Introdução
O presente artigo pretende, por meio da análise comparada de três casos e dos modelos adotados por cada um deles, contribuir para o esforço mundial de fortalecimento do espaço cibernético e para a formulação de políticas públicas em matéria de segurança e defesa cibernética, à medida que reconhece ser fundamental conhecer, apresentar e contrapor as iniciativas de diferentes países para o ambiente cibernético.
Nesse sentido, o objetivo geral do artigo é entender como Reino Unido, França e Portugal têm se preparado para a guerra do futuro, com foco nas ações adotadas para o novo domínio do ciberespaço. Os três casos da análise figuram entre as oito nações mais seguras no espaço cibernético, na Europa, sendo o Reino Unido o país europeu com maior comprometimento com a sua segurança cibernética2.
Mais especificamente, objetiva: compreender teoricamente os conceitos de grande estratégia e poder cibernético, analisar as diferentes propostas dos três países e comparar os achados. Para atingir os objetivos foram escrutinadas as estratégias nacionais, as diretrizes e as doutrinas para o ciberespaço, bem como elencadas as instituições correspondentes, com base nos documentos emitidos pelos Estados e suas forças armadas.
Acresce-se a isso, a criação de um quadro comparativo, seguido de um descritivo de cada categoria analisada - grande estratégia, poder cibernético, instituições, inovação e parcerias -, apontando as semelhanças e as diferenças entre os modelos. De forma que, ao final, são discutidos os achados, sendo possível depreender como o Reino Unido, a França e Portugal têm enfrentado o que hoje se considera uma das ameaças prioritárias às economias e à segurança nacional.
Grande estratégia e poder cibernético
Os conceitos de grande estratégia e poder cibernético são polissêmicos; assim, desde logo, é fundamental apresentarmos o significado que iremos atribuir a cada um deles, bem como estabelecermos o elo que os une. Embora não haja um consenso, a noção de grande estratégia é pertinente devido a uma de suas características-chave, a qual compreende um planejamento de longo prazo.
O uso recorrente do termo e a sua popularidade aumentaram expressivamente com o fim da Guerra Fria, contudo, em sua maioria, ele aparecia em estudos que tinham como base a realidade estadunidense e estavam voltados, sobretudo, para a área da economia de defesa3.
Antes disso, no entanto, no final da década de 1960, Liddell-Hart foi responsável por apresentar uma das definições mais referenciadas, desde então, em seu livroEstratégia. Para o autor, «o papel da Grande Estratégia - ou alta estratégia - é coordenar e direcionar todos os recursos da nação, ou de um grupo de nações, em direção à realização do objetivo político da guerra - o fim definido pela política fundamental»4.
Soma-se a essa definição a contribuição de Paul Kennedy: para o estudioso, a grande estratégia está preocupada tanto com a paz quanto com a guerra, ou seja, trata-se de um continuum de ações e da integração de diversas políticas por décadas, em que cabe aos agentes (líderes políticos) «unir todos os elementos (militares e não militares), para a preservação e o desenvolvimento dos interesses da nação»5.
Em ambas as definições fica evidente, portanto, que a grande estratégia é um plano proposital de longo prazo, semelhante a uma estratégia militar, com o diferencial de que para sua elaboração são levados em consideração todos os recursos do Estado6. Sob esse mesmo prisma, Murray 7 argumenta a respeito da importância do entrelaçamento de diferentes setores e reconhece que a política deve, na maioria das vezes, impulsionar a necessidade militar. Walt 8, por sua vez, reforça que o principal objetivo da grande estratégia é o de produzir segurança.
Para a estudiosa Silove há, ainda, outras duas frequentes aplicações do termo «grande estratégia», uma delas distingue os grandes princípios (orientações e coordenadas conceituais) e a outra os grandes comportamentos (padrões de comportamento, práticas e ideias)9.
Nessa última interpretação estariam, por exemplo, Hal Brands10 - o qual afirma que a grande estratégia se trata de ideias ou uma lógica para se planejar a longo prazo, a qual vincula interesses de um país com suas interações com o mundo -, além de Brooks e Wohlforth11 - para quem a grande estratégia corresponde ao padrão de escolhas adotado ao longo do tempo.
Na interpretação desses pensadores, a grande estratégia advém de uma série de decisões, entre elas, também aquelas tomadas no âmbito externo. ParaThomas J. Christiensen, a grande estratégia pode ser entendida «como um pacote completo de políticas domésticas e internacionais desenhadas para aumentar o poder e a segurança nacional»12. De maneira análoga, Milani e Nery 13 concordam que uma grande estratégia pressupõe um alinhamento em termos de política externa, objetivos de defesa, cooperação internacional e parcerias com o mercado doméstico.
Em geral, as definições apresentam importantes pontos em comum. O primeiro deles diz respeito à origem do termo; tendo em vista o conceito de grande estratégia ser oriundo do conceito de estratégia, dois elementos são centrais: os fins e os meios. Uma grande estratégia faz parte, por conseguinte, de um processo decisório e de planejamento14.
No entanto, diferentemente da estratégia, a grande estratégia possui, necessariamente, uma natureza de longo prazo, ou seja, é um caminho que orienta do presente para o futuro, sejam décadas ou séculos. Ao mesmo tempo que ela é holística, pois envolve todos os recursos de uma nação e todas as facetas do poder disponíveis para a consecução dos objetivos nacionais15.
Destarte, em um contexto de ampla disponibilidade de informação e tecnologia, em que o ambiente virtual armazena inúmeras informações sensíveis, o poder cibernético - o uso estratégico do ciberespaço16 - se tornou um meio para garantir a soberania, a segurança, a defesa, a resiliência e o desenvolvimento nacional17.
Assim dizendo, o poder cibernético é uma prioridade transversal na estratégia dos Estados e uma componente, cada vez mais, importante do poder nacional, pelo que os países competem para adquirir e usar essa capacidade18.
Frisa-se, no entanto, que o poder baseado em recursos de informação não é novo, a diferença reside no ambiente. O poder cibernético depende dos atributos que caracterizam o domínio do ciberespaço19. Na esteira desse pensamento, vale ressaltar a diferença entre ciberespaço e poder cibernético. Para Sheldon20, o ciberespaço é o domínio em que ocorrem as operações cibernéticas. Já o poder cibernético é a soma dos efeitos estratégicos gerados pelas operações cibernéticas no ciberespaço.
Na concepção de Nye21, o poder cibernético é a capacidade de obter resultados preferenciais no ciberespaço ou em outros domínios, ao criar vantagens ou influenciar eventos através do uso de recursos do domínio cibernético.
Assim sendo, o poder cibernético tem um propósito estratégico para alcançar fins políticos. Este propósito estratégico diz respeito a capacidade, na paz e na guerra, de manipular as percepções e, ao mesmo tempo, degradar a capacidade de um adversário de compreender o ambiente. As operações cibernéticas, portanto, não servem a seus próprios fins, mas aos fins da política: «A estratégia é a ponte entre a política e a exploração do instrumento cibernético»22.
Nota-se, pois, que o ciberespaço em todos os seus aspectos - tecnológicos, psicológicos, políticos, militares - está sob a autoridade da estratégia23. De maneira que, pensar o ciberespaço, as novas possibilidades advindas desse espaço e a sua aplicação é parte fundamental da tarefa dos formuladores de políticas24.
Frente a isso, diversos países têm percorrido um processo de atualização das suas grandes estratégias e inclusão de novos conceitos para enfrentar as complexidades do ciberespaço. «As operações cibernéticas aparecem repetidamente no sofisticado manual do Estado moderno.»25
Igualmente, o ciberespaço, sem fronteiras e transacional, se tornou um domínio26 crucial, também, para o planejamento militar27. Os planejadores militares têm procurado incorporar a capacidade cibernética nos níveis tático, operacional e estratégico da guerra, o que contribui para que as operações cibernéticas tenham um papel cada vez mais decisivo28.
De maneira estratégica, o emprego militar da capacidade cibernética é capaz de produzir importantes efeitos, seja devido a maior precisão e rapidez dos ataques, a viabilidade de extração e coleta de dados ou ao aperfeiçoar a comunicação e a tomada de decisão29. Ao utilizar a capacidade cibernética «o tomador de decisão aumenta a probabilidade de influenciar outrem e, por conseguinte, aumenta sua chance de êxito na consecução do objetivo»30.
Outrossim, o emprego da capacidade cibernética na guerra reúne características que a tornam, particularmente, atraente aos Estados, a exemplo dos desafios de atribuição, da natureza multiuso das tecnologias que a ela estão associadas, da imprevisibilidade dos alvos, do potencial dos danos colaterais ou não intencionais e da possibilidade de ser combinada com as armas convencionais31.
O dano de um ataque cibernético, em contraste a um agravo físico, é, em geral, extremamente difícil de se mensurar e capaz de ocasionar efeitos tanto diretos e imediatos quanto tardios e indiretos32. Em contrapartida, é inegável que os ataques são resultado da exposição e de possíveis falhas nos sistemas alvo, as quais são exploradas oportunamente por agentes maliciosos33.
Logo, os esforços estatais estão concentrados em eliminar vulnerabilidades e na redução da suscetibilidade de ataques no ciberespaço; há, ainda, um crescente número de Estados que empregam o poder cibernético de modo ofensivo na consecução de seus interesses e objetivos nacionais34.
Assim sendo, a próxima seção irá se concentrar na apresentação dos três casos eleitos para essa análise, observando em suas grandes estratégias qual o espaço dedicado ao poder cibernético, além de explicitar como os países têm se organizado em prol da segurança e resiliência estatal.
Análise comparada dos casos
A comparação sistemática e contextualizada de poucos casos foi a técnica empregada para responder às perguntas: como o Reino Unido, a França e Portugal têm se organizado para conter as ameaças advindas do ciberespaço?, e quais as semelhanças e as diferenças entre as estratégias adotadas?
Lipjhart35 define a comparação como um método básico das ciências sociais, de grande utilidade para estabelecer proposições gerais empíricas e para descobrir o relacionamento empírico entre variáveis. Para orientar a análise, foram aqui adotadas cinco categorias passíveis de comparação. Além disso, para cada categoria, mais abstrata, foram eleitas algumas unidades específicas, de forma a permitir observar os mesmos itens nos três distintos casos. As categorias e unidades estão dispostas no quadro 1:
A definição cuidadosa do que será analisado em cada categoria é o que dá sustentação e credibilidade para a presente análise. Nesse sentido, na primeira categoria - «grande estratégia» - reúnem-se as diretrizes do planejamento estratégico, as perspectivas futuras e os planos para se atingirem os interesses de cada um dos Estados.
Diante dessa apreensão do grande quadro, passa-se então à categoria «poder cibernético», na qual o uso estratégico do ciberespaço, seja para segurança ou defesa nacional, recebe enfoque. São mapeados os documentos orientadores do setor e os objetivos traçados em cada um deles, com atenção aos níveis tático, operacional e estratégico da guerra.
A seguir, busca-se de forma mais minuciosa, na categoria «instituições», entender como foram distribuídas as atividades e quais as estruturas criadas e os atores, civis e militares, envolvidos. Mais duas categorias completam a análise: «inovação», a qual lança um olhar sobre iniciativas no campo da pesquisa e do desenvolvimento, além de propostas singulares para o campo «parcerias», em que são observados os arranjos, as alianças e os exercícios realizados na área, principalmente, no âmbito externo.
O principal insumo da pesquisa são fontes primárias - documentos oficiais emitidos pelos governos e órgãos de defesa. No caso britânico destaca-se a «revisão integrada de segurança», «defesa», «desenvolvimento e política externa» e a «estratégia nacional cibernética». No que diz respeito à França, aRevue Stratégique de Defense et de Sécurité, de 2017, e aRevue Nationale Stratégique, de 2022, apontam as grandes tendências e panoramas futuros e estão em sintonia com o principal documento para o setor cibernético, aRevue Stratégique de Cyberdéfense.
Já para Portugal, o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, de 2013, permanece sendo o principal instrumento da estratégia nacional para defesa e segurança. No tocante ao ciberespaço, destaca-se a publicação, em 2015, daEstratégia Nacional de Segurança do Ciberespaço, tendo sua segunda versão sido apresentada em 2019.
Uma vez certos da técnica empregada para análise e de suas fontes, apresentamos, a seguir, um conjunto de informações relevantes agrupadas nas categorias mencionadas.
Grande estratégia
A revisão integrada de segurança, defesa, desenvolvimento e política externa,Global Britain in a Competitive Age, publicada pelo Reino Unido, em 2021, reúne as grandes tendências do ambiente internacional e de segurança nacional. Em seu cerne está o compromisso com a segurança e com a resiliência e a proteção da população britânica, tanto no âmbito doméstico quanto internacional. Nesse sentido, sólidas estruturas na luta contraterrorista, de inteligência e de cibersegurança são apontadas como fundamentais36.
A revisão define quatro principais objetivos: apoiar a ciência e a tecnologia, fortalecendo a posição do Reino Unido como poder cibernético; moldar a ordem internacional, reforçando e estabelecendo novos pilares, a exemplo do ciberespaço; robustecer a segurança e a defesa para enfrentar os desafios do mundo físico e virtual; incrementar a resiliência para responder e se recuperar de ataques37.
Outrossim, são listadas algumas adaptações necessárias para lidar com os desafios. Menciona-se, entre elas, a preocupação em se tornar um poder cibernético democrático e responsivo. De acordo com o documento, o ciberespaço será um domínio cada vez mais contestado, utilizado tanto por Estados quanto por atores não estatais, e, consequentemente, deter poder cibernético terá uma importância crescente38.
Em vista disso, a revisão propõe adotar uma estratégia mais abrangente e utilizar o domínio cibernético de modo mais integrado e criativo, retirando o foco da segurança cibernética e considerando toda a gama de capacidades - dentre elas as ofensivas - na detecção, interrupção e dissuasão de possíveis ameaças. Ao mesmo tempo, pretende reunir esforços para a obtenção de tecnologias cibernéticas críticas39.
Três importantes conclusões da revisão são: o poder cibernético é um fator cada vez mais importante na consecução dos objetivos nacionais, deter poder cibernético exige uma visão abrangente e uma estratégia integrada e, mais do que isso, toda a sociedade deve atuar em conjunto para o sucesso das ações no ciberespaço.
A França, por sua vez, publicou, em 2017, aRevue Stratégique de Defense et de Sécurité Nationale, na qual destacou o desenvolvimento tecnológico como responsável por impor novos desafios aos sistemas tradicionais. Em relação ao ciberespaço reforçou que «certos ataques podem ser considerados como uma agressão armada, devido à sua escala e gravidade»40.
O documento estratégicoActualisation Stratégique, de 2021, deu destaque às ameaças híbridas, à ação deliberada de manipulação da informação e à vulnerabilidade dos dados: «O ciber e o espaço são agora campos assumidos de rivalidade estratégica»41. Com isso, a adaptação da estratégia teve como foco as áreas de cibernética, espacial e inteligência artificial e confirmou a aposta francesa em um processo de modernização militar, com vista a uma força armada completa, ágil e eficiente, e na superioridade estratégica e tecnológica do país42.
Mais recentemente, em 2022, o país apresentou aRevue Nationale Stratégique; nela, a sofisticação da capacidade cibernética ofensiva foi tida como sem precedentes, além de um desafio estratégico a ser abordado. Definiu, ainda, que o esforço deveria estar concentrado na melhoria da resiliência cibernética: «Fortalecer o nível de cibersegurança é essencial para preparar o país para mais ameaças»43.
No caso português, o Conceito Estratégico de Defesa Nacional é o principal instrumento de apresentação da estratégia nacional para a defesa e a segurança. O documento, aprovado em 2013, recomendou às Forças Armadas uma atuação conjunta, afora propor uma reorganização e simplificação das estruturas, com vista a uma maior eficiência, agilidade, modularidade e flexibilidade. No que tange o espaço cibernético, traçou objetivos como: definir uma estratégia de cibersegurança, criar órgãos técnicos, sensibilizar usuários e aprimorar a capacidade de ciberdefesa nacional44.
Poder cibernético
A Estratégia Nacional Cibernética britânica, lançada em 2021, traz em seu cerne o conceito de poder cibernético aliado à pretensão de que, em 2030, o Reino Unido permaneça como um dos principais poderes cibernéticos do mundo. Para isso, cinco pilares orientam tal ambição: aprofundar a parceria governo, academia e indústria; construir um ambiente digital resiliente e próspero; assumir a dianteira tecnológica; liderar e influenciar a ordem internacional; detectar, interromper e dissuadir adversários45. No que tange a garantia do desenvolvimento do pleno potencial como poder cibernético, prevê um incremento contínuo da Força Cibernética Nacional (NCF, na sigla inglesa) e esforços intergovernamentais no enfrentamento das ameaças. Estabelece três principais objetivos: aumentar o investimento em agências de inteligência e na capacidade
de fiscalização e enfrentamento ao crime cibernético; aprimorar a coordenação na detecção das ameaças, com acesso conjunto às bases de dados e uma divulgação célere dos relatórios: expandir a rede de defensores cibernéticos e as pesquisas na área46.
Além disso, vislumbra atualizar a legislação, maximizar as parcerias entre os órgãos dedicados ao ciberespaço, as comunidades de inteligência e diplomáticas e capacitar os oficiais para conduzir operações cibernéticas ofensivas legais e proporcionais47.
A França, por sua vez, publicou, em 2018, aRevue Stratégique de Cyberdéfense- o Livro Branco da Defesa Cibernética francesa. O primeiro objetivo traçado na revisão foi encrudescer os dispositivos disponíveis de proteção cibernética e reforçar a resiliência das redes estatais e de operadores de serviços essenciais48. Já em âmbito internacional, buscar a regulamentação do ciberespaço, a prevenção de ataques e a capacitação para o gerenciamento de crises49.
Em 2019, a França assumiu uma doutrina clara de defesa cibernética, organizada em dois polos, de um lado, a «luta informática ofensiva» e, de outro, a «luta informática defensiva». A luta informática ofensiva diz respeito ao conjunto das ações realizadas no ciberespaço que produzem efeitos contra um sistema antagônico. Por seu turno, as ações da «luta informática defensiva» são, em síntese, a antecipação, a detecção e a reação, bem como contribui com as missões de prevenção, proteção e atribuição50.
Dois anos mais tarde, em 2021, foi acrescido ao quadro doutrinário dedicado ao ciberespaço o documentoDoctrine Militaire de Lutte Informatique d’Influence. A doutrina advém da importância crescente das mídias sociais no cotidiano da população e a noção de que o ambiente informacional onipresente afeta, também, as operações militares e os processos de tomada de decisão, seja por meio da manipulação das informações seja pela propagação de notícias falsas51.
Mormente ao ciberespaço, Portugal publicou, em 2015, a «Estratégia Nacional de Segurança do Ciberespaço» (ENSC), na qual tratou a questão da segurança das redes e dos sistemas de informação e a utilização livre, segura e eficiente do ciberespaço. O documento situou a importância de se produzir uma revisão periódica, em um prazo máximo de três anos, assim como de proceder a uma verificação anual dos objetivos estratégicos e das linhas de ação52.
Desta feita, em 2019, foi aprovada a segunda ENSC assente em três objetivos estratégicos: maximizar a resiliência, promover a inovação e gerar e garantir recursos. No que tange à ciberdefesa propôs reforçar a resiliência das Forças Armadas e utilizar todos os meios para responder aos ciberataques, incluindo a capacidade ofensiva53.
Na esteira da ENSC e diante da constatação da premência de densificar conceitos e de, devidamente, articular as estruturas dedicadas ao ciberespaço, foi publicada, em 2022, a Estratégia Nacional de Ciberdefesa, a qual reafirmou o ciberespaço como um domínio das operações militares defensivas e ofensivas, no qual deverão ser assegurados a defesa e os interesses nacionais. Nesse sentido, estabeleceu o ciberespaço como um elemento integrante do processo de planejamento, em uma lógica multidomínio54.
Para mais, foram definidos quatro objetivos estratégicos: consolidar a capacidade de ciberdefesa, maximizar a resiliência e a coesão da ação nacional, promover a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação e garantir recursos qualificados. E seis eixos orientadores: utilizar o ciberespaço como um domínio de operações; reforçar a capacidade de ciberdefesa nacional; criar a escola de ciberdefesa; intensificar a cooperação nacional e internacional; promover a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação, incentivando o desenvolvimento de soluções de uso dual; assegurar as capacidades necessárias à ciberdefesa55.
Instituições
No que tange às instituições dedicadas ao ciberespaço sobressai, no Reino Unido, a criação do Centro Nacional de Segurança Cibernética e da NCF. O centro, formalmente constituído em 2016, é responsável pelas infraestruturas críticas nacionais, sua atribuição, principal, é auxiliar na contenção e investigação dos crimes digitais. Por sua vez, a NCF, operacional desde 2020, foi projetada, especialmente, para conduzir operações ofensivas.
A NCF reúne o serviço de inteligência britânico, o Ministério da Defesa, o Serviço de Inteligência Secreta e o Laboratório de Ciência e Tecnologia de Defesa sob um comando unificado. As diferentes expertises atuam em conjunto, também, com os meios diplomático, econômico e político. A NCF atua em três grandes frentes: combate a ameaças terroristas, criminosas e estatais; combate a ameaças à confidencialidade, integridade e disponibilidade de dados e ao uso efetivo dos sistemas; apoio às operações de defesa e política externa56.
Em se tratando das instituições dedicadas ao ciberespaço, no caso francês, é importante recordar o particularismo do seu modelo de resposta aos incidentes digitais, o qual preza pela separação entre as capacidades defensivas e as ofensivas.
A estratégia ofensiva francesa é prerrogativa da Presidência através do Conselho Nacional de Defesa e Segurança, responsável pela produção de diretivas, as quais são implementadas pelo Comitê de Gestão da Defesa Cibernética, alocando os recursos necessários. É incumbência da Direção-Geral de Controle de Armamento-Informação a concepção das armas cibernéticas, seja para os serviços de inteligência ou para o Comando de Defesa Cibernética (COMCYBER)57.
Constituído em 2017, o COMCYBER está diretamente subordinado ao chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e consiste em um ator fundamental para a organização e a padronização da ação ofensiva, bem como para o fortalecimento de uma postura proativa do país na detecção dos ataques e compreensão das ameaças58.
A estratégia defensiva é prerrogativa do primeiro-ministro através do Comité Diretor de Cibersegurança presidido pela Agência Nacional de Segurança de Sistemas de Informação (ANSSI). A ANSSI é a autoridade nacional responsável pela segurança dos sistemas de informação, com poder regulador, para definir regras, de certificação e qualificação de produtos e serviços e de imposição de medidas nos casos de condutas criminosas.
Ao chefe-geral da ANSSI é confiada a responsabilidade de conduzir as operações de proteção e garantir a segurança nacional em caso de um ciberataque. Por sua parte, o chefe das Forças Armadas fica encarregado pelas ações militares e de defesa nacional. Em Portugal, a Lei n.º 19/2022 alterou a estrutura, até então, destinada à ciberdefesa. Com a sua aprovação o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) teve sua missão ampliada, contemplando, desde então, a ciberdefesa. De maneira que foram, prontamente, criadas duas estruturas: o Centro de Comunicações e Informação, Ciberespaço e Espaço (CCICE), na direta dependência do chefe do EMGFA e o Comando de Operações de Ciberdefesa (COCiber).
O CCICE tem como missão habilitar a capacidade de comando e controle conjunto das Forças Armadas, além de assegurar o exercício do comando de operações militares no e através do ciberespaço. Compete ao CCICE planejar, coordenar e executar as medidas de segurança para a proteção e resiliência da infraestrutura tecnológica conjunta; propor e conduzir operações militares no e através do ciberespaço; participar e organizar exercícios conjuntos e combinados de ciberdefesa; disponibilizar e coordenar a capacidade de ciberdefesa.
O COCiber é responsável pelo planejamento, direção, controle e execução de operações no e através do ciberespaço. Sua estrutura compreende a Força de Operações de Ciberdefesa e pode ser reforçada por outras unidades das Forças. Compete ao COCiber estabelecer as ligações com as agências internacionais do setor.
Por último, o Centro Nacional de Cibersegurança, criado em 201459, é a autoridade nacional e coordenador operacional em matéria de cibersegurança e reação a ciberincidentes. Tem como missão contribuir para um ciberespaço seguro, confiável e livre, para isso desenvolvendo atividades dirigidas à população e às organizações.
Inovação
Uma das iniciativas mais inovadoras do Reino Unido trata-se do plano Active Cyber Defence, o qual propõe enfrentar, em parceria com a indústria, de maneira relativamente automatizada, uma porção significativa dos ataques cibernéticos, reduzindo os danos e fornecendo ferramentas de proteção.
Novas regulamentações, a exemplo da UK General Data Protection Regulation, também impactaram de forma positiva a segurança cibernética britânica. Assim como estratégias para aproximar o cidadão e as instituições de órgãos capacitados para fornecer apoio e orientações, entre elas a rede Cyber Protect, responsável por ofertar aconselhamento cibernético para pequenas e médias empresas.
No que tange à inovação, a França conta com o Cyber Campus, um ambiente que reúne os principais atores nacionais e internacionais da área, com o intuito de aproximá-los e promover parcerias, além de um ecossistema de defesa cibernética na cidade de Rennes, onde estão abrigados o COMCYBER, laboratórios, estabelecimentos de ensino superior e multinacionais60.
Outra iniciativa inovadora do Ministério da Defesa francês, em colaboração com a gendarmeria francesa, é a Rede de Defesa Cibernética da Reserva Cidadã - um contingente da reserva especializado, composto por voluntários com notória expertise e interesse. Esta rede é, acima de tudo, um importante vetor de ligação entre a sociedade civil e a militar, além de um instrumento para sensibilização da população61.
Em Portugal, em 2023, foi criada a Cyber Academia and Innovation Hub, a qual tem como missão o desenvolvimento de atividades de interesse público que visam promover a formação, treinamento e exercícios, bem como estimular a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação no domínio do ciberespaço.
Para além disso, a Direção-Geral dos Recursos Humanos da Defesa Nacional desenvolveu uma política de incentivo ao recrutamento, formação e retenção de civis ou militares para atuarem como ciberdefensores, operadores, analistas forenses ou programadores62.
Parcerias
No ambiente internacional, a NCF inglesa participa de alianças como a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO, na sigla inglesa) e a Five Eyes63, estabelece parcerias, também, com países europeus e Estados Unidos. A França, por seu turno, atribui grande importância às relações bilaterais, é ativa nas discussões da Organização das Nações Unidas sobre o ciberespaço, além de participar da NATO, do grupo Ise-Shima Cyber64, entre outros grupos que possuem a cibernética em sua agenda.
Já Portugal aderiu, em 2017, ao Cooperative Cyber Defence Center of Excellence, da NATO, projetado para potencializar o treinamento, a formação e a capacitação. Em 2019, foi instalada no país a principal sede da Communications and Information Academy, onde estão reunidas todas as atividades associadas à educação e treinamento.
Discussão
Destarte, a análise ora empreendida demonstra que o poder cibernético - embora possua suas especificidades e seja distinto dos outros instrumentos do poder militar tradicionais - não está fora da estratégia; ao contrário, transformar os efeitos do poder cibernético em objetivos políticos faz parte da ciência da estratégia contemporânea.
Com relação aos três países analisados, observamos em suas grandes estratégias a percepção comum de que o desenvolvimento tecnológico gera a necessidade de reorganização, adaptação ou modernização das estruturas existentes, sejam de segurança ou de defesa. À medida em que Reino Unido e França possuem documentos recentemente atualizados, o ciberespaço recebe maior atenção ao se comparar com o caso português.
No tocante ao poder cibernético, os três países detêm documentos atuais em que se prevê o uso dessa ferramenta para a consecução de interesses nacionais e incremento da resiliência. O Reino Unido e a França demonstram maiores ambições no que tange a influenciar as regulamentações internacionais e a promoção da governança, ou seja, ambicionam assumir um protagonismo no cenário internacional, enquanto Portugal reforça a importância de pessoal qualificado para atuar no setor.
Nos três casos percebeu-se a necessidade de criar estruturas dedicadas, exclusivamente, ao domínio cibernético. Existem tanto instituições de segurança, associadas à esfera civil, quanto de defesa, associadas ao meio militar. França e Portugal optaram por criar comandos, enquanto o Reino Unido criou uma força, a qual reúne especialistas civis e militares, em uma parceria entre a defesa e a inteligência.
Relativamente às inovações resta claro que os três países têm buscado estabelecer laços com setores da sociedade, em especial, empresas privadas e universidades para apoio e incremento da capacidade de cibersegurança e ciberdefesa. Do mesmo modo que no âmbito internacional, no qual observou-se o empenho dos Estados em constituir alianças e estabelecer parcerias para conter as ameaças cibernéticas transfronteiriças.
O presente estudo ofereceu, portanto, um panorama das ações adotadas por três países europeus para o domínio cibernético, os quais, embora tenham percorrido trajetórias distintas, têm em comum a percepção da importância de se estar preparado para atuar neste ambiente. A estratégia metodológica eleita visou auxiliar o(a) leitor(a) na identificação e catalogação das informações, sem qualquer pretensão generalizante e/ou exaustiva, considerando de extrema valia a produção de outros estudos, os quais possam acrescentar novos dados e casos.