação.
Neste contexto, Kemppainen et al. (2018) estudaram os determinantes sociodemográficos e relacionados com a saúde do uso de diferentes tratamentos de CAM na Europa e diferenças no uso de CAM em vários países europeus. Consideraram quatro modalidades de CAM: terapias manuais, sistemas medicinais alternativos, sistemas médicos tradicionais asiáticos e terapias mente-corpo.
Cerca de 8% dos participantes que haviam usado CAM haviam-no feito de modo exclusivo (uso alternativo), sem qualquer consulta com um profissional biomédico nos últimos 12 meses, sendo as taxas de uso alternativo mais elevadas para a cura espiritual (14,9%). As estimativas de uso de pelo menos uma terapia CAM nos últimos 12 meses variaram enormemente entre os países estudados (9,5%-39,5%) (Kemppainen et al., 2018).
Quanto à associação entre uso de CAM e condições de saúde, verificou-se que cerca de 9% dos indivíduos sem problemas de saúde usara pelo menos uma das modalidades de CAM nos últimos 12 meses. O uso de CAM revelou-se (mais) comum para problemas de saúde na Europa, variando em função do problemas de saúde, sendo mais usada por indivíduos com problemas de pele (38,1%); o uso foi de cerca de 30% entre indivíduos com cancro e depressão. Os cuidados mente-corpo foram a única modalidade CAM associada à depressão (Kemppainen et al., 2018).
Mais recentemente, Berman et al. (2020) reviram a literatura relativa às intervenções CAM mais frequentente usadas com pertinência para os profissionais de saúde mental. Concluíram que, entre as terapias CAM com eficácia demonstrada no tratamento de condições psiquiátricas, incluem-se diversos medicamentos naturais, psiquiatria nutricional, terapia de luz, yoga e exercício, podendo algumas destas ser eficazes como monoterapia e/ou como terapia adjuvante, bem como comportar riscos em termos de segurança, ter contra-indicações e/ou interacções com medicação.
Clossey et al. (2023) estudaram uma amostra de 177 consumidores de saúde mental, 72% da qual usava alguma CAM (das opções apresentadas), principalmente abordagens mente/corpo/espírito (incluindo técnicas de relaxamento e oração); 34,4% dos que usavam CAM referiram usá-la “sempre”. Da totalidade da amostra, 54% consideraram que uma combinação de medicação psiquiátrica e CAM era mais eficaz (vs. cada uma delas em separado). Os utilizadores de CAM tiveram uma pontuação significativamente mais elevada na RAS, indicando uma maior sensação de recuperação.
Xie et al. (2020) avaliaram 2292 estudantes de seis universidades (médicas e não médicas) da China (1º ao 5º ano). A maior parte tinha uma atitude positiva em relação a CAM. A maioria esperava incorporar cursos sobre CAM no curriculum ou aprender mais sobre CAM, tendo 22,7% referido que não conhecia bem CAM. Os tipos de CAM que os estudantes mais queriam estudar eram: massagem (50,7%), acupuntura (48,6%) e Medicina Tradicional Chinesa (47,3%), tipos sobre os quais a maior parte sabia pelo menos algo. A espiritualidade/oração (um dos tipos de CAM apresentados aos participantes) foi escolhida por 10,3%.
Anteriormente, uma revisão crítica da literatura já tinha demonstrado que os estudantes de medicina tinham pouco conhecimento sobre CAM e eram em geral favoráveis à educação sobre CAM, tendo interesse em aprender mais sobre o assunto, ainda que se tenha verificado heterogeneidade quanto ao interesse em diferentes modalidades de CAM (Joyce et al., 2016). Uma revisão sistemática sobre estudantes de enfermagem aponta no mesmo sentido: a maioria tinha atitudes geralmente positivas, apesar de conhecimento limitado sobre CAM, manifestando interesse em aprender mais sobre CAM e concordando com a integração deste tópico no curriculum (Zhao et al., 2022).
Há também evidência de que as duas linhas de investigação afloradas se cruzam. P.e., em 2009, Curlin et al. afirmavam que a religião, espiritualidade e CAM estão relacionadas de modos complexos. Estudaram dois grupos de profissionais de CAM - 440 acupuntores e 442 naturopatas - e dois grupos de médicos convencionais - 334 internistas e 345 reumatologistas - dos Estados Unidos. Constataram que os acupuntores e naturopatas (vs. internistas e reumatologistas) tinham três vezes maior probabilidade de não ter uma afiliação religiosa formal, mas tinham pontuações mais elevadas em medidas de religiosidade e espiritualidade. Entre os internistas e reumatologistas, os mais espirituais/com maior religiosidade intrínseca tinham maior probabilidade de ter usado, recomendado e disponibilidade para integrar práticas CAM.
Adicionalmente, ao analisar as práticas de auto-cuidados de saúde de uma amostra de 481 adultos (com 35 ou mais anos) que seriam submetidos a cirurgia cardíaca nos Estados Unidos, de modo a determinar quais de 16 tipos de CAM usavam, verificou-se que 55,9% usava exercício, 24,8% técnicas de relaxamento, 24,1% modificações de estilo de vida/dieta e 23,3% cura espiritual (entre outras), sendo que 18,2% usara pelo menos três terapias CAM nos últimos 12 meses (Nicdao & Ai, 2014). A religiosidade (pública, privada e subjectiva) predizia o uso de algumas terapias CAM.
Com base numa amostra de 4401 idosos do Canadá, Votova e Wister (2006) verificaram que o estado de saúde, a atitude de auto-cuidado e a espiritualidade eram preditores importantes do uso de CAM fornecida por profissionais. Neste contexto, o objectivo do presente estudo é estudar práticas de (auto-)cuidados de saúde não convencionais e a relação entre saúde e religião.
Método
Participantes
Foram definidos como critérios de inclusão ter 18 ou mais anos e morar em Portugal.
A amostra é constituída por 449 adultos (18-88 anos; M=36,51; DP=14,85) que moravam em Portugal aquando da participação no estudo. A maioria era do sexo feminino, solteira, tinha completado uma licenciatura ou mestrado, estava empregada a tempo inteiro, considerava o seu rendimento mensal na altura médio e tinha nacionalidade Portuguesa (cf. Quadro 1).
Material
O questionário utilizado foi desenvolvido com base na literatura da especialidade e está dividido em quatro partes. A Parte A é sobre algumas das características dos participantes (p.e., idade); a Parte B é sobre a sua saúde; a Parte C é sobre conhecimento sobre práticas não convencionais de (auto-) cuidados de saúde; a Parte D é sobre experiência com práticas convencionais e não convencionais de (auto-)cuidados de saúde. No final, há ainda uma breve secção (Parte E) a ser apenas respondida por profissionais de saúde.
A Parte B inclui o MHI-5, versão de 5 itens do Mental Health Inventory (desenvolvido por RAND, adaptado por Ribeiro, 2001), bem como o item 1 do SF-36 (“Em geral, como diria que a sua saúde é?”) e o item 2 do WHOQOL-Bref (“Até que ponto está satisfeito com a sua saúde?”).
A investigação tem consistentemente revelado que o MHI-5 é um instrumento de rastreio útil para avaliar a saúde mental, sendo que três dos seus itens integram a Escala de Distress Psicológico e dois a Escala de Bem-estar Psicológico do MHI, representando quatro dimensões de saúde mental: Ansiedade, Depressão, Perda de controlo emocional-comportamental e Bem-estar psicológico (Ribeiro, 2001). A resposta a cada item é dada numa escala de seis posições, de “Sempre” a “Nunca”, resultando o score total (5-30) da soma dos valores brutos dos itens, após inversão de parte dos itens, de modo que valores mais elevados indicam melhor saúde mental (Ribeiro, 2001).
De modo a propor uma versão adaptada do MHI-5, Ribeiro (2001) recorreu a uma amostra de conveniência com 609 estudantes saudáveis que frequentavam instituições de ensino da cidade do Porto, entre o 11º e o último ano do ensino universitário, maioritariamente do sexo feminino (53%), com idades compreendidas entre os 16 e 30 anos (M=19,88). Relatou que a adaptação portuguesa exibiu uma correlação de r=0,95 entre o MHI-5 e a versão de 38 itens. Para analisar a validade de construto, utilizou a correlação entre o MHI-5 e medidas de auto-referência (Auto-Conceito e Auto-Eficácia) e medidas de percepção de saúde (Sintomas Físicos de Mal Estar e Percepção Geral de Saúde), obtendo resultados satisfatórios. Concluiu que a versão Portuguesa utilizada apresentou uma estrutura semelhante à da versão original (Ribeiro, 2001).
n | % | |
Sexo | ||
Feminino | 346 | 77,1 |
Masculino | 100 | 22,3 |
Dados omissos | 3 | 0,7 |
Estado civil | ||
Solteiro/a | 234 | 52,1 |
Casado/a / União de facto | 163 | 36,3 |
Separado/a | 6 | 1,3 |
Divorciado/a | 37 | 8,2 |
Viúvo/a | 7 | 1,6 |
Dados omissos | 2 | 0,4 |
Escolaridade (último nível completo com aprovação/sucesso) | ||
Nenhuma (0 anos) | 2 | 0,4 |
Escola Primária / 1º ciclo | 2 | 0,4 |
Ciclo Preparatório / 2º ciclo | 3 | 0,7 |
3º ciclo (7º-9º ano) | 6 | 1,3 |
Ensino secundário (10º-12º ano) | 116 | 25,8 |
Bacharelato | 10 | 2,2 |
Licenciatura | 135 | 30,1 |
Mestrado | 135 | 30,1 |
Doutoramento | 34 | 7,6 |
Outra | 4 | 0,9 |
Dados omissos | 2 | 0,4 |
Situação profissional | ||
Empregado/a a tempo inteiro | 256 | 57,0 |
Empregado/a a tempo parcial | 23 | 5,1 |
Doméstico/a | 1 | 0,2 |
Desempregado/a | 14 | 3,1 |
De baixa médica | 5 | 1,1 |
Reforma antecipada | 3 | 0,7 |
Reforma não antecipada | 14 | 3,1 |
Estudante | 90 | 20,0 |
Trabalhador/a-estudante | 28 | 6,2 |
Outra | 14 | 3,1 |
Dados omissos | 1 | 0,2 |
Rendimento mensal actual | ||
Muito baixo | 32 | 7,1 |
Baixo | 49 | 10,9 |
Médio baixo | 164 | 36,5 |
Médio alto | 136 | 30,3 |
Alto | 10 | 2,2 |
Muito alto | 1 | 0,2 |
Dados omissos | 57 | 12,7 |
Nacionalidade | ||
Portuguesa | 431 | 96,0 |
Outra | 16 | 3,6 |
Dados omissos | 2 | 0,4 |
Procedimento
Após a obtenção das devidas autorizações (incluindo o parecer positivo da Comissão de Ética da Universidade Fernando Pessoa (UFP): Parecer FCHS/PI - 112/20 de 22 de Dezembro de 2020), o estudo foi divulgado através do Gabinete de Comunicação e Imagem da UFP, das redes sociais da investigadora e da disseminação que todos que os foram informados sobre o estudo possam ter feito pelos seus próprios contactos. Uma vez que o projecto de investigação “Práticas de (Auto-)Cuidados de Saúde em Portugal e Factores Associados”, em que o presente estudo se insere, foi aprovado pela medida de Apoio à Investigação em Saúde Psicológica (AISP) da OPP (Ordem dos Psicólogos Portugueses), foi também divulgado através da Newsletter de Apoio à Investigação em Saúde Psicológica e do site Eu Sinto.me.
Entre 1/10/2021 e 27/9/2023, os participantes responderam ao questionário via Google Forms, após fornecerem o devido assentimento informado (estudo transversal).
Resultados
De modo a facilitar a interpretação dos resultados obtidos, optou-se por destacar a negrito as percentagens mais elevadas em relação a cada item para o qual havia mais de três opções de resposta.
À questão “se já usou alguma prática não convencional, com que regularidade usa?”, 5,8% respondeu “muito frequentemente”, 11,1% “frequentemente”, 19,2% “com alguma frequência” e 30,1% “raramente” (33,9% de dados omissos).
A maioria reportou interesse em ter (mais) conhecimentos sobre práticas não convencionais (“Não”: 22,9% vs. “Sim”: 76,4%; 0,7% de dados omissos) e usava-as com as convencionais (30,1% “só usa práticas convencionais” vs. 1,3% “só usa práticas não convencionais” vs. 56,6% “usa práticas convencionais e não convencionais”; 12% de dados omissos).
Em relação à sua percepção de saúde (item 1 do SF-36 - “Em geral, como diria que a sua saúde é?”), esta era globalmente bastante positiva: 2,9% considerou-a fraca, 20,5% razoável, 47% boa, 23,2% muito boa e 6,2% óptima (0,2% de dados omissos; M=3,09; DP=0,89; 1-5).
No que toca a satisfação com a saúde (item 2 do WHOQOL-Bref: “Até que ponto está satisfeito com a sua saúde?”), as respostas indicam que, em geral, era elevada: 2,2% considerou-se muito insatisfeito, 8,5% insatisfeito, 17,4% nem satisfeito nem insatisfeito, 55,9% satisfeito e 15,8% muito satisfeito (0,2% de dados omissos; M=3,75; DP=0,90; 1-5).
No que se refere a problemas de saúde diagnosticados por um profissional de saúde convencional, 62,4% não tinha problemas de saúde física (25,4% tinha um e 11,8% tinha mais do que um; 0,4% de dados omissos) e 81,7% não tinha problemas de saúde psicológica (13,6% tinha um e 3,6% tinha mais do que um; 1,1% de dados omissos).
O Quadro 2 apresenta a síntese dos resultados obtidos através do MHI-5. Tendo em consideração as respostas mais escolhidas, pode considerar-se que a saúde mental da amostra era, de um modo geral, positiva. (Face aos objectivos do estudo, optou-se por não apresentar o score total do MHI-5.)
Relativamente ao item “indique o cuidado que geralmente tem com a sua saúde”, 22,3% seleccionou a opção “muito cuidado”, 63,9% “algum cuidado”, 12,9% “pouco cuidado” e 0,4% “nenhum cuidado” (0,4% de dados omissos).
A última prática de (auto-)cuidados de saúde realizada foi considerada convencional por 39,2% dos respondentes e não convencional por 24,9% (20,5% não tinha a certeza; 15,4% de dados omissos).
Quanto aos resultados da última prática de (auto-)cuidados de saúde, 12,5% avaliou-os como “não sabe”, 0,4% “muito negativos”, 0,4% “negativos”, 2,2% “nulos”, 2,4% “fracos”, 14,5% “razoáveis”, 37,2% “bons” e 15,6% “muito bons” (14,7% de dados omissos).
Se sentiu muito nervoso | Se sentiu calmo e em paz | Se sentiu triste e em baixo | Se sentiu triste e em baixo de tal modo que nada o conseguia animar | Se sentiu uma pessoa feliz | ||||||
n | % | n | % | n | % | n | % | n | % | |
Sempre | 8 | 1,8 | 6 | 1,3 | 6 | 1,3 | 6 | 1,3 | 32 | 7,1 |
Quase sempre | 50 | 11,1 | 92 | 20,5 | 32 | 7,1 | 17 | 3,8 | 130 | 29,0 |
A maior parte do tempo | 61 | 13,6 | 129 | 28,7 | 42 | 9,4 | 28 | 6,2 | 120 | 26,7 |
Durante algum tempo | 184 | 41,0 | 166 | 37,0 | 163 | 36,3 | 89 | 19,8 | 119 | 26,5 |
Quase nunca | 126 | 28,1 | 50 | 11,1 | 177 | 39,4 | 131 | 29,2 | 34 | 7,6 |
Nunca | 18 | 4,0 | 4 | 0,9 | 27 | 6,0 | 176 | 39,2 | 11 | 2,4 |
Total | 447 | 99,6 | 447 | 99,6 | 447 | 99,6 | 447 | 99,6 | 446 | 99,3 |
Omisso | 2 | 0,4 | 2 | 0,4 | 2 | 0,4 | 2 | 0,4 | 3 | 0,7 |
Total | 449 | 100,0 | 449 | 100 | 449 | 100 | 449 | 100 | 449 | 100 |
No que concerne à satisfação com a última prática de (auto-)cuidados de saúde, 0,9% revelou-se “totalmente insatisfeito”, 0,7% “insatisfeito”, 15,6% “nem satisfeito nem insatisfeito”, 47,7% “satisfeito” e 16,9% “totalmente satisfeito” (18,3% de dados omissos).
Dos que consideraram a última prática não convencional (N=112), 4,5% avaliou os seus resultados como “não sabe”, 0,9% “negativos”, 3,6% “fracos”, 15,2% “razoáveis”, 53,6% “bons” e 21,4% “muito bons” (0,9% de dados omissos), tendo-se considerado 1,8% “totalmente instisfeito”, 1,8% “insatisfeito”, 10,7% “nem satisfeito nem insatisfeito”, 63,4% “satisfeito” e 20,5% “totalmente satisfeito” (1,8% de dados omissos).
A maioria tinha religião (61,7% vs. 37,2%; 1,1% de dados omissos), era não praticante (61,2% vs. 25,8%; 12,9% de dados omissos) e considerava que a religião não influenciava as suas decisões sobre cuidados de saúde (88,4% vs. 6,7%; 4,9% de dados omissos).
Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas nas percepções de saúde, do cuidado com a saúde, dos resultados da e satisfação com a última prática de (auto-)cuidados, na satisfação com a saúde ou nos itens do MHI-5 em função das características religiosas avaliadas.
Discussão
Quanto à CAM, a frequência de uso relatada é baixa, com uma elevada percentagem de dados omissos que não é linear que corresponda a não utilização. Este resultado pode considerar-se em linha com os valores reportados por Kemppainen et al. (2018), mas muito menos com os de Nicdao e Ai (2014) e Clossey et al. (2023), o que se pode dever aos indicadores de saúde (mental) da amostra.
A maioria dos participantes reportou interesse em ter (mais) conhecimentos sobre práticas de CAM, não tendo 20,5% a certeza se a última prática de (auto-)cuidados de saúde realizada era convencional ou não, o que revela um conhecimento bastante limitado sobre o assunto. Ainda mais se se tiver em consideração que antes da apresentação do questionário era clarificado o que se entendia, no âmbito do estudo, por práticas não convencionais, por oposição à definição de convencionais. Seja como for, ambos os resultados estão de acordo com os de Xie et al. (2020), Joyce et al. (2016) e Zhao et al. (2022), com estudantes do ensino superior, que corresponde à escolaridade da maioria da presente amostra. A maioria também usava CAM com práticas convencionais, em consonância com estudos prévios (Clossey et al., 2023; Kemppainen et al., 2018).
Tendo estes resultados em mente, é possível que o uso concomitante dos dois tipos de práticas em apreço e um considerável desconhecimento sobre CAM possa ter tido impacto na frequência de uso de CAM reportada. É também possível que a escala de frequência escolhida não seja a mais adequada, podendo, p.e., os participantes considerar que a(s) prática(s) de CAM que usam não requer(em) um uso frequente para ser(em) eficaz(es). Todas estas são questões a considerar em futuros estudos sobre o tema.
Os indicadores de saúde da amostra considerados, i.e., os itens relativos à percepção de saúde, à satisfação com a saúde, à saúde mental e há existência de problemas de saúde física e psicológica dignosticados, podem interpretar-se como genericamente positivos. Estes indicadores reforçam a percepção de cuidado com a saúde da amostra. As respostas ao MHI-5 também corroboram as relativas aos problemas de saúde psicológica.
No que concerne à última prática de (auto-)cuidados de saúde realizada, esta foi considerada convencional pela maior parte da amostra, sendo as respostas quanto aos resultados da e satisfação com a mesma globalmente positivos. As respostas sugerem, porém, uma avaliação dos resultados e uma satisfação mais positivas relativamente às práticas CAM. É, contudo, de sublinhar que os indicadores de satisfação dos pacientes tendem a ser bastante positivos (p.e., Dunsch et al., 2018), não sendo o uso de CAM excepção (p.e., Barbadoro et al., 2011).
Em relação à religião, a maioria tinha religião, mas era não praticante, e considerava que a religião não influenciava as suas decisões sobre cuidados de saúde. Este último resultado não vai ao encontro do estudo de Clark et al. (2018), que revelou alguma evidência de efeitos de crenças e comportamentos religiosos em alterações em comportamentos de saúde, nem com os de Bakhtiari et al. (2019) sobre a relação entre o tipo de orientação religiosa e a responsabilidade com a saúde. Trata-se, todavia, de amostras com características sociodemográficas diversas e o modo como a relação entre as variáveis foi estudada é também muito diferente.
Não se verificaram diferenças estatisticamente significativas nas percepções de saúde, do cuidado com a saúde, dos resultados da e satisfação com a última prática de (auto-)cuidados, na satisfação com a saúde ou nos itens do MHI-5 em função das três características religiosas avaliadas. Estes resultados divergem dos relatados por Ellison e Levin (1998), Masters et al. (2023) e Shafranske (2023), convergindo, porém, com parte dos resultados apresentados por Clark et al. (2008), Bakhtiari et al. (2019) e Shiba et al. (2023). Uma vez mais, devem ser enfatizadas as diferenças entre as amostras consideradas e o modo como saúde e religião foram operacionalizadas. Acima de tudo, os presentes resultados apresentam evidência adicional de que as relações entre saúde e religião não são lineares nem generalizáveis.
Em termos de limitações, é de sublinhar que a amostra, variada em termos sociodemográficos, é de conveniência, não podendo os resultados obtidos ser generalizados para a população em geral. Tratando-se de um projecto com muitas variáveis (de que só uma pequena parte foi explorada no presente estudo), para não tornar a participação demasiado exigente, as variáveis em apreço foram operacionalizadas de modo algo simples, o que limita algumas comparações com a investigação anterior. Não obstante, outros modos mais “complexos” de operacionalizar os constructos também têm revelado resultados nem sempre convergentes, nomeadamente em termos da relação saúde-religião. Assim, em estudos futuros é aconselhável tentar aceder a amostras mais representativas e operacionalizar as variáveis de modo mais rico, nomeadamente recorrendo a instrumentos internacionalmente reconhecidos para o efeito.
No âmbito das variáveis, seria também relevante, em futuros estudos, incluir indicadores de espiritualidade. Ainda que a análise das convergências e divergências entre religião e espiritualidade (alvo de diversas publicações) esteja fora do âmbito do presente estudo, é possível que a espiritualidade da amostra pudesse estar significativamente relacionada com a sua saúde, o que não se verificou com a religião, com implicações importantes para a prestação de cuidados de qualidade.
Além disso, é importante desenvolver esforços para limitar os dados omissos. No presente estudo, as taxas de dados omissos revelaram-se por vezes bastante elevadas, o que requer reflexão adicional e pode levar a interpretações erróneas dos resultados obtidos.
Em conclusão, os resultados do presente estudo apoiam a exploração rotineira das práticas de (auto-)cuidados de saúde não convencionais e a aposta na formação a este nível para alcançar a segurança, eficácia, equidade, inclusão e sustentabilidade na prática da psicologia da saúde e dos cuidados de saúde em geral. Tendo em mente a WHO traditional medicine strategy: 2014-2023 (World Health Organization, 2013), considera-se que estas são etapas importantes no âmbito da integração da medicina tradicional/CAM nos serviços de saúde (World Health Assembly, 2014).
Os resultados não revelam, todavia, a pertinência de certos aspectos religiosos no âmbito da saúde. No entanto, até porque a religião/espiritualidade podem estar intimamente relacionadas com o uso de CAM (Clossey et al., 2023; Curlin et al., 2009; Kemppainen et al., 2018; Nicdao & Ai, 2014; Votova & Wister, 2006; Xie et al., 2020), considera-se importante que a religião/espiritualidade seja por norma considerada (desde a avaliação inicial até à da eficácia da intervenção) nos cuidados de saúde (psicológica e em geral).