O objetivo deste texto é analisar a reação do Governo dos Estados Unidos aos acontecimentos ocorridos em Portugal no dia 25 de abril de 1974, bem como nos dias subsequentes. O foco da atenção não estará, portanto, na totalidade do processo da transição política portuguesa, mas sim num dia em concreto e nas suas consequências imediatas.
Existiriam dois consensos acerca dos acontecimentos daquele dia. O primeiro seria o seu carácter de festa popular e pacífica, sem vítimas. Para este consenso contribuem, sem dúvida, as imagens dos soldados misturados com a população e os cravos vermelhos nos canos das espingardas. A imagem tem tal força que a revolta será para sempre conhecida como a Revolução dos Cravos.
O segundo consenso estabelecer-se-ia em redor da surpresa e ignorância prévia dos Estados Unidos em relação à revolta. Segundo Cord Meyer, o chefe de estação da Central Intelligence Agency (CIA) em Londres na altura: «Quando a revolução ocorreu em Portugal, os Estados Unidos tinham saído para almoçar; ficámos completamente surpreendidos»1. Em duas entrevistas para a Columbia University Oral History Collection, a 22 de fevereiro e a 29 de março de 1975, Stuart Nash Scott, o embaixador dos Estados Unidos em Lisboa em 1974, reitera a ideia de surpresa e não só para os Estados Unidos. Scott afirma que a atmosfera nas semanas anteriores indicava que algo podia acontecer, mas que ninguém foi capaz de prever os acontecimentos do 25 de Abril2. Certamente, há que buscar as razões da surpresa e desconhecimento nas palavras de Henry Kissinger, o secretário de Estado e conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos durante as administrações de Richard Nixon e Gerald Ford: «Não sabíamos quase nada sobre nenhuma das personalidades envolvidas»3. Este segundo consenso tem nuances que serão analisadas mais adiante, mas o que é certo é que um dos problemas com que se deparava Washington face a eventos deste tipo é que habitualmente os Estados Unidos estabeleciam relações de forma quase exclusiva entre governos, o que lhes proporcionava contactos ao mais alto nível entre os círculos governamentais, mas dificilmente lhes permitia relações equivalentes fora desses mesmos círculos. E a Revolução dos Cravos foi gerada à margem dos círculos de governo4.
As relações dos Estados Unidos com Portugal desde a Segunda Guerra Mundial baseavam-se, essencialmente, na importância da base militar das Lajes nos Açores. Uma base fundamental, durante e depois do conflito, para o reabastecimento dos aviões provenientes da outra margem do Atlântico, a sua utilização pelos Aliados foi essencial para que Lisboa se encontrasse no lado certo da história em 1945, o que lhe permitiu ser membro fundador da Organização do Tratado do Atlântico Norte (nato, na sigla inglesa) em 1949. Portugal nunca foi um membro importante da Organização ou considerado um aliado de primeira ordem pelos Estados Unidos, mas durante a Guerra Fria os governos ditatoriais de António de Oliveira Salazar e Marcelo Caetano garantiram a estabilidade do país e a sua ligação firme ao lado ocidental do conflito entre norte-americanos e soviéticos5. Por outras palavras, Portugal fazia parte do grupo de países para os quais se considerava que um ditador era preferível a um sistema democrático de resultados incertos6. De qualquer modo, uma questão constituía um ponto de tensão entre Lisboa e Washington. Era a questão colonial. Desde 1945, os Estados Unidos tinham-se mostrado contrários à preservação dos impérios coloniais. Enquanto país plenamente convencido das virtudes do comércio livre e da conveniência de estender os seus benefícios na ordem global, não podia apoiar a manutenção de estruturas que funcionavam na direção contrária. Apesar disso, Portugal entra na década de 1970 com um império colonial em África - formado, principalmente, por Moçambique, por Angola e pela Guiné-Bissau -, o qual, longe de ser uma fonte de recursos e poder, mantinha a metrópole atolada em guerras coloniais que drenavam os recursos materiais e humanos do país e que, além disso, provocavam a rejeição dos Estados europeus, para além da natureza do seu sistema político. Utilizando o velho argumento de que Portugal não estava envolvido em guerras coloniais, mas que se tratava antes de proteger os territórios em causa do comunismo que seria representado pelas diferentes insurgências, Lisboa tentava assegurar o apoio norte-americano, principalmente através de armamento. E os Estados Unidos negavam-se a vender armas a Portugal para que este as utilizasse nas colónias.
Em relação a este tema, viveu-se um momento de grande tensão entre os dois países no contexto da chamada Guerra do Yom Kippur entre Israel e uma aliança de Estados árabes liderada pelo Egipto e pela Síria, e que se desenrolou entre 6 e 25 de outubro de 1973. Os Estados Unidos depararam-se com a recusa por parte dos aliados europeus em permitir a utilização dos seus territórios nas missões aéreas norte-americanas de apoio a Israel, e inicialmente Portugal também recusou a utilização da Base das Lajes se não recebesse em troca armamento para utilizar nas colónias. Esta posição levou a uma dura mensagem de ameaça de Richard Nixon a Marcelo Caetano:
«Sr. Primeiro-Ministro, devo dizer-lhe com toda a sinceridade que a sua falta de ajuda neste momento crítico irá forçar-nos a adotar medidas que não deixarão de prejudicar a nossa relação. Se tivermos de procurar caminhos alternativos, este será um fator a ser lembrado se as eventualidades a que se refere o seu ministro dos Negócios Estrangeiros de facto ocorrerem»7.
As eventualidades a que se referia o Presidente norte-americano eram um boicote petrolífero e atividades terroristas. Tudo considerado, a ameaça teve os efeitos esperados e no mesmo dia, 13 de outubro, o ministro português dos Negócios Estrangeiros informou a Embaixada dos Estados Unidos em Lisboa que Marcelo Caetano autorizava a utilização da Base das Lajes para os voos de apoio a Israel na guerra que estava em curso no Médio Oriente8.
Washington não estava disposto a tolerar que assuntos internos de Portugal afetassem a resolução de questões que considerava prioritárias, e Portugal ocupava um lugar muito secundário nas preocupações da Casa Branca e do Departamento de Estado nos anos 1973-1974.
É neste contexto que Stuart Nash Scott apresenta as suas credenciais em Lisboa a 23 de janeiro de 1974. Formado na Harvard Law School, advogado de profissão em Nova Iorque, não tinha nenhuma relação com a carreira diplomática até lhe ser oferecida uma posição no Departamento de Estado. Esta oferta coincide com a chegada de Henry Kissinger à liderança do Departamento a 22 de setembro de 1973. Como o próprio Scott explicou, Kissinger decidiu que fosse uma pessoa da sua confiança a ocupar a posição que lhe haviam oferecido, e como alternativa foi-lhe apresentada a embaixada em Lisboa. A aceitação desta oferta implicou uma verdadeira imersão em assuntos portugueses, que Scott desconhecia por completo. Entre esses assuntos, cabe destacar dois: a renovação do acordo de utilização da Base das Lajes, que expirava em fevereiro de 1974, e a questão colonial. Na sua primeira reunião com Rui Patrício, então ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, este expressou-lhe todas as suas queixas pela falta de ajuda dos Estados Unidos nos conflitos em Moçambique, em Angola e na Guiné-Bissau. Nada de novo, portanto, nas relações luso-americanas. De tal forma que o próprio Scott refere: «naquela altura ninguém previa a rebelião do 25 de Abril»9.
Um mês depois da apresentação das credenciais, o novo embaixador inteira-se da publicação do livroPortugal e o Futuro, do general António de Spínola, então vice-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, chefiado pelo general Francisco da Costa Gomes. Para além do cargo que ocupava, Spínola podia ser considerado o militar com maior prestígio no país. No livro, defendia uma ideia que só poderia ser vista de forma positiva pelos Estados Unidos: que as guerras em África não poderiam ser ganhas no campo de batalha e que a solução deveria ser política, propondo o estabelecimento de uma federação que reconhecesse o direito à autodeterminação dos territórios africanos. Esta era uma solução que poderia parecer lógica, mas que ia contra a política governamental defendida pelo presidente do Conselho de Ministros, Marcelo Caetano, e pelo Presidente da República, o almirante Américo Tomás. Nos seus telegramas, Scott descreveu a clivagem que o livro gerou nos círculos governamentais e entre os militares. No segundo caso, os oficiais de média patente alinharam-se inequivocamente com Spínola, enquanto as altas patentes, mais conservadoras, se opuseram com veemência. Gerou-se assim uma situação em que o Governo de Caetano passou a apoiar-se nos militares mais conservadores, ao mesmo tempo que iniciava uma política de repressão contra todos aqueles considerados de lealdade duvidosa. Como reconheceu Scott no seu telegrama de 5 de março, esta era uma crise que não existia para todos aqueles que dependiam dos meios de comunicação para estar informados, aludindo à severa censura informativa imposta pelo Governo. Ainda assim, a crise continuou, e António de Spínola e Francisco da Costa Gomes foram afastados e substituídos por personalidades fiéis ao Governo. A 16 de março, a guarnição militar das Caldas da Rainha, situada a 100 quilómetros de Lisboa, amotina-se e inicia uma marcha sobre a capital. A marcha foi abortada pelas forças de segurança e por militares, superiores em número face à falta de apoios dos amotinados10. A um mês do 25 de Abril, parecia evidente que a Embaixada dos Estados Unidos e o Governo norte-americano eram perfeitos conhecedores do estado de crise em que se encontrava Portugal. A isso se refere sem dúvida Scott, quando indica:
«A partir daquele momento em […] meados de março de 1974 - embora ninguém previsse o que iria acontecer exatamente, e muita gente pensasse que este problema, tal como muitos outros problemas anteriores, iria ser encoberto, a nossa Embaixada pelo menos acreditava claramente que as coisas não poderiam continuar como até então»11.
Um país que seguia atentamente os acontecimentos era Espanha, algo a que não era alheio o embaixador dos Estados Unidos em Madrid, o almirante Horacio Rivero Jr. Rivero, que considerou oportuno informar Washington que três jornais espanhóis, oInformaciones, oLa Vanguardiae oArriba, tinham publicado diferentes entrevistas a Spínola. O conteúdo destas é extremamente interessante. O general tinha enviado a Caetano uma cópia do seu livro, com dedicatória, oito dias antes da publicação, pelo que o presidente do Conselho de Ministros estava perfeitamente informado do livro e do seu conteúdo e não impediu o seu lançamento no mercado. Spínola confessa que passara dois anos e meio a escrevê-lo e que não tinha nada a ver com o levantamento das Caldas da Rainha. Um acontecimento que, segundo o correspondente doInformaciones, tinha resultado em dois militares mortos e quinze feridos. A imprensa portuguesa não tinha sido autorizada a informar sobre o levantamento. O mesmo correspondente escreve também sobre dois assuntos que chamam a atenção de Rivero. O primeiro é que o Governo dos Estados Unidos tinha dado autorização ao governo revolucionário da Guiné-Bissau para abrir um escritório em Nova Iorque para assim poder participar nos debates das Nações Unidas, algo que ia contra a política africana de Lisboa. O segundo, mais interessante tendo em conta o 25 de Abril, era que mil jovens oficiais do exército português tinham assinado um rascunho de uma declaração, que ainda não estava em circulação, em que se exigia ao Presidente Américo Tomás a democratização das instituições do país como pré-requisito para solucionar os problemas colocados pelas guerras em África. Para além das informações que constavam dos três jornais espanhóis, Rivero incluiu no seu telegrama que um membro da embaixada se tinha reunido com Novais, correspondente do jornal francêsLe Mondeem Espanha e Portugal, que lhe teria referido que a Embaixada de Portugal o aconselhara a não se deslocar a Lisboa tal como lhe tinha pedido a sede doLe Mondeem Paris. Novais não duvidava que a pressão dos jovens oficiais sobre o Governo português ia continuar, ainda mais num momento em que, segundo as palavras do jornalista francês, contavam com o exemplo de Spínola12.
No mesmo dia em que Rivero envia o seu telegrama, Scott enviou de Lisboa a sua própria análise. Nesta, e pela primeira vez, faz-se referência a reuniões clandestinas de oficiais de média patente, que a embaixada não tinha conseguido verificar, e que estariam na origem de um documento assinado pelo movimento, que defenderia uma abordagem muito semelhante à do livro de Spínola. Scott pontua que o texto não contém uma linguagem revolucionária ou ameaçadora. Junto com este primeiro documento circulava um segundo, no qual se fazia referência à repressão que se verificava entre os militares: «Alguns dos nossos camaradas foram presos… por pertencerem ao movimento dos oficiais […] não permitiremos, evidentemente, que uma situação assim continue… estamos à espera que o Governo reconsidere…». Segundo Scott, faria parte do movimento um número substancial, ainda que não maioritário, dos oficiais de média patente. A conclusão do embaixador era que, ainda que a situação política fosse tensa, «Portugal está aparentemente calmo»13.
Perante todas estas informações, é Henry Kissinger quem finalmente decide enviar instruções a Lisboa, e estas são taxativas:
«Uma abordagem do Governo dos Estados Unidos junto do Governo de Portugal em apoio à tese de Spínola não iria, na nossa opinião, contribuir para uma política portuguesa mais flexível em África. No entanto, no futuro teremos em conta a possibilidade de uma abordagem nesse sentido.
Acreditamos que, entretanto, a Embaixada faria bem em não levantar este tema junto dos responsáveis portugueses, mesmo a título pessoal. Devemos ter cuidado para não parecermos estar de alguma forma envolvidos no processo de resolução política que neste momento está a decorrer em Portugal»14.
É surpreendente esta atitude de distanciamento por parte do homem que apenas sete meses antes tinha demonstrado uma agressividade extrema face ao Chile. Parece justo inferir que a perceção de um perigo comunista, que o tinha levado a intervir no Chile, estava ausente em relação a Portugal. É que Washington não tinha recebido nenhuma informação que lhe indicasse que a tensão que se vivia em Portugal estava relacionada com o comunismo. Antes se trataria de uma questão interna sobre como resolver os problemas coloniais de Portugal em África, algo que, devido ao posicionamento de Washington em relação a este tema, fazia com que os Estados Unidos se aproximassem mais de Spínola e do movimento dos jovens oficiais do que de Tomás e Caetano. Daí a moderação com que a questão foi vista por Kissinger, que estava sem dúvida ocupado com assuntos de maior substância relacionados com a Guerra Fria e sem disposição alguma para se distrair com um tema que devia considerar menor.
Quem respondeu de maneira contundente a Kissinger foi Scott, que fez notar ao seu superior que a atitude que recomendava constituía uma contradição flagrante com a política defendida pelos Estados Unidos em relação a Portugal nos anos anteriores:
«Se aceitarmos a ficção oficial do Governo de Portugal de que a África Portuguesa é parte integrante de Portugal, temos vindo de facto a intervir nos assuntos internos portugueses pelo menos nos últimos treze anos, com a nossa defesa pública e privada da autodeterminação da África Portuguesa.
Durante anos temos vindo a dizer a África, aos nossos aliados e aos americanos interessados (especialmente no Congresso) que a nossa posição em relação à autodeterminação tem sido reiterada ao Governo de Portugal nas ocasiões apropriadas […] Agora aparece o livro de Spínola, na prática defendendo a autodeterminação, escrita não por um Mário Soares ou por um Soapy Williams mas por uma chefia militar de topo em Portugal, um herói de dentro do sistema com um passado sólido de direita, até mesmo fascista. Ainda se Spínola pudesse ser culpado, pelo menos parcialmente, de ambição e extravagância, as suas ideias não deveriam ser minimizadas ou ignoradas a partir do momento em que receberam o apoio poderoso do principal líder militar do país, Costa Gomes, cuja integridade não pode ser questionada.
Ao recusarem apoiar as ideias de Spínola, ainda que de forma parcial ou em privado, os Estados Unidos estariam a negar-se a si mesmos a utilização de uma argumentação, com credenciais portuguesas impecáveis, que suporta a nossa política de longa data. Tendo em conta as considerações anteriores, instamos o Departamento a reconsiderar a posição delineada no parágrafo 2 do telegrama referência»15.
A última frase do telegrama faz referência ao segundo parágrafo do telegrama de Kissinger citado anteriormente. Este desencontro entre o embaixador e o secretário de Estado seria o primeiro de muitos e acabaria na substituição de Scott por Frank Carlucci a 9 de dezembro de 1974, ainda que aquele tenha continuado no posto até 12 de janeiro de 1975. Para além da discrepância acerca da política a ser seguida, dois pormenores chamam a atenção no que diz respeito à falta de conexão entre a embaixada americana em Lisboa e os acontecimentos que estavam prestes a iniciar-se. O primeiro é o facto de Scott ter elogiado Spínola não apenas por ser um herói militar, mas também por ser um homem do «sistema», de direita e de passado fascista. O segundo é ter tratado Mário Soares como um zé-ninguém, ele que era líder do socialismo português e que iria ser uma das personagens-chave da transição em Portugal.
Quando ocorreram os acontecimentos do dia 25, os documentos norte-americanos daquele dia, entretanto desclassificados, evidenciam o desconhecimento da embaixada sobre quem estaria por detrás dos mesmos. Não mostram nenhum tipo de conhecimento direto e limitam-se a repetir as informações dadas pelas agências noticiosas e pelos revoltosos através dos seus canais de comunicação. Alguns revoltosos autodenominavam-se «Movimento das Forças Armadas». O mesmo movimento a que aludia Scott no seu telegrama de 22 de março, e que informa da sua intenção de estabelecer uma Junta de Salvação Nacional para governar o país, libertá-lo do governo de Caetano e Tomás e reavaliar a política colonial em África16. Desta documentação também se infere que não se gerou qualquer tipo de preocupação ou urgência em Washington. O próprio Henry Kissinger, numa reunião realizada na manhã do dia 25 com os principais cargos do Departamento de Estado e com Arthur Hartman, que estava à frente dos assuntos europeus, permite-se abordar o assunto com toda a ligeireza: «Espero que não me neguem a oportunidade de falar de um golpe de Estado na Europa. Não é todos os dias que tenho essa oportunidade (risos)»17.
Seguramente, a atitude que mais chama a atenção é a de Scott. O embaixador norte-americano encontrava-se nos Açores em visita oficial, a caminho da reunião anual da Harvard Law Association, da qual era presidente, e que estava programada para os dias 26 e 27 de abril. Nas suas palavras:
«[N]a manhã de quinta-feira dia 25 fui acordado por uma chamada do meu vice-chefe da missão em Lisboa, que me disse que tinha havido um golpe bem-sucedido; que Caetano e o Presidente Tomás tinham sido levados num avião para a Madeira, e que o aeroporto de Lisboa estava fechado a todo o tráfego de entrada e saída, incluindo voos militares, e que eu nem sequer podia regressar voando para Espanha e atravessando a fronteira de automóvel, porque a fronteira com Espanha estava fechada […] por isso decidi que não fazia sentido ficar nos Açores, tendo feito providências junto do comandante da base americana, o General William Comstock, para que eu e a minha mulher fôssemos transportados para os Estados Unidos num avião de carga da Força Aérea […] Assim, tive as minhas reuniões em Cambridge na sexta-feira e sábado, dias 26 e 27»18.
Scott não regressou até ao dia 28. E a principal fonte de documentos diplomáticos dos Estados Unidos, a Foreign Relations of the United States, considerou que não havia nenhum documento de relevância para publicação até ao dia 29 de abril19. O que é certo é que entre 25 e 28 de abril havia de facto documentação digna de menção. Na ausência de Scott, foi Richard St. F. Post, o subchefe de missão, que ficou à frente da legação e, portanto, encarregado de informar Washington dos acontecimentos. Post é uma personagem que traz importante nuance ao argumento acerca da falta de contacto entre a embaixada e o Movimento das Forças Armadas, uma vez que, como indicará anos depois: «Na Junta, composta por cinco homens, dois eram meus amigos próximos, um deles era Costa Gomes […] ele deu-me muita informação sobre a situação militar que se revelou bastante precisa»20. Os dois tinham-se conhecido em Angola, quando Post era cônsul-geral e Costa Gomes o comandante das forças portuguesas ali estacionadas. Post assume a importância do seu papel devido à ausência do embaixador: a política dos Estados Unidos em relação a Portugal será determinada pela informação que ele fez chegar a Washington.
Curiosamente, quando se compara o que Post indica na entrevista com os telegramas que envia à Secretaria de Estado, o contacto com Costa Gomes não aparece, e, ao mesmo tempo, Post refere que ninguém da Junta tinha contactado com a embaixada. Perante isto, pode ser deduzido que o contacto nunca foi oficial, e que se trataria de um canal de comunicação confidencial entre dois velhos amigos. E as três mensagens que Post envia a Kissinger no dia 26 não podiam ser mais positivas: os membros da Junta são profissionais competentes e respeitados, têm o controlo efetivo sobre o território, a solução dos problemas coloniais em África deve ser política e não militar, definitivamente, «parece provável que o regime atual seja mais favorável aos interesses dos EUA do que o seu predecessor»21. A resposta de Kissinger é ordenar que a embaixada atue de acordo com o segundo parágrafo do seu telegrama de 10 de abril, citado anteriormente22.
Paralelamente à informação que recebe da embaixada, Kissinger recebe também a análise das agências de inteligência, que vão na mesma linha defendida por Post. O memorando da CIA que o secretário de Estado recebe no dia 26, e que comunicará a Nixon no dia 29, descreve o golpe de dia 25 como «soberbamente organizado e bem dirigido» e, ainda mais relevante, que
«[d]e momento, o golpe não parece ter colocado em perigo os interesses dos EUA, e poderá trazer alguns benefícios de curto prazo para os Estados Unidos - por exemplo um possível alívio ou fim da pressão portuguesa por armas americanas para utilização nos territórios africanos»23.
Desta forma, pode concluir-se que os eventos do 25 de Abril de 1974 em Portugal não constituíram, de forma imediata, um motivo de preocupação para os Estados Unidos. Mais do que isso, esses eventos prometiam solucionar o principal ponto de atrito entre Washington e Lisboa: a presença colonial portuguesa em África, as guerras que daí resultavam, os pedidos por armas norte-americanas para essas mesmas guerras, e a ligação entre tudo isto e a presença dos Estados Unidos na base militar das Lajes, nos Açores.
Neste contexto, quem escreve estas linhas coincide plenamente com Jussi Hanhimäki no sentido em que o desenvolvimento da Revolução dos Cravos tornou-se motivo de preocupação para Henry Kissinger apenas quando o Partido Comunista Português (PCP) começou a integrar os governos provisórios24. Portugal teve seis governos provisórios entre 16 de maio de 1974 e 22 de julho de 1976, e o PCP já formava parte do primeiro. Algo completamente de acordo com as condições particulares do país e as suas forças políticas, mas que chocava com a ideia fundamental dadétente, tal como esta era entendida no bloco ocidental da Guerra Fria. Adétente, tal como a analisou, de forma muito acertada, Mario del Pero, era um projeto essencialmente conservador que tinha como objetivo consolidar o mapa da Europa que resultara da Segunda Guerra Mundial. E que de forma nenhuma incluía a reabilitação do comunismo como ideologia de governo no Ocidente. Isto excluía a participação de partidos comunistas nos governos ocidentais, como se verificava no caso de Portugal e como podia também acontecer em Itália se o chamadocompromesso storicose tornasse realidade. Foi esta participação comunista no governo, e o receio de que o PCP acabasse por levar a cabo um golpe semelhante ao que teve lugar em Praga em 1948, que colocou Portugal debaixo do foco da atenção e preocupação norte-americanas25.
O secretário de Estado dos Estados Unidos era um homem incapaz de dar valor às condições internas dos Estados e de entender através delas as decisões tomadas. Tudo era analisado pelo prisma global da Guerra Fria e pelos padrões mentais, práticos e teóricos da mesma. Isto levou a que se confrontasse com os seus dois embaixadores em Lisboa, primeiro com Scott e depois com Frank Carlucci, precisamente porque estes analisavam os fatores internos da situação portuguesa e recomendavam, como o melhor antídoto contra o PCP, programas de assistência a Portugal que ajudassem a fortalecer os elementos não comunistas26. Carlucci explica a situação com grande clareza: «Ele [Kissinger] tinha uma perspetiva mundial; eu tinha de lidar com um problema em particular»27. A análise de Kissinger era simples: «Não via como os moderados poderiam ser reforçados através da ajuda aos radicais»28. A visão dos embaixadores norte-americanos era partilhada pela maioria dos Estados da Europa Ocidental e especialmente pelos partidos socialistas, que entendiam que a forma mais eficaz de garantir a segurança face ao comunismo representado pelo PCP era o reforço dos socialistas portugueses liderados por Mário Soares29.
Se seguirmos as explicações de Richard Post, Kissinger não cedeu nas suas posições até ao dia 11 de dezembro de 1974, quando enviou um telegrama a Lisboa informando que aceitava fornecer assistência ao novo governo português. Era o aniversário de Post, que à noite esteve presente num jantar em casa do embaixador de França, que tinha Soares como convidado de honra. Nococktailantes do jantar, Post aproximou-se de Soares, o ministro dos Negócios Estrangeiros, para lhe dar a notícia: «Hoje é o meu aniversário e acabo de receber o melhor presente que poderia ter recebido: um telegrama do Departamento de Estado a concordar com um programa de ajuda a Portugal». No final do jantar, no momento dos brindes, Soares levantou o seu copo e, depois de brindar ao Presidente francês, acrescentou: «E enquanto estamos de pé, gostaria que se juntassem a mim num brinde ao Sr. Post cujo aniversário é hoje»30.
Tradução: João Reis Nunes
Fontes primárias
THE NATIONAL ARCHIVES, ARCHIVAL DATABASES (AAD ) - Telegramas.
CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY - «CIA: The President’s daily brief», «Central Intelligence Bulletin», «White House support staff: Portugal: military revolt and Portugal».