A «Bússola Estratégica» foi aprovada pelos chefes de Estado e de governo no Conselho Europeu a 24 e 25 de março de 2022. Este documento de análise estratégica e planeamento é um marco essencial no caminho percorrido pela União Europeia (UE) nos últimos trinta anos para assumir o seu destino. Não há muito tempo, a UE ainda era descrita como um «gigante económico e um anão político». Esses dias acabaram. Como ilustra a atual crise profunda que atravessamos com a invasão russa da Ucrânia, a UE está a emergir como uma potência política a ter em conta. Está a demonstrar a sua capacidade de defender os seus valores e interesses e de proteger os seus cidadãos num mundo incerto e perigoso, face às ameaças híbridas e ao regresso da política de poder.
A guerra que a Rússia leva a cabo hoje na Ucrânia reforça a necessidade da nossa União dar um novo passo na sua política de defesa e segurança para enfrentar o regresso da guerra ao nosso continente. A nossa reação de apoio aos ucranianos demonstrou que a UE pode agir rápida e decisivamente quando está unida. A adoção da «Bússola Estratégica», em plena convulsão às fronteiras da Europa, confirma a nossa determinação de nos dotarmos dos meios para nos defendermos.
A «Bússola Estratégica»: a expressão concreta de uma vontade política comum
O objetivo da França e das sucessivas presidências rotativas desde 2020, com um grande impulso dado pela Presidência portuguesa, era chegar a um novo roteiro sobre segurança e defesa para que os europeus tivessem a capacidade de agir de forma mais autónoma. Como menciona o documento da «Bússola»:
«estamos conscientes de que está a emergir uma nova paisagem estratégica que exige que atuemos com muito maior urgência e determinação e que demonstremos assistência mútua e solidariedade em caso de agressão contra um dos nossos. Chegou o momento de tomar medidas decisivas para garantir a nossa liberdade de ação».
Podemos congratular-nos por este trabalho coletivo, que permitiu alcançar uma análise partilhada das ameaças num documento estratégico ambicioso. Mas a «Bússola Estratégica» é também o ponto de partida para um novo desenvolvimento da Europa da Defesa, com o qual os Estados-Membros se comprometeram publicamente e ao mais alto nível.
Assim, a «Bússola» constitui um verdadeiro roteiro com iniciativas e prazos concretos para 2030. Contém precisamente 47 propostas de ações, a maioria das quais deverá ser implementada até 2025. Um dos valores acrescentados deste documento reside na sua abordagem operacional.
Um primeiro marco histórico: a análise partilhada do nosso ambiente de segurança
Uma visão estratégica comum requer uma compreensão comum das ameaças e desafios que a UE está e irá enfrentar. A análise partilhada das ameaças, cuja redação foi elaborada pelo Centro de Situação e Informações da União Europeia com a participação dos serviços de informações dos Estados-Membros, foi apresentada aos Estados-Membros em novembro de 2020.
Este é um exercício sem precedentes na história da União, que contribui para a emergência de uma cultura estratégica comum e para o reforço da coesão europeia, cuja importância é demonstrada pela atual guerra. A análise da ameaça será atualizada logo a partir do outono de 2022 e depois pelo menos de três em três anos. Os últimos desenvolvimentos, em particular a agressão militar russa contra a Ucrânia, foram tidos em conta na versão final da «Bússola».
A primeira frase do documento dá o tom: «O regresso da guerra à Europa, bem como as grandes mudanças geopolíticas, desafiam a nossa capacidade de promover a nossa visão e defender os nossos interesses». Pela primeira vez num documento de estratégia da UE, um país, a Rússia, é identificado como uma ameaça direta e a longo prazo para a segurança da Europa. O documento também recorda que a China é simultaneamente um parceiro em certas áreas, um concorrente económico e um rival sistémico. Igualmente importante, identifica as ameaças colocadas pela proliferação de armas de destruição maciça e reconhece o regresso do factor nuclear.
A secção intitulada «O mundo que enfrentamos» apresenta depois uma avaliação lúcida do nosso ambiente estratégico, da Europa ao Indo-Pacífico, e as ameaças, da desinformação às alterações climáticas, que a UE enfrenta. O documento estabelece um bom equilíbrio entre a atenção necessária à nossa vizinhança, amplificada pela agressão russa contra a Ucrânia, e a manutenção de uma abordagem global.
A «Bússola» reafirma explicitamente que irá «reforçar a autonomia estratégica» da UE, sem que isso seja feito em detrimento da NATO, e repete a passagem da declaração do Presidente da República Francesa, Emmanuel Macron, e do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sobre a defesa europeia: «Uma União, mais forte e mais capaz em questões de segurança e defesa, contribuirá positivamente para a segurança global e transatlântica e é complementar da NATO, que continua a ser a base da defesa coletiva dos seus membros».
Iniciativas concretas e inéditas para a defesa europeia
Em resposta a esta avaliação do ambiente estratégico, a «Bússola» propõe iniciativas novas e concretas em quatro áreas: «Agir», «Garantir a Segurança», «Investir» e «Parcerias».
O primeiro pilar («Agir») visa reforçar a capacidade da UE de agir num mundo cada vez mais brutal e imprevisível. A Europa deve tornar-se um «fornecedor de segurança» mais fiável. Em termos concretos, a UE desenvolverá capacidades que permitam o destacamento rápido e decisivo de forças europeias para qualquer teatro, incluindo ambientes hostis: a «Bússola» estabelece o objetivo de criar até 2025 uma capacidade de destacamento rápido da UE que pode empenhar até cinco mil militares num ambiente hostil. Isto sublinha a necessidade de aumentar a nossa rapidez, robustez e flexibilidade na resposta a crises que se multiplicam.
Vários dos instrumentos operacionais da UE são reforçados, tais como a Facilidade Europeia de Apoio à Paz, que é o instrumento utilizado para fornecer apoio militar à Ucrânia. A «Bússola» também destaca o artigo 42.7 do Tratado da União Europeia, recordando a determinação da UE em «mostrar assistência mútua e solidariedade em caso de agressão contra um dos nossos», inclusive no ciberespaço e no domínio espacial.
A parte «resiliência» (denominada «Garantir a Segurança») visa reforçar a nossa capacidade de proteger os europeus e de defender os princípios, valores e regras em que estão empenhados. A UE reforçará as suas capacidades de informações, com avaliações regulares de ameaças e com um centro europeu de satélites reforçado. Dotar-se-á de ferramentas para ameaças híbridas e para a luta contra a manipulação de informação. Além disso, irá reforçar a sua presença nos «espaços estratégicos contestados»: o ciberespaço, com a adoção de uma política europeia de ciberdefesa já este ano; o espaço extra-atmosférico, com a adoção até ao final de 2023 de uma primeira estratégia espacial de segurança e defesa; o domínio aéreo; e o domínio marítimo, com o desenvolvimento de presenças marítimas coordenadas, particularmente no oceano Índico Ocidental. A estratégia de segurança marítima da UE e o seu plano de ação serão igualmente atualizados.
No que diz respeito aos investimentos em defesa (parte «Investir»), o nosso objetivo é reduzir as dependências estratégicas e as lacunas capacitárias da Europa e reforçar a nossa soberania tecnológica. A «Bússola» está em conformidade com a «Agenda de Versalhes» e com o mandato conferido à Comissão Europeia de realizar, em coordenação com a Agência Europeia de Defesa, uma análise dos défices de investimento em defesa até meados de maio [de 2022] e de propor formas de os ultrapassar.
O documento também sublinha fortemente a urgência de gastar mais e melhor na defesa, mas também a necessidade de «reforçar significativamente os instrumentos de financiamento da UE, em particular o Fundo Europeu de Defesa». A «Bússola» insiste na necessidade de reduzir substancialmente, até 2025, as insuficiências críticas em meios estratégicos, em particular o transporte aéreo estratégico, as comunicações espaciais, as capacidades de ciberdefesa e das informações.
Finalmente, o último pilar («Parcerias») visa desenvolver uma verdadeira política de parcerias para enfrentar melhor os desafios e ameaças comuns. O documento da «Bússola» deixa claro que a ambição europeia de alcançar uma autonomia estratégica é totalmente compatível com o reforço das nossas parcerias. Logo na primeira página, recorda a importância da cooperação com a NATO. A crise ucraniana veio sublinhar ainda mais a necessidade de reforçar a segurança, a defesa e a dissuasão na Europa.
A Cimeira da NATO em Madrid no final de junho de 2022 e a adoção do novo Conceito Estratégico da NATO serão uma oportunidade para ilustrar a complementaridade entre a UE e a NATO. O reconhecimento da contribuição dos europeus é importante para responder à legítima preocupação americana sobre a partilha de encargos. No que diz respeito aos Estados Unidos, a nossa parceria é de importância estratégica e devemos aprofundar a nossa cooperação.
Notas finais
O foco deve ser agora a realização destes diferentes objetivos. A França esforçar-se-á por dar os primeiros passos na implementação da «Bússola» até ao final da sua Presidência da União no final de junho, nomeadamente no que diz respeito à definição de cenários para a capacidade de projeção rápida, ao lançamento imediato dos trabalhos sobre a defesa espacial e à redução das nossas dependências estratégicas.
A «Bússola Estratégica» envia uma mensagem clara: a UE deu um novo passo na sua política de defesa e segurança para enfrentar a competição entre potências, a persistência de crises na sua vizinhança e para agir onde quer que seja chamada. É o texto fundador de uma Europa que se afirma como um ator geopolítico que proporciona segurança no seu ambiente geográfico imediato, bem como em áreas estratégicas contestadas, pronto a tomar medidas decisivas para assegurar a sua liberdade de ação, e capaz de defender a sua independência num mundo mais perigoso.
Florence Mangin Embaixadora de França em Portugal.