1. Introdução
Novas tecnologias trazem consigo o potencial de transformar positiva e negativamente o trabalho ao atravessar práticas profissionais. No primeiro caso, conforme indicou Bobillier Chaumon (2017), pelo suporte que podem oferecer à realização de tarefas complexas, monótonas ou perigosas, assim como na qualificação dos trabalhadores. No segundo, pela contribuição aos processos de precarização do trabalho, com repercussão na saúde dos trabalhadores ao alterar condições de exercício do trabalho. Mais do que uma simples ferramenta a serviço da tarefa, elas podem se configurar como um instrumento de expressão, transformação e reconhecimento da atividade, participando da revalorização/revitalização do ofício, ou inversamente, apropriarem-se do que configura sua centralidade, ou seja, daquilo que confere sentido para o indivíduo em sua atividade. Os efeitos da digitalização têm sido analisados, segundo Baudin e Nusshold (2018), a partir de diversas perspectivas: a dos riscos da automatização de profissões e empregos; a dos impactos no mercado de trabalho, no emprego e na proteção social; a dos desafios do ponto de vista legal, incluindo a legislação do trabalho; a das implicações nos modos de organização e gestão do trabalho; assim como a das relações sociais e individuais relacionadas à natureza, à estrutura e ao valor do trabalho realizado. Todavia, advertem as autoras, poucas são as indicações na literatura sobre as mudanças provocadas nas práticas reais de trabalho.
Discute-se amplamente sobre o quanto esta nova categoria de tecnologias de informação e comunicação está concretizando um novo estágio de exploração do trabalho, produzindo uma subsunção real do trabalhador pela capacidade de gerenciar remotamente o trabalho em tempo real (Abílio, 2020; Amorim & Moda, 2020). Bem como a exploração massiva de dados tem representado um recurso estratégico para as chamadas empresas-plataforma que fazem uso dessas tecnologias (Valenduc & Vendramin, 2016). Tais companhias têm provocado uma mudança significativa na lógica de concorrência. Isso se dá em grande parte pela redução dos custos com o processo de trabalho, que passa a ser descentralizado por meio da transferência aos trabalhadores de uma série de encargos e responsabilidades - como o uso de suas próprias ferramentas e meios de trabalho - sem, contudo, abrir mão do comando e do controle dos trabalhadores (Fontes, 2017). As empresas se preservam também das restrições legais impostas pelas garantias trabalhistas (Slee, 2017), argumentando que a relação não é de subordinação.
Procurando demonstrar como o trabalho global é governado com base em softwares que o dispersam por meio de servidores de dados, Aneesh (2009) cunha o termo algocracia. O autor chama a atenção de que tal modo de gerenciamento tem como característica não requerer a presença física da burocracia e de contratos de trabalho, apontando as implicações sociais de decisões técnicas daí decorrentes. Isso ocorre na medida em que esses sistemas de governança possibilitam o monitoramento e o direcionamento do trabalho por meio do design algorítmico dos processos de trabalho. Governanças autocráticas são codificadas como um programa, com determinações automáticas das possibilidades de ação. Portanto, no gerenciamento comunicativo da rede de trabalho, a informação pode ir da base para o topo, com redução da necessidade de controle ser realizado por um gerente humano.
Carelli (2017) ressalta que esse modo de gerenciamento, feito a partir do controle por programação, ancora-se na ambiguidade presente entre a ideia da liberdade de “ser seu próprio patrão” e a impossibilidade de emancipação na prática. O que ocorreria seria uma “autonomia na subordinação” (Supiot, 2015 como citado em (Carelli, 2017), p. 141): nesta relação entre empresa-plataforma e trabalhadores estaria presente uma mobilização total dos trabalhadores, que devem estar, a todo momento, não apenas disponíveis, mas também inseguros.
Linhart (2017) argumenta que é justamente a subordinação o que se mantém com a ideia de modernização da gestão trazida pelas plataformas digitais, já que, mesmo transferindo uma série de encargos aos trabalhadores, não afrouxam as limitações impostas a eles. Neste sentido, pode-se dizer que os trabalhadores chamados pelas empresas de “empreendedores” só o são em relação aos ônus da atividade - seus custos e riscos - e que as empresas, embora neguem o vínculo empregatício, atuam na prática como empregadoras, mas o fazem somente no que tange a suas vantagens - lucratividade, sem custos ou responsabilidades com a força de trabalho. A autora defende, ainda, que a construção de alternativas deve partir de uma contribuição real dos empregados na definição de seus métodos de trabalho e dos critérios de seu desempenho, possibilitando a eles o direito e a legitimidade de desenvolverem uma relação de trabalho baseada no profissionalismo e na experiência. Assim, tal construção deveria envolver também cidadãos e consumidores a fim de “contribuir para a definição da qualidade dos bens e serviços, cientes das condições de sua produção” (Linhart, 2017, p. 13).
É ainda necessário lembrar que o trabalho dito informal é estrutural e estruturante da sociedade brasileira e em muitas realidades do chamado Sul Global (Abílio, 2020; Sato, 2017). No Brasil, onde a taxa de informalidade atinge cerca de 40% (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2021) resultante, dentre outros fatores, do alto desemprego (cerca de 14 %), a chamada uberização ou plataformização do trabalho encontra um campo propício para seu desenvolvimento. Tal processo se dá com o aprofundamento e a expansão de alcance da sua dinâmica de desproteção e precarização das condições de trabalho e de vida.
Neste sentido, faz-se necessário não apenas situar as atividades de trabalho em análise nos contextos em que se dão, mas também repensar as categorizações e os conceitos que as delimitam. Para Sato (2017), as situações de trabalho são muito heterogêneas, caracterizando uma verdadeira “polimorfia do trabalho” (p. 162), em que o próprio trabalho informal apresenta-se de maneira muito variada, indicando a necessidade de investigar e intervir “a partir do horizonte de visibilidade do cotidiano” (p. 159).
Apresentamos aqui resultados preliminares de uma pesquisa em curso desde 2019, primordialmente na cidade do Rio de Janeiro, que tem tido como foco o trabalho de motoristas e entregadores que atuam por aplicativos. Em caráter de prestação de serviços, esses trabalhos, que são realizados localmente sob demanda por meio de aplicativos, se dão a partir de solicitações originadas de clientes e cumpridas pelos trabalhadores, com relevante intermediação de empresas-plataforma que retêm um percentual financeiro dessa troca. O objetivo é compreender como se dá essa intermediação e que exigências elas trazem aos trabalhadores na gestão cotidiana das situações concretas de trabalho, interagindo com o processo saúde-doença.
Destaca-se a grande disseminação dessa configuração no mercado de trabalho no Brasil. Atualmente, somente a Uber, conta aqui com 600 mil motoristas, dos 3 milhões associados a ela no mundo (Melek & Boskovic, 2019). Realizando fretes com suas próprias motocicletas e até bicicletas, os entregadores, denominados estafetas em Portugal, se tornaram emblemáticos no processo de precarização do trabalho no Brasil, ganhando destaque no debate social por sua significativa participação nos esforços de isolamento da população durante a pandemia de Covid-19, contrastada com o recrudescimento dos problemas relativos à falta de condições de trabalho e rebaixamento de sua remuneração.
Partimos da compreensão, como sinaliza Schwartz, de que uma organização é um resultado sempre provisório de debates de normas, de um conjunto de atividades humanas, em um contexto histórico atravessado por relações de forças anteriores (Di Fanti & Barbosa, 2016). Nas sociedades capitalistas, onde o poder de mercado tende a ser predominante e as decisões costumam ser tomadas em função do nível de rentabilidade, a dissimetria de poder na produção das normas de trabalho tem um peso importante no processo saúde-doença dos trabalhadores, assim como nas possibilidades de transformação do trabalho.
Este artigo tem como objetivo analisar, em uma perspectiva situada, as exigências, os desafios, as especificidades e as implicações das normas antecedentes que esse modelo de organização e gerenciamento do trabalho por aplicativo impõe, assim como identificar elementos do fazer coletivo que remetam à construção de reservas de alternativas pelos trabalhadores.
2. Perspectiva teórico-conceitual: um olhar ergológico
2.1. Normas antecedentes
A perspectiva ergológica parte da compreensão de que em qualquer atividade humana estão presentes normas elaboradas anteriormente. Ao tentar defini-las, Schwartz (Schwartz & Durrive, 2010) afirma que são “normas antecedentes” que comportam diversas formas de antecipação às quais os trabalhadores se remetem para realizar suas atividades. Esse conceito engloba saberes estabilizados da ordem de um protocolo experimental (o prescrito, os objetivos, as regras, as missões...) e os oriundos da experiência (as culturas de ofício, os know-how, os valores...). No curso da atividade e para levar em consideração os imprevistos (variabilidade, randomização, disfunções...), os protagonistas do trabalho procedem a reajustes de tais normas antecedentes. Entender esse processo é importante para a realização das atividades e para a análise da distância entre as normas e as situações reais do trabalho. Em ergonomia da atividade a distinção estabelece-se entre o ‘prescrito’ e o ‘real’. Em ergologia, “o princípio epistemológico central na produção de saber sobre a atividade humana reside na dialética entre a norma antecedente e a renormalização;” (1) (Nouroudine, 2011, p.79).
Preservando então afinidade com o conceito de prescrição oriundo da ergonomia, o conceito de normas antecedentes remete ao que é dado e exigido ao trabalhador antes que o trabalho seja realizado. Schwartz afirma que as normas antecedentes cristalizam, de maneira codificada, as aquisições de inteligência, da experiência coletiva e dos poderes estabelecidos (Schwartz, 2000). Pode-se dizer que elas possuem ao menos três aspectos principais: 1. são heterodeterminadas, pois se revelam como expressão de um dogmatismo científico amparado em um poder social; 2. são também construções históricas, pois dizem respeito a um patrimônio conceitual, científico e cultural; 3. indicam valores do bem comum, e estão presentes, tanto na dimensão político-jurídica, como também nas situações de trabalho específicas que, por sua vez, relacionam-se ao patrimônio anteriormente citado (Telles & Alvarez, 2004). Durrive e Schwartz (2008) afirmam que as normas antecedentes se definem em relação ao agir humano, a partir das características de anterioridade e anonimato. Isso significa que existem antes da vida industriosa coletiva e que não consideram a singularidade das pessoas que vão agir nas diferentes situações de trabalho. Pode-se dizer então que estas normas, que enquadram a atividade humana, estão em “desaderência” em relação às situações vividas no “aqui e agora”.
Por sua vez, a atividade, por ser efetivamente a forma humana da vida, está sempre ancorada no presente e no “aqui e agora” (portanto, “em aderência”). Ela será, então, o local da encruzilhada de debates entre normas antecedentes por um lado e, por outro, de constrangimentos e disposições a renormatizar. Por conseguinte, é vista como uma matriz de contradições potenciais que não cessa de “fazer história” (Durrive & Schwartz, 2008). Assim, nesse retecer permanente de renormatizações, novas normas antecedentes vão sendo criadas.
Como já apontamos, normas antecedentes também dizem respeito a valores, o que significa que se atribui algum peso às coisas: ao que se estima e prefere, ou pelo contrário, ao que se negligencia e rejeita. Nós não inventamos sozinhos os nossos valores, mas retrabalhamos e singularizamos incessantemente aqueles que o meio nos propõe (Durrive & Schwartz, 2008). Eles se incluem no nosso agir através das normas que o comandam. Entretanto, a relação entre valores e normas nunca é simples e natural. Schwartz e Durrive (2010) nomeiam o polo do político, do “bem comum” (saúde e educação, meio ambiente, por exemplo) como polo em que circulam valores sem dimensão, em um “mundo de valores”, no qual também estão presentes os valores dimensionados, do polo do mercado.
Há, portanto, um debate de normas que conduz a outras maneiras de ver as coisas, a outras perspectivas para viver e agir em conjunto, que circula desde os espaços mais micro, dos nossos atos cotidianos mais imperceptíveis, aos mais macro e gerais da sociedade. Se, por um lado, as normas exprimem o estabilizado, o antecipado, elas também têm vocação para serem colocadas em história e exprimirem as alternativas em reserva, resultantes das renormatizações (Durrive & Schwartz, 2008).
2.2. Reservas de alternativas
As renormatizações permanentes frente às normas antecedentes abrem espaço para novos possíveis. Todo ser vivo está exposto a exigências, ou normas, que são emitidas continuamente e em quantidade no meio em que se encontra. Esse ser vivo, para existir em sua singularidade, tenta permanentemente reinterpretar estas normas que lhes são propostas. Isto, em parte, em função das lacunas das normas deste meio face às inúmeras variabilidades da situação. Fazendo isto, ele tenta configurar o meio como o seu próprio meio. Esse é o processo de renormatizacão que está no cerne da atividade. Isto quer dizer que, em parte, cada um transgride certas normas, ou as distorce, de forma a se apropriar delas a sua maneira. De tal maneira que, cada um também vai sofrê-las como algo que se impõe do exterior (Durrive & Schwartz, 2008). Pode-se afirmar então que o trabalho real não é resultado da estrita aplicação e execução das normas, mas de uma espécie de negociação entre as normas antecedentes e a tendência à renormatização. Portanto, a possibilidade de traçar um caminho pessoal e original está intimamente relacionada à saúde que, como nos indica Canguilhem (2001), significa possuir meios para criar normas próprias. Já o patológico seria a perda dessa capacidade normativa, a impossibilidade de mudança nas situações.
Assim, cada renormatização contribui para a construção de reservas de alternativas que, no âmbito das discussões sobre os valores do bem comum no trabalho, produzem mudanças nas formas de fazer. Entretanto, deve-se estar atento para o fato de que as reservas de alternativas não são um corpus de novas normas completamente formadas e prontas a serem seguidas por todas as partes envolvidas. Por isso, segundo Schwartz, pode haver renormatizações discutíveis, perigosas. Sua socialização permite, portanto, um debate que contribui para conceber a transformação do mundo a se viver (Di Fanti & Barbosa, 2016).
3. Metodologia
A contribuição teórica da perspectiva ergológica leva em conta as singularidades, ou seja, as maneiras como os saberes e os valores se combinam e se desdobram na atividade realizada em um determinado coletivo de vida (Nouroudine, 2011). É preciso, então, associar os protagonistas da atividade de trabalho ao projeto de produção de saber sobre ela. Além disso, para conhecer as normas em sua complexidade, em suas relações com a atividade, três aspectos diferentes, mas complementares, merecem atenção: as normas sobre o trabalho (leis e costumes gerais que o regem), as normas no trabalho (normas antecedentes produzidas nas situações) e as normas como trabalho (renormatização efetuada ao longo da atividade). Portanto, acessar esses diferentes aspectos parece difícil, ou mesmo impossível, sem a colaboração ativa dos trabalhadores no processo de produção de saber sobre o trabalho dos quais eles são, individual ou coletivamente, os protagonistas (Nouroudine, 2011).
Entendemos ainda que identificar as “reservas de alternativas” seria não apenas um desafio, mas também o principal motivo da pesquisa-intervenção no campo de análise da atividade, tendo como horizonte a promoção da saúde no trabalho. Isso porque “o princípio de compreender↔transformar só tem viabilidade na medida em que existem possíveis contidos no curso do real, onde aparentemente só há impossíveis” (Brito & Athayde, 2020, p. 152). Nesse sentido, aposta-se na construção de uma Comunidade Ampliada de Pesquisa-intervenção (CAPI) que incorpora e dá destaque aos saberes investidos na atividade para a gestação de saídas, pistas e caminhos, ampliados com o diálogo coletivo entre diferentes percepções sobre os problemas encontrados (Brito & Athayde, 2020). Aí, a comunidade também pode se expressar a partir de verdadeiras “redes de trocas de experiências, afetos, problematizações e soluções”, caracterizando a construção de um “espaço crítico e sinérgico na relação com o(s) outro(s) e consigo (produzindo sentidos ao trabalhar)” (Brito & Athayde, 2020, p. 153).
Trata-se, então, de uma construção que, respeitando e valorizando os conhecimentos prévios dos trabalhadores sobre sua atividade de trabalho, seus processos saúde-doença e de subjetivação, acredita na potência do encontro e no ato de falar para o outro sobre seu próprio trabalho como experiência que pode descortinar e mesmo contribuir para produzir uma nova realidade. Apostando nisso, privilegiou-se nesse estudo a realização de Encontros sobre o Trabalho - EST (Schwartz & Durrive, 2010), entendidos como dispositivos de formação-pesquisa-intervenção.
É importante registar, ainda, que tais Encontros foram realizados no contexto de um projeto interinstitucional de pesquisa e extensão, desenvolvido desde o início de 2019, e precedidos de uma de análise global do trabalho (Guérin, Laville, Daniellou, Duraffourg, & Kerguelen, 2001) e da construção social da pesquisa junto aos participantes, envolvendo as seguintes etapas:
- Entrevistas e conversas com:
Presidentes de duas associações de motoristas por aplicativo do Rio de Janeiro;
29 entregadores, realizadas antes de a pandemia atingir o Brasil, entre setembro de 2019 e março de 2020, em bairros de classe média alta da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, em locais em que eles aguardam a solicitação dos serviços. A maioria das conversas foram individuais, mas, como esses espaços costumam ser compartilhados por vários entregadores, algumas entrevistas tiveram a participação de trabalhadores em grupo.
- Análise documental sobre as normas antecedentes do trabalho (legislações; termos de uso e outras regras de funcionamento das empresas; e revisão de literatura);
- Aplicação de questionário sociodemográfico com 29 motoristas em evento promovido por associações de motoristas por aplicativos, em novembro de 2019;
- Levantamento sobre manifestações dos entregadores a partir de matérias jornalísticas veiculadas na mídia e em redes sociais, como Facebook, YouTube e Instagram, Twitter realizado entre março e julho de 2020, em todo o Brasil. Tal levantamento identificou mudanças, ampliações e mesmo eclosão de movimentos de coletivização desses trabalhadores nas redes sociais e nas ruas do país.
Este texto centrou-se principalmente na análise acerca de conteúdos que emergiram nos EST realizados em setembro de 2020, através de 6 reuniões por uma plataforma virtual, em função do contexto de pandemia, o que representou também um desafio metodológico. Todos os encontros ocorreram à noite, em horário negociado com os participantes em função de suas jornadas de trabalho. Tiveram duração média de 1h30 e intervalo de 15 dias entre cada um - sendo 3 encontros com entregadores e 3 com motoristas. A proposta apresentada aos trabalhadores foi a de que os Encontros fossem um espaço de visibilidade às atividades realizadas por eles, abordando ainda sua relação com a saúde e os processos de coletivização presentes e emergentes no seu trabalho.
Os participantes foram escolhidos através de contato direto (por telefone, e-mail e redes sociais) ou indicações feitas a partir de fases anteriores da pesquisa. Isso gerou uma diversidade de perfis entre eles, como: tempo de experiência naquele trabalho, gênero, raça, idade, veículo utilizado (motocicleta, bicicleta; carro econômico, carro de luxo), possuir ou não outras atividades de trabalho, ser ou não inseridos em movimentos organizados de trabalhadores e cidade de atuação - já que, ao serem virtuais, os encontros permitiram a participação de alguns trabalhadores de fora do Rio de Janeiro, também indicados ou contatados a partir de perfis em redes sociais.
Ao todo 8 entregadores participaram de ao menos um encontro, sendo 2 mulheres e 6 homens, 5 atuantes na cidade do Rio de Janeiro e 3 na cidade de São Paulo, 5 ciclistas e 3 motociclistas e 6 pessoas ligadas a movimentos de trabalhadores. Os encontros com motoristas, tiveram no total a participação de 5 trabalhadores em ao menos uma reunião, sendo todos do Rio de Janeiro, uma mulher e 4 homens e 3 trabalhadores ligados a organizações coletivas de motoristas por aplicativos.
Entendemos que tal diversidade foi potente no sentido de contribuir para um diálogo em que emergiram muitos consensos, bem como trocas de diferentes saberes e experiências, mas também para a expressão de algumas controvérsias e conflitos, nem sempre de fácil manejo durante os encontros. Observou-se a preocupação de boa parte dos participantes em se colocar, deixando claros seus posicionamentos e opiniões e, algumas vezes, também os dos movimentos organizados aos quais estavam associados. Entendemos que isso demonstra, entre outras coisas, que o dispositivo estava ancorado em relações de confiança, seja com os próprios membros do grupo de pesquisa, seja com a importância dada ao saber institucionalizado das organizações de pesquisa envolvidas. Houve, ainda, uma reafirmação dessa confiança na medida em que a maioria seguiu comparecendo aos encontros agendados.
O diálogo, inicialmente previsto entre trabalhadores e pesquisadores, passou a ocorrer predominantemente entre os próprios participantes, indicando, tal como apontado por Ferreira (2015) sobre a análise coletiva do trabalho, que o fluxo da análise realizada nos encontros estaria “dando certo” (Idem, ibidem, p. 127). É interessante destacar que as discussões se deram entre pessoas que, na maioria dos casos, não se conheciam anteriormente, mas que puderam se sentir à vontade para falar do que lhes é comum. Isto não impediu, entretanto, que deixassem de pontuar controvérsias, diferenças e discordâncias (principalmente ligadas aos métodos de ação frente às nocividades identificadas) e que também estabelecessem ou fortalecessem redes de afeto e trocas em construção entre eles próprios e conosco.
É importante dizer que os participantes tiveram em comum o interesse e disponibilidade de analisar, refletir e transformar o próprio trabalho, implicando-se em um “trabalho adicional” para “mudar o sistema em que se trabalha ou vive, com vista à defesa da sua saúde e da das outras pessoas” (Re & Lacomblez, 2020, p. 17). Trabalho que não é pequeno e que também gera expectativas sobre resultados. Nesse sentido, a pesquisa tem por princípio ético a validação das análises junto aos participantes, seja com um vídeo-documentário (2), seja com outros produtos que farão parte de debates junto a esses trabalhadores e ao público mais amplo (outros trabalhadores e sociedade em geral).
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da ENSP/FIOCRUZ (parecer 3.273.038; CAAE: 08672919.7.1001.5240).
4. Resultados e Discussão
A partir das discussões realizadas, buscamos apresentar a seguir uma análise sobre o modo como as normas antecedentes são apropriadas no cotidiano de trabalho e, em seguida, as reservas de alternativas que emergiram no diálogo.
4.1. Normas antecedentes do trabalho mediado por plataformas
Pensar nas normas antecedentes que estão presentes no trabalho de motoristas e entregadores mediado por plataformas digitais inclui a tentativa de delimitarmos suas características. Qual tipo de heterodeterminação está aí presente? Quais construções históricas, quais patrimônios conceitual, científico e cultural as gestaram? Quais valores do bem comum, redimensionados tanto nas situações de trabalho e em sua relação com o meio externo, quanto na convocação da dimensão político-jurídica e suas correlações de forças?
Primeiramente vale refletir sobre a ideia de que as tecnologias digitais e a racionalidade que aí existe possam administrar a vida e o trabalho das pessoas. A aceitação desta racionalidade tem implicações sobre a valorização do trabalho por eles realizado.
“A empresa, ela dominou o mercado e, quando domina o mercado, começa a ficar ruim a coisa, pelo menos na minha visão, eu enxergo dessa forma. O problema maior é a classe, é o que o [outro motorista] falou, se a gente tivesse uma união um pouco maior, a gente conseguiria fazer doer no bolso deles. Porque o negócio deles é dinheiro, pura e simplesmente. Até porque eles têm bilhões de carros, sei lá, trilhões de carros no mundo inteiro sem ter um carro na garagem. Então se você não tira o seu carro da garagem por alguns minutos que seja, ela vai ter uma pancada muito forte nos cofres dela, e ela vai querer saber por que que isso está acontecendo em determinada região, determinada área, estado ou país “por que que isso tá acontecendo? Por que que a gente tá tendo uma demanda menor aqui?” e ela vai querer saber e vai ouvir, “motorista, o quê que você tá querendo?”. Eu acho que dessa forma, resolvia alguma coisa” (Motorista homem 5, I EST, 03/09/2020)
Nesse sentido, entende-se que a “algocracia” (Aneesh, 2009), como modo de funcionamento e gerenciamento, afasta as empresas das regras legais orientadas por um formalismo jurídico. Essa governança favorece uma subordinação à racionalidade estabelecida pela produção, por intermédio do controle por programação algorítmica, do resultado final a alcançar, das regras e dos métodos de trabalho. Impõe-se, desse modo, nas normas antecedentes, esta espécie de “dogmatismo científico amparado em um poder social” (Schwartz, 2000).
Pode-se afirmar também que esta inflexão para a chamada “algocracia” tem a ver com a construção histórica desse momento do capitalismo financeiro - denominado por alguns autores como capitalismo de vigilância (Zuboff, 2018) - e com o patrimônio conceitual, científico e cultural que ele elabora. Ou seja, coaduna-se a um determinado nível técnico-científico e à história que o gestou. Daí, a incorporação pelo gerenciamento algorítmico de certa racionalidade que, ao longo dos últimos anos, tem se naturalizado nas organizações como práticas gestionárias, tais como: autoavaliação dos trabalhadores e usuários; individualização das responsabilidades e atribuições; valor financeiro pago apenas ao tempo estrito utilizado para a prestação do serviço; utilização dos dados gerados pelos trabalhadores para vender outros serviços e produtos.
Ainda como construção histórica, pode-se evocar a classificação desse tipo de trabalho como trabalho informal e, inclusive, questionar a própria pertinência do uso da noção de “informalidade”, já que esse trabalho é informal somente no que tange às relações de trabalho e não à visibilidade e inscrição social e mercantil das empresas. No caso brasileiro e em muitos países do Sul Global, ele é estrutural e corresponde a um percentual significativo da população trabalhadora. Nouroudine (2011) destaca que a denominação “trabalho informal” tem um caráter etnocêntrico, pois é vista em comparação com o “trabalho formal”, que é tido como modelo. O “trabalho informal’ deve ser denominado um trabalho porque é, como todo trabalho, constituído por normas, valores, saberes. Isso implica acionar uma análise aprofundada das atividades para tentar conhecer a circulação destes elementos.
“Até 2017 eu tinha um emprego, tinha um emprego formal e até emendei em alguns empregos formais, com bons salários e com bons acordos coletivos, né? Que garantiam, além de alimentação e plano de saúde, garantiam previdência privada, garantiam outros tipos de assistência e benefícios, como PRL (Participação nos Lucros ou Resultados) e tal. Foram empresas muito grandes, então, assim, eu entrei na Uber com uma realidade e, pretendo um dia sair dela, e quando sair, sairei com uma outra mentalidade totalmente diferente, né, porque de fato eu tinha o privilégio de ter uma CLT, de ter uma legislação trabalhista que me amparava, em tudo (...) E, assim, aí você vai pra Uber, como o colega colocou: você faz o seu horário, você que tem que controlar sua renda, seus gastos, você acaba tendo noção de uma realidade que você não fazia ideia antes que existia, né? Então, assim, o baque pra quem sempre trabalhou com CLT, de repente chegar pra trabalhar num grau de..., eu não gosto de falar “autonomia”, porque parece que nós somos empresários, né? Que somos empreendedores, mas autonomia no sentido de a gente precisar organizar nossa rotina e de tudo que acontecer, porque você abrir o aplicativo, beleza! Você abriu o aplicativo, tá lá, daí em diante, a única responsabilidade que o aplicativo tem contigo é te passar as viagens, de resto é tudo com você: combustível, seguro, a manutenção do carro, a limpeza do carro, o tempo que você vai rodar, o quanto você pretende faturar, que você “pretende”, né, porque você sai de casa com uma meta x, mas nem sempre você consegue alcançar essa meta x, como tem algumas situações também que você consegue extrapolar bastante essa meta. Então, o choque é bastante grande, sabe?” (Motorista homem 3, III EST, 30/09/2020)
Estas normas são redimensionadas em função de valores que circulam e são debatidos, tanto nos meios externos aos ambientes de trabalho, quanto no convívio entre os pares. No caso do trabalho mediado por plataformas há uma sofisticação na tecnologia usada no gerenciamento algorítmico associado a um controle da disponibilidade dos trabalhadores que remete a formas laborais arcaicas.
Esses debates vão abarcar também a dimensão político-jurídica e em sua correlação de forças, na tentativa de construir um viver em comum em que se possa preservar uma sociedade de direito. Esse jogo de forças está em movimento em diferentes lugares e também no Rio de Janeiro, com o objetivo de regular o trabalho de motoristas e entregadores por aplicativos. Possivelmente, será necessário dar lugar a renormatizações e criar alternativas, pois aparentemente tanto as expectativas dos diferentes trabalhadores envolvidos, como o quadro jurídico em vigor no país, não parecem acolher com pertinência as demandas trazidas pelos protagonistas da atividade.
4.1.1. Exigências em um gerenciamento algorítmico do trabalho
A análise das exigências impostas por essa nova forma de gerenciamento, organização e controle da força de trabalho deve passar pelas especificidades dos aplicativos, assim como do complexo sistema tecnológico que está por trás deles enquanto ferramenta gerencial. Uma delas é a grande capacidade de reter e analisar dados, possibilitando um monitoramento e direcionamento do trabalho em tempo real. Os aplicativos funcionam como ferramentas para manter os motoristas e entregadores à mercê das instruções, expectativas e demandas das empresas-plataformas, limitando a necessidade de coordenação e supervisão humana direta (Duggan, Sherman, Carbery, & McDonnell, 2020). Isso em uma relação contratual que se estabelece de forma volátil, por meio dos termos de uso que os trabalhadores são obrigados a aceitar, caso queiram continuar a “fazer uso” das plataformas.
Nesses termos são atribuídos papéis e responsabilidades aos trabalhadores, aderindo-os a certos critérios de produção e distribuição do valor, como a submissão à medição da produtividade por meio de pontuações, classificações, valorações de reputação e outros meios na produção de dados, que são compilados e analisados para avaliar se a produção está de acordo com os objetivos comerciais e técnicos da empresa. Esses termos costumam ser modificados pelas empresas e informados aos trabalhadores, sem que estes possam interferir na proposição dessas regras, evidenciando uma assimetria de poder e informação (Rosemblat & Stark, 2016). Há apenas duas opções: aceitar ou recusar. E recusar significa banimento imediato da plataforma e, para muitos, perda da sua forma de sustento.
“Para melhorias na relação motoristas-empresa decidimos realizar algumas mudanças no contrato [empresa-plataforma]. Você aceita? Sim ou não?” Qual é o motorista que vai colocar não, se ele pode ser expulso da plataforma? Qual é o motorista que vai colocar “não”, tendo família pra sustentar? Ou então, quer dizer, nós somos reféns do jogo e o aplicativo, como o próprio colega falou, à medida que vai aumentando, vai diminuindo o ganho, vai aumentando o tempo que você tem que ficar online” (Motorista homem 2, EST II 16/09/2020)
As empresas definem também o que pode ou não ser feito e como as atividades serão realizadas. Os motoristas e entregadores não têm liberdade para escolher quais pedidos aceitar ou recusar, ao menos não de forma suficiente para que possam fazer a gestão da sua rotina. Quando cancelam muitos pedidos ou corridas podem ser bloqueados ou deixarem simplesmente de receber novas demandas por algumas horas no aplicativo.
“Aí não basta ter um só aplicativo porque não tá me sustentando aquele aplicativo, então eu faço dois. Aí eu pego duas entregas de uma vez, as duas são caminho pra retirar, mas elas são o inverso pra entregar.... e aí é onde eu tenho que ficar doido. Onde eu pego uma pra correr para um lado e eu tenho que voltar que nem uma bala pro outro pra não ser bloqueado... porque o medo de todos é o bloqueio. Entende? É tipo justa causa se fosse CLT, só que a justa causa que você não sabe nem o porquê que você foi bloqueado. Então, aí você sai igual uma bala pro outro lado e você vira um míssil...onde você pegar você vai explodir, por causa da velocidade. Aí entra o estresse quando você é bloqueado ou então quando você tem algum problema que você não consegue resolver... te dá aquela sensação de impotência, você fica agoniado, você quer descontar em alguma coisa ou em alguém” (Entregador Motociclista 3, de São Paulo, I EST, 01/09/2020)
São as plataformas também que estabelecem o valor de troca dos serviços. Uma questão central debatida nos encontros foi a baixa remuneração e a falta de reajuste dos preços das corridas. Nas discussões com motoristas, apontou-se que o valor do quilômetro rodado tem diminuído nos últimos anos em contraposição aos custos com combustível, seguro e manutenção do veículo, que vêm aumentando. Assim, em alguns dias os custos para trabalhar acabam sendo maiores do que o valor recebido pelas corridas. Realidade que também é percebida por entregadores, que vem tendo o valor de seu trabalho rebaixado, especialmente no contexto de pandemia.
“A grande angústia hoje é justamente a questão da remuneração, porque a gente além de tudo, além dessa pandemia, além de todas as questões, nós somos mal remunerados. Aí a gente sai de casa, faz às vezes jornada de 18 horas - tô falando porque eu já fiz jornada de 18 -, e você chega em casa e vai fazer as contas e pensa “pô paguei pra trabalhar”, você não consegue pagar uma conta quando você chega em casa. Então vai tudo pro espaço, vai a saúde, vai seu patrimônio, pro espaço...” (Motorista homem 3, II EST 16/09/20)
Os motoristas chamaram atenção para formas de controle, via sistema de remuneração baseado em tarifas, realizadas de forma automatizada e pouco transparente. Elas permitem às empresas-plataforma a regulação da intensidade, da qualidade, assim como da duração do trabalho, pela estipulação de regras e comandos, que podem ser modificáveis, via determinação de objetivos e metas, por meio de premiações, bonificações e punições.
“A questão que mais aflige a gente hoje, e eu tenho certeza de que eu posso falar por muita gente - pela maioria, senão por todos e todas as companheiras também -, é a questão da remuneração. Porque a gente tinha lá atrás, como o companheiro relatou aí, um histórico do quanto era pago por quilômetro, mas nem essa garantia hoje a gente tem, né? Porque tanto na 99, quanto Uber..., a Uber começou com isso, depois a 99 também aderiu; passaram a fazer a tal da tarifa dinâmica. A gente não paga mais 25% em todas as corridas, a gente paga hoje uma equação que existe entre o tempo da viagem, o percurso percorrido e aí, dessa equação, sai o que a gente paga. Eu vou falar uma situação pessoal minha, ninguém me contou isso, eu vivenciei, eu tenho os prints pra provar, de uma viagem minha que deu R$27,00 (vinte e sete reais) e a Uber pegou R$14 (quatorze reais). Eu não entendi o porquê disso, fui olhar depois, achando que talvez alguma taxa, alguém pediu o abatimento de alguma corrida, o que acaba acontecendo, um ajustezinho acaba acontecendo, eu fui olhar e não! De fato era a taxa, eu mandei várias mensagens pra Uber e aquele robozinho, que irrita muito a gente, respondeu “não, a nova tarifação da Uber agora é essa”, aí me mandou o descritivo todo da viagem e de fato, eu tinha pago mais de 50% pra Uber, e com o argumento de que “não, você foi rápido, você conseguiu pegar mais passageiro, logo, você tem que receber menos” (Motorista homem 3, EST II, 16/09/2020)
Os smartphones dos trabalhadores são usados para monitorar seus movimentos, indicando sua velocidade e posição, assim como dados da realização de suas atividades, dentre as quais o número de horas de trabalho, as tarefas realizadas, o cumprimento dos prazos e, quem sabe, até as interações que estabelecem com seus clientes, como sugerido por um motorista entrevistado.
Pelo controle que proporcionam da oferta de mão de obra, os dados levantados, incluindo os produzidos pelos usuários e clientes, são usados para influenciar o comportamento dos trabalhadores por meio de incentivos econômicos (Duggan et al., 2020). Isso permite a alocação dos trabalhadores em determinadas áreas, assim como os estimula a estender sua jornada de trabalho quando interessa às empresas atender a um aumento da demanda em datas e horários específicos.
“Os aplicativos de entrega, eles agem da forma que eles querem, eles te incentivam a correr, dando bônus. Ele fala que só faz a intermediação do serviço, mas não é. Eles usam de artifícios, onde eles têm atitudes patronais e escravistas. Por que eu tô dizendo isso? Toca uma corrida e ela não te é interessante, seja pelo valor ou pela distância, às vezes é muito longe para você ir lá e não compensa, você recusa aquele serviço. Eu tô falando num âmbito geral dos aplicativos como um todo. Eles têm um bloqueio branco. O que que acontece? Você não pega aquela corrida, aí o aplicativo fica sem tocar para você por 1, 2, 3 horas... te bloqueiam por 1, 2, 3 dias. Então, assim, ele te obriga” (Entregador motociclista 8, I EST, 01/09/2020).
“Hoje eu trabalho só na parte da manhã, (...) e finais de semana quando tem alguma [corrida] dinâmica. Esse final de semana teve que cumprir meta de 80 corridas para ganhar cento e cinquenta reais a mais, e eu consegui bater a meta! Ganhei os cento e cinquenta a mais, mas foi bem doloroso né, foi bem doloroso porque assim, a gente passa às vezes 8 horas sem poder sair de dentro do carro” (Motorista mulher 1, III EST, 30/09/2020)
Esse sistema de remuneração vinculado às flutuações da demanda com base na determinação algorítmica do aumento ou rebaixamento de preços (usando a remuneração para dirigir o comportamento dos trabalhadores) configura uma forma-desafio de controle do trabalho com base em estímulos à produtividade, denominado por Scholz (2013) de gamificação do trabalho, em que o trabalhador se vê na necessidade de arriscar-se, podendo ou não obter as vantagens prometidas. Essa estratégia da gamificação utiliza a lógica do jogo para estimular os trabalhadores a ficarem disponíveis e conectados o maior tempo possível.
Alguns motoristas indicam, por exemplo, que por ficarem muito tempo esperando corridas e não receberem nenhuma chamada, acabam por aceitar viagens que pagam valores ainda mais baixos que os habituais.
“Você ficar 18 horas, 20 horas, 24 horas pilotando, tendo ainda que dar conta da sua vida pessoal, né? Porque tem gente que tá ali na pista, mas a família tá em casa, então tem outras questões que a gente tem que ver. É algo, de fato, bastante difícil. Cada vez mais camaradas rodando mais e recebendo menos. E as companhias, as empresas, elas não têm problema nenhum em lançar modalidades de viagem mais em conta, como a 99 tem o tal de “Poupe”, que é um absurdo… e você, às vezes por não ter ninguém..., - porque não toca! - vocês não fazem ideia do desespero que é você estar na pista às vezes meia-hora, 40 minutos, às vezes 1 hora e não toca nada! Aí toca o “Poupa”, toca e pega, vai embora, entendeu?” (Motorista homem 3, III EST, 30/09/2020)
Vale ressaltar que os incentivos são variáveis para diferentes trabalhadores. E as promoções podem ser, como no caso descrito acima, dependendo da oferta e demanda, direcionadas exclusivamente para os clientes por meio da redução da remuneração dos motoristas.
Outra forma de direcionamento do comportamento dos trabalhadores é a indicação de sugestões para o exercício da atividade como, por exemplo, indicações de trajeto, de condições do veículo e de comportamentos a adotar na relação com os clientes. Há indícios de que elas são muito mais imperativas do que mero aconselhamento.
“Sabe o que é interessante, cara? Uma das coisas que é muito... É até engraçado nos aplicativos... que assim, é quando o motorista interage ou não com o passageiro e de que forma. Porque, se você conversa, aí às vezes chega uma mensagem no seu aplicativo “olha, se você conversar muito com o passageiro pode ser desagradável” e tal, você acaba tomando um puxão de orelha… Se você conversar pouco, uma hora ou outra você vai receber uma mensagem do aplicativo lá “olha, conversar um pouquinho mais, pode fazer bem à viagem!” Caramba!” (Motorista homem 5, III EST, 30/09/2020)
Isso sem contar com os modos algorítmicos de avaliação e classificação dos trabalhadores embutidos nos aplicativos, trazendo a possibilidade de medir e avaliar, em tempo real, a realização das tarefas. As informações são usadas pelas empresas para verificar a qualidade do serviço prestado, podendo gerar sanções. Os trabalhadores devem se esforçar para manter as classificações acima da média, por um cálculo e parâmetros sob o controle unilateral das empresas, sob o risco de serem banidos das plataformas, promovendo um permanente estado de insegurança. As avaliações recebidas pelos usuários e clientes se configuram em grande fonte de preocupação para os participantes da pesquisa, já que possuem baixo controle sobre os fatores que envolvem essa avaliação.
“Quando a gente sofre algum tipo de assédio e a gente comunica para o aplicativo, qual é a postura que o aplicativo tem com o motorista? É simples: “olha, você não vai mais atender esse cliente. Nós colocamos aqui na plataforma e você não vai mais atender esse cliente”, mas aquele cliente tarado vai continuar na plataforma pra cantar outras pessoas. Agora, e se acontece ao contrário? De um cliente inventar e falar que um motorista falou alguma coisa, o motorista é simplesmente banido! Essa é a realidade, e você só tem noção disso depois que você é banido e você fica como eu, sem entender o quê que aconteceu” (Motorista homem 2, II EST, 16/09/2020)
Outro ponto é a falta de oportunidade de terem suas versões dos fatos consideradas pelas empresas-plataforma. O contato se dá normalmente via aplicativo ou por e-mail com representantes de suporte muitas vezes gerenciado por terceiros, com pouco espaço para que a complexidade das situações de trabalho seja considerada. Os trabalhadores relatam dificuldade de contato humano, inclusive em situações emergenciais, como acidentes e problemas com passageiros e entregas. Há empecilhos para obter auxílio e muitas vezes são respondidos com mensagens automáticas, expressando a falta de escuta para os problemas concretos do cotidiano de trabalho, ampliada com a redução de efetivos das empresas durante a pandemia.
“Aí consegui falar de novo com o suporte, avisei que esse meu amigo tinha caído, que ele tinha sofrido um acidente, e o suporte nem se preocupou em perguntar se ele tava bem, só falou: “como é que tá a entrega?” (Entregador ciclista 4, I EST, 01/09/2020)
4.1.2. Regulamentação do trabalho de motoristas e entregadores por aplicativos
Também como norma antecedente destaca-se o caráter estrutural do chamado trabalho informal. Esta modalidade de trabalho se expande, tornando-se cada vez mais regra e deixando de se limitar a “territórios periféricos”, onde sempre foi a realidade dominante (Abílio, 2020). Nesse sentido, o conceito de polimorfia do trabalho, procura dar visibilidade ao chamado “trabalho informal”, abarcando atividades que não necessariamente se enquadram como trabalho regulado e que muitas vezes sequer são reconhecidas como trabalho (Sato, 2017).
O debate com os trabalhadores participantes do estudo apontou que há uma diversidade de formas de inserção no trabalho por aplicativos. Desde tê-lo como única fonte de remuneração, até como algo complementar e intermitente, conjugado com outros meios de obtenção de remuneração e que se configura como uma opção possível, especialmente durante a crise econômica ampliada com a pandemia:
“É se virar nos trinta, meu bem! Tem que se virar, é pandemia. Eu tô fazendo sopa, tô fazendo açaí, tô fazendo tudo que posso!” (Motorista mulher 1, III EST, 30/092020)
“Eu vendo canecas também, se alguém precisar. Eu vendo canecas personalizadas, quem precisar, eu tô vendendo” (Motorista homem 3, III EST, 30/09/2020)
“Se precisar, o design eu faço, tá? No photoshop” (Motorista mulher 1, III EST, 30/092020)
“E aí entra aquela situação ‘ah eu estou desempregado’ e aí o aplicativo se esconde, né... eles inflam os números, falam que estão dando emprego para 400 e sei lá quantos milhões de pessoas, mil pessoas, e aí eles pegam e vêm com essa conversa. Só que assim, esse serviço já tinha antes deles chegarem, só foi substituído. Saiu a empresa, entrou o aplicativo, então a gente sempre teve trabalhando na rua. Eu tenho 19, o aplicativo tem 7 anos...19 anos de rua, né? Então já tinha o emprego, não foram eles que inventaram o emprego, entendeu? Então é um subemprego, porque agora eles precarizaram, você agora não tem direito nenhum de pôr na justiça. E aí vem aquele detalhe: “estamos tirando trocentas pessoas do desemprego”, mas você está tirando do desemprego mesmo ou você só tá mantendo ela em movimento? Porque muitos você tá tirando e ele tá pagando pra trabalhar, porque quando ele toma multa ou quando chega os gastos da moto, a hora de fazer a manutenção, ele não tem dinheiro...por quê? Porque ele usou o dinheiro da manutenção” (Entregador motociclista 3, I EST, 01/09/2020)
Importante registrar que, muitas vezes realizado simultaneamente ao trabalho regulado, “o bico pode desempenhar papel importante na composição do orçamento familiar, e não ser apenas uma atividade esporádica, mas, sim, atividade tão estável quanto à do emprego, embora desprotegida” (Sato, 2017, p. 164).
Muito evidenciada nos encontros pelos trabalhadores foi a questão da invisibilidade relacionada à estigmatização e preconceito presentes em ambas as categorias. No caso dos entregadores, em sua maioria jovens negros (Abílio, 2020), são comumente associados à baixa qualificação e nível social e vistos como não dignos de confiança:
“Bom, existem duas coisas... assim, que (...) recebemos da sociedade: ou você é um pobre coitado, que tá ferrado, que precisa de dinheiro a qualquer custo e você vai fazer qualquer coisa - visto que o entregador não é um cara que faz qualquer coisa, isso também é um emprego! - E tem a questão de: ou você é um pobre coitado, ou você é um cara que vai roubar lanche ou vai fazer alguma besteira. (...) Essas são algumas das visões que os usuários de aplicativos têm da gente” (Entregador ciclista 3, I EST, 01/09/2020)
De tal maneira que, no contexto de um país marcado por uma longa história de escravidão e racismo estrutural (Almeida, 2019), tais atividades envolvem trabalhadores culturalmente invisibilizados, vistos como subalternos, marcados pela ausência de reconhecimento profissional e social. Uma das faces importantes dessa invisibilidade revela-se na insuficiência da regulação do trabalho e da garantia de direitos sociais, características marcantes do trabalho uberizado.
Por meio da argumentação de que são meras “empresas de tecnologia” e “mediadoras” entre prestadores de serviço e consumidores, a Uber, Rappi e outras empresas-aplicativos, instalaram-se em vários países ao redor do globo, cuja legislação não abarcava, ainda, tal morfologia de trabalho. Isto é, não havia - e ainda não há em algumas regiões - um arcabouço legal que permitisse o trabalho por aplicativos (nas condições propostas pelas empresas) ou que o proibisse, compondo assim as brechas ideais para que os aplicativos se colocassem em certos territórios (Slee, 2017). Pode-se pensar em uma lógica de exploração e dominação: as empresas exploram a mão de obra e consequentemente, dominam o território, gerando novos mercados ao seu redor, novas dinâmicas de mobilidade, de relações de trabalho etc. Com isso, diversos tribunais mundo afora passam a discutir a regulamentação ou não do trabalho por aplicativo nos países, estados e/ou municípios, e que exigências fazer, caso se opte por regulamentar esse trabalho.
Na América Latina, a primeira cidade a regulamentar a Uber e outras empresas por aplicativos foi a Cidade do México, em 2015. No caso do Brasil, a regulamentação do trabalho por aplicativos de transporte se deu em 2018 - com a alteração da Lei de Mobilidade Urbana nº 12587/12 (3) - a partir da Lei nº13.640/18 (4), também conhecida como a “Lei do Uber”, que atribui aos municípios e ao Distrito Federal a decisão de regular e fiscalizar o então denominado “serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros”. A norma em questão também determina que somente os motoristas que forem contribuintes do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) estão autorizados à realização dessa atividade.
No mesmo ano, a partir do Decreto 44399/18 (5), o serviço de transporte por aplicativos foi regulamentado na cidade do Rio de Janeiro. Entre outros pontos, a lei determina que os motoristas comprovem a ausência de antecedentes criminais e, é válido ressaltar, que essa informação não é solicitada para o cadastro de passageiros nos aplicativos, o que foi relatado por alguns motoristas como um fator de insegurança e sensação de injustiça. E também é determinado aos motoristas que contratem o seguro de Acidentes Pessoais a Passageiros (APP), fazendo com que acabem tendo que desembolsar um valor ainda maior para realização de sua atividade.
“Antes de ser [motorista de] Uber, o meu seguro era R$1800-1900 reais, depois que eu passei pro aplicativo, eu tô pagando R$3.600 de seguro. Então, assim, quase dobrou, para eu poder ter segurança e dar segurança pra quem tá junto comigo, e eles não se responsabilizam por nada disso, isso é tudo nós que pagamos. E quem tá do outro lado, não enxerga isso, não sabe disso” (Motorista mulher 1, EST I, 03/09/2020)
Em meio à pandemia da COVID-19, foram instituídas regras adicionais para esse trabalho enquanto durasse o período de calamidade pública. No Rio de Janeiro, direcionada tanto às empresas que gerenciam os aplicativos de transporte individual de passageiros e de entrega em domicílio, quanto aos motoristas e entregadores, a lei nº 8817/20 (6) dispõe sobre medidas de proteção e segurança a serem adotadas e obriga as empresas a distribuírem máscaras e álcool em gel (e qualquer outro Equipamento de Proteção Individual necessário) para os trabalhadores.
No lado dos entregadores, ainda sem legislação específica, a única regulamentação que os contempla parcialmente é anterior à chegada das empresas-plataforma ao país e diz respeito, dentre outras atividades realizadas com motocicleta, ao exercício da atividade de moto-frete - lei nº 12009 de 2009(7). Vale ressaltar que: 1) a lei contempla apenas os motoboys, não incluindo os ciclistas; 2) a lei não abarca as especificidades do trabalho, de seus novos modos de organização e riscos associados. Já anteriormente precarizado (amplamente explorado por empresas terceirizadas) e considerado, inclusive legalmente, trabalho de risco, conforme a lei nº12997 de 2014 (8), com a vinda dos aplicativos, as atividades dos motoboys passam a envolver uma série de novos elementos.
Assim, o processo de uberização deste trabalho contribui para um rebaixamento de sua valorização profissional - configurando um processo de “amadorização” do trabalho, conforme aponta Abílio (2020) -, com menor remuneração (após um período inicial de aumento, quando da chegada das empresas no país) e ampliação de riscos e inseguranças de todo tipo.
“A gente já é uma profissão de risco, começa por aí, e nunca nada foi mil maravilhas, só que, infelizmente, o que a gente vê é que cada dia piora. Quando você tinha maus patrões que pagavam mal etc, um subemprego, ou seja lá o que for, você tinha a justiça do trabalho, você tinha o registro, você tinha uma seguridade social, querendo ou não, você tinha acesso talvez um pouco menos difícil à saúde. E, a partir do momento que o advento da tecnologia, a vinda dos aplicativos, essa nova forma de renda, de relacionamento, ou seja lá o que for, não tendo nenhum tipo de regramento, não tendo quem possa acolher, a gente acaba sofrendo tudo isso que a gente já disse, né? Além do nosso cotidiano já ser uma profissão de risco, de tá exposto, né, a risco de acidente (...) a gente sofre um estresse psicológico enorme” (Entregador motociclista 8, II EST, 17/09/2020)
Os modos de gerência dos aplicativos, inclusive, vão na contra mão do determinado na Lei nº12436/2011(9), que veta as empresas, ou tomadoras de serviço de entrega por motocicleta, de estabelecer práticas que estimulem o aumento de velocidade: muitos entregadores relatam que o cálculo do tempo de entrega influencia na permanência do trabalhador no aplicativo - se não chegam dentro do tempo estipulado podem estar sujeitos ao “banimento branco”, e deixam de receber corridas por longos períodos de tempo.
Ao serem considerados serviços essenciais durante a pandemia da COVID-19 e devido à visibilidade trazida, principalmente, pelas mobilizações dos entregadores como as manifestações nas ruas e nas redes sociais, nomeadas “Breque dos Apps”, ocorridas em diversas cidades do país em julho de 2020 - que ganharam forte expressão nas redes sociais - houve um crescimento no número de projetos de lei que buscam dar conta da falta de regulamentação do trabalho de entregas por aplicativo. Nota-se, porém, que inicialmente esses projetos se restringem ao contexto de estado de calamidade pública que o país enfrenta atualmente devido ao novo coronavírus.
Tanto a nível nacional, quanto estadual e municipal, ainda não se tem uma regulamentação concreta em relação ao serviço de entregas por aplicativos, e, mesmo assim, as empresas seguem seu funcionamento sem muitos entraves, ditando as “regras do jogo”, sem ouvir o que esses trabalhadores têm a dizer. Já no que diz respeito ao serviço de transporte por aplicativos, embora se tenha uma regulação e fiscalização federal e municipal, muitas das pautas reivindicatórias da categoria sobre a (in)segurança urbana e o reajuste do valor das tarifas não foram contempladas. Com isso, presenciamos, como consequência da uberização do trabalho, um aprofundamento da precarização dos vínculos e direitos, sem que o trabalhador tenha possibilidade de negociar suas condições e o valor de seu trabalho.
4.2. Reservas de alternativas no trabalho de motoristas e entregadores
Os debates de normas aqui apresentados conduzem a outras maneiras de ver as coisas, a outras perspectivas para viver e agir em conjunto. Tanto sob um aspecto mais macro de possibilidades, de criação e aprovação de leis, por exemplo, até o mais micro dos atos cotidianos, portanto, os mais imperceptíveis. Nesse processo há uma permanente produção de renormatizações que, por sua vez, serão novamente colocadas em debate, fazendo parte de uma dinâmica, que nos reenvia ao viver em conjunto e aos desafios da democracia (Di Ruzza, Lacomblez, & Santos, 2018).
Considerando o cenário de inseguranças, incertezas e condições precárias para a realização do trabalho apresentado, foram identificadas algumas reservas de alternativas às quais tais trabalhadores recorrem para enfrentar o trabalho real. A miríade de alternativas contempla, por exemplo, a criação de redes de sociabilidade de apoio nas mídias sociais, para informação e ajuda, tentando suprir, em certa medida, o suporte que deveria ser dado pelas empresas em situações de acidentes e roubos, por exemplo, nas quais os próprios trabalhadores se unem para auxiliar um colega vitimado e sua família.
As redes de sociabilidade cumprem a função de acolher e ajudar as pessoas que delas fazem parte. Sato (2017) ressalta a importância de tais redes para dar sustentação e possibilitar a manutenção do trabalho não protegido, sendo um potente meio de disseminação de informações e estímulo ao aprendizado conjunto. Essas redes funcionam também como espaços de mobilização política para atos e manifestações nas ruas.
“Motorista que trabalha no YouTube tem uma responsabilidade muito grande em cima disso que a gente tá falando, por quê? Porque a gente não consegue voz né, como a gente já vinha falando aqui, e a gente briga com uma multinacional que se a gente tentar paralisar, ela vai fazer de artifícios pra outros não paralisarem, ou ninguém, né? E aí, o quê que a gente pode fazer? A gente faz bastante barulho na internet, a gente traz um assunto de relevância, de segurança, ou de tarifa, alguma coisa, porque se você parar pra analisar, motorista gosta de reclamar, e se você faz ele reclamar na internet e isso viraliza, isso ganha visibilidade, isso vai chegar em outros meios de comunicação, vai chegar num jornal, vai chegar num blog, vai chegar em algum lugar e vai chegar nos aplicativos, e vão começar a ver que isso tá incomodando. E se a gente conseguir fazer isso chegar num veículo de comunicação de maior relevância ainda, num jornal ou sei lá, na TV, como a gente já conseguiu outras vezes, o aplicativo resolve fazer reunião com os motoristas” (Motorista homem 5, EST I, 03/09/2020)
Esses saberes acumulados da atividade de trabalho, presentes nos instrumentos, técnicas e dispositivos coletivos expressam as reservas de alternativas dessas categorias (Schwartz, 2003). Estratégias para superar uma autonomia oferecida e imediatamente negada pelo dever de aliança e de cumprimento dos objetivos traçados na programação, que é realizada de forma unilateral pela empresa (Carelli, 2017).
“(...) eu vejo que é uma luta ampla, a gente tem que lutar pela regulamentação legal, as empresas...alguma responsabilidade elas precisam ter com os entregadores e, ao mesmo tempo, acredito que os próprios entregadores se unindo, criando coletivos, podem desenvolver o seu próprio aplicativo de entrega com valores mais justos” (Entregador ciclista 2, I EST, 01/09/2020)
“Eu particularmente tenho investido, e a gente tem propagado isso como associação, inclusive em parceria com o SENAC, a gente tá investindo em cartões e colocar os nossos serviços disponíveis em rede social, prospectando clientes para que nós possamos galgar clientes para que nós sejamos remunerados por um valor justo, não tô falando nem que é a mais, nem que é a menos, é justo. E eu tô conseguindo vários outros amigos... nós aqui em São Paulo temos aproximadamente, que eu conheço, 5 ou 6 grupos grandes de WhatsApp em que todo mundo compartilha serviços. Eu tenho um cliente que eu não consigo atender eu passo pro amigo e ele vai lá e faz e essa é uma forma da gente tentar se livrar um pouco desses aplicativos, para não ficar presos a ele” (Entregador motociclista 8, II EST, 17/09/2020)
A utilização das redes sociais tem sido um importante recurso para a construção de reservas de alternativas, como no caso da organização de manifestações. Inclusive, há movimentos de mobilização junto ao poder público (legislativo e executivo), com a presença de representantes da categoria e até mesmo a partir da apresentação de candidaturas de vereança para as eleições municipais de 2020.
“Dá até para entender certas pessoas, tem gente que tá realmente afundado nas dívidas, que tem filho em casa, pequeno, não sei o quê, não vai parar. Você pode fazer a mobilização que você quiser, e essa mobilização, como o sistema é automatizado, ele vai deixar as corridas mais caras, é uma oportunidade pra você fazer mais dinheiro, já que você tá reclamando de tarifa. Você vai ficar “coçando a sua mão” pra poder ligar o aplicativo e rodar naquele momento que um monte parou pra poder fazer reivindicação, geralmente lá na câmara, né? Dos vereadores. E tudo vermelho no mapa [sinalizando preço dinâmico] um monte vai ligar, e esse “um monte” faz diferença, porque são poucos, mil motoristas que ficam na Cinelândia, não fazem frente a todos os outros que resolveram ligar o aplicativo nesse momento de tentativa de paralisação, justamente para reivindicar melhores tarifas, melhor segurança, melhor tudo mais” (Motorista homem 5, I EST, 03/09/2020)
5. Considerações finais
A aproximação às normas antecedentes e às reservas de alternativas presentes no contexto estudado provocaram algumas reflexões e aberturas para novos possíveis. O processo de uberização do trabalho é fruto da aplicação de um modelo de negócio que vem se revelando como tendência no capitalismo financeiro atual.
Esta “forma” organizacional, e a ideia de modernização do gerenciamento trazido pelas plataformas digitais, é conveniente aos consumidores acoplando-se ao modelo de sociedade atual pautado na eficiência e individualismo, principalmente para usuários de grandes cidades, que precisam se deslocar e receber produtos com conforto e rapidez.
Assim, a sofisticada e complexa tecnologia de ponta que está presente no gerenciamento algorítmico encontra nas diferentes modalidades de “informalidade” das relações de trabalho condições para a exploração e precarização. Este cenário convoca a necessidade de regulação através da criação de leis que possam dar conta desta nova realidade, pois o arcabouço jurídico pertinente à legislação trabalhista, tanto no Brasil, quanto em diferentes países, tem mostrado sua insuficiência e inadequação para regrar estas novas relações. Nesse contexto, é importante também ressaltar as diferenças significativas entre os países no que tange às garantias dos direitos, mesmo considerando a diversidade de inflexões liberais e ultraliberais.
É importante ainda apontar alguns traços do nosso olhar para esta realidade, a partir da perspectiva ergológica. Trata-se da realização de uma pesquisa-intervenção e, nesse sentido, interessada em contribuir direta ou indiretamente para a gestação desses novos possíveis. Ainda que se possa dizer que com alcance limitado, a aposta na potência do encontro, enquanto espaço que desvela e viabiliza a construção de reservas de alternativas, possibilita a inspiração para a criação de novas normas antecedentes. Assim, nossa perspectiva é a do fortalecimento de estratégias de coletivização da reflexão, análise e discussão sobre o trabalho com vistas à sua transformação, à promoção da saúde e à conquista de direitos.
Deve-se indicar também que o material produzido, muito recentemente, e apresentado neste texto, ainda precisa ter suas consequências “tratadas”, com certo tempo necessário à sua “decantação” seja em nossos corpos-si de pesquisadores, seja nos dos participantes. Nesse sentido, há perspectivas de continuidade de diálogo e da pesquisa, com destaque para a divulgação de um vídeo-documentário, pautado especialmente pelos encontros realizados, concebidos como uma ferramenta útil para tal gestação.
Por fim, concordamos com Linhart (2017) quanto à proposição de que a construção de alternativas para a definição, tanto de métodos de trabalho, quanto dos critérios de seu desempenho, deve partir de uma contribuição real dos trabalhadores. Isso vai possibilitar que desenvolvam uma relação de trabalho menos injusta, baseada no profissionalismo e na experiência. Esse cenário poderia também envolver os demais cidadãos e consumidores, na construção conjunta do que se espera como qualidade dos bens e serviços, considerando as reais condições de sua produção. Parece-nos que a pesquisa que vem sendo desenvolvida e que apresentamos aqui traz elementos para esta construção. Entretanto, como nos alerta Schwartz (Di Fanti, & Barbosa, 2016), deve-se estar atento para perceber que as “reservas de alternativas” não são soluções novas e prontas para serem aplicadas como se fossem obrigatoriamente as melhores. Nesse sentido, ressalta-se a importância do debate social a seu respeito, visando a transformação do mundo a se viver.