República da Guiné-Bissau, um Estado frágil e o planeamento estratégico em saúde
Ocupando a 178ª posição no total de 188 países classificados para o Índice de Desenvolvimento Humano (UNDP, 2016), a República da Guiné-Bissau (RGB), com cerca de 1,7 milhões de habitantes, trinta etnias (Fula, Balanta, Mandinga, Manjaco e Pepel representam mais de 85% da população) e diferentes credos religiosos (islamizados, católicos, protestantes e animistas), situa-se na África Ocidental, distribuindo-se por uma faixa continental e 88 ilhas correspondentes a 22% do território nacional (Instituto Nacional de Estatística da RGB & Ministério da Economia e Finanças da RGB, 2018; MINSAP, 2017).
Um Estado independente desde 1974, depois de um conflito armado (1963-1974) que opôs o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) à administração portuguesa, a situação política na Guiné-Bissau tem sido instável, marcada por repetidos golpes de Estado e conflitos armados desde 1980. Apesar de uma transição pacífica para eleições multipartidárias em 1994, o percurso político do país tem sido muito acidentado (Forrest, 2003; Sangreman, 2016). Três momentos de particular tensão podem ser destacados na história do país: o conflito político-militar de junho de 1998 a maio de 1999, o golpe de Estado de 2012 e a queda do Governo em 2015. Esta instabilidade apresenta particular impacto ao nível da economia nacional, com francos efeitos na degradação de infraestruturas e no tecido social.
O PIB per capita pouco se distancia dos 500 USD, valor atingido apenas depois de 2007 (Ministério da Economia, do Plano e da Integração Regional da RGB, 2011). Em termos dos níveis de pobreza, 70% da população vive com menos de 2 USD/dia (Cardoso & Dubbeldam, 2018).
Caracterizada por fracos recursos internos, o sector primário tem sido o maior contribuinte do PIB (Escritório Regional Africano da OMS, 2008). As infraestruturas de apoio às atividades económicas (rede rodoviária, portos marítimos, telecomunicações, e abastecimento de água potável e eletricidade) são deficientes (MINSAP, 2017).
Segundo o Índice dos Estados Frágeis (Fragile States Index - FSI; Fund for Peace, 2018) a RGB é considerada o 16º país mais frágil num universo de 178 países (Messner et al., 2018). Não existindo uma definição internacionalmente acordada de Estado Frágil (EF) (Fund for Peace, 2018), segundo a OCDE (2008), os dois critérios apontados para a caracterização destes Estados são a falta de legitimidade, ou seja, vontade do Governo e capacidade e eficácia para prestar serviços básicos e segurança (Newbrander et al., 2011).
Marcada por uma forte dependência da comunidade internacional nos sectores da economia, saúde e educação (Dussault & Fronteira, 2010; Guerreiro et al., 2017; Sangreman, 2016; The World Bank, 2018), que foi reforçada pelos Programas de Ajustamento Estrutural (PAE, 1987-1998) (Alves, 2002; Lopes da Cruz, 2007), os sete maiores parceiros de desenvolvimento da RGB têm sido a União Europeia (UE), o sistema das Nações Unidas, o Banco Mundial, o Fundo Global, o Banco Africano de Desenvolvimento (BAD), Portugal e Espanha. Dos multilaterais realçam-se ainda a Comunidade Económica de Estados da África Ocidental (CEDEAO), a União Económica Monetária da África Ocidental (UEMOA) e o Banco de Desenvolvimento da África Ocidental (BDAO). Dos bilaterais realçam-se também Dinamarca, França, Brasil e, mais recentemente, China, Marrocos, Índia, Irão e Nigéria (MINSAP, 2017).
Importa sublinhar que, para além da Ajuda Pública ao Desenvolvimento, prestada no quadro das relações intergovernamentais diretamente ou por mediação de organizações multilaterais, deve considerar-se ainda a ajuda privada - prestada ou por agentes económicos (empresas ou bancos), geralmente destinada a atividades produtivas (agrícolas e industriais) e que pode revestir a forma de créditos à exportação, investimentos diretos, reinvestimentos de lucros, entre outras; ou por atores da sociedade civil, geralmente mediada por organizações não governamentais (ONG) (Lopes, 2003).
Apesar de progressos significativos na redução da mortalidade neonatal, infantil e da criança, relativamente a países comparáveis da África Ocidental, África subsaariana ou países de baixa renda, a RGB tem um desempenho desfavorável na maioria dos indicadores de saúde (MINSAP, 2017), espelhando também as fraquezas do seu Sistema Nacional de Saúde (SNS). Este apresenta três níveis de funcionamento - local, regional e central - que teoricamente correspondem a prestações de serviços de nível primário, secundário e terciário, mas sem ter capacidade de resposta às necessidades de saúde do país.
Diversos fatores originam esta realidade, entre eles a baixa densidade de recursos humanos da saúde (RHS), infraestruturas em avançado estado de degradação, serviços de diagnóstico complementar praticamente inexistentes, deficiente funcionamento do sistema de referência e contrarreferência (MINSAP, 2007). (Ilustração 1). Regista-se ainda a frequente rutura de stocks de medicamentos/materiais e a falta de cadeia de frio, dificultando a instituição de tratamentos médico-cirúrgicos e a sustentação de serviços de vacinação.
Estão identificados importantes determinantes da realidade sanitária do país (MINSAP, 2017), sendo de destacar: a deficiente capacidade de governação do sistema de saúde, com graves deficiências em funções como as de definição de políticas e estratégias, mobilização de recursos, inspeção, regulação, coordenação entre ministérios e os níveis central e regional e articulação com os parceiros e as organizações da sociedade civil; a débil capacidade de gestão em termos de planificação, implementação, supervisão, manutenção de equipamentos, monitorização e avaliação; a insuficiência de financiamento para o sector da saúde e fraqueza do sistema de proteção social, manifestadas tanto na excessiva dependência de pagamentos diretos pelas famílias, como na excessiva dependência dos apoios externos para o funcionamento de rotina (MINSAP, 2017).
De 2012 a esta parte, o investimento do Estado na saúde flutua significativamente de ano para ano, nunca ultrapassando os 9% do Orçamento Geral de Estado (OGE), muito aquém do acordo de 15% (Gebregziabher & Hansen, 2018; MINSAP, 2017) assumido no âmbito do compromisso de Abuja (WHO, 2001).
Os gastos do Governo com saúde representam apenas 1,9% do PIB, o que é significativamente inferior ao de alguns dos seus pares regionais. Esta situação mantém-se em 2018. Em 2016, os gastos em saúde pública representaram apenas 31,3% do total de gastos em saúde, menos que o Burundi (38,8%) e a Gâmbia (46,6%), mas superior aos da Serra Leoa (9,0 %) e dos Camarões (13,4 %). Os gastos do Governo com a saúde não só são baixos, como são feitos quase exclusivamente (cerca de 90%) com RHS. Daí resulta a necessidade de as famílias investirem em média 15% de seus gastos não alimentares em saúde (Gebregziabher & Hansen, 2018).
Apesar destes indicadores, é de sublinhar que:
os esforços das autoridades, com o apoio da comunidade internacional, contribuíram para melhorar as condições de vida da população em geral: foram realizados alguns progressos encorajadores, especialmente nas áreas de educação primária, acesso a água potável, saneamento básico e saúde, combate ao HIV/SIDA e malária, respeito pelos direitos da criança e questões de género e saúde reprodutiva e da mulher. (Africa MDG Progress Reports, n.d., p. 4)
Importa salientar que no quadro da implementação do primeiro Documento de Estratégia Nacional de Redução da Pobreza (DENARP I, 2004-2007), a Guiné-Bissau realizou progressos significativos na estabilização da gestão macroeconómica, na reforma da administração pública e na melhoria da oferta dos serviços públicos, nomeadamente nos domínios da educação e saúde. Porém, devido à conjugação de vários fatores, dos quais se salientam a instabilidade política e institucional, a penúria das infraestruturas de base, o impacto das crises petrolífera e económica internacional, e o contraste entre as metas estabelecidas e a realidade do país, estes resultados ficaram muito aquém dos objetivos inicialmente fixados. Por exemplo, o crescimento económico foi, em média, de 3,1% entre 2007 e 2009, opondo-se a um objetivo inicial de 5%. Consequentemente, o nível da pobreza manteve-se elevado (69,3% em 2010, vs. uma estimativa de 64,7% para 2002), o que contribuiu para a redução das oportunidades do país em alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM) no horizonte 2015 (Ministério da Economia, do Plano e da Integração Regional da RGB, 2011).
Com base nas lições aprendidas desta experiência, foi elaborado o segundo DENARP, com horizonte temporal 2011-2015, que reconhece o impacto negativo da fragilidade do Estado e da instabilidade política (Ministério da Economia, do Plano e da Integração Regional da RGB, 2011). Findo o período de implementação deste documento, assiste-se à sua substituição pelo Plano Estratégico e Operacional do Governo Terra Ranka 2015-2025 (República da Guiné-Bissau, 2015).
Numa continuidade de definição estratégica de luta contra a pobreza que se insere numa tentativa de ajustar os planos às condições locais (Sangreman, 2016), este plano foi desenhado por guineenses e para guineenses com o intuito de, até 2020, reconstruir o país, consolidar as instituições democráticas e lançar as fundações para a estabilidade e desenvolvimento socioeconómico sustentável, em que o sector da saúde surge como uma das prioridades, com forte ênfase no melhoramento das infraestruturas e da governação do sistema de saúde.
Sendo um dos países mais pobres do mundo, a RGB tem investido no planeamento estratégico para o sector da saúde (PES) (Guerreiro et al., 2017).
A gestão estratégica do sector da saúde da Guiné-Bissau foi, até março de 2017, orientada pela Política Nacional de Saúde (PNS) adotada e aprovada em 1993. Esta enquadrou, ao longo dos tempos, diversas políticas temáticas e orientou a elaboração de três Planos Nacionais de Desenvolvimento Sanitário (PNDS) (Guerreiro et al., 2017). O PNDS pretende ser o documento que define a estratégia nacional de saúde do país (Cardoso & Dubbeldam, 2018). Ao PNDS I (1998-2002, revisto para 2003-2007) sucedeu o PNDS II (2008-2017) e em 2017 completou-se um novo processo de planeamento - PNDS III. A extensão do primeiro PNDS foi enquadrada pelo DENARP I e o segundo PNDS pelo DENARP II. A elaboração do terceiro PNDS foi orientada pela PNS adotada em março de 2017, pelo Plano Estratégico e Operacional do Governo Terra Ranka 2015-2025 e pelas recomendações que emergiram da 1ª Conferência Nacional de Saúde em outubro de 2014 (Guerreiro et al., 2017).
Vale a pena fazer memória deste exercício com um duplo propósito: por um lado, partindo das memórias dos atores-chave e do conteúdo dos documentos oficiais de PES existentes na RGB, analisar os processos de PES na RGB, enquadrando-os no descrito pela literatura e contextualizando-os na especificidade vivida por EF nesta matéria; e, por outro, guardar memória destes processos, como trilhos de um passado que nos ajudam a escolher caminhos.
Com este duplo intuito, o presente trabalho foi realizado com recurso ao método histórico pelo qual é possível investigar acontecimentos, processos e instituições do passado para verificar a sua influência na sociedade atual, partindo do princípio de que as atuais formas de vida social, as instituições e os costumes têm origem no passado, sendo importante pesquisar as suas raízes para compreender a sua natureza e função (Marconi & Lakatos, 2007). Recorreu-se a análise de conteúdo (Bardin, 2008) dos PNDS I, II e III, dos documentos resultantes da avaliação da implementação dos PNDS I e II (Ferrinho, 2015a; Fronteira et al., 2007) e de treze entrevistas semiestruturadas (Flick, 2005) realizadas entre fevereiro de 2016 e agosto de 2017 a avaliadores e atores-chave em PES na RGB.
Os treze entrevistados fizeram memória dos processos de PES em que estiveram envolvidos, tendo sido selecionados pelo investigador por se reconhecer serem detentores de informações pretendidas para o estudo, constituindo assim uma amostra não probabilística intencional (Marconi & Lakatos, 2007).
Dois deles são avaliadores portugueses, um envolvido na avaliação do PNDS I e o outro nos processos de avaliação da implementação do PNDS I e do PNDS II, bem como na redação dos PNDS II e III. Ambos foram entrevistados em Lisboa.
Os restantes onze entrevistados são guineenses, estão ou estiveram diretamente implicados nos processos de PES, desde a elaboração do PNDS I até ao atual processo de redação e implementação do PNDS III. Ocupam ou ocuparam cargos de governação do sector a nível nacional, dois deles amplamente relacionados com programas específicos (Luta contra a Tuberculose e Lepra e Saúde Materno-Infantil) e dois dos entrevistados ocupam atualmente cargos em organizações internacionais.
Oito destas onze entrevistas foram realizadas em Bissau em fevereiro de 2016. Uma outra foi realizada por videoconferência, estando o ator-chave em Bissau e o entrevistador em Lisboa, em julho de 2017. As entrevistas aos atores-chave que ocupam cargos em organizações internacionais decorreram igualmente por videoconferência, com o entrevistador em Lisboa, em março e julho de 2017 e os entrevistados no país de missão.
As entrevistas foram gravadas, com o devido consentimento dos entrevistados sob garantia de anonimato.
Com base na literatura consultada foi elaborado um mapa metodológico que permitiu analisar os processos de PES na RGB, descrito na Figura 1.
Os autores consultados definem vários passos no processo de planeamento em saúde, os quais formam um ciclo contínuo integrando uma fase de diagnóstico seguida de definição de objetivos e prioridades. Destes decorrem a definição estratégica e a determinação de recursos necessários para a sua implementação. A monitoria e avaliação são transversais a todo o processo, sobretudo no momento da implementação, permitindo fazer dele um ciclo. Este é o enquadramento que está na origem da construção do presente mapa metodológico.
A evolução do PES na RGB está descrita, numa perspetiva de guardar memória dos processos desenvolvidos (Guerreiro et al., 2017), sendo sintetizada na Figura 2.
Propomos uma viagem pelas memórias daqueles que viveram a realidade de 25 anos de Política Nacional de Saúde num Estado que apesar de frágil tem claramente definidas uma visão da saúde - “um sistema de saúde cada vez mais eficiente, eficaz e financeiramente sustentável, com um crescente envolvimento de diferentes sectores e responsabilização pelo Governo, profissionais e cidadãos” - e a missão do sistema de saúde para concretizar essa visão: “Contribuir de uma forma decisiva para o bem-estar físico, mental e social da população, seguindo os preceitos de acesso universal aos programas e serviços de saúde considerados prioritários pelo Governo, de forma acessível, equitativa e de qualidade para todos” (MINSAP, 2017).
Memórias e reflexões de 25 anos de Política Nacional de Saúde
Após a independência do país em 1974, o primeiro grande projeto em saúde foi implementado nas regiões de Cacheu e Tombali a partir de 1976, versando o desenvolvimento comunitário. Financiado pela Cooperação Holandesa e com o apoio da Organização Mundial da Saúde (OMS), a “Reforma da Intenção Primária” lançava o desafio de trazer a saúde às comunidades, envolvendo profissionais de saúde, concretamente enfermeiros que haviam sobrevivido à guerra da independência, e cidadãos, capacitando as comunidades para intervirem na sua própria saúde. O processo de avaliação destes projetos-piloto pode ter contribuído para o desenho de uma estratégia nacional de saúde, cuja definição demorou, provavelmente devido a mudanças políticas após o golpe de Estado de 1980. O Projeto de Saúde de Base apresentado em 1978, elaborado com base numa operacionalização das orientações da Declaração de Alma-Ata, destacou a necessidade de um plano nacional, a regionalização da gestão dos serviços de saúde, uma distribuição mais equilibrada dos RHS e a criação de uma rede de serviços primários em zonas rurais e urbanas. “Foi a génese da PNS e assim nasceu a pirâmide sanitária que ainda hoje é conhecida”, refere um dos entrevistados.
Em 1993, a meio da segunda fase da política de ajustamento estrutural que se iniciou em 1987, foi aprovada a PNS, a qual priorizou a saúde materno-infantil e o planeamento familiar, o melhoramento dos sistemas de saneamento e a prevenção e controlo de doenças, elaborando programas para cada área. Os alicerces do Plano Estratégico para o Sector da Saúde consistiram em descentralizar os serviços, melhorar o acesso e a distribuição dos recursos, aumentar a sua qualidade, desenvolver um programa de formação e reciclagem de quadros, reforçar a coordenação intersectorial e criar um sistema nacional de informação sanitária (MINSAP, 1997, 2017). Como principal instrumento da PNS (MINSAP, 1997), foi realizado o primeiro exercício de PES, sendo o seu resultado apresentado na mesa-redonda sectorial de 1997. Nasceu assim o PNDS I (Ilustração 2).
São gratas as memórias do exercício de PES que resultou na redação do PNDS I, cuja implementação acabou por ser adiada devido à guerra de 1998-1999.
Este exercício, na opinião de grande parte dos entrevistados, passou pelas diversas fases do ciclo de planeamento definidas no mapa metodológico utilizado no presente trabalho.
Com início em 1995, logo após as primeiras eleições multipartidárias no país em 1994, foi feito “um exaustivo e útil trabalho de diagnóstico”, analisando a situação vivida então na RGB em termos de saúde e suas necessidades, contextualizando os dados encontrados na realidade histórica, política e social do país. Foram definidas prioridades e estratégias, envolvendo os diferentes parceiros incluindo os financiadores.
Com base nesta realidade, foram definidas quatro áreas prioritárias de intervenção: qualidade dos cuidados de saúde e acessibilidade; reforço institucional e gestão de recursos; desenvolvimento dos recursos humanos; promoção da saúde e colaboração intersectorial (MINSAP, 1997).
Um estudo preliminar do sistema de saúde nos meados dos anos 90, antes da introdução do PNDS I, concluiu que a degradação das infraestruturas, a falta de pessoal qualificado e de investimento, e o deficiente sistema de planificação, também associados aos PAE, formaram “obstáculos ao desenvolvimento dos serviços de saúde” (Paulo & Jao, 1996). A equipa do MINSAP estava consciente dos desafios que a implementação do Plano iria colocar devido à fraca supervisão central do sistema, à falta de integração dos programas verticais e de uma política coordenada de formação de quadros, bem como à fraca coordenação entre os diferentes níveis dos cuidados. Os efeitos do PAE criaram barreiras para a intervenção, devido à deterioração das infraestruturas sanitárias e até à redução destas, com o desaparecimento de mais de uma dezena de centros de saúde no interior. Ao mesmo tempo surgiu um sector privado, sobretudo na capital, para utentes mais abastados, recrutando RHS do SNS. Sendo a capacidade de gestão identificada como um dos principais entraves, foi criado o Programa de Reforço da Gestão Sanitária (PRGS) através de um projeto-piloto com equipas regionais polivalentes em Biombo, Bafatá e Oio. Para este fim foram administrados cursos de planificação a quadros regionais, para elaborar e implementar planos regionais, identificar problemas-chave e aplicar soluções em consonância com os recursos disponíveis e os problemas locais (Paulo & Jao, 1996). Este programa lançou as bases para criar o perfil sanitário que foi definido imediatamente antes e no período de redação do PNDS I. Fez-se a divisão sanitária em 11 regiões e não 8 como as administrativas, uma vez que as limitações de acessibilidade foram tidas em conta. De facto, “a regionalização que acompanhou a redação do PNDS I foi uma etapa marcante”. “O PNDS I está muito bem desenhado!” é a exclamação de um dos entrevistados, espelhada na forma saudosa que àquele se referem muitos dos que participaram neste trabalho. “Os trabalhos decorriam com ânimo. Cada região fazia o seu trabalho. Tínhamos indicadores e analisávamos as falhas. Foi assim que desenhámos o mapa sanitário.”
Ainda hoje “o PNDS I continua a ser uma referência”. Um dos entrevistados refere que:
o PNDS I conseguiu ser um documento federador de todos os parceiros que estavam na RGB, foi de facto uma experiência espetacular ver a implicação de diferentes pessoas de diferentes governos e nacionalidades. Desde holandeses a suecos, americanos, entidades como o BM, a OMS, todos se envolveram no processo. Foi um trabalho formidável e participativo.
Outro aspeto realçado deste documento é o facto de apresentar uma “reflexão sobre a futura implementação, fundamental para a sua apropriação aos mais diversos níveis”. Porém, “o PNDS I foi lançado em março de 1998 e dois meses depois teve início a guerra civil”.
Segundo os entrevistados “a guerra de 98 foi muito dura, mais que a da independência, mais agressiva e levando por um lado a uma ampla fuga de quadros e por outro à destruição de infraestruturas essenciais ao funcionamento do SNS”.
A vivência da Guiné-Bissau retrata a relação entre a fuga de quadros e a instabilidade política e económica descrita na literatura. Países como Angola, Congo, Libéria, Moçambique, Ruanda e Serra Leoa viveram guerras civis na década de 90 e perderam mais de 40% dos seus médicos até ao ano 2000 (Clemens & Pettersson, 2008). Dados de 2000 indicam que 7 em 10 médicos guineenses estariam em exercício profissional fora do país, sendo que nesse ano exerciam medicina em Portugal 160 médicos guineenses de um total de 251 que haviam fugido do país, permanecendo na Guiné-Bissau um total de 103 médicos (Clemens & Pettersson, 2008). Embora inferior à fuga de médicos, segundo a mesma fonte, a fuga de quadros de enfermagem registou em 2000 um total de 25%.
A situação político-militar de 1998 comprometeu a execução do PNDS I, tendo este sido em 2002 revisto para o horizonte temporal de 2003-2007, com o objetivo de implementar as atividades inicialmente programadas (Fronteira et al., 2007; MINSAP, 2007).
Em finais de 2007, resultando de uma consultoria solicitada pela Célula de Gestão do PNDS do Ministério da Saúde Pública (MINSAP) da RGB, foi efetuada a avaliação da execução do PNDS I, sendo entregue em dezembro do referido ano o respetivo relatório, o qual foi validado pelo MINSAP (Fronteira et al., 2007). Esta avaliação teve por objetivo relatar e analisar as informações disponíveis sobre a implementação e execução do PNDS I e o impacto que este teve na melhoria da saúde da população e nas taxas de cobertura dos indicadores-chave da saúde pública (Fronteira et al., 2007).
Segundo os avaliadores, “o PNDS estava muito bem feito e por isso foi simples desenhar em termos teóricos a avaliação”. Os avaliadores tentaram ir para além dos indicadores descritos no Plano e foi estabelecida a relação com os ODM, tornando o trabalho útil e apreciado, com impacto na posterior redação do PNDS II.
Porém, implementar a avaliação que havia sido desenhada foi “um processo duro, um confronto com uma realidade difícil de enfrentar. A avaliação foi feita num contexto e o Plano havia sido redigido noutro”. O Plano, que tinha estado adequado, deixou de o estar no pós-guerra. Os avaliadores referem, sem esconder as marcas que esta avaliação lhes deixou: “levávamos uma estrutura de avaliação e ao chegar ao terreno os dados para calcular os indicadores definidos tinham desaparecido. Aqueles objetivos tinham deixado de fazer sentido. Houve um retrocesso, faltava tudo. Faltavam os RH, os recursos farmacológicos, as infraestruturas”. “Tivemos de adaptar a estrutura da avaliação àquele novo contexto. O grande desafio foi transformar situações avaliadas não desejáveis em contributos para o crescimento daquele país”, sublinham. Assim,
as sugestões efetuadas no final do documento de avaliação pretenderam contribuir para a alteração de uma visão negativa da avaliação, que vem da ideia de que se avalia para punir, para um sentido positivo do ato de avaliar - sabe-se que o plano não foi cumprido em muitos dos objetivos e intervenções mas há a possibilidade de continuar a progredir.
Em continuidade do caminho percorrido com a implementação do PNDS I, ambicionando um projeto de desenvolvimento socioeconómico para assegurar a obtenção de “Ganhos em Saúde” de 2008 a 2017 (MINSAP, 2017) e na expetativa de dar resposta aos objetivos traçados no quadro do DENARP, foi elaborado o PNDS II com o horizonte temporal de 2008-2017 (MINSAP, 2007).
Como se pode ler na contextualização deste documento, ele não apenas pretende ser o contributo do sector da saúde para a redução da pobreza e promoção do desenvolvimento socioeconómico sustentável à luz da Mesa-Redonda de Genebra de 2006 (evento que reuniu em Genebra os doadores com o objetivo de angariar ajudas para o financiamento de ações constantes no DENARP, OGE 2006/2007 assim como para o Programa de Reforma das Forças de Defesa e Segurança da RGB), como leva também em conta os compromissos do Governo da RGB relativamente à prossecução dos ODM, da Declaração de Abuja sobre a meta de 15% do OGE destinado à saúde (WHO, 2001), entre outros compromissos assumidos no domínio da saúde e do desenvolvimento. A sua concretização passa necessariamente pela implementação gradual de todos os programas nacionais de prevenção e combate às doenças transmissíveis e não transmissíveis, promoção da saúde e outros (MINSAP, 2007).
Em 2011 é adotado o DENARP II (Ministério da Economia, do Plano e da Integração Regional da República da Guiné-Bissau, 2011), promovendo o enquadramento do PNDS II (Cardoso & Dubbeldam, 2018), numa perspetiva de promoção do Estado de direito e do desenvolvimento económico e do capital humano, aspetos em que se centraram os pilares da então definida estratégia nacional de luta contra a pobreza (MINSAP, 2017).
Porém, “enquanto todos conheciam o PNDS I, o mesmo não sucedeu com o PNDS II”, refere um dos entrevistados. O PNDS II nunca foi formalmente assumido, o conjunto de indicadores e métricas nunca foi finalizado porque o processo foi interrompido pelo golpe de Estado de 2012. Comparativamente ao PNDS I,
é menos rico em termos de indicadores que permitam monitorizar a implementação, é um plano mais orientador para o desenvolvimento do trabalho de implementação de uma estratégia. Infelizmente não se conseguiu trazer para o PNDS II a métrica que existe no PNDS I.
O PNDS II apresenta-se como “um documento ambicioso e didático, pouco operacional”, sendo, porém, de referência, “usado por alguns parceiros como orientação para a elaboração dos seus projetos”. Faltou ao PNDS II a vertente da implementação. Um dos entrevistados, questionado sobre a importância da existência de um plano como este, na consciência da sua fraca utilização, referiu ser “fundamental que este tipo de documentos de orientação estratégica incluam uma reflexão profunda sobre a sua implementação, caso contrário tornam-se em exercícios sem utilização”.
A execução do PNDS II foi comprometida pela situação político-militar então vivida. A grande consequência do golpe de Estado de 2012 foi “a saída da maior parte dos parceiros que existiam nessa época”, inviabilizando a implementação estratégica prevista. Muitas das estratégias de gestão perderam a sua força e simplesmente deixaram de existir. “Antes do golpe de Estado havia um forte dispositivo de controlo de gestão, por exemplo ao nível dos medicamentos. Neste momento nada disso existe, não há preocupação com stocks”. Este entrevistado, com olhar entristecido, lamenta que “hoje nada funciona”.
Em agosto de 2015, e num momento em que a instabilidade política parecia ultrapassada, foi realizada uma revisão do PNDS II, com recurso a consultoria externa, com o objetivo de contribuir com subsídios a serem considerados pelo MINSAP na avaliação da implementação do Plano, de forma a permitir que as atividades inicialmente programadas pudessem ser adequadas ao então momento presente, sugerindo-se o prolongamento do horizonte temporal até 2020 (Ferrinho, 2015b). O relatório final da consultoria foi entregue e validado pelo MINSAP.
Analisando o ciclo de planeamento e implementação na RGB, verifica-se que nos exercícios de PES que ocorreram depois da redação do PNDS I, concretamente a já descrita revisão do horizonte temporal do PNDS I e a redação do PNDS II, os processos decorreram de forma diferente do que acontecera nos anos 90 do século XX, não se aplicando o ciclo de processo em análise: o PES surge como resposta à exigência dos financiadores e não como resposta a necessidades e prioridades definidas pelo contexto guineense.
Segundo grande parte dos entrevistados, “teoricamente deveria ser o governo da RGB a solicitar apoio para as suas necessidades em saúde”. Porém o que se verifica, e segundo opinião unânime dos entrevistados, é que a ajuda se obtém “de acordo com a agenda dos financiadores”. As fragilidades de governação, marcadas pela instabilidade gerada pela rotatividade e pela ausência parcial ou total de vontade política, bem como a perda de eficácia das instituições, contribuem para que cada parceiro/financiador adote a sua própria agenda sem ter por base as prioridades nacionais. Não reconhecendo a liderança política, as entidades externas tendem a definir os seus objetivos e implementam os seus projetos ou programas, reforçando a sua verticalização, e também a fragmentação.
Como consequência, assiste-se a uma falta de coordenação entre doadores, conduzindo a duplicação de ação, desfasamento de objetivos com a realidade local e até a baixa sustentabilidade das iniciativas. Assiste-se por exemplo à presença de vários atores numa mesma região sanitária, enquanto outras regiões permanecem com parco investimento. É o caso do desfasamento de intervenção entre o sul e o leste da RGB. Por outro lado, há alguns programas com vários doadores como financiadores e outros sem financiamento.
Há ainda a referir que muitas vezes o trabalho no terreno depende de acordos feitos entre governantes e entidades financiadoras, sendo que nem sempre estes acordos refletem as reais necessidades da população. Exemplo disto é o acordo para construção de grandes infraestruturas como o Palácio do Governo quando as estradas de ligação entre regiões sanitárias permanecem carentes de intervenção. Porém pode existir por parte dos financiadores a tentativa de apostar em pontos de convergência nas intervenções, sendo que, segundo os entrevistados, “cada um não abdica dos seus objetivos institucionais”. Segundo as palavras de um dos entrevistados, as quais sintetizam o dizer de outros, “os doadores não se articulam entre si e não há coordenação por parte dos governantes, nem vontade para tal”.
De facto, na RGB “os governantes parecem preferir operar a nível bilateral que em concertação, obtendo assim maiores benefícios diretos”, promovendo a duplicação das ações, o desfasamento dos objetivos e ainda a fraca sustentabilidade das iniciativas. Assiste-se assim a uma “tensão permanente entre os programas verticais e a tentativa de ter uma estratégia nacional, sendo que esta tensão resulta da política de financiamento. […] A verticalização no sector da saúde da RGB é uma luta constante”.
De facto múltiplos parceiros nacionais, internacionais, multilaterais, bilaterais, ONG, entre outros, têm apoiado o sector da saúde da RGB de forma pouco articulada entre si e com o MINSAP (Ferrinho, 2015b). À margem do PES, as ONG intervêm - sobretudo ao nível da educação e da saúde - nas comunidades, quer implementando os seus próprios projetos quer os de grandes entidades financiadoras (Silva, 2016). Em 2008 existiam 16 ONG com projetos na saúde, sobretudo nas zonas mais periféricas do país, atuando com base em protocolos e parcerias com o MINSAP (MINSAP, 2007). Num inquérito feito recentemente, identificaram-se dezenas de organizações ativas no país com um forte empenho na área de saúde comunitária e saneamento básico (Costantini et al., 2018).
O Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário na estratégia de saúde do país - Reflexões rumo à atualidade
Aprofundando estes dados, podemos questionar-nos sobre qual o lugar do PNDS na estratégia de saúde do país. “A base de todo o planeamento em saúde deveria ser o PNDS. Daí deveriam sair os planos regionais e os programas nacionais aí deveriam assentar. A articulação entre todos deveria ser uma realidade que não existe por falta de coordenação.” Esta afirmação, pronunciada por um dos entrevistados, sugere a coordenação e liderança como grandes temas que têm de ser abordados ao falar de PES na RGB. Porém, a montante, importa ter presente que na origem do planeamento está a resposta a necessidades e esta na RGB só ocorre com recurso a financiamento externo. Assim, “para falar de PES na RGB temos sempre de referir o grande tema da relação com financiadores”.
Embora haja esforços para aumentar a coordenação entre os parceiros de desenvolvimento no sector da saúde - Banco Mundial, Fundo Global, UE, Aliança Global para Vacinas e Imunização (GAVI), OMS, UNICEF (Fundo das Nações Unidas para a Infância), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e outros -, a presença de vários atores criou duplicação de prestação de serviços e programas verticais (como Malária, VIH e Tuberculose). Desde 2016, o Banco Mundial, o PNUD, o UNICEF e a UE lideram esforços para estabelecer um mecanismo de coordenação do sector da saúde para reduzir a fragmentação do sector (Araujo, 2018; The World Bank, 2018).
Apesar dos gastos limitados em saúde pública, o Ministério da Saúde Pública (MINSAP) não tem sido capaz de executar inteiramente o seu orçamento, tendo esta execução sido de aproximadamente 50% em 2014, diminuindo para 42% em 2015 (Araujo, 2018; MINSAP, 2017; The World Bank, 2018). As baixas taxas de execução indicam a capacidade limitada do Governo para planificar estrategicamente e implementar ações de políticas de saúde, sublinham as mesmas fontes.
De referir ainda a ausência de um mecanismo legal e institucional de integração e coordenação do sector privado e de medicina tradicional, verificando-se uma ausência de registos da sua atividade e financiamento (MINSAP, 2017).
De facto, os PNDS evidenciaram algumas lacunas em termos de uma visão mais abrangente do sistema de saúde, concentrando-se principalmente no SNS, com referências limitadas ao sector privado, às ONG e as organizações cívicas. Em 1990 as matrizes do PAE levaram o Governo a abrir as portas à iniciativa privada, ao autorizar o estabelecimento de consultórios e postos de enfermagem particulares, e farmácias privadas. Contudo a proliferação de estabelecimentos não foi acompanhada pela regulação, regulamentação e monitorização das suas atividades, e a sua contribuição para a saúde das populações (MINSAP, 2007). O mesmo se pode dizer das atividades das ONG que, apesar da sua notável proximidade às comunidades mais vulneráveis, estão bastante fragmentadas e dispersas.
Importa referir que “se se pretende que os líderes guineenses tenham capacidade para operacionalizar estratégias, temos de garantir que estes tenham acesso ao financiamento”. O que tem vindo a ocorrer é que os doadores financiam diretamente os seus projetos através de ONG, sem passar pelo MINSAP. “No momento em que o financiamento ultrapassa por completo o orçamento de Estado, as estruturas estatais perdem a capacidade de governação e liderança”, refere um dos entrevistados. Este financiamento direto provavelmente surgiu pelo não reconhecimento, por parte dos doadores, de autoridade dos governantes guineenses.
Porém esta metodologia em nada abona a uma mudança, a um progresso em termos de governação e liderança. “Existem casos que espelham descrédito pelas instituições estatais, criando-se processos de resposta a necessidades completamente paralelos às possíveis respostas do Estado”, sublinha um dos entrevistados. Porém, verifica-se o colapso destas soluções quando os projetos terminam e as ONG ou os financiadores abandonam o terreno. “Acaba o financiamento, as ONG vão embora e colapsa tudo”, refere o mesmo entrevistado. Os entrevistados são unânimes ao referir que, caso o investimento seja feito nas estruturas estatais, mesmo que haja colapso, permanece pelo menos o capital social que não se perde.
O povo “adapta-se às propostas dos financiadores e doadores pois não é detentor nem de vontade nem de consciência para não o fazer”. Existe um “inconsciente coletivo pati, pati, pati…”, refere um dos entrevistados, salientando o pedir constante como uma forma de vida, recorrendo à expressão das línguas locais que significa pedir, mendigar. A alfabetização da população manifesta ser ainda insuficiente, influenciando este processo de adaptação aos projetos tantas vezes díspares de que são alvo as comunidades. Exemplo disto são por exemplo a falha na implementação da Iniciativa de Bamako (Ridde, 2004) por incapacidade dos agentes locais, bem como a aceitação de projetos distintos que cobrem a mesma necessidade numa mesma localidade.
Estas características que dizem respeito à capacidade de adaptação da população guineense vão ao encontro da descrição feita por Forrest (2003) da sociedade multiétnica da RGB, a qual é caracterizada por estruturas e formações sociais que desde os tempos coloniais constituem o que o autor chama de “alternativas populares às autoridades governativas”. Estas exercem a nível local uma mais forte influência sobre as comunidades que a dos órgãos governativos propriamente ditos, baseando-se em mecanismos de cooperação interétnica e intercomunitária. Estes permitem definir processos de autonomia social assentes no conhecimento e na capacidade de resposta a necessidades por parte de indivíduos e grupos sociais, por exemplo a questões da saúde e bem-estar das populações.
Exemplo disto é o caso dos agentes de saúde comunitária (ASC) e das parteiras tradicionais, que no PNDS II são considerados parte integrante da organização do SNS enquanto recursos de apoio às Unidades de Saúde de Base (USB), estruturas reconhecidas como sendo de iniciativa comunitária, constituindo então o maior número de estruturas de prestação de cuidados de saúde (MINSAP, 2007). Também no PNDS III é referido que ao nível da comunidade, o sistema de saúde se tem apoiado nos ASC sem que estejam definidas orientações sobre o futuro destes recursos no sistema de saúde guineense (MINSAP, 2017). Os ASC e as USB podem ser encarados como uma resposta comunitária a necessidades de cuidados primários de saúde não satisfeitas, exemplificando uma alternativa popular às autoridades governativas.
Voltando à história nacional, salienta-se em outubro de 2014 a realização da 1ª Conferência Nacional de Saúde, presidida pelo então primeiro-ministro, tendo sido redigido um documento de recomendações “Ao Governo através do MINSAP”. Importa ainda referir que o horizonte temporal do DENARP II era 2015, não tendo sido adotado um novo DENARP. Este foi substituído pelo Plano Estratégico e Operacional do Governo Terra Ranka (2015-2025) (República da Guiné-Bissau, 2015).
Em abril de 2017 validou-se uma nova PNS, substituindo a de 1993, depois de um processo que se arrastava desde 2009 (MINSAP, 2017). Iniciou-se assim um novo processo de planeamento do qual resultou a redação do PNDS III, tendo-se optado por não prolongar o horizonte temporal de implementação do PNDS II. O terceiro PNDS é então orientado pela nova PNS, pelo Plano Estratégico e Operacional do Governo Terra Ranka 2015-2025 (República da Guiné-Bissau, 2015) e pelas recomendações que emergiram da 1ª Conferência Nacional de Saúde de outubro de 2014. Estando em vigor, e sendo já “um documento de referência sobretudo para os financiadores”, à data de redação do presente artigo aguarda ainda a validação por parte do Conselho de Ministros.
No que se refere ao processo de elaboração do PNDS III, os entrevistados referiram que “o documento foi pensado para produzir uma nova estratégia nacional no sector da saúde”, tendo a sua redação sido assente em dados de avaliação da implementação do PNDS anterior e em dados de contextualização/análise da situação atual em saúde vivida no país, reportando a uma primeira parte do mapa metodológico definido para o presente trabalho. Porém as fases seguintes não são aplicadas - este documento estratégico tem uma forte componente política “pois o Governo tem de liderar todo o processo”, refere um dos entrevistados, sendo que o novo plano espelha um alinhamento com as diretrizes internacionais para a saúde e com as estratégias dos parceiros financiadores.
Os programas verticais estão incluídos assim como todos os programas prioritários. Segundo os entrevistados, “os financiadores destes programas vão encontrar no PNDS razão para a sua cooperação pois trouxeram-se os programas para dentro do PNDS”. A UE, o BM e outros financiadores têm participado no processo de planeamento e na tomada de decisão, e houve uma tentativa de ajuste das agendas dos financiadores e do Governo. “As agendas não estavam alinhadas e tenta-se fazê-lo neste PNDS.”
Se o PNDS pretende nortear a intervenção em saúde na RGB, torna-se ainda relevante referir que documentos estratégicos em nutrição, água/higiene e saneamento reafirmam o compromisso político da RGB para com a saúde das populações. Este compromisso pauta-se também por uma dimensão além-fronteiras, estendendo-se a abordagem estratégica aos objetivos regionais definidos, espelhados também em documentos orientadores. (MINSAP, 2012). Exemplo desse compromisso são a CARMMA - “Campaign on Accelerated Reduction of Maternal Mortality in Africa” e o POPEN - “Plan opérationnel de passage à l’échelle nationale des interventions à haut impact (IHI) - Stratégies pour l’accélération de la réduction des mortalités maternelles, néonatales et infanto-juvénile en Guinée-Bissau”, entre outros.
Para a implementação e execução destes planos e estratégias entram em cena variados atores internacionais, dos quais se salientam a UE, o BM, diversas delegações das Nações Unidas como OMS, UNAIDS, FNUAP, UNICEF, UN Women, bem como agências de cooperação bilateral das quais se salientam Portugal, Espanha e França por exemplo.
Lendo as memórias à luz do contexto global
O PES emergiu na década de 1990, fortemente impulsionado pela Global Strategy for Health for All by the Year 2000 (WHO, 1981) e, mais recentemente, pela Health 21 - Health for All in the 21st Century (Ferrinho et al., 2015).
O planeamento em saúde em Africa tem evoluído ao longo das décadas, impulsionado por diversas motivações. A história mostra evolução de acordo com o paradigma de gestão em saúde prevalecente a cada momento, constituindo os processos de planeamento em saúde uma parte integrante do esforço para fortalecer a governação em saúde (Delanyo et al., 2017). É de salientar a Conferência Internacional sobre Cuidados de Saúde Primários e Sistemas de Saúde em África, realizada em Ouagadougou, no Burkina Faso, em 2008, onde os esforços para melhorar o planeamento em saúde foram impulsionados, na expectativa de promover a boa governança (WHO, 2008). Cinco anos após a conferência, 19 de 46 países da região da África haviam desenvolvido políticas de saúde e 22 tinham estratégias nacionais de saúde (Delanyo et al., 2017).
O PES na RGB tem acompanhado a tendência global deste procedimento, o qual desde a década de 90 se assume como orientação incontornável para legitimar uma visão estratégica para a definição de áreas prioritárias de intervenção no sector da saúde. No entanto, e de acordo com os entrevistados, o PES materializado em políticas e nos vários PNDS, os quais deveriam orientar todos os atores e sectores que influenciam a saúde para as prioridades nacionais da população e reforçar a liderança do Estado guineense nos processos da sua implementação, encontra-se desvirtuado numa amálgama de interesses dos diferentes intervenientes.
Os resultados obtidos, muito marcados por histórias e reflexões vividas e feitas na primeira pessoa, reportam para uma ausência de processo de PES conforme o mapa metodológico definido, motivado este facto por fatores contextuais relacionados com a fragilidade do Estado da RGB e com a forma como é dada resposta a esta fragilidade.
A RGB é um EF, apresentando esta condição um impacto determinante num SNS incapaz de responder às necessidades deste sector no país, o que parece influenciar a postura dos financiadores no ciclo de PES. Na opinião unânime dos entrevistados, o PES surge como resposta à exigência dos diferentes financiadores, afastando-se não raras vezes do PNDS, divergindo os planos regionais e os programas nacionais deste documento que determina as prioridades nacionais em matéria de saúde e que teoricamente deveria legitimar o governo da RGB para orientar os seus parceiros na ação e no financiamento deste sector. A literatura refere que o financiamento externo baseado no desempenho, realizado por parceiros bilaterais, multilaterais e globais, nos países de média e baixa renda, e particularmente no contexto de EF, é frequente, não estando os seus efeitos nos sistemas de saúde estudados (Bertone et al., 2018). No entanto, os mesmos autores referem que os atores externos e financiadores assumem um papel de grande destaque nestes contextos e que a fraca confiança entre estes, o sistema público e os governos levam à adoção de programas baseados em abordagens contratuais em detrimento de um alinhamento com as políticas dos países.
A OMS alerta para o facto de o planeamento e a formulação de políticas em contextos frágeis imporem desafios complexos que exigem abordagens inovadoras. O subfinanciamento e a má gestão do sector da saúde caracterizam os ambientes frágeis, prejudicando a duração e a intensidade das crises no sistema de saúde, nomeadamente a legitimidade e a capacidade da liderança governamental (WHO, 2018).
As memórias dos entrevistados revelam o impacto da instabilidade política, a qual adensou a fragilidade do Estado e das instituições e a sua capacidade de elaboração e implementação da política de saúde. As diferenças consideráveis por eles assinaladas entre os processos que resultaram no PNDS I e II são bastante esclarecedoras a este respeito. Esta situação de fragilidade foi identificada como um dos fatores decisivos na maior influência e dependência de países doadores e da expertise externa sobre as políticas de saúde nacionais. Num país frágil como a Guiné-Bissau, apesar da sua grande dependência de financiamento e expertise externo, uma maior capacidade de investigação pode contribuir para adequar melhor os apoios internacionais às necessidades locais (Kok et al., 2012).
Vimos que na opinião dos entrevistados, existe na RGB uma noção de resiliência, reforçada pelo esforço de planeamento, a qual contraria os efeitos subjacentes da fragilidade das instituições e a sua capacidade de implementação de estratégias de saúde ao nível nacional. Os entrevistados reconhecem a existência de processos que promovem os já referidos efeitos de duplicação das ações, desfasamento dos objetivos e fraca sustentabilidade das iniciativas. A literatura sustenta a perceção dos entrevistados de que, em contextos onde a incerteza é generalizada, impera uma multiplicidade de atores, a fraqueza do Estado, a coexistência de necessidades humanitárias e de desenvolvimento (WHO, 2018).
Considerando ainda o binómio planeamento/implementação, o qual, conforme descrito, tem vindo a estar comprometido ao longo da história do PES na RGB, a literatura sublinha a importância da relação entre planeamento e implementação, salientando porém que alguns planos quase não se referem à implementação - algo que se verifica, por exemplo, no PNDS II. Muitas vezes quem planeia e quem implementa são grupos distintos de pessoas, sendo que segundo os autores consultados, planear conjuntamente é um importante prelúdio para um bom trabalho conjunto de implementação, estando o planeamento no seu pior quando trata de forma inadequada a implementação (Crisp, 2017).
Considerações finais
A realidade encontrada na RGB em matéria de PES vai ao encontro do que a literatura refere como os desafios dos processos de planeamento em países africanos (Delanyo et al., 2017). O escritório regional africano da OMS propõe atualmente um quadro de planeamento para responder a esses desafios e alinhar o processo de planeamento (Delanyo et al., 2017).
Com o processo acima descrito criou-se no MINSAP uma cultura de planificação. Porém, embora o PES na RGB seja uma realidade, este encontra-se desprovido dos princípios que o devem nortear tendo em conta o contexto de EF e de instabilidade política prolongada ao longo dos anos. A RGB terá ainda que inovar os seus processos de PES, para que este responda às reais necessidades de saúde da população. Ciclos mais curtos de PE e a descentralização bem monitorizada do mesmo poderão fazer emergir uma melhor coordenação e liderança por parte do Governo, mesmo perante a forte dependência externa, bem como potenciar estratégias que respondam mais adequadamente às necessidades de saúde do país.