Introdução
As crises interligadas do clima e da biodiversidade são dois dos desafios mais prementes que o mundo enfrenta atualmente. O Brasil, um dos grandes emissores de gases com efeito de estufa e um dos países com maior biodiversidade do planeta, é um ator fundamental para a estabilização do sistema terrestre. No entanto, e apesar do seu potencial para transitar para uma economia verde, o Brasil tornou-se nos últimos anos um vilão ambiental. O Governo antiambiental e anti-indígena do Presidente Jair Bolsonaro (2019-2022) desmantelou parcialmente a governança ambiental. A Amazónia e as suas populações mais que humanas foram severamente atingidas pela agenda predatória de Bolsonaro, que apoiou e legitimou os interesses de forças anticonservacionistas no seio de setores económicos como o agronegócio e a mineração, e alimentou o crime organizado e a violência na região. No período de 2019 a 2022, a desflorestação da Amazónia chegou a níveis que não eram vistos desde 20082. Em resultado disso, as emissões do Brasil aumentaram. Enquanto a nível global as emissões diminuíram aproximadamente 7% durante o confinamento imposto pela covid-19 em 20203, no Brasil as emissões cresceram 10%4. Em 2021, as emissões brasileiras aumentaram mais de 12% - o maior salto em quase duas décadas. O setor florestal e de gestão do uso da terra representou aproximadamente metade das emissões brutas do país; a desflorestação na Amazónia, que chegou ao seu nível mais elevado em quinze anos (13 038 km2)5, foi responsável por quase 80% do total de emissões do setor. Estas cresceram cerca de 20%6. Em 2022, a desflorestação amazónica permaneceu elevada (11 568 km2)7.
A Amazónia é um elemento crucial do sistema terrestre e tem vindo a perder resiliência; um número crescente de dados científicos sugere que a floresta pode estar a aproximar-se de um ponto de inflexão, no qual partes substanciais se tornariam savana; de facto, partes da região já estão a transitar de floresta tropical para savana8. Uma mudança transformadora é necessária para colocar a Amazónia num caminho de sustentabilidade de longo prazo. Este artigo apresenta uma visão geral e uma análise das políticas amazónicas durante o período de 2019 a 2022 e discute a importância e as possibilidades de uma abordagem transformadora para a governança da região.
As políticas amazónicas do Brasil durante o governo Bolsonaro (2019-2022)
Jair Bolsonaro foi eleito no final de 2018 com o apoio dos segmentos da população desiludidos com os principais partidos políticos do Brasil, especialmente o Partido dos Trabalhadores (PT), dos evangélicos e dos setores empresarial e financeiro. O Governo Bolsonaro - com um conjunto de ministérios alinhado a um radicalismo pró-mercado e a uma visão predatória do desenvolvimento, nomeadamente a Economia, a Agricultura, a Infraestrutura, e Minas e Energia; um ministro do Ambiente antiambiental; um ministro das Relações Exteriores cético em relação às mudanças climáticas, seguidor de teorias da conspiração e apoiante, tal como o ministro da Educação e o próprio Bolsonaro, do recém-falecido Olavo de Carvalho, um autoproclamado filósofo que distorceu factos históricos e científicos; e um conjunto de ministérios liderados por militares, nomeadamente a Defesa, a Ciência e Tecnologia e o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, defensores de projetos de extração de recursos e da construção de infraestruturas na Amazónia como forma de aumentar o controlo do Estado sobre a região9 - negou as mudanças climáticas antropogénicas, rejeitou qualquer consideração ecológica nas políticas públicas e desmantelou parcialmente a política e as instituições ambientais; traiu deliberadamente os princípios, normas e objetivos básicos do setor ambiental10; eliminou a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA); reduziu drasticamente o orçamento do MMA e os gastos em ciência; entregou a demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura; reconheceu fazendas estabelecidas de forma ilegal no interior de terras indígenas; acabou com o mais importante programa de controlo da desflorestação na Amazónia (PPCDAM); tentou retirar recursos financeiros do Fundo Amazónia para efetuar compensações por expropriação de terras (em consequência disso, a Noruega e a Alemanha suspenderam pagamentos ao fundo); exonerou o diretor do instituto responsável pela monitorização e acompanhamento da desflorestação na Amazónia e removeu outros cientistas e técnicos dos seus cargos; intimidou e colocou entraves à participação da sociedade civil nos conselhos de política ambiental; não impôs multas ambientais; colocou a gestão ambiental nas mãos dos militares; flexibilizou as regras relativas à exportação de madeira; facilitou o registo de terras públicas ocupadas, transferindo a titulação e regularização fundiária para os municípios, etc.11. O Governo aproveitou-se da crise sanitária da covid-19 para avançar a sua agenda de destruição ambiental12. Em resultado disso, aumentou a desflorestação, assim como as invasões de terras indígenas e a violência contra os defensores de direitos humanos e ambientais; também cresceram os conflitos fundiários e a mineração ilegal em terras indígenas e protegidas, bem como as exportações de madeira de espécies protegidas13. Neste momento, a mineração e a extração de madeira de forma ilegal, tal como a apropriação indevida de terras, são financiadas na região pelo crime organizado; estes investimentos aumentaram rapidamente nos últimos anos, à medida que a governança regional se deteriorava14.
Apesar das duras críticas internacionais, o Governo Bolsonaro manteve-se firme e justificou a sua política amazónica como uma forma de promover o crescimento económico e proteger a soberania do Brasil na região face a interferências externas. Fez renascer o Conselho Nacional da Amazónia Legal, que estava inativo há três décadas e que se tornou o organismo responsável pela luta contra as ilegalidades na região, e a Amazónia foi militarizada. Esta decisão retirou recursos ao MMA em benefício do Ministério da Defesa; ao mesmo tempo, militares ocuparam o lugar de funcionários públicos e programas de proteção ambiental foram eliminados15. Além disso, as Forças Armadas mantiveram-se afastadas dos focos de desflorestação e, em alguns casos, obstruíram de forma intencional operações de inspeção16.
Em consequência da resposta desastrosa do Governo Bolsonaro à crise sanitária provocada pela pandemia e da demissão do ministro da Justiça, que acusou publicamente o Presidente de interferir politicamente na Polícia Federal com o objetivo de ter acesso a relatórios de informação policial, aumentaram os pedidos de impedimento, o que deixou Bolsonaro numa posição de isolamento. Em resultado disso, em 2020 Bolsonaro aliou-se ao chamado Centrão, uma coligação de deputados do Congresso que, em troca de favores políticos, apoia o governo em exercício, e entre os quais se encontravam os representantes mais radicais e anticonservacionistas do setor do agronegócio. No início de 2021, Arthur Lira, um apoiante de Bolsonaro, tornou-se presidente da Câmara dos Deputados. Neste contexto, foi aprovado um projeto de lei que enfraquecia grandemente o licenciamento ambiental no país (PL 3729/2004) e um outro que legalizava a ocupação de terras públicas, instituindo amnistias à apropriação indevida (PL 2633/2020); os projetos tramitam agora no Senado17.
Porém, a partir da segunda metade de 2020, aumentaram as críticas internas à política do Presidente para a Amazónia. Isto explica-se por uma série de fatores, nomeadamente a oposição europeia à ratificação do Acordo de Livre Comércio UE-Mercosul, críticas por parte de investidores internacionais, o reconhecimento do potencial da floresta amazónica de fornecer créditos para compensação de carbono e a derrota eleitoral de Donald Trump, que empoderaram as forças pró-ambientais e fizeram com que vários setores da sociedade adotassem um posicionamento mais verde. Por exemplo, uma coligação de organizações do setor do agronegócio, empresas, organizações não governamentais e académicos fez críticas à desflorestação da Amazónia. Além disso, a mudança de governo nos Estados Unidos da América levou, em março de 2021, à demissão do ministro das Relações Exteriores do Brasil, um cético em relação às mudanças climáticas que foi acusado por congressistas de isolar o país internacional- mente. No seu discurso de tomada de posse, o novo ministro identificou as mudanças climáticas como um problema importante, demarcando-se assim do seu antecessor. Em maio, confrontado com uma oposição crescente e tendo-se tornado objeto de uma investigação policial relativa a um alegado favorecimento a empresários do setor madeireiro, o ministro do Ambiente demitiu-se. O seu sucessor moderou o discurso, mas na prática a orientação do MMA não se alterou, uma vez que o novo ministro também era próximo do agronegócio predatório. Neste contexto, como forma de melhorar a imagem do Governo no exterior e retirar benefícios dos mecanismos de conservação florestal, o Brasil adotou internacionalmente uma retórica mais amiga do clima; internamente, apresentou um programa vago de crescimento verde e uma versão renovada do plano de agricultura de baixa emissão de carbono, anunciou o aumento das metas de mitigação climática (incluindo uma meta de neutralidade de carbono para 2050) e começou a trabalhar numa nova, mas fraca, política nacional para o clima, bem como num projeto de lei para criar o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões18.
Durante o último ano do mandato, confrontado com divisões no seio do agronegócio e em risco de perder parte do apoio deste setor, que temia um boicote internacional19, o Governo Bolsonaro manteve um discurso moderado em questões ambientais; porém, as tentativas de enfraquecer a governança ambiental continuaram, nalguns casos justificadas pela guerra na Ucrânia20. Além disso, uma poderosa empresa estatal russa de petróleo e gás comprou os direitos de exploração de 16 blocos na parte ocidental da Amazónia, uma vasta área de floresta intocada. Uma autoestrada planeada (a BR-319) permitiria o acesso a três desses blocos; poderiam ainda ser construídas estradas secundárias associadas (por exemplo, a AM-366) para os restantes blocos. Estas estradas abririam a região a apropriadores de terras, ocupantes ilegais, madeireiros, fazendeiros e outros21. Em dezembro de 2022, duas semanas antes do fim do mandato, o Governo Bolsonaro aprovou a exploração de madeira em terras indígenas22.
No contexto da eleição presidencial de outubro de 2022, as questões ambientais tornaram-se proeminentes nos debates e na propaganda eleitoral, tendo sido levantadas pelas coligações de Lula da Silva e de Simone Tebet; estas questões tornaram-se particularmente relevantes a partir de setembro, quando Marina Silva, a conhecida ambientalista e ex-ministra do Ambiente, anunciou o seu voto em Lula na sequência do apoio público por parte deste às suas propostas ambiciosas para o setor ambiental no Brasil23, e se tornou uma voz ativa na campanha do antigo presidente. Por seu lado, a campanha de Bolsonaro acirrou os receios de que as invasões de terras por parte dos trabalhadores rurais sem terra, que diminuíram significativamente durante o seu governo24, cresceriam de novo num governo PT25 e defendeu que a demarcação de terras indígenas, uma parte importante da agenda ambiental de Marina Silva, levaria os proprietários a perderem as suas terras e colocaria em risco a segurança alimentar do Brasil26.
A 30 de outubro, Lula da Silva ganhou a eleição presidencial com 51% do voto popular. Lula comprometeu-se a promover o desenvolvimento sustentável na Amazónia e a lutar pela desflorestação zero, apoiar a agricultura de baixa emissão de carbono, criar um ministério dos povos indígenas e uma autoridade nacional para as mudanças climáticas - para coordenar políticas públicas no sentido de uma abordagem abrangente e setorial ao problema - e trabalhar para a construção de parcerias internacionais que ajudassem o país a alcançar os seus objetivos socioambientais; também expressou o desejo de receber na Amazónia a Conferência das Partes (COP) de 2025 da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (CQNUAC)27, demarcando-se totalmente do Governo Bolsonaro. Lula participou na COP27 em novembro, poucos dias depois de ser eleito, reafirmando o seu «compromisso para lutar com determinação contra as mudanças climáticas»; Lula parece ver as alterações climáticas não apenas como um problema ambiental, mas também como um problema social28. É provável que as mudanças climáticas, e a Amazónia em especial, sejam uma prioridade da política interna e externa de Lula. No entanto, o novo Governo enfrenta desafios significativos, que abordarei na conclusão do artigo, depois de discutir os paradigmas, objetivos e valores que conduzem à destruição da Amazónia e impõem a urgência de uma mudança transformadora na região.
Porque é necessária uma mudança transformadora na governança da amazónia
Apesar da sua importância a nível planetário, a Amazónia é predominantemente vista como uma fonte de mercadorias. A política para a Amazónia tem sido informada por um paradigma de desenvolvimento predatório, segundo o qual a modernização e o progresso significam a ocupação de terras e a exploração de recursos naturais - um paradigma baseado numa relação instrumental, exploradora e utilitária com a floresta. As formas não antropocêntricas de ser e saber dos povos indígenas e de outras comunidades locais são geralmente associadas ao subdesenvolvimento e ao atraso; os sistemas tradicionais de cultivo dos pequenos agricultores familiares, que podem ser parte de uma agenda sustentável de utilização da terra, são vistos como primitivos, ineficientes e improdutivos. Os conheci- mentos e interesses das pessoas que vivem na região, bem como os direitos da natureza, estão à margem do processo de tomada de decisão. A interligação e dependência dos humanos em relação à natureza e o laço inquebrável entre preocupações ecológicas e sociais não são considerados; assim, prevalece a fragmentação nas abordagens políticas à proteção ambiental e ao desenvolvimento. Por seu lado, esta situação alimenta os conflitos sociais na Amazónia e reduz as possibilidades de construir alianças que possam diminuir as tensões entre ambientalismo e desenvolvimentismo. A abordagem regulatória predominante para a governança da região, baseada em comando e controlo, não consegue mitigar tensões e conflitos29. Além disso, os decisores políticos continuam a pressupor a existência de processos lineares e progressivos de degradação ecológica, ignorando dessa forma a possibilidade de que o ponto de inflexão na Amazónia possa ser ultrapassado30. Em suma, as políticas fragmentadas, excludentes e antropocêntricas para a Amazónia, assim como o desrespeito dos decisores políticos pelas vozes dos cientistas que têm avisado que sinais de deterioração gradual da saúde das árvores já são visíveis em partes da região, estão a ameaçar a resiliência das florestas. Não é, portanto, surpreendente que mais de metade do estado do Amazonas viva abaixo da linha de pobreza, que metade das espécies de árvores da Amazónia esteja ameaçada de extinção e que as populações de vertebrados da floresta tenham declinado em larga escala ao longo das últimas décadas31.
É necessária uma abordagem transformadora à governança da Amazónia para possibilitar uma mudança transformadora na região e reverter a destruição socioecológica32. Visseren-Hamakers e Kok definem «mudança transformadora» como «uma reorganização fundamental, ao nível de toda a sociedade, dos fatores e estruturas tecnológicos, económicos e sociais, incluindo paradigmas, objetivos e valores»33, e «governança trans- formadora» como
«[a]s regras, sistemas de criação de regras e redes de atores formais e informais, públicos e privados, em todos os níveis da sociedade humana (do local ao global) que possibilitam mudança transformadora […] no sentido da conservação da biodiversidade e do desenvolvimento sustentável de forma mais abrangente»34.
Inclui cinco abordagens de governança, nomeadamente a integrativa, a inclusiva, a transdisciplinar, a adaptativa e a antecipatória; estas devem ser implementadas conjuntamente, de forma a responder às causas profundas da destruição da natureza35.
Uma abordagem integrativa à governança é «operacionalizada de forma a garantir que soluções também têm impactos sustentáveis noutras escalas e locais, noutras questões e noutros setores»; para ser inclusiva, a governança deve «empoderar e emancipar aqueles cujos interesses não são atendidos de momento e que representam valores que constituem uma mudança transformadora no sentido da sustentabilidade [por exemplo, comunidades indígenas]»; a governança adaptativa «possibilita aprendizagem, experimentação, reflexividade, monitorização e resposta»36; a governança é transdisciplinar quando «reconhece diferentes sistemas de conhecimento e promove a inclusão de valores sustentáveis e equitativos, enfatizando tipos de conhecimento que estão presentemente sub-representados»37; finalmente, uma abordagem antecipatória à governança «aplica o princípio de precaução ao governar no presente para desenvolvimentos futuros incertos, especialmente no que diz respeito ao desenvolvimento e utilização de novas tecnologias»38. De acordo com Visseren-Hamakers e Kok,
«[q]ualquer ator pode contribuir para a governança transformadora, e os arranjos de governança podem ter um carácter policêntrico, incluindo iniciativas de atores em diferentes locais, setores ou níveis de governança. Todos os atores podem avaliar com regularidade se o arranjo de governança inclui todos os instrumentos necessários para responder aos fatores indiretos subjacentes a uma determinada questão de sustentabilidade, e os arranjos de governança terão de evoluir à medida que as transformações de sustentabilidade avançam. Ao longo do tempo, a governança tornar-se-á cada vez mais transformadora, e a governança transformadora tornar-se-á mais fácil, à medida que as estruturas sociais se tornam cada vez mais sustentáveis»39.
De forma a proteger a Amazónia e melhorar as condições de vida na região, o atual paradigma de desenvolvimento vigente no Brasil terá de ser transformado. «[O] entendimento predominante da Amazónia tem sido dominado pelo estudo de como a floresta pode servir-nos melhor. Precisamos de começar a procurar formas criativas através das quais também possamos servir a floresta, de forma recíproca.»40 Neste processo, é fundamental lutar contra a pobreza e a desigualdade na região e também empoderar as populações vulneráveis. «Isto pode incluir uma mistura de significados inovadores e tradicionais para a floresta.»41 Para atingir estes objetivos, o Brasil precisa, em primeiro lugar, não apenas de uma nova visão da relação humana com a natureza, mas também de uma abordagem intersetorial e transversal, ou integradora, à política amazónica, que possibilite o desenvolvimento em harmonia com a natureza, protegendo a biodiversidade, assegurando o fluxo dos bens ecossistémicos, oferecendo oportunidades socioeconómicas às comunidades locais, fortalecendo a resiliência dos ecossistemas e a adaptabilidade regional às alterações climáticas e mantendo e aumentando os teores de carbono das florestas42. Esta tarefa pode ser facilitada pela criação da já mencionada autoridade nacional brasileira para as mudanças climáticas. Em segundo lugar, será igualmente importante um modelo inclusivo de governança que permita a transformação das dinâmicas de poder na região, assegurando a participação plena e efetiva nas tomadas de decisão por parte de populações marginalizadas, e incorporando nas políticas os valores de sustentabilidade transformadora dos povos indígenas43. Neste contexto, pode ser importante a criação no Brasil de um ministério para os povos indígenas. Em terceiro lugar, devido à complexidade dos sistemas socioecológicos e de forma a assegurar que o ponto de inflexão na Amazónia não é ultrapassado, uma governança adaptativa deve fazer parte da agenda de governança transformadora para a região. Em quarto lugar, uma abordagem transdisciplinar à governança, que integre os significados indígenas nos sistemas cognitivos ocidentais, pode ajudar o país a encontrar novos caminhos para entender e se relacionar com a floresta; a criação de soluções adaptativas para os problemas socioecológicos, integrando sistemas de conhecimento convencionais, indígenas e tradicionais pode fortalecer a capacidade de o Brasil atingir as suas metas socioambientais44. Finalmente, para evitar potenciais danos ao intervir em sistemas socioecológicos, é crucial adotar uma postura de precaução em situações de incerteza; uma governança antecipatória é, portanto, necessária.
A eleição de Lula abriu uma janela de oportunidade para o desenvolvimento de uma abordagem transformadora à governança da Amazónia. Porém, no fim de 2022, o futuro permanece incerto.
Conclusão
Como defendi noutro lugar45, Lula irá enfrentar grandes desafios: desde logo, a difícil tarefa de reconstruir as instituições ambientais que foram severamente danificadas por Bolsonaro, incluindo o próprio MMA; uma poderosa rede de crime organizado na Amazónia; governadores regionais alinhados a Bolsonaro; legisladores antiambientais no Congresso recém-eleito, que é mais conservador que o anterior46; uma situação económica complicada; um agronegócio conservador, que ainda vê a proteção ambiental como um obstáculo ao desenvolvimento; e um país dividido. Por outro lado, Marina Silva irá de novo liderar o MMA, o que é um sinal promissor47. Para além disso, uma vez que nos últimos anos o controlo da desflorestação parece ter-se tornado uma preocupação crescente entre uma parcela das elites do país, as forças pró-ambientais brasileiras podem
«capitalizar este momento para expor as limitações de relações de poder entrincheiradas e discursos de desenvolvimento predatórios […] e criar narrativas alternativas e poderosas de mudança que possam chegar ao público em geral e encorajar o questionamento dos paradigmas de estruturação social predominantes […]. [C]onstruir e fortalecer coligações de atores com ideias semelhantes, que representem os valores da sustentabilidade transformadora, [é essencial para desenvolver os processos necessários de cocriação com a natureza]»48.
A comunidade internacional deve juntar esforços para promover uma mudança trans- formadora de longo prazo no sentido do desenvolvimento sustentável na Amazónia, e assegurar que a região não atinja um ponto de inflexão. Afinal, a floresta é um dos espaços mais importantes para assegurar a sobrevivência da humanidade a longo prazo e a sustentabilidade da vida no planeta. Ao mesmo tempo, a Amazónia e as suas experiências locais oferecem lições importantes para questionar e repensar o nosso lugar e relação com o planeta numa altura decisiva em que a crise planetária do antropoceno ameaça a segurança e a sobrevivência da humanidade.
Tradução: João Reis Nunes