Introdução
A Angina de Ludwig foi descrita pela primeira vez em 1836, pelo médico alemão Wilhelm Friedrich Von Ludwig. Trata‑se de uma infeção difusa, grave, de evolução rápida e potencialmente fatal, que se inicia no pavimento da boca e evolui para o espaço sublingual (superiormente) e submandibular (inferiormente).1-3 A ausência de diagnóstico e tratamento precoces pode conduzir a um desfecho fatal, associado à sua complicação mais grave, a obstrução da via aérea.2 Antes da era dos antibióticos, a mortalidade por Angina de Ludwig variava entre 50 a 60%, rondando atualmente os 8‑10%.4,5 A sua principal etiologia é odontogénica, associada a infeções do segundo e terceiro molares. A diabetes mellitus, a desnutrição, o alcoolismo, a imunossupressão associada ao VIH e ao transplante de órgãos são fatores predisponentes.1,3 A abordagem cirúrgica e o tratamento antibiótico são as armas terapêuticas atuais.1-3,6
Caso clínico
Doente do sexo masculino, 33 anos, sem antecedentes pessoais conhecidos, sem toma de medicação habitual. Recorreu ao Serviço de Urgência por aparecimento de tumefação submandibular dolorosa, com comprometimento da fala e da alimentação, associada a febre, com uma semana de evolução e de agravamento progressivo. Ao exame objetivo destacou‑se a presença de abcesso cervical profundo de provável origem odontogénica, trismo e edema do tecido subcutâneo até à fúrcula esternal. Realizou nasofibroscopia, com evidencia de via aérea permeável e ligeiro edema da prega ariepiglotica esquerda e, posteriormente, tomografia cervical (Figura 1), com evidência de extensa densificação dos tecidos moles do pescoço anterior, que se estendia superficialmente desde o pavimento da boca ao espaço pré‑esternal, com presença de gás envolvendo o corpo e ramo esquerdo da mandibula no espaço mastigador esquerdo e no espaço sublingual esquerdo com uma fina lâmina de líquido, em relação com processo fleimonoso, associado a cáries dentárias homolaterais, que intui provável ponto de partida odontogénico. Foi submetido a drenagem de abcesso submandibular via cervicotomia, sem possibilidade de extubação no pós‑operatório, tendo sido admitido na Unidade de Cuidados Intensivos. Iniciou antibioterapia com Clindamicina e Piperacilina/Tazobactam, com identificação no pus do abcesso de Staphylococcus epidermidis e Streptococcus anginosus, sem isolamento bacteriológico em hemoculturas. Desenvolveu após início da antibioterapia, exantema maculopapular da região anterior do tórax, de agravamento progressivo, atingindo posteriormente o dorso, coxas e região inferior do abdómen, sem visível atingimento das mucosas. Admitida provável toxidermia medicamentosa pelo que suspendeu a antibioterapia em curso e iniciou Vancomicina e Metronidazol.
Associou‑se corticoterapia com Metilprednisolona e anti‑histamínico com Clemastina. Efetuou tomografia cervical de controlo (Figura 2), evidência face ao exame anterior de agravamento, com pequena coleção de líquido e raras bolhas gasosas ocupando o espaço adiposo para‑faríngeo, que se encontrava assimétrico face ao contralateral, com edema e protusão da língua. Foi submetido a nova exploração das locas do abcesso, com saída de conteúdo purulento de loca peri‑glândula submaxilar direita, locas sublinguais esquerda e direita. Melhoria clínica progressiva, com tomografia cervical a documentar evolução favorável do edema.
Foi extubado ao fim de 408 horas de ventilação mecânica invasiva. Antibioterapia suspensa ao 19.º dia, por melhoria clínica, apirexia sustentada e parâmetros analíticos de infecção negativos. O doente assinou alta clínica, contra parecer médico e abandonou seguimento, não comparecendo às consultas agendadas.
Discussão e conclusões
A Angina de Ludwig é uma infeção potencialmente fatal, pelas complicações locais que uma infeção cervical pode acarretar, como é caso da asfixia por edema dos tecidos com obstrução da via aérea.1,7,8 Neste sentido, o foco inicial da abordagem a estes doentes deverá ser sempre no sentido de manter a permeabilidade da via aérea, por vezes com necessidade de entubação orotraqueal, como no presente caso. Em contexto de doença localmente avançada, com edema marcado dos tecidos, torna‑se mandatória a realização de traqueostomia, pela impossibilidade de entubação orotraqueal.1,2,8
Apesar do ponto de partida ser habitualmente odontogénico, à semelhança do caso aqui descrito, existem também casos, embora menos frequentes, associados a disseminação de processos infeciosos com ponto de partida em abcessos peritonsilares ou em parotidite supurativa.6 A flora isolada no pus local é geralmente polimicrobiana, tendo ponto de partida principal, agentes da cavidade oral, incluindo espécies como Streptococcus do grupo A, Staphylococcus, Fusobacterium e Bacteroides.
Em doentes imunocomprometidos, podem ser isoladas Pseudomonas, Escherichia coli, Candida ou Clostridium.8 O início precoce da terapêutica antibiótica é de fundamental importância, devendo a antibioterapia empírica ser realizada com Penicilina G e Metronidazol ou Clindamicina.1,2,4,8 A cirurgia está indicada perante a existência de abcessos locais ou falência da terapêutica antibiótica, consistindo na descompressão dos espaços submandibulares por incisão externa e drenagem.5,7,9
Este caso clínico apresenta‑se como um verdadeiro desafio diagnóstico e terapêutico. É fundamental um elevado nível de suspeição diagnóstica, com vista à redução da morbimortalidade associada à doença. Os avanços e a acessibilidade aos meios complementares de diagnóstico e terapêutica têm contribuído, de forma igualmente importante, para um decréscimo da mortalidade da Angina de Ludwig.