INTRODUÇÃO
Os cuidados paliativos (CP) são cuidados holísticos e multidisciplinares, que se centram no doente e nos seus familiares ou cuidadores, priorizando o conforto e a qualidade de vida, através da prevenção e alívio do sofrimento físico, psicológico, social e espiritual (Portugal, 2012). São aplicados em situações de doenças crónicas, progressivas, complexas e potencialmente ameaçadoras da vida, devendo ser integrados precocemente no curso da doença, idealmente em paralelo com as terapias modificadoras do prognóstico ou potencialmente curativas (Comissão Nacional de Cuidados Paliativos, 2021-2022; Galriça Neto, 2003).
A ideia de que os CP são cuidados exclusivamente de fim de vida é um dos mitos enraizados na sociedade atual, que apresenta um elevado impacto na renitência associada à prestação destes cuidados. A divergência existente entre a morte no domicílio — o local de preferência de morte dos utentes — e o local real em que esta ocorre é algo que também parecer estar associado à recusa na prestação destes cuidados. A implementação de cuidados e medidas políticas ajustadas às necessidades individuais do doente e dos seus familiares/cuidadores, tendo em conta a sua vontade e desejo, é crucial para evitar a tendência exponencial de crescimento desta realidade. Há vários fatores facilitadores da morte no domicílio que têm vindo a ser propostos na literatura. Um dos que parece revestir-se de maior importância é precisamente o desenvolvimento de equipas de CP na comunidade e a integração do Médico de Família nestas equipas, um agente de ligação próxima aos doentes e aos seus familiares, pela prestação de cuidados longitudinais e de proximidade, alicerçados nos princípios de autonomia e respeito pela dignidade (Aguiar, 2012).
O caso relatado neste artigo aborda as convicções dos utentes e das suas famílias subjacentes ao conceito dos CP e o seu impacto na adesão à referenciação para estes cuidados. Concomitantemente, pretende-se demonstrar a importância do envolvimento do médico de família na prestação de cuidados paliativos, particularmente quando o utente recusa o apoio dos CP.
DESCRIÇÃO DO CASO
D.L., uma utente do sexo feminino, com 55 anos, sem antecedentes pessoais de relevo. Com antecedentes familiares de pai que faleceu aos 79 anos com carcinoma da cabeça e pescoço, mãe que faleceu aos 49 anos com carcinoma do útero e tio e primo maternos diagnosticados com carcinoma gástrico.
A 19 de agosto de 2022 dirigiu-se ao seu centro de saúde (CS) por queixas de epigastralgia, sem irradiação, intermitente, com 4 meses de evolução, agravamento pós-prandial, sem fatores de melhoria, associada a perda ponderal (10% do peso corporal), eructações e astenia. O exame objetivo não demonstrou alterações, inclusive um exame abdominal com ruídos hidroaéreos presentes, abdómen mole e depressível, indolor à palpação, sem massas ou organomegalias palpáveis. Foi solicitada a realização de uma endoscopia digestiva alta (EDA).
A 3 de setembro de 2022, retornou ao CS para avaliação do resultado da EDA, tendo-se obtido o diagnóstico de neoplasia invasora do antro, ulcerada e vegetante compatível com adenocarcinoma pouco diferenciado. A pedido da utente, referenciamos para o Instituto Português de Oncologia (IPO).
A 24 de setembro de 2022, recebemos uma carta da consulta de Grupo do IPO, com o resultado de Tomografia computorizada (TC) com irregularidade antro-pilórica e espessamento da parede posterior, com invasão da serosa e adenopatias infra centimétricas, o diagnóstico de adenocarcinoma da pequena curvatura do estômago, pouco diferenciado, localmente avançado e a decisão de grupo de gastrectomia subtotal radical, não elegível para terapêutica neoadjuvante, dado o estado funcional debilitado da utente. Após 5 dias, D.L. foi submetida a gastrectomia subtotal. O exame de anatomia patológica da peça da gastrectomia subtotal relatou adenocarcinoma tubular pouco diferenciado e infiltrativo, que perfurava a serosa e infiltrava focalmente o pâncreas; isolamento de 31 gânglios, dos quais 13 metastizados, havendo referência a crescimento tumoral extraganglionar. A neoplasia foi estadiada como pT4b N3 M0.
A 20 de outubro de 2022, dado o agravamento da clínica, com dor abdominal intensa, realizou-se re-estadiamento com TC e Positron Emission Tomography (PET) que mostraram a presença de lesões compatíveis com carcinomatose peritoneal. Posto isto, o grupo do IPO propôs quimioterapia paliativa.
Durante estes meses, mantivemos o seguimento de D.L. no CS. D.L recorreu maioritariamente com o intuito de renovação do Certificado de Incapacidade Temporária (CIT) e controlo da dor (que evoluiu para dor generalizada). Ao longo das consultas verificamos uma utente emagrecida, fragilizada e chorosa. Porém, sempre que proposta a possibilidade de acompanhamento por Cuidados Paliativos (CP), D.L. recusou, pois negava a evolução e prognóstico da sua doença.
A 27 de janeiro de 2023, dado o prognóstico reservado, agravamento progressivo do quadro clínico e dificuldade na deslocação, a família de D.L. solicitou-nos visita domiciliária. A filha da utente referiu-nos um agravamento das queixas álgicas (tendo recorrido a 200mg de morfina e 200mg de fentanil, sem alívio) obstipação e anúria, desde a noite anterior. Ao exame objetivo verificamos D.L. chorosa, deitada na cama, com soro glicosado em curso, emagrecida (tendo sido impossibilitada a avaliação da pressão arterial dado a braçadeira ser grande para o diâmetro do seu braço), pálida, com uma saturação de oxigénio de 88%, com oxigenoterapia a 2,5 litros por minuto, frequência cardíaca entre os 105 e 114 batimentos por minuto, auscultação pulmonar com hipofonese global, com crepitações na base esquerda, um abdómen duro, com úlcera na região supraumbilical, e maceração da pele na região sacra, sem ferida aberta. Adicionalmente, a filha mencionou-nos que D.L. se encontrava maioritariamente sonolenta e, como cuidadora, possuía dificuldades na administração medicamentosa. Retornamos a sugerir orientação pelos CP, porém, a família de D.L. manteve persistentemente recusa, justificando "temos os meios necessários para cuidar dela…preferimos mante-la em casa para maior conforto…ao aceitarmos isso estamos a desistir" (sic). Após explicado o quadro clínico reservado e de difícil gestão no domicílio, a família pretendeu manter D.L. no domicílio. Contactámos a equipa de CP comunitários a fim de melhorar o conforto e otimizar a gestão terapêutica.
Após 3 dias da visita domiciliária, devido a posterior agravamento do quadro clínico (D.L. não se alimentava ou comunicava e denotara-se agravamento da dispneia), D.L. foi encaminhada pela família para o IPO, após assumirem não estar a conseguir proporcionar-lhe conforto, onde faleceu poucas horas depois.
D.L. era a principal encarregada das decisões relacionadas com assuntos da família, geria o domicílio, finanças e a medicação do marido. Na sequência do diagnóstico, o seu marido assumiu a função de principal cuidador. Convocamos consulta para o marido de D.L. e realizamos um seguimento desde o diagnóstico até/durante o seu processo de luto. Este não só considerava ter incapacidade e dificuldade para assumir esta troca de papéis no seu seio familiar, como se verificou um agravamento da sua Depressão major, previamente diagnosticada. Apresentava tristeza, fadiga, hipersónia e um episódio de ameaça de tentativa de suicídio (que sucedeu durante o decorrer da gastrectomia de D.L.). Referenciamos para consulta de psicologia e psiquiatria urgentes. Posteriormente, o papel de cuidador foi transmitido à filha mais velha do casal. Simultaneamente, convocamos para consulta a filha, que se apresentava exausta e deprimida, havendo necessidade de seguimento no CS e referenciação para consulta de psicologia.
DISCUSSÃO
A eficácia dos CP é proporcional à brevidade com que são integrados no curso da doença (Bouleuc et al., 2019). O médico de família é na maioria das vezes o primeiro contacto aquando o diagnóstico da doença e manutenção do contacto durante a evolução da mesma, sendo isto importante para a correta e atempada referenciação para os CP. Este relato de caso não só reforça a importância da cooperação entre os Cuidados de Saúde Primários (CSP) e CP, como a necessidade de capacitar os profissionais dos CSP para estes.
D.L. e a sua família recusaram constantemente a nossa sugestão de orientação por parte dos CP, tendo-se verificado um agravamento do seu sofrimento e diminuição de qualidade de vida. Porém, o apoio prestado indiretamente a D.L. pelos CP (através do nosso contacto e gestão terapêutica) aliviou ligeiramente este sofrimento.
Um estudo que se focou na experiência dos homens enquanto cuidadores de um parceiro em fim de vida, verificou que estes têm menor probabilidade de procurar apoio psicológico e emocional (muitos por receio de serem "um fardo" para o parceiro caso partilhem o que sentem) e, em alguns casos, dificuldade na troca de papéis como figura cuidadora (Judd et al., 2019). Tal vai de encontro ao que se verificou com o marido de D.L.
Do mesmo modo, já foi demonstrado que o envolvimento precoce dos CP em doentes com diagnóstico de cancros gastrointestinais tem um impacto positivo nos sintomas psicológicos dos cuidadores (El-Jawahri et al., 2017), o que reforça que a família de D.L também teria beneficiado com o apoio destes.
Tanto D.L., como a sua família, associavam os CP a desistência e sinónimo de fim de vida, motivos pelos quais recusaram orientação. Adicionalmente, a família considerou que estes cuidados seriam apenas dirigidos para D.L, não integrando os restantes elementos da família. Estes pensamentos estão em concordância com alguns dos mitos associados aos CP, pela população em geral (Parajuli et al., 2022; Taber et al., 2019; Dixe et al., 2022).
Num contexto atual e de medicina baseada na evidência, com o objetivo de reduzir a carga sintomática e otimizar a prestação dos cuidados de saúde em doentes particularmente vulneráveis, há múltiplos estudos que apontam que a capacitação dos doentes e a consciencialização social para aquilo que são os cuidados paliativos, através da desmistificação destes cuidados como exclusivamente de fim de vida, é crucial para ultrapassar a renitência dos doentes e das suas famílias (Gouveia & Reis-Pina, 2023).
Outro ponto que se reveste de extrema importância, e que tem sido tema nos últimos anos, prende-se com a valorização do local da morte dos doentes. Em Portugal, de acordo com um estudo epidemiológico levado a cabo em 2010, cerca de 51,2% dos doentes preferia morrer no domicílio (próprio ou de familiares ou amigos) (Gomes et al., 2013). Dados que parecem ser ainda mais elevados em estudos mais recentes (Cunha Ferreira & Capelas, 2021). Neste relato de caso, esta realidade é evidenciada quando a família de D.L. negou assistência dos cuidados paliativos, pela ideia errada de que estes não poderiam ser prestados no domicílio, desrespeitando a vontade expressa da doente em manter cuidados de saúde e eventualmente falecer no conforto da sua casa.
CONCLUSÕES
A desmistificação de noções incorretas e planos de intervenção educacional para o aumento da literacia em cuidados paliativos, bem como o desenvolvimento de cuidados e medidas políticas dirigidas às necessidades do doente e dos seus familiares/cuidadores, são fundamentais para a aceitação dos CP.
Com este relato de caso constata-se a importância do MF na prestação de cuidados básicos de medicina paliativa e na sua articulação com os cuidados diferenciados desta área.