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Relações Internacionais (R:I)

versão impressa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.73 Lisboa mar. 2022  Epub 31-Mar-2022

https://doi.org/10.23906/ri2022.73a09 

Ensaio

A «Bússola Estratégica»: Um passo histórico para a Europa da Defesa

The “Strategic Compass”: an historical path to the Defence Europe

Florence Mangin1 

1 Embaixada de França em Portugal, Rua Santos--o-Velho, 5, 1249-079 Lisboa, Portugal


Resumo

Neste ensaio, a Embaixadora de França em Portugal analisa o documento «Bússola Estratégica» aprovado pelos chefes de Estado e de governo no Conselho Europeu a 24 e 25 de março de 2022. Este documento de análise estratégica e planeamento é um marco essencial no caminho percorrido pela União Europeia nos últimos trinta anos para assumir o seu destino. Adicionalmente, a adoção da «Bússola Estratégica», em plena convulsão às fronteiras da Europa, confirma a nossa determinação de nos dotarmos dos meios para nos defendermos.

Palavras-chave: União Europeia; «Bússola Estratégica»; Política Comum de Segurança e Defesa; França

Abstract

In this essay, the French Ambassador in Portugal examines the document “Strategic Compass” approved by the Heads of State and Government at the European Council on 24 and 25 March 2022. This document of strategic analysis and planning is an essential milestone in the path taken by the European Union over the past 30 years to meet its destiny. In addition, the adoption of the “Strategic Compass”, in the midst of upheaval at Europe’s borders, confirms the European determination to equip the EU with the means for our self-defence.

Keywords: European Union; “Strategic Compass”; Common Security and Defence Policy; France

A «Bússola Estratégica» foi aprovada pelos chefes de Estado e de governo no Conselho Europeu a 24 e 25 de março de 2022. Este documento de análise estratégica e planeamento é um marco essencial no caminho percorrido pela União Europeia (UE) nos últimos trinta anos para assumir o seu destino. Não há muito tempo, a UE ainda era descrita como um «gigante económico e um anão político». Esses dias acabaram. Como ilustra a atual crise profunda que atravessamos com a invasão russa da Ucrânia, a UE está a emergir como uma potência política a ter em conta. Está a demonstrar a sua capacidade de defender os seus valores e interesses e de proteger os seus cidadãos num mundo incerto e perigoso, face às ameaças híbridas e ao regresso da política de poder.

A guerra que a Rússia leva a cabo hoje na Ucrânia reforça a necessidade da nossa União dar um novo passo na sua política de defesa e segurança para enfrentar o regresso da guerra ao nosso continente. A nossa reação de apoio aos ucranianos demonstrou que a UE pode agir rápida e decisivamente quando está unida. A adoção da «Bússola Estratégica», em plena convulsão às fronteiras da Europa, confirma a nossa determinação de nos dotarmos dos meios para nos defendermos.

A «Bússola Estratégica»: a expressão concreta de uma vontade política comum

O objetivo da França e das sucessivas presidências rotativas desde 2020, com um grande impulso dado pela Presidência portuguesa, era chegar a um novo roteiro sobre segurança e defesa para que os europeus tivessem a capacidade de agir de forma mais autónoma. Como menciona o documento da «Bússola»:

«estamos conscientes de que está a emergir uma nova paisagem estratégica que exige que atuemos com muito maior urgência e determinação e que demonstremos assistência mútua e solidariedade em caso de agressão contra um dos nossos. Chegou o momento de tomar medidas decisivas para garantir a nossa liberdade de ação».

Podemos congratular-nos por este trabalho coletivo, que permitiu alcançar uma análise partilhada das ameaças num documento estratégico ambicioso. Mas a «Bússola Estratégica» é também o ponto de partida para um novo desenvolvimento da Europa da Defesa, com o qual os Estados-Membros se comprometeram publicamente e ao mais alto nível.

Assim, a «Bússola» constitui um verdadeiro roteiro com iniciativas e prazos concretos para 2030. Contém precisamente 47 propostas de ações, a maioria das quais deverá ser implementada até 2025. Um dos valores acrescentados deste documento reside na sua abordagem operacional.

Um primeiro marco histórico: a análise partilhada do nosso ambiente de segurança

Uma visão estratégica comum requer uma compreensão comum das ameaças e desafios que a UE está e irá enfrentar. A análise partilhada das ameaças, cuja redação foi elaborada pelo Centro de Situação e Informações da União Europeia com a participação dos serviços de informações dos Estados-Membros, foi apresentada aos Estados-Membros em novembro de 2020.

Este é um exercício sem precedentes na história da União, que contribui para a emergência de uma cultura estratégica comum e para o reforço da coesão europeia, cuja importância é demonstrada pela atual guerra. A análise da ameaça será atualizada logo a partir do outono de 2022 e depois pelo menos de três em três anos. Os últimos desenvolvimentos, em particular a agressão militar russa contra a Ucrânia, foram tidos em conta na versão final da «Bússola».

A primeira frase do documento dá o tom: «O regresso da guerra à Europa, bem como as grandes mudanças geopolíticas, desafiam a nossa capacidade de promover a nossa visão e defender os nossos interesses». Pela primeira vez num documento de estratégia da UE, um país, a Rússia, é identificado como uma ameaça direta e a longo prazo para a segurança da Europa. O documento também recorda que a China é simultaneamente um parceiro em certas áreas, um concorrente económico e um rival sistémico. Igualmente importante, identifica as ameaças colocadas pela proliferação de armas de destruição maciça e reconhece o regresso do factor nuclear.

A secção intitulada «O mundo que enfrentamos» apresenta depois uma avaliação lúcida do nosso ambiente estratégico, da Europa ao Indo-Pacífico, e as ameaças, da desinformação às alterações climáticas, que a UE enfrenta. O documento estabelece um bom equilíbrio entre a atenção necessária à nossa vizinhança, amplificada pela agressão russa contra a Ucrânia, e a manutenção de uma abordagem global.

A «Bússola» reafirma explicitamente que irá «reforçar a autonomia estratégica» da UE, sem que isso seja feito em detrimento da NATO, e repete a passagem da declaração do Presidente da República Francesa, Emmanuel Macron, e do Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, sobre a defesa europeia: «Uma União, mais forte e mais capaz em questões de segurança e defesa, contribuirá positivamente para a segurança global e transatlântica e é complementar da NATO, que continua a ser a base da defesa coletiva dos seus membros».

Iniciativas concretas e inéditas para a defesa europeia

Em resposta a esta avaliação do ambiente estratégico, a «Bússola» propõe iniciativas novas e concretas em quatro áreas: «Agir», «Garantir a Segurança», «Investir» e «Parcerias».

O primeiro pilar («Agir») visa reforçar a capacidade da UE de agir num mundo cada vez mais brutal e imprevisível. A Europa deve tornar-se um «fornecedor de segurança» mais fiável. Em termos concretos, a UE desenvolverá capacidades que permitam o destacamento rápido e decisivo de forças europeias para qualquer teatro, incluindo ambientes hostis: a «Bússola» estabelece o objetivo de criar até 2025 uma capacidade de destacamento rápido da UE que pode empenhar até cinco mil militares num ambiente hostil. Isto sublinha a necessidade de aumentar a nossa rapidez, robustez e flexibilidade na resposta a crises que se multiplicam.

Vários dos instrumentos operacionais da UE são reforçados, tais como a Facilidade Europeia de Apoio à Paz, que é o instrumento utilizado para fornecer apoio militar à Ucrânia. A «Bússola» também destaca o artigo 42.7 do Tratado da União Europeia, recordando a determinação da UE em «mostrar assistência mútua e solidariedade em caso de agressão contra um dos nossos», inclusive no ciberespaço e no domínio espacial.

A parte «resiliência» (denominada «Garantir a Segurança») visa reforçar a nossa capacidade de proteger os europeus e de defender os princípios, valores e regras em que estão empenhados. A UE reforçará as suas capacidades de informações, com avaliações regulares de ameaças e com um centro europeu de satélites reforçado. Dotar-se-á de ferramentas para ameaças híbridas e para a luta contra a manipulação de informação. Além disso, irá reforçar a sua presença nos «espaços estratégicos contestados»: o ciberespaço, com a adoção de uma política europeia de ciberdefesa já este ano; o espaço extra-atmosférico, com a adoção até ao final de 2023 de uma primeira estratégia espacial de segurança e defesa; o domínio aéreo; e o domínio marítimo, com o desenvolvimento de presenças marítimas coordenadas, particularmente no oceano Índico Ocidental. A estratégia de segurança marítima da UE e o seu plano de ação serão igualmente atualizados.

No que diz respeito aos investimentos em defesa (parte «Investir»), o nosso objetivo é reduzir as dependências estratégicas e as lacunas capacitárias da Europa e reforçar a nossa soberania tecnológica. A «Bússola» está em conformidade com a «Agenda de Versalhes» e com o mandato conferido à Comissão Europeia de realizar, em coordenação com a Agência Europeia de Defesa, uma análise dos défices de investimento em defesa até meados de maio [de 2022] e de propor formas de os ultrapassar.

O documento também sublinha fortemente a urgência de gastar mais e melhor na defesa, mas também a necessidade de «reforçar significativamente os instrumentos de financiamento da UE, em particular o Fundo Europeu de Defesa». A «Bússola» insiste na necessidade de reduzir substancialmente, até 2025, as insuficiências críticas em meios estratégicos, em particular o transporte aéreo estratégico, as comunicações espaciais, as capacidades de ciberdefesa e das informações.

Finalmente, o último pilar («Parcerias») visa desenvolver uma verdadeira política de parcerias para enfrentar melhor os desafios e ameaças comuns. O documento da «Bússola» deixa claro que a ambição europeia de alcançar uma autonomia estratégica é totalmente compatível com o reforço das nossas parcerias. Logo na primeira página, recorda a importância da cooperação com a NATO. A crise ucraniana veio sublinhar ainda mais a necessidade de reforçar a segurança, a defesa e a dissuasão na Europa.

A Cimeira da NATO em Madrid no final de junho de 2022 e a adoção do novo Conceito Estratégico da NATO serão uma oportunidade para ilustrar a complementaridade entre a UE e a NATO. O reconhecimento da contribuição dos europeus é importante para responder à legítima preocupação americana sobre a partilha de encargos. No que diz respeito aos Estados Unidos, a nossa parceria é de importância estratégica e devemos aprofundar a nossa cooperação.

Notas finais

O foco deve ser agora a realização destes diferentes objetivos. A França esforçar-se-á por dar os primeiros passos na implementação da «Bússola» até ao final da sua Presidência da União no final de junho, nomeadamente no que diz respeito à definição de cenários para a capacidade de projeção rápida, ao lançamento imediato dos trabalhos sobre a defesa espacial e à redução das nossas dependências estratégicas.

A «Bússola Estratégica» envia uma mensagem clara: a UE deu um novo passo na sua política de defesa e segurança para enfrentar a competição entre potências, a persistência de crises na sua vizinhança e para agir onde quer que seja chamada. É o texto fundador de uma Europa que se afirma como um ator geopolítico que proporciona segurança no seu ambiente geográfico imediato, bem como em áreas estratégicas contestadas, pronto a tomar medidas decisivas para assegurar a sua liberdade de ação, e capaz de defender a sua independência num mundo mais perigoso.

Florence Mangin Embaixadora de França em Portugal.

Recebido: 27 de Março de 2022; Aceito: 30 de Março de 2022

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