Introdução
As alterações climáticas são amplamente consideradas pelos decisores políticos como a maior emergência planetária do mundo contemporâneo. Nos últimos anos, estas têm ocupado um lugar central nas discussões políticas, sociais e económicas à escala mundial. Reconhecendo que as alterações climáticas são causadas pelas emissões de gases com efeito de estufa - consequência de um regime energético assente na extração e queima de combustíveis fósseis -, os Estados têm desenvolvido políticas e programas de «transição energética». A transição energética refere-se à passagem de uma matriz energética de origem fóssil, como o petróleo, o gás natural e o carvão, para uma matriz baseada em fontes «renováveis», como a eólica, a solar e a hídrica, ou os sistemas elétricos de armazenamento de energia. Este processo, que implica a adoção de novas tecnologias, infraestruturas e inovações baixas em carbono em todos os sectores produtivos, é também conhecido por «descarbonização» ou «neutralidade carbónica»1.
Alinhada com os objetivos do Acordo de Paris (2015), a União Europeia assumiu a transição energética como um compromisso urgente, necessário e prioritário para as próximas décadas. Em dezembro de 2019, a Comissão Europeia anunciou o Pacto Ecológico Europeu, um conjunto de propostas legislativas com o objetivo de alcançar a neutralidade carbónica até 20502. À escala nacional, em 2019, foi publicado o Roteiro para a Neutralidade Carbónica 2050, que, também em linha com o Acordo de Paris, estabelece a visão e as trajetórias para que Portugal atinja a neutralidade carbónica até meados deste século3.
A transição energética desencadeou um aumento na pro- cura por certos minerais e metais, nomeadamente o lítio, o cobalto, o grafite, o cobre e o níquel. O lítio - utilizado nas baterias de veículos elétricos e nos sistemas de armazenamento de energia - vem liderando esta corrida aos «materiais da transição». O Governo português considera a transição energética uma oportunidade de colocar o país numa posição de liderança dentro do continente europeu4 e tem, desde 2016, assumido uma postura ativa na concessão de contratos de prospeção e de exploração de lítio5.
Nesta corrida ao novo «ouro branco», as montanhas do Barroso, no distrito de Vila Real, e tantas outras, transformaram-se num recurso a ser esventrado. Nas aldeias de Covas do Barroso, Romainho e Muro - classificadas pelas Nações Unidas como Património Agrícola Mundial - projeta-se a abertura daquela que seria a maior mina de lítio a céu aberto do continente europeu. Este projeto mineiro tem sido recebido com forte contestação por parte das populações locais, que, em resposta ao léxico verde da transição energética, respondem que «Verde é o Barroso!». As vozes de quem se insurge contra estes projetos sugerem que os processos de descarbonização são uma arena contestada - social, política, económica e ontologicamente. Com efeito, embora a narrativa hegemónica do combate às alterações climáticas aponte a descarbonização como solução unívoca, esta tem vindo a ser gradualmente desconstruída tanto por movimentos sociais como por produções académicas. A transição energética, ao focar-se quase exclusivamente nas emissões de carbono, reduz a crise ecológica a uma crise climática e o clima a uma questão de carbono atmosférico. Considerando que estes desafios se «resolvem» atacando apenas uma parte do problema, a transição energética reproduz a ontologia dominante, que ignora a intrincada rede de profundas interdependências que sustentam a vida no planeta. Ao fazê-lo, tem servido de suporte ideológico para justificar novas formas de extrativismo «verde», perpetuando, assim, o paradigma extrativista-capitalista dominante que reduz a natureza a um mero recurso a ser explorado para fins de acumulação de capital através de soluções tecnológicas6.
Neste artigo, procuro tecer uma crítica à narrativa dominante sobre o clima, argumentando que esta repousa numa perspetiva redutora, que legitima, por sua vez, novas formas de destruição socioecológica e padroniza as respostas à crise climática, disciplinando comportamentos sociais e estandardizando políticas públicas à escala mundial.
Inspirando-me em perspetivas críticas, que desafiam as divisões dicotómicas perpetua- das pelo quadro ontológico hegemónico, argumento que, para fazer face à crise ecológica, devemos adotar ontologias não dualistas, que reconheçam as profundas e íntimas relações de (inter)dependência que sustentam a vida na Terra. Nesse sentido, a «transição» que urge fazer é bem mais radical que uma simples mudança na origem das nossas fontes de energia: é necessária uma transformação na forma como nos relacionamos com o mundo, na forma como interagimos entre seres humanos e na forma como nos relacionamos com os seres não humanos. É, por outras palavras, necessária uma transformação ontológica. A partir desta «virada ontológica», será possível construir e resgatar narrativas nas quais caibam muitos mundos, e não apenas o mundo da modernidade ocidental, agora pintada de «verde».
A arquitetura ontológica moderna e a crise ecológica
Este artigo parte da premissa teórico-filosófica segundo a qual os níveis de degradação social, climática, ambiental e ecológica que experienciamos são fruto de uma brutal separação entre os seres humanos e a natureza não humana. Esta separação - que tem vindo a ser acentuada, reforçada e acelerada pelas estruturas do sistema capitalista contemporâneo - encontra o seu substrato ideológico no modelo ontológico moderno. Por «modelo ontológico», entendemos os pressupostos fundamentais que informam a nossa conceptualização, compreensão e estruturação da realidade e do mundo que nos rodeia. «Ontologia» significa, nos termos da disciplina filosófica clássica, o estudo do ser, do real, da realidade. No âmbito das ciências sociais e humanas, na última década, inaugurou-se uma «virada ontológica» que levou à produção de reflexões sobre a forma como as questões ontológicas se intersetam com questões políticas, sociais e económicas7. Por «políticas ontológicas» referimo-nos à forma como os pressupostos que temos sobre a natureza do mundo (sobre a realidade) moldam a ação humana nele e, portanto, geram efeitos políticos, sociais e económicos, incluindo efeitos ecoéticos8.
Atualmente dominante, a arquitetura ontológica moderna estrutura o mundo - e a nossa compreensão dele - de uma forma dualista e hierárquica. Segundo Latour9, o modelo ontológico da modernidade assenta numa «Grande Divisão» entre natureza e cultura/ sociedade - e «esta Grande Divisão serve de substrato ontológico para um sistema de hierarquias que estruturam dualisticamente a realidade social»10: homem/mulher; razão/ emoção; mente/corpo; sujeito/objeto; civilizado/selvagem. Estes binarismos são, por sua vez, entendidos como «pares de contrários com valor desigual»11, isto é, o domínio da «cultura» é entendido como «superior» ao da «natureza», o da «razão» «superior» ao da «emoção» e por aí em diante. Segundo uma perspetiva ecofeminista, estes dua- lismos são profundamente generificados, isto é, estão associados e são atribuídos a cada um dos géneros, que, por sua vez, são também eles concebidos de forma binária. Ao «masculino» atribuem-se as categorias da «razão» ou da «cultura», e ao «feminino» as categorias da «emoção» e da «natureza»12.
O fazer-pensar-mundo moderno - ao estruturar dualisticamente a realidade - legitima o controlo de um domínio sobre o outro13. Com efeito, apenas entendendo a «cultura/ sociedade» como «superior» à «natureza» podemos legitimar o seu controlo, colonização e extração. A racionalidade científica moderna reduziu a complexidade das teias que compõem a vida a uma lógica mecânica e mecanicista: ao invés de entender a natureza como um organismo vivo, entende-a como uma máquina, passível de ser dominada pela sabedoria humana14. Esta «marcha da razão sobre a Natureza» tem vindo a justificar que esta última seja manipulada para benefício humano15. O modelo ontológico hegemónico sugere que somos «donos e mestres» da natureza e que podemos exceder os seus limites sem sofrer os efeitos desse esgotamento16.
Compreendemos, pois, de que forma esta «Grande Divisão» - este desfasamento entre nós, humanos, e a natureza - serviu de substrato ontológico para as práticas que cau- saram os níveis de destruição socioecológica a que assistimos hoje, e que continuam em constante aceleração e expansão pelas estruturas do sistema capitalista contemporâneo. De facto, ao converter a natureza num recurso a ser controlado, a ontologia moderna serve de suporte ideológico aos dois pilares-base do sistema capitalista contemporâneo: o crescimento infinito e a lógica do desenvolvimento. De forma semelhante, este dualismo ontológico tem historicamente justificado relações de opressão, de dominação e de exploração para com aqueles seres ontologicamente construídos como «inferiores» - pois são percecionados como «próximos da natureza», «femininos», «selvagens» e/ou «emocionais/irracionais»17. Caso nos compreendêssemos, pelo contrário, como parte integrante da natureza, não a teríamos dizimado, explorado, corrompido. Caso nos compreendêssemos como parte integrante de um todo complexamente interligado, não teríamos perpetuado relações de opressão nem destruído tantas das teias que sustentam as possibilidades de vida.
As políticas ontológicas da transição energética
A transição energética em curso é o reflexo do fazer-pensar-mundo moderno e da sua arquitetura ontológica da separação. A primeira razão pela qual a transição energética reproduz a ontologia da separação é que esta se foca apenas no clima - o que Charles Eisenstein18 apelidou de «fundamentalismo climático». A segunda é que, dentro das questões climáticas, foca-se quase exclusivamente na emissão de gases com efeito de estufa, em particular o dióxido de carbono - um fenómeno conhecido na literatura por «reducionismo carbónico»19. Fazendo-o, a transição energética não questiona o modelo ontológico que dá substrato à destruição socioecológica e, ao invés de a combater, acaba por reproduzi-la, criando, inclusive, novas formas de violência ecológica e de padronização ontológica, como veremos.
Ao focar-se quase única e exclusivamente na questão das alterações climáticas, a narrativa hegemónica perpetua a ideia segundo a qual, para alcançar um futuro «sustentável», basta «resolver» o desafio das alterações climáticas. Nos termos de Charles Eisenstein20, este «fundamentalismo climático» baseia-se numa ontologia que concebe o clima como uma esfera distinta da ecologia, por sua vez separada das questões socio- políticas e económicas21. Neste sentido, esta narrativa reproduz a ontologia moderna, que concebe o mundo natural como mecânico, ignorando, assim, a complexidade da bioesfera, «na qual tudo está interconectado»22, e reduzindo-a a cálculos matemáticos. Ora, as redes que sustentam a vida não podem ser reduzidas - ou achatadas - apenas às questões climáticas: as alterações climáticas são elas próprias afetadas (e impactadas) por inúmeros outros processos ecológicos, desde a erosão dos solos, à subida do nível das águas do mar, à extinção de várias espécies não humanas, à desertificação e à desflorestação; e inúmeros outros processos socioeconómicos, como o consumo de massas ou a produção agrícola intensiva. De uma perspetiva ecológica, a realidade não é uma «coleção de fenómenos separados e causalmente dissociados»23, mas antes o resultado de uma matriz complexa de interdependências, que não se resumem ao clima.
A narrativa dominante sobre as questões ambientais, ao dar prioridade quase exclusiva às questões climáticas, incorre ainda naquilo que Eisenstein24 cunhou como «reducionismo carbónico». Segundo Gelderloos, o «reducionismo carbónico» diz respeito ao processo através do qual «a crise ecológica é reduzida e compartimentada a uma simples (e tecnocrática) questão de carbono atmosférico»25. Mais uma vez, o reducionismo carbónico reproduz a ontologia dominante, que ignora os contextos ecológicos mais vastos e as teias mais-que-humanas que sustentam a possibilidade de vida na Terra. Ao apontar uma causa única e identificável - a redução das emissões de carbono -, a narrativa dominante sobre a transição energética facilita a conversão da natureza em unidades quantificáveis e comodificáveis. Com efeito, as políticas climáticas conceptualizam os parâmetros ambientais em agregados técnicos e esquemas matemáticos (por exemplo, esquemas de compensação da biodiversidade ou de carbono; créditos de carbono) que dissociam a atividade socioeconómica da materialidade ambiental, e «baseiam-se numa ontologia desconexa» que cria um «distanciamento» entre as atividades humanas e «as naturezas entrelaçadas das quais elas dependem»26.
Esta visão do mundo baseia-se fortemente na racionalidade científica moderna, que concebe a natureza como uma máquina, passível de ser calculada, quantificada, mani- pulada. Atualmente, esta ontologia serve os propósitos do sistema capitalista financeirizado: as emissões de carbono, por exemplo, podem ser vendidas, ou compradas, no mercado global do carbono. De forma semelhante, ao tomar o «clima» como algo que podemos «resolver» ou «consertar» reduzindo - ou deixando de emitir - emissões de carbono, esta visão favorece aquilo que na literatura se apelida de tecno-fix. Um tecno-fix refere-se à prática de utilizar a tecnologia para resolver um problema criado por intervenções tecnológicas anteriores. Segundo Evgeny Morozov, que cunhou o termo «tecnossolucionismo»27, esta prática é, na verdade, uma ideologia que reduz «fenómenos sociais complexos a problemas bem definidos e delimitados, com soluções definitivas e computáveis»28. A ideologia segundo a qual é possível encontrar uma solução para todos os problemas apostando em novas e melhores tecnologias favorece as estruturas do sistema capitalista, pois estas soluções tecnológicas são mediadas pelas lógicas do mercado. No caso do combate às alterações climáticas e da transição energética, podemos argumentar que assistimos à emergência de um «dogmatismo tecno-científico»29, pois, em larga medida, as «soluções» apresentadas para este desafio baseiam-se no desenvolvimento de novas infraestruturas tecnológicas. O caso da geoengenharia é emblemático: a geoengenharia refere-se a um conjunto de tecnologias com as quais se visa modificar o sistema terrestre, de forma intencional e em larga escala, para combater as alterações climáticas30. A geoengenharia é amplamente considerada na literatura como um «tecnossolucionismo», pois é uma solução baseada estritamente em respostas tecnológicas, que não ataca a raiz do problema31. Embora ainda controversas, estas tecnologias têm vindo a ganhar cada vez mais relevo nas discussões políticas e académicas sobre o clima32, e operam segundo a mesma ótica ontológica que reduz os desafios que enfrentamos a um problema de emissões de carbono.
Neste sentido, podemos argumentar que a «crise climática» e, em particular, o «carbono» se tornaram uma metanarrativa que tem vindo a justificar uma série de políticas e de mecanismos com sérias consequências ambientais, ecológicas, sociais e económicas. Com efeito, em nome da transição energética verde, os governos e as empresas têm justificado a expansão das fronteiras extrativistas, como é o caso das minas de lítio projetadas para as montanhas do Barroso. A mercantilização, comodificação e consequente extração da natureza é justificada como um meio para atingir os fins da neutralidade carbónica, independentemente dos seus impactos sociais, humanos ou ecológicos. A sinonímia que se criou entre «verde» ou «sustentável» e «neutro em carbono» é problemática, porque equaciona a extração mineira com sustentabilidade.
Ademais, mesmo no caso de tecnologias e infraestruturas energéticas ditas «renováveis» - como é o caso dos painéis solares, das turbinas eólicas ou das linhas de alta tensão - vários(as) autores(as) têm alertado para a forma como estas perpetuam, por um lado, a dependência do extrativismo e, por outro, a dependência dos combustíveis fósseis33. Os trabalhos de Alexander Dunlap34, em particular, têm documentado exaustivamente o continuum que liga as indústrias verdes às fósseis. Sublinhando tanto as semelhanças como as continuidades entre as indústrias verdes e as indústrias extrativas e as energias renováveis e os combustíveis fósseis35, Dunlap36 sugere o termo fossil fuel+ como mais adequado para designar as energias renováveis, já que estas não implicam um verdadeiro abandono dos combustíveis fósseis. Nas palavras de York e Bell37, tendo em conta que «não se tem verificado uma mudança real de uma fonte [de energia] para outra», já que as energias ditas «renováveis» também dependem dos combustíveis fósseis, o paradigma atual assemelha-se mais a uma «adição de energias do que a uma transição energética». Além de justificar práticas ecologicamente destrutivas, a narrativa hegemónica da transição energética - ao ter estabelecido uma definição universal sobre o que significa «salvar o planeta» - encerra nela as possibilidades de diálogo sobre outras possíveis soluções. Com efeito, a urgência de reduzir as emissões de carbono é partilhada entre atores das mais diferentes esferas - governos, empresas, movimentos sociais -, for- mando, assim, um consenso global inequívoco. Nesse sentido, podemos considerar que se tem vindo a criar um «regime de verdade», nos termos de Foucault, assente numa racionalidade tecnocientífica que, sob o véu da neutralidade científica, impede as possibilidades do seu questionamento. A retórica da inevitabilidade - da necessidade da transição energética e das matérias-primas críticas - aliada ao consenso global, impossibilita o seu questionamento38. Esta metanarrativa dominante sobre a crise climática favorece, por um lado, a estandardização das políticas públicas e, por outro, os processos de governamentalidade política e de disciplinamento social. Por um lado, favorece a homogeneização de políticas públicas, resultantes de diretrizes-mestras, provenientes de autoridades como as Nações Unidas ou a União Europeia. A estandardização das respostas ao problema (reducionismo carbónico) e do enquadramento do problema (fundamentalismo climático) apenas favorecem as estruturas hegemónicas de poder, que, agora em nome de salvar o planeta, criam novos mercados, novas oportunidades de lucro e de expansão do aparato tecnológico. Por outro lado, com esta estandardização e homogeneização das políticas públicas a nível mundial, surge uma nova forma de governamentalidade, ditada pela racionalidade tecnocientífica que guia estas decisões, e que disciplina igualmente os «comportamentos» dos consumidores: o «bom» consumidor, por exemplo, é quem responde aos ditames da descarbonização e, por isso, compra um carro elétrico.
Nesta secção, procurei demonstrar de que forma os pressupostos ontológicos modernos são atualmente reproduzidos nos programas da transição energética. Estes reiteram a ontologia que considera os seres humanos como «donos e mestres» da natureza, por seu turno entendida como «fixável», «mensurável» e «mercantilizável». Ao fazê-lo, está a criar novas formas de violência ecológica - como as minas de lítio - e a acentuar a padronização ontológica dos discursos sobre o clima, normalizando a vontade de aspirar a um futuro «verde», possibilitado por «tecnossolucionismos». Com estas reflexões, o meu intuito não foi o de menosprezar a seriedade da ameaça que a crise climática representa nem a necessidade de adotar políticas de redução das emissões de carbono.
As alterações climáticas são, sem dúvida, um problema mundial grave, cujas consequências sociais, políticas, económicas e ecológicas altamente nefastas já se vêm sentido, nomeadamente junto das populações e regiões do globo mais vulneráveis, prevendo-se que estas continuem a alastrar de forma cada vez mais intensa e frequente. Com este artigo, procurei apenas enquadrar o desafio das alterações climáticas nas vastas - e complexas - redes de (inter)dependências socioecológicas, sublinhando que estas são um sintoma da perturbação das redes que compõem a vida. O objetivo destas reflexões foi também o de demonstrar de que forma a narrativa hegemónica, ao construir a descarbonização como inevitável, limita a imaginação sociológica e antropológica sobre outros futuros, e perpetua a compreensão dominante do mundo, que desencadeou a crise que procuramos resolver. Esta lógica - que arroga para si o direito de ser a única - descarta outras «possibilidades ontoepistemológicas para “conhecer a natureza” e conceptualizar as questões socioambientais»39 fora da ontologia da separação e das lógicas mediadas pelo mercado e pela tecnologia. Ora, vários(as) autores(as) têm vindo a sugerir que é necessário ir além da transição energética, sonhando, assim, outros futuros.
Desfazendo a transição energética: montanhas sagradas, corpos-territórios e redes mais-que-humanas
Reconhecendo que o dualismo ontológico da arquitetura ontopolítica moderna criou uma profunda desconexão entre os seres humanos e o mundo não humano, urge adotar ontologias que desfaçam estes dualismos. Nas palavras das ecofeministas Maria Mies e Vandana Shiva, a dimensão das crises que atravessamos convida-nos «a pensar diferente», a adotar «cosmologias» que reconheçam que «a vida na Natureza é mantida pelo viés da cooperação, do cuidado mútuo e do amor»40.
No caso concreto da transição energética e da crise climática, podemos dizer que o problema não reside apenas no carbono - trata-se, antes, de cuidar de um planeta vivo, nutrindo as redes mais-que-humanas que permitem o florescimento dos múltiplos seres terrestres que coabitam este planeta. No seu mais recente livro, o biólogo e micólogo Merlin Sheldrake41 expõe brilhantemente a forma como a vida é uma rede de teias entrelaçadas e emaranhadas - nele, Sheldrake conduz-nos numa viagem às redes miceleais, que correspondem ao conjunto emaranhado de hifas dos fungos, que se podem estender por quilómetros sem fim e que permitem a sustentação da vida neste organismo vivo que é a Terra. Sheldrake explica como toda a vida na Terra é o resultado de relações de simbiose, isto é, de relações de profunda e estreita intimidade que se formam entre organismos não aparentados. O corpo humano, por exemplo,
«é composto por mais micróbios do que células humanas; há mais bactérias no nosso intestino do que estrelas na galáxia; são os cerca de 40 biliões de micróbios que vivem dentro e fora do nosso organismo que nos nutrem, produzindo os minerais dos quais dependemos e permitindo-nos digerir os alimentos que consumimos»42.
O nosso «eu» é, afinal, mais bacteriano e microbiano que humano. Ser humano envolve ser não humano. Somos compostos - e decompostos - por outros seres. Nas palavras da antropóloga Donna Haraway, «todos os terráqueos são parentes no sentido mais profundo», estão «ligados de formas complexas, imbricadas e “tentaculares”»43. Por outras palavras, estamos vivas e vivos porque estamos pro- funda e intimamente interligadas e interligados. É nutrindo estas relações de intimidade entre todos os seres terrestres e adotando éticas e práticas de cuidado mais-que-humanas que podemos sustentar a vida na Terra.
O conceito «corpos-territórios» - desenvolvido por feministas decoloniais comunitárias das Américas indígenas - ilustra bem a unidade ontológica entre os nossos corpos e os territórios que habitamos. Não nos podemos pensar sem pensar a forma como nos relacionamos com o espaço que habitamos, construímos e moldamos. Indo mais longe, e adotando uma perspetiva ecológica, podemos dizer que os nossos corpos são eles próprios territórios - que alojam milhares de seres - que, por sua vez, habitam num território mais vasto, ele próprio composto (e decomposto) por outros tantos corpos. Por oposição aos projetos da transição energética verde, que percecionam as montanhas como espaços vazios à espera de serem ocupados (uma visão altamente patriarcal), uma ética de cuidado mais-que-humana reconhece as montanhas como entidades vivas. As montanhas são uma ecologia de existências: são elas mesmas corpos-territórios que alojam centenas de seres, que dão vida a redes mais-que-humanas, e que organizam as práticas sociais e económicas em torno delas. As montanhas, no Barroso e noutras partes, são guardiãs da vida. Esventrá-las, em nome de uma transição «verde», implicaria arrasar a vida que elas nutrem, afetando, consequentemente, toda a vida na Terra.
Conclusão
Como argumenta a pensadora ecofeminista Stefania Barca44, a modernidade ocidental criou uma «narrativa-mestre» sobre o mundo, que precisa «ser rejeitada», pois aceitá-la implica «subscrever a ideia de que a história chegou ao fim e que não se pode esperar mais resistência. Que o mundo é o que o mestre fez dele»45. Esta narrativa-mestre, agora pintada de verde sob a forma da transição energética, urge ser desconstruída. Segundo Barca, desfazer o modelo do mestre passa por contar as histórias que escapam à sua colonização ontológica - as «histórias-outras-que-a-mestre» (other-than-master stories46). No Barroso, com todas as suas contradições, encontramos algumas dessas histórias: aqui, todos os dias, as pessoas cuidam das suas terras e dos seus animais; tornam a água de forma comunitária e interajudam-se nas práticas quotidianas; colhem as plantas que semearam e bebem as que fermentaram. Através de ritmos lentos, as redes mais-que-humanas são sustentadas, permitindo uma harmonia entre as práticas sociais e económicas e as suas realidades ambientais e ecológicas. Foi, em parte, por estas razões que esta região foi a primeira portuguesa classificada como Património Mundial Agrícola pela FAO (sigla em inglês da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) em 2018. Esta organização reconhece ainda o importante número de «áreas ambientais muito significativas e relativamente intactas encontradas nesta região», que albergam «numerosas espécies vegetais e animais que são extremamente importantes para a conservação da natureza»47. A transição energética «verde» que se projeta para estas montanhas - sob a forma de várias minas a céu aberto - é o oposto do que elas representam e salvaguardam. Em tempos em que, mais que nunca, urge nutrir a vida, parece-me contraproducente apostar em «soluções» que, afinal, são parte do problema.