INTRODUÇÃO
A dificuldade intelectual e desenvolvimental (DID) é um défice de funcionamento intelectual e adaptativo no domínio conceptual, social e prático, que se expressa antes dos 21 anos de idade (Schalock et al., 2021). Os diferentes graus de severidade da DID (leve, moderada, grave ou profunda), são definidos através das capacidades adaptativas, em detrimento de apenas através do score de quociente de inteligência (American Psychiatric Association, 2013). Por capacidades adaptativas entendemos "conjunto de habilidades conceituais, sociais e práticas que foram aprendidas e são executadas por pessoas em suas vidas cotidianas" (Saviani-Zeoti & Petean, 2008). A sua avaliação pode ser realizada através de observação direta, entrevistas e/ou medidas individualizadas, adaptadas culturalmente e psicometricamente adequadas (Saviani-Zeoti & Petean, 2008). Neste sentido, o comportamento adaptativo parece ser o preditor com maior peso na qualidade de vida (QdV) desta população (Simões & Santos, 2017).
A QdV é definida como a perceção que a pessoa tem relativamente à sua posição na vida, aos seus objetivos, valores culturais e pessoais, padrões e expectativas (World Health Organization Quality of Life Group, 1997), numa variedade de dimensões. A sua avaliação permite direcionar o individuo para a vida que valoriza e aprova (Schalock & Verdugo, 2002). O modelo conceptual da QdV na DID envolve oito domínios, iguais para todos, cuja pertinência deve ser determinada pelo indivíduo: desenvolvimento individual e autodeterminação; direitos, relações interpessoais e inclusão social; bem-estar emocional, físico e material que dão origem a 3 fatores — independência, participação e bem-estar, respetivamente (Schalock & Verdugo, 2002; Simões et al., 2016). Relativamente ao domínio do bem-estar físico, o mesmo está relacionado com a saúde no geral e os cuidados referentes à mesma, competências do individuo para cuidar de si próprio, mobilidade e atividades de recreação, lazer e desportivas (Simões & Santos, 2014).
Apesar de o bem-estar físico ser visto como um indicador determinante de QdV (Saviani-Zeoti & Petean, 2008), as pessoas com DID tendem a apresentar níveis mais elevados de excesso de peso/obesidade, diabetes tipo II, hipertensão e doenças cardiovasculares (Haveman et al., 2010; Krahn & Fox, 2014; O'Leary et al., 2018), o que pode levar a percecionar valores mais baixos neste domínio. Apesar da contribuição de inúmeros fatores para estas condições (Emerson et al., 2014), o sedentarismo surge como um dos fatores de maior risco para a saúde desta população (Bergström et al., 2013; Esposito et al., 2012; McKeon et al., 2013; O'Leary et al., 2018). Como resultado do sedentarismo, as pessoas com DID tendem, também, a apresentar baixos níveis de aptidão física, incluindo níveis mais reduzidos de força, capacidade aeróbia, equilíbrio e flexibilidade (Chow et al., 2018; Wouters et al., 2017) com repercursões ao nível da marcha (Cleaver et al., 2009), controlo postural (Lahtinen et al., 2007), manipulação de objetos (Enkelaar et al., 2013) e conseguinte sucesso na realização de atividade de vida diária (Oppewal et al., 2014).
Apesar das evidências do impacto da AF e EF na prevenção da obesidade, diabetes tipo II, artrite, hipertensão (Bartlo & Klein, 2011), promoção de bem-estar psicossocial (Blick et al., 2015; Crawford et al., 2015; Perić et al., 2022) e físico (Alesi & Pepi, 2017), as pessoas com DID continuam a manter um estilo de vida sedentário, com baixos níveis de prática de AF e EF (Stancliffe & Anderson, 2017; Van der Putten et al., 2017), sendo o fator mais preponderante para o aumento do risco de aparecimento de comorbilidade anteriormente mencionadas (Lynch et al., 2022).
Para além dos beneficios referentes à aptidão física, também têm sido destacados os beneficios da prática regular de AF e EF na QdV desta população, com melhorias significativas ao nível da QdV global (Carbó-Carreté et al., 2016; Pérez-Cruzado & Cuesta-Vargas, 2016; Tomaszewski et al., 2021), saúde geral (Blick et al., 2015), diretamente relacionada com o bem-estar físico (Simões & Santos, 2014) e bem-estar-físico (Carbó-Carreté et al., 2016; Jardim & Santos, 2016). Assim como melhorias no bem-estar geral (Carbó-Carreté et al., 2016; Carmeli et al., 2005, 2008), equilibrio e força musucular (Carmeli et al., 2005; Shields et al., 2008) e competências psicossociais (Blick et al., 2015; Perić et al., 2022).
A capacidade funcional parece estar relacionada com maiores indices de QdV, o que tem sido verificado em alguns estudos, como é o caso do trabalho desenvolvido por Williams et al. (2021), onde os autores verificaram que menores índices de capacidades funcionais estão associados a menor QdV. Corroborando estes resultados, num estudo realizado com idosos, os autores verificaram indices superiores de QdV em idosos com maior capacidade funcional (Costa et al., 2020). Também no estudo realizado por Arnaud et al. (2008), os autores verificaram que níveis mais reduzidos de capacidades funcionais e graus mais elevados de severidade de deficiêcia motora e/ou intelectual, estão associados valores mais reduzidos em diversos dominios da QdV (e.g. bem-estar físico, autonomia).
Desta forma, o presente estudo tem como objetivo analisar a aptidão física funcional e a QdV (nomeadamente no que concerne ao domínio do bem-estar físico) de uma amostra de população com DID, bem como analisar as associações entre estas variáveis.
MÉTODO
Amostra
A amostra foi composta por 37 indivíduos com dificuldade intelectual e desenvolvimental (DID), institucionalizados, com uma média de idade de 42,54 anos (dp= 11,12). Destes, 18 (48,6%) são do sexo feminino e 19 (51,4%) são do sexo masculino.
Procedimentos
De acordo com a Declaração de Helsínquia todos os procedimentos éticos foram assegurados. Numa fase inicial estabeleceu-se o contacto com a direção da instituição onde se pretendia pôr em prática a investigação, tendo sido dados a conhecer os objetivos e as diferentes etapas do estudo. Depois de fornecida a autorização por parte da mesma, foram enviados os consentimentos informados aos participantes e respetivos cuidadores/tutores, onde constavam todos os esclarecimentos sobre o estudo, informando que poderiam desistir em qualquer momento e que a participação não comprometeria a integridade física e psicológica dos participantes, assegurando-se a confidencialidade e o anonimato dos dados. Após a recolha dos documentos assinados, deu-se início ao projeto.
Os instrumentos foram aplicados de acordo com os protocolos, na sala de reabilitação da instituição, por um profissional credenciado para tal, de forma individual, sem estímulos distráteis que pudessem comprometer o desempenho do participante.
Instrumentos
O objetivo da Escala de Fullerton é avaliar os principais parâmetros físicos subjacentes associados à mobilidade e capacidade funcional (Rikli & Jones, 2013) e os seus testes encontram-se válidos e fiáveis para a população em estudo (Cabeza-Ruíz et al., 2019; Hilgenkamp et al., 2012; Wouters et al., 2017). No presente estudo foram utilizados os seguintes testes: levantar e sentar na cadeira; sentado, caminhar (2,44 m) e voltar a sentar e andar seis minutos (Rikli & Jones, 2013). De acordo com os autores, para o teste de "levantar e sentar na cadeira" a pontuação implica considerar o número de vezes que o indivíduo executa a tarefa, corretamente, no tempo máximo de 30 s, já no exercício "sentado, caminhar (2,44 m) e voltar a sentar" o desempenho é cotado através do tempo total da tarefa e, no teste "andar 6 minutos", é registado o total de metros percorrido nos 6 minutos (Rikli & Jones, 2013).
A Escala Pessoal de Resultados (EPR) avalia a QdV das pessoas com DID (Simões & Santos, 2017), tendo sido validada a nível nacional (Simões et al., 2016). A escala assume o modelo concetual de oito domínios, desenvolvimento pessoal, autodeterminação, relações interpessoais, inclusão social, direitos, bem-estar emocional, bem-estar físico e bem-estar material, que agrupados entre si dão origem a 3 fatores, independência, participação social e bem-estar. A EPR é contituída por 40 itens cotados por uma escala Likert de 3 pontos que variam consoante os objetivos dos itens (Simões et al., 2016).
A versão portuguesa da escala foi examinada quanto à sua fiabilidade e validade de critério e de constructo. A fiabilidade foi confirmada, bem como a validade de critério (Simões et al., 2016). A análise fatorial confirmatória veio confirmar a multidimensionalidade do constructo encontrando-se oito domínios e 3 fatores (Simões et al., 2016; Simões & Santos, 2017), com valores de fiabilidade compósita superiores a.70 (Simões et al., 2016).
Análise estatística
Considerando que o tamanho da amostra (n= 37) assumiu-se a normalidade da distribuição, tendo por base os pressupostos da teoria do limite central (n> 30), conforme preconizado por Hair et al. (2019). Posteriormente foi realizada uma análise descritiva, através de algumas medidas de tendência central e de dispersão, incluindo o intervalo de confiança 95%, para a totalidade da amostra.
Foram ainda realizadas correlações de pearson, considerando-se os seguintes intervalos:.10-0,30 (correlação fraca); 0,31-0,50 (correlação moderada); > 0,50 (correlação forte) (Cohen, 1988). Para a referida análise foi assumido um valor de p< 0,05 para rejeitar a hipótese nula (Ho, 2014). Os dados foram analisados com recurso ao software estatístico SPSS v.27.
RESULTADOS
A Tabela 1 apresenta a estatística descritiva da amostra estudada, onde são apresentados os valores dos testes de aptidão física funcionais apresentados bem como o valor do domínio do bem-estar físico, para a totalidade da amostra estudada (n= 37).
n (%) | Mean | |||
---|---|---|---|---|
média± dp | (IC95%) | |||
Idade (anos) | 42,54± 11,12 | (38,83–46,25) | ||
Sexo | ||||
Feminino | 18 (48,6%) | |||
Masculino | 19 (51,4%) | |||
Levantar_sentar (repetições) | 11,35± 4,39 | (9,89–12,82) | ||
TUG (segundos) | 10,63± 5,02 | (8,95–12,30) | ||
Caminhada (metros) | 395,82± 114,98 | (357,49–434,16) | ||
Bem-Estar Físico | 12,30± 1,78 | (11,70–12,89) |
Notas: dp: desvio padrão; IC95%: intervalo de confiança 95%.
No que diz respeito à correlação entre as variáveis em estudo, na Tabela 2, destacam-se as correlações significativas entre o bem-estar físico e o teste levantar e sentar, bem como entre o bem-estar físico e a caminhada.
DISCUSSÃO
O presente estudo procurou analisar a aptidão física funcional e a QdV de uma amostra de população com DID, bem como analisar as associações entre estas variáveis.
Apesar de não haver valores de referência para esta população, que nos permita analisar e comparar os valores medidos através dos testes funcionais, é possivel compará-los com outros estudos onde a amostra são, também, pessoas com DID. Neste sentido, foi possivel verificar que, referente ao teste de levantar e sentar, no estudo realizado por Boer e Moss (2016) os valores obtidos mostram-se superiores aos nossos resultados, com uma média de 14,4 repetições no teste e re-teste. No entanto, quando comparado com o estudo elaborado por Hilgenkamp et al. (2012), onde os resultados obtidos variam, em média, de 9 repetições no teste, 9,3 no segundo teste e 8,3 no terceiro, os valores do presente estudo mostram-se ligeiramente superiores e, identicos aos resultados obtidos por Jacinto et al. (2022). Ao sabermos que o envelhecimento tem influência na deterioração das capacidades funcionais das pessoas (Laurienti et al., 2006) os valores superiores no estudo realizado por Boer e Moss (2016) podem eventualemente ser justificados pela diferença de idades e um indice superior de força, uma vez que a sua amostra apresenta uma média de idades de 33,6 e a do presente estudo 42,54. Já o estudo efetuado por Jacinto et al. (2022) apresenta uma média de idades mais próxima dos nossos dados e Hilgenkamp et al. (2012) uma média superior que, por sua vez, pode ser reflexo dos resultados inferiores neste teste.
Relativamente ao TUG, os resultados obtidos parecem ser inferiores quando comparados com outros estudos (Cabeza-Ruíz et al., 2019; Vereeck et al., 2008), o que pode sugerir que a população em estudo apresenta indices inferiores de agilidade, equilibrio dinâmico e mobilidade (Cabeza-Ruíz et al., 2019).
Nos estudos realizados por Boer e Moss (2016), Cabeza-Ruíz et al. (2019), Guerra-Balic et al. (2015), e Jacinto et al. (2022), os valores obtidos no teste de caminhada de 6 minutos variam entre 513 metros e 578 metros, 449,6 metros e 531,7 metros e 463,08 metros e 457,44 metros no re-teste, 354 metros e 617 metros, respetivamente, sendo estes valores superiores aos obtidos pelos autores. Estas diferenças podem eventualmente estar relacionadas com menores indices de força, coordenação motora e capacidade cardiorespiratória (Gibbons et al., 2001).
Os resultados obtidos relativamente ao bem-estar físico mostram-se semelhantes aos valores reportados por Jacinto et al. (2022).
No que diz respeito à análise da correlação entre as variaveis em estudo, identificaram-se associações entre o domínio do bem-estar físico e os testes levantar e sentar e caminhada, não havendo, por outro lado, associações entre o bem-estar físico e o teste de TUG. Uma vez que o bem-estar físico, um dos domínios de avaliação de QdV, se relaciona com a saúde no geral, com as competências do individuo para cuidar de si próprio, a mobilidade e atividades de recreação, lazer e desportivas (Simões & Santos, 2014), parece fazer sentido as associações entre o bem-estar físico e a caminhada e entre o bem-estar físico e o teste de levantar-sentar, apresentados no presente estudo.
Valores mais elevados de força nos membros inferiores contribuem para a redução dos fatores de risco de queda e diminuição da intensidade da dor (Araújo, 2011). A correlação existente entre o teste de levantar e sentar, que avalia essencialmente a força dos membros inferiores (Rikli & Jones, 2013), e o bem-estar físico parece estar associada a este fator já que a força é necessária para diversas tarefas que requerem mobilidade, como é o caso das tarefas domésticas e caminhadas (Carmeli et al., 2005), estando as mesmas interligadas ao bem-estar físico dos indivíduos.
Relativamente à correlação entre o bem-estar físico e o teste de caminhada, que avalia a capacidade cardiorespiratória e a força dos membros inferiores (Rikli & Jones, 2013), esta parece sugerir a importância destes fatores de aptidão física no presente dominio da QdV, uma vez que a capacidade cardiorespiratória está em parte relacionada com a capacidade de realizar atividades da vida diária (Guralnik et al., 1995), e à saúde em geral (Al-Mallah et al., 2018).
Estes resultados reforçam a importância da aplicação de programas de exercício físico na promoção das habilidades funcionais e QdV desta população. Nesse sentido, Carmeli et al. (2005) realizaram um estudo onde analisaram a influência de um programa de exercício físico em diversas capacidades físicas e, para além da relação positiva entre a perceção de bem-estar e o exercício físico, obtiveram melhorias nas capacidades físicas. Também no estudo elaborado por Pérez-Cruzado e Cuesta-Vargas (2016), onde aplicaram um programa de atividade física, verificaram um aumento na aptidão física e na QV dos individuos com DID. Através da promoção de programas de exercício físico que contenham exercícios de força, é possível potenciar o aumento da mesma, seja nos membros inferiores ou superiores, contribuindo para a diminuição da massa gorda e promoção da massa livre de gordura (Jacinto et al., 2022).
Parece assim importante que sejam considerados, em futuras investigações, a realização de estudos de intervenção (e.g., RCT's) que analisem a influência da prática de exercício físico nas capacidades funcionais e QdV de pessoas com DID, dando enfase ao bem-estar físico, com amostras significativas e diferentes graus de severidade de DID. Para além disso, parece ser pertinente a criação de uma escala que avalie a aptidão física, especificamente adaptada a pessoas com DID, tendo como referência as suas caraterísticas motoras, que permita a correta comparação de dados, uma vez que esta população não apresentam as mesmas caraterísticas e competências motoras que a população geral.
CONCLUSÕES
Apesar das ainda escassas evidências nesta área, são vários os estudos que analisam a QdV nesta população. Nesse sentido, o presente estudo visa contribuir para o desenvolvimento desse conhecimento, destacando-se a correlação encontrada entre o bem-estar, o domínio da QdV e, os testes levantar e sentar e caminhada de 6 minutos. Estes resultados sugerem, que para a presente amostra, determinadas capacidades funcionais parecem estar associadas e influenciar o bem-estar físico.
Estes resultados parecem reforçar a ideia da importância do EF e capacidades funcionais para a saúde, bem-estar e QdV desta população. No entanto e apesar das evidências sobre este tema, esta população continua a apresentar comportamentos sedentários que podem contribuir para o declínio da sua saúde e QdV. Neste sentido, é fundamental que o EF comece a ser visto como uma mais valia para esta população e lhes seja oferecida a oportunidade de conhecer, experimentar e praticar, seja na comunidade, instituições, clubes ou até nas suas próprias casas.