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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.19 no.1 Porto jun. 2023  Epub 01-Jul-2023

https://doi.org/10.4000/laboreal.20741 

Datário

13 de outubro de 2013: Assinatura da Convenção de Minamata sobre Mercúrio - Análise a partir da realidade dos mineiros que trabalham na mineração aurífera artesanal e em pequena escala em Madre de Dios, no Peru

13 de octubre de 2013: Firma del Convenio Minamata sobre el mercurio - Análisis desde la realidad de los pequeños mineros artesanales de oro de Madre de Dios, en Péru

13 octobre 2013: Signature de la Convention Minamata sur le mercure - Analyse depuis la réalité des orpailleurs de Madre de Dios, au Pérou

13 October 2013: Signing of the Minamata Convention on Mercury - Analysis from the reality of small-scale artisanal gold miners in Madre de Dios, in Peru

1Professeure-Chercheure Indépendante en Anthropotechnologie - Membre associée au Laboratoire LaReSS - Haute École de Travail Social de Lausanne. Rue du Château 10 - 2000 Neuchâtel - Suisse. carole.baudin.n@gmail.com


Resumo

Este ano assinalar-se-á o décimo aniversário da assinatura da Convenção de Minamata sobre a utilização de mercúrio. Este acordo, assinado por 128 países, visa proteger a saúde humana, a preservação do ambiente e a biodiversidade, dos efeitos nefastos do mercúrio, centrando-se igualmente na regulamentação da utilização desta substância na mineração aurífera artesanal e em pequena escala. Esta é uma oportunidade de analisar a forma como esta política internacional se traduziu na atividade real das comunidades mineiras da região amazónica de Madre de Dios, no Peru, com as quais o Projeto Wanamei trabalhou. Ao descrever o impacto deste acordo na vida e no trabalho destas comunidades, procuraremos discutir duas linhas de reflexão: 1) a necessidade de repensar as dimensões territorial e temporal destas ações públicas; 2) a necessidade de mudar o foco das racionalidades subjacentes à ação de uma lógica unicêntrica para uma filosofia pluricêntrica, valorizando as práticas e saberes locais a fim de alcançar soluções sustentáveis.

Palavras-chave: mercúrio; mineração artesanal; política pública; atividade real; antropotecnologia

Resumen

Se festejará este año el décimo aniversario de la firma del Convenio Minamata sobre el uso del mercurio. Este acuerdo firmado por 128 países, al buscar proteger la salud humana, la preservación del medioambiente y de la biodiversidad se enfoca sobre la regulación de esta substancia en la minería de oro artesanal a pequeña escala, identificada como la principal responsable del uso y contaminación del medioambiente en el mundo. Es la ocasión aquí para analizar como esta política internacional se tradujo en la actividad real de las comunidades mineras de la región amazónica de Madre de Dios en Perú con las cuales se trabajó en el Proyecto Wanamei. Al describir las incidencias de tal acuerdo sobre la vida y el trabajo de estas comunidades, buscaremos debatir dos ejes de reflexión: 1) la necesidad de repensar las dimensiones territoriales y temporales de tales acciones publicas 2) la necesidad de cambiar el enfoque de las racionalidades de acción subyacentes desde una lógica unicéntrica hacia una filosofía pluricéntrica, valorizando las prácticas y saberes locales con fines de alcanzar soluciones sostenibles.

Palabras clave: Mercurio; minería artesanal; política pública; actividad real; antropotecnologia

Résumé

Cette année marquera le dixième anniversaire de la signature de la Convention de Minamata sur l'utilisation du mercure. Cet accord, signé par 128 pays, vise à protéger la santé humaine, la préservation de l'environnement et la biodiversité, et se concentre sur la réglementation de cette substance dans l'exploitation minière artisanale de l'or à petite échelle, identifiée comme la principale responsable de contamination de l'environnement à l’échelle mondiale. Il s'agit ici d'analyser comment cette politique internationale s’est traduite dans l'activité réelle des communautés minières de la région amazonienne de Madre de Dios au Pérou avec lesquelles le projet Wanamei a travaillé. En décrivant l'impact d'un tel accord sur la vie et le travail de ces communautés, nous chercherons à discuter sur deux axes de réflexion : 1) la nécessité de repenser les dimensions territoriales et temporelles de telles actions publiques ; 2) la nécessité de déplacer l’approche des rationalités sous-jacentes de l'action d'une logique unicentrique à une philosophie pluricentrique, valorisant les pratiques et les connaissances locales afin de parvenir à des solutions durables.

Mots clés: Mercure; orpaillage; politique publique; activité réelle; anthropotechnologie

Abstract

This year will mark the tenth anniversary of the signing of the Minamata Convention on the use of mercury. This agreement, signed by 128 countries, aims to protect human health, the preservation of the environment and biodiversity, and focuses on the regulation of this substance in artisanal small-scale gold mining, identified as the main responsible for the use and contamination of the environment in the world. It is the occasion here to analyse how this international policy was reflected in the real activity of the mining communities in the Amazonian region of Madre de Dios in Peru with whom the Wanamei Project worked. By describing the impact of such an agreement on the life and work of these communities, we will discuss two lines of reflection: 1) the need to rethink the territorial and temporal dimensions of such public actions; 2) the need to shift the focus of the underlying rationalities of action from a unicentric logic to a pluricentric philosophy, valuing local practices and knowledge in order to achieve sustainable solutions.

Keywords: Mercury; artisanal mining; public policy; real activity; anthropotechnology

1. Introdução

Em 10 de outubro de 2013, teve início o processo de assinaturas dos Estados que se prolongou durante um ano - do histórico acordo internacional que regula a utilização de mercúrio e que foi denominado de Convenção de Minamata.

Ainda que a nocividade do mercúrio para a saúde humana seja conhecida desde Paracelso (o primeiro médico da Antiguidade com trabalho conhecido), foi a tragédia ocorrida na década de 1950 na Baía de Minamata, no Japão, que motivou o (re)conhecimento científico da elevada nocividade do mercúrio e dos seus componentes, bem como os novos conhecimentos sobre o seu comportamento, propriedades e riscos reais para a saúde, para os ecossistemas e para o ambiente. Ao adotar o nome de Minamata, a Convenção presta homenagem às vítimas japonesas, mas reforça também o seu carácter histórico e simbólico. Nesta baía, mais de 2000 pessoas sofreram perturbações neurológicas agravadas, e por vezes fatais, e nasceram crianças com deformações e perturbações neurológicas como consequência do consumo contínuo de peixe e marisco contaminado com metilmercúrio. As investigações revelaram que este envenenamento teve origem nas águas residuais com mercúrio provenientes de uma fábrica de produtos químicos da propriedade da Chisso Corporation (León Pacheco, 2020). Este drama forneceu igualmente informações sobre as propriedades de bioacumulação e biomagnificação (aumento da concentração de mercúrio à medida que vai subindo na cadeia alimentar) do mercúrio. Esta tragédia foi, infelizmente, a oportunidade de entender o processo nocivo do mercúrio e de classificar melhor a sua toxicidade. Desde então, foram iniciados estudos epidemiológicos mais sistemáticos para compreender o impacto do mercúrio na saúde humana e no ambiente, permitindo, entre outros, assinalar a atividade humana e a utilização de mercúrio nas indústrias como uma fonte primária de contaminação, quer através do consumo contínuo de produtos do mar contaminados com metilmercúrio, quer através da inalação permanente ou frequente de vapores de mercúrio provenientes das indústrias que o utilizam (ver Figura 1 1).

Figura 1 : O mercúrio, presente no seu estado natural, torna-se nocivo com a atividade humana, provocando emissões de vapores de mercúrio e transformando-se em metilmercúrio mediante um processo de envenenamento bioacumulativo na fauna marinha. (UNEP/PNUA, 2008)  

Além disso, o mercúrio é hoje reconhecido pela OMS - Organização Mundial da Saúde - como um dos dez produtos ou grupos de produtos químicos que colocam problemas específicos de saúde pública (OMS, 2017) e uma das atividades produtivas reconhecidas como uma das mais poluentes é a mineração aurífera artesanal e em pequena escala, que ocorre sobretudo em alguns países "em desenvolvimento" dos continentes latino-americano, africano e asiático.

De facto, na grande maioria dos territórios onde se realiza mineração aurífera artesanal e em pequena escala, utiliza-se a amalgamação com mercúrio para extrair o ouro do minério. Tanto o seu manuseamento durante a mistura para obter a amálgama, como os vapores durante a queima de amálgamas, ou os resíduos na água e no solo, provocam fontes de contaminação perigosas para os mineiros e as populações em redor (através da emissão de vapores provenientes da atividade mineira, bem como da contaminação da fauna e da flora, a base da alimentação).

Como muitos outros produtos tóxicos, o impacto do mercúrio na saúde, no ambiente e na biodiversidade não se detém nas fronteiras dos países, sendo, aliás, esta substância muito volátil e persistente e utilizada em variadas indústrias e no comércio globalizado. Justifica-se, assim, que o controlo da utilização do mercúrio seja regido por um acordo internacional promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Ambiente (PNUA) (PNUMA, no Brasil). Para além da questão da escala, é também importante salientar que, sendo o mercúrio utilizado na produção de ouro, o metal mais precioso, nobre e valioso desde o início da humanidade, a sua regulamentação internacional através desta Convenção inscreve-se num jogo multissetorial e multilateral, pois, de facto, mobiliza lóbis de todos os tipos, desperta interesses de várias partes, incluindo dos consórcios de grandes marcas de joalharia e de luxo. De igual modo, estão em jogo nesta Convenção questões políticas, económicas, sociais e culturais, intimamente ligadas aos desafios ecológicos e sanitários e ao que estes representam para cada uma destas partes, que se cristalizarão na atividade dos mineiros artesanais e em pequena escala.

Pareceu-nos oportuno então apresentar e analisar esta Convenção na rubrica “Datário” deste dossier temático da revista Laboreal, do ponto de vista da sua história, mesmo se matizado pela descrição de um projeto de investigação-intervenção, o projeto Wanamei, realizado com mineiros que trabalham na mineração aurífera artesanal e em pequena escala na região amazónica peruana de Madre De Dios. Tal investigação-intervenção realizou-se durante o tempo em que decorreram as negociações, a elaboração, as assinaturas e o início da implementação a nível nacional das medidas deste acordo internacional. Sem pretendermos apresentar uma análise rigorosa do impacto da Convenção nas atividades reais destes trabalhadores, procurar-se-á aqui, mais humildemente, identificar pontos de reflexão extraídos da descrição das realidades vividas, durante o processo de negociação desse acordo, que serviram de pano de fundo às orientações locais/nacionais das políticas públicas que fizeram parte do contexto do projeto Wanamei. Estes pontos de reflexão levam-nos a questionar algumas dimensões da atividade real que serão particularmente afetadas por este acordo internacional que no fundo procura regular práticas sanitárias e ecológicas no âmbito de certas atividades produtivas a nível internacional.

Neste sentido, a presente contribuição, depois de descrever em traços gerais o conteúdo da Convenção, a história da sua conceção e do seu posicionamento face à mineração aurífera artesanal e em pequena escala, centrar-se-á na sua implementação no Peru (Cap. 2), mais concretamente na região amazónica de Madre de Dios, uma região emblemática em termos do impacto desta atividade produtiva e a região em que o projeto Wanamei foi desenvolvido para e com três comunidades mineiras locais (Cap. 3). Esta investigação-intervenção analisa, a partir de uma abordagem antropotecnológica, o modo como foram vividas, no terreno, as diferentes ações políticas visando o cumprimento da Convenção, bem como as dimensões subjacentes que este tipo de ações públicas implica (Cap. 4). Finalmente, propõe-se uma discussão sobre as dimensões territoriais e temporais, mas também sobre as racionalidades de ação que questionam, segundo nós, a aplicação da Convenção (Cap. 5).

2. Convenção de Minamata: um instrumento juridicamente vinculativo

2.1. A partir de um diagnóstico mundial

Em 2001, as Nações Unidas, alertadas sobre os níveis alarmantes de contaminação pelo mercúrio, solicitaram, através do PNUA-PNUMA, uma avaliação mundial desta toxidade (Thirion, 2019). O estudo, apresentado em 2002, salientou as provas científicas dos perigos do mercúrio e sublinhou igualmente a responsabilidade das indústrias humanas e a sua distribuição pelo globo (ver Figura 2 e Figura 3). Este diagnóstico técnico-científico foi realizado pela divisão de produtos químicos do PNUA-PNUMA, tendo os seus dados sido atualizados em 2013 e 2018, respetivamente 2.

Figura 2 : Distribuição mundial das emissões de mercúrio, 2005. (UNEP/PNUA, 2008

Figura 3 : Fontes de emissão de mercúrio. Ainda que o mercúrio tenha também origem em fontes naturais, tal como paresentado no diagrama à esquerda, as principais coontaminações resultam da atividade produtiva humana. O diagrama à direita apresenta as atividades produtivas com a maior incidência, entre as quais a MAPE, ainda mal documentada no ano deste estudos (UNEP/PNUA, 2008

Esta primeira iniciativa de avaliação deu origem, em 2005, à Parceria Mundial sobre o Mercúrio da ONU 3, constituída por diferentes tipos de intervenientes: governos, indústrias, ONG e círculos académicos. Lançada por decisão do Conselho de Administração do PNUA-PNUMA, tal parceria representou o primeiro passo para "catalisar a ação mundial sobre o mercúrio que se traduziu na recolha de informações, no reforço de capacidades e sensibilização, em apoio às negociações internacionais" (PNUMA, 2023), visando estabelecer um instrumento juridicamente vinculativo sobre os efeitos nefastos do mercúrio. Importa relembrar que o PNUA-PNUMA (ou ONU do Ambiente) tem a função de apoiar os Estados-Membros na definição de orientações programáticas para a proteção mundial do ambiente. A dita Parceria constituiu um primeiro passo na definição de ações urgentes para reduzir as emissões de mercúrio. Não obstante, neste quadro, as ações dos governos, dos setores privados e das organizações internacionais eram voluntárias e, por conseguinte, insuficientes. Em 2009, os Estados-membros estabeleceram a necessidade de elaborar um instrumento juridicamente vinculativo, tendo assim iniciado, em 2010, um trabalho de negociação, que durou três anos, em torno do controlo da utilização de mercúrio, que culminou na Convenção de Minamata, assinada em outubro de 2013 por 127 países e uma organização regional de integração económica.

2.2. Até ao enfoque na mineração aurífera artesanal e em pequena escala (MAPE)

A Convenção é, evidentemente, um tratado de direito internacional, mas que tem por objetivo "proteger a saúde humana e o ambiente das emissões e descargas antropogénicas de mercúrio e compostos de mercúrio" (Artigo 1º) e, por conseguinte, estabelece toda uma série de medidas que os Estados deverão adotar para conseguir alcançar tal objetivo. Tais medidas foram concebidas e estabelecidas de acordo com o ciclo de vida do mercúrio, desde a sua extração, comercialização e utilização até à eliminação dos resíduos e a reabilitação dos solos. Mesmo se nove artigos definem obrigações claras e operacionais para os Estados-Partes (entre outras, o encerramento progressivo das minas de extração de mercúrio, a proibição de novas minas, a gestão ambiental dos resíduos, a promoção do controlo das emissões), várias outras disposições foram tema de divergências e discussões 4, que se apercebem na redação final, gerando "deficiências", de acordo com a qualificação de alguns autores, em razão, nomeadamente, da utilização de "termos e expressões sem carga imperativa, tais como "devem procurar", "devem tomar medidas", ou então "As Partes são incentivadas a cooperar entre si" (Lin et al, 2017; citado por Ruiz Peyré & Sosa, 2019)".

Sem entrar em grandes considerações e análises acerca desta Convenção, cabe aqui assinalar, no entanto, o seu particular enfoque na mineração aurífera artesanal e em pequena escala (MAPE). Que se traduzirá no facto duma entidade sanitária e ecológica passar a prescrever e a obrigar a adoção de medidas regulamentares internacionais em relação a uma atividade produtiva de trabalho, mesmo tratando-se de uma prática sociotécnica específica. Sem contestar o facto de esta prática gerar uma significativa contaminação pela utilização do mercúrio, é importante salientar que, no momento da redação do tratado, os dados disponíveis para permitir determinar com precisão as emissões provocadas por esta atividade (MAPE) não eram robustos em comparação com os de outros setores produtivos. De facto, o mapa da Figura 2 (acima), que apresenta a distribuição das emissões no mundo, parece bastante globalizado - mostrando emissões particularmente elevadas nos países europeus e norte-americanos, pois aí estão localizadas muitas outras indústrias, que geram quantidades significativas de mercúrio. Trata-se de indústrias formalizadas e que são na sua maioria grandes empresas nas quais a implementação de medidas e soluções alternativas é mais fácil de negociar e concretizar.

Esta Convenção, ao procurar proteger a saúde humana, ambiental e ecossistémica, visa também a regulamentação do trabalho de mineração artesanal Figura 4, obrigando os Estados Partes a adotar medidas que tendem a controlar e alterar os sistemas de trabalho, promovendo "melhores técnicas e práticas" no âmbito desta atividade da qual depende a sobrevivência de milhões de pessoas.

Figura 4 : Mapa de mineração aurífera artesanal e em pequena escala 

Na perspetiva da ação de regulamentação da MAPE, o Artigo 7.º da Convenção é particularmente importante. Neste, prevê-se a obrigação dos Estados, sempre que considerem que a MAPE é significativa no seu território, de elaborar e implementar um plano de ação nacional para reduzir e, se possível, eliminar a utilização de mercúrio no quadro da atividade artesanal, bem como as emissões e descargas de mercúrio para o ambiente. E o nº 4 do artigo 7.º prevê formas de cooperação entre os Estados Partes como forma de apoio a tais obrigações, definindo o artigo 14.º, por seu lado, as estratégias de apoio financeiro, técnico e metodológico.

Veremos mais adiante, na descrição das realidades vividas pelos mineiros de Madre De Dios, que estes artigos que visam promover melhores prescrições para a mineração aurífera artesanal e em pequena escala darão, em particular, origem a lógicas de intervenção e a racionalidades de ação que implicam/suscitam desafios identitários, territoriais, culturais, e até mesmo ontológicos.

2.3. Implementação da Convenção de Minamata no que respeita à mineração aurífera artesanal e em pequena escala (MAPE) na América Latina, e mais concretamente no Peru

Em 2019, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Ambiente, "a principal fonte de emissões de mercúrio provocadas pelo homem é a proveniente do setor da mineração aurífera artesanal e em pequena escala, que é responsável pela emissão de 838 toneladas de mercúrio para a atmosfera todos os anos" ((PNUMA, 2019), o que representa cerca de 38% das emissões mundiais. De facto, a MAPE representa à volta de 30% do ouro extraído em todo o mundo, cuja produção continua a depender fortemente do mercúrio.

Não obstante a existência de números a nível global, as estatísticas relativas ao setor da mineração aurífera artesanal e em pequena escala na América Latina não são nem exaustivas nem de algum modo robustas. Na realidade, esta atividade continua a ser exercida de modo informal ou mesmo ilegal, pelo que carece de dados oficiais fiáveis.

De acordo com um estudo da situação realizado por Ruiz Peyré e Sosa, 2019 publicado num artigo de 2019, estima-se que participam entre 1,7 e 1,9 milhões de pessoas na mineração aurífera artesanal e em pequena escala na América Latina, produzindo entre 194 e 255 toneladas de ouro anualmente, destacando-se a Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador.

Os Estados-membros da CAN (Comunidade Andina) (Inda, 2022, decidiram, em 2011, promover medidas, entre os quatro países acima referidos, para combater a mineração ilegal e o seu impacto no ambiente e na saúde. Estas decisões da CAN foram adotadas no contexto das negociações para a elaboração da Convenção de Minamata.

"No Peru, estima-se que [a produção de ouro] ultrapasse 40 toneladas por ano, pelo que se calcula que sejam utilizadas 145 toneladas de mercúrio anualmente. [...] Estimativas mais recentes calculam que participam entre 100 000 e 500 000 trabalhadores diretos na mineração informal e ilegal (Echave, 2016)" (Ruiz Peyré & Sosa, 2019, p. 194).

Na América Latina, o Peru é o principal produtor de ouro e o oitavo a nível mundial (MINEM, 2020). tendo registado uma das maiores intensificações da mineração aurífera artesanal e ilegal nas últimas duas décadas (Mamani Dávila, 2022). Ao mesmo tempo, foi um dos primeiros países a promover a formalização/legalização da atividade ilegal de mineração artesanal, particularmente graças ao impulso do projeto GAMA (Hruschka, 2001). Um projeto de cooperação técnica entre os governos suíço e peruano com o objetivo de melhorar a situação ambiental e valorizar os produtos da mineração aurífera artesanal e em pequena escala. A Comissão Económica para a América Latina e as Caraíbas (CEPAL), organismo da ONU, também favoreceu esta iniciativa ao promover o intercâmbio de boas práticas a nível regional para valorizar o trabalho das comunidades de mineiros artesanais, que representam um valor económico importante para esses países. Diz-se que o projeto GAMA contribuiu para a promulgação, em 2001, da Lei n.º 27651 sobre a formalização da mineração em pequena escala no Peru (Ruiz Peyré & Sosa, 2019). No entanto, também se deve ter em conta a forte pressão mediática internacional que se começava a sentir em torno destas atividades produtivas, como consequência dos primeiros dados divulgados pela ONU.

Esta lei, a sua aplicação e a cooperação técnica com ONGs e com peritos internacionais permitiram realizações concretas e trajetórias promissoras em algumas regiões do Peru, nos inícios dos anos 2000. Em particular, os mineiros artesanais e os mineiros de pequena escala organizaram-se em associações e sindicatos, nas regiões trabalhadas com o GAMA e começaram a entrar no processo de formalização, ao conseguir cumprir os requisitos legais com vista a obter os respetivos títulos de concessão.

Embora tivesse parecido se ter desenvolvido uma dinâmica virtuosa no Peru, nestes anos de 2000, contudo, as medidas nacionais e internacionais que se seguiram, para regular a atividade de mineração e a utilização de mercúrio, revelaram a complexidade da realidade que procurava regulamentar. Sobretudo em zonas como Madre de Dios, tristemente célebre pela sua mediatização, e que pode ser considerada como emblemática.

3. O caso emblemático: o ouro de Madre de Dios

Situada no sudeste do Peru, a região de Madre de Dios cobre uma superfície de 85 000 km2. É historicamente uma região de produção e extração desde que os colonos iniciaram a produção de borracha. Ainda que a mineração aurífera não seja a única atividade produtiva da região, após a crise financeira de 2008, a corrida ao ouro na zona foi de tal forma intensa que a mineração aurífera alcançou cobertura mediática internacional, associando a mineração aurífera artesanal da região aos desastres ecológicos e sociais causados pela MAPE e cristalizando as práticas técnicas dos trabalhadores locais como emblemáticas dos desafios ambientais internacionais (Voice, 2015).

É de notar que os projetos exemplares implementados na zona, tal como o projeto GAMA acima referido, não abrangem regiões complexas como a de Madre de Dios. Esta região reúne, de facto, vários aspetos críticos no que respeita à sua representatividade ecológica, simbólica e geográfica, mas também em termos do ecossistema político, económico, social e cultural tecido neste território.

Assim, esta região é emblemática no que diz respeito à tentativa de regular a utilização de mercúrio na MAPE, não só pela sua atividade de mineração artesanal e informal intensiva, mas sobretudo pelos desafios políticos, socioculturais e ecológicos que se materializam neste território, questionando, na realidade, as próprias noções de território e de governação que as políticas públicas deste género implicam.

Mais ainda, se poderá dizer que a região de Madre de Dios simboliza interesses civilizacionais em jogo neste tipo de regulação. A Amazónia, o "pulmão da Terra", é a reserva de biodiversidade mais importante do mundo com os seus mais de 7,5 milhões de Km2 de floresta tropical e, ao concentrar 20% da água doce do globo, é a rede hidrográfica igualmente mais importante do mundo (Dagicour, 2020).

Nestas terras, a noção de território, no seu sentido administrativo/político, não é sustentada, uma vez que tal território se prolonga num espaço transfronteiriço, sendo o ponto nevrálgico de estratégias geopolíticas muitas vezes discordantes entre nações e organizações internacionais. Particularmente, ali se desenrola, como pano de fundo, um conflito entre uma visão desenvolvimentista e uma visão ambientalista (Dagicour, 2020). Pois, a mineração aurífera artesanal encontra-se no cerne de interesses multissetoriais, divergentes e inclusivamente opostos.

O território é também emblemático devido aos desafios culturais e ontológicos que ali estão em jogo. Importa recordar que é a terra de várias comunidades indígenas (sendo estas regidas, em princípio, pela Convenção n.º 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais). O património natural e imaterial que representa a riqueza das culturas dos povos nativos e a sua ligação com o ambiente está desenhado no pano de fundo das questões abordadas pela Convenção, em particular no que diz respeito às formas de habitar e de apropriar-se deste território. Do mesmo modo, se o governo criou reservas naturais e áreas protegidas para os povos nativos (ver mapa, Figura 8) e se se trata também de formalizar as modalidades de propriedade desses solos e subsolos, o surgimento de "grupos não contactados" põe em evidência o confronto ontológico que ali se joga sobre "o habitar o mundo", mais além do direito, do acesso e da exploração destas terras. De facto, estes grupos são nómadas no território e reivindicam uma nova visão da relação com o ambiente, a natureza e a vida, que passa por um afastamento das civilizações modernas.

Finalmente, este território de Madre de Dios é emblemático pela fluidez do seu ambiente, tornando obsoleta qualquer tentativa de estabelecer mapas estáveis do território. Território de fronteiras esbatidas, o espaço natural é mutável, desenhando-se uma nova geomorfologia do território depois de cada estação, delineada pelos rios e cursos de água. Os habitantes fluem ao ritmo da natureza, as habitações das comunidades que vivem ao longo dos rios habituam-se a deslocar as suas casas em cada estação, a reconfigurar a organização espacial da comunidade em cada uma destas vezes.

3.1. Projeto Wanamei (2011-2016): centrado nas realidades vividas pelos mineiros

Foi neste território complexo que se realizou o projeto Wanamei com o objetivo de conceber sistemas de trabalho mais saudáveis e eficazes para e com os mineiros artesanais de Madre de Dios e com a ambição de contribuir para a melhoria das condições de trabalho e de vida destes trabalhadores e das suas comunidades.

O pedido inicial, apresentado pela associação local Huarayo, dedicada à proteção das crianças da região, foi feito em 2010, um ano após a decisão do PNUA-PNUMA de iniciar negociações sobre a possível adoção dum instrumento de direito internacional.

Enquadra-se, também, nos esforços de alguns intervenientes regionais e internacionais para responder aos requisitos ou diagnósticos das organizações internacionais, antecipando, em parte, os requisitos que iriam fazer parte da Convenção de Minamata. Em particular, este projeto foi desenvolvido no contexto da elaboração da Convenção de Minamata até à sua assinatura (2011-2013) e, posteriormente, durante a preparação dos governos para a sua entrada em vigor (2013-2016). Por outro lado, o projeto Wanamei evoluiu à medida das decisões políticas tomadas durante este período.

O facto de ter sido uma associação de defesa dos direitos das crianças a chamar-nos é, por si só, motivo de reflexão, mostrando a estreita interligação entre as questões sanitárias e ecológicas e as realidades sociais, em particular, as vulnerabilidades e precariedades das populações que seriam as primeiras a ser envolvidas pelas medidas que serão adotadas. Importa referir que, nesta altura, a Organização Internacional do Trabalho tinha, por seu lado, publicado vários estudos sobre o trabalho infantil na mineração artesanal, bem como relatórios sobre o trabalho forçado nas minas ((OIT, 2005), dando visibilidade às diferentes situações e formas de vulnerabilidades que ocorrem nestas atividades produtivas. A lógica subjacente à reivindicação da Huarayo era a de que, ao trabalhar em sistemas técnicos sólidos, se poderia dar um passo no sentido da formalização da atividade de mineração e assim reduzir os impactos nocivos sobre as crianças da região (a nível sanitário, mas sobretudo a nível social, para combater o tráfico de crianças, os impedimentos ao acesso à escolaridade e à saúde, e a precariedade económica das famílias, entre outros). Este pedido inicial levou-nos então a constatar os complexos problemas que a Convenção tenta abordar e por isso a propor uma visão alternativa das formas de pensar e intervir no processo de formalização.

Sem entrar nos pormenores teóricos e metodológicos do projeto (estão disponíveis várias informações sobre o projeto Wanamei no site https://wanamei.wordpress.com), é pertinente mencionar aqui que conseguimos conceber dois dispositivos técnicos neste âmbito que, mais do que as suas características tecnicamente inovadoras, foram bem-sucedidos por representarem inovações sociais para as comunidades de mineiros desta região tão estigmatizada. De facto, os dois sistemas técnicos concebidos durante o projeto: a retorta Anamei (dispositivo de captura dos vapores de mercúrio) e a miniescavadora modular La Boa, mais do que soluções sociotécnicas adaptadas e realizadas com os mineiros, foram sobretudo símbolos dos seus esforços, o início da sua capacitação criativa para encontrar soluções técnicas adequadas e próprias dos problemas revelados pelos acordos e políticas nacionais (Baudin et al., 2016, (Baudin, 2017, (Baudin, 2018; Ullilen Marcila, 2019).

Figura 5 : Marcha da Associação de Mineiros Artesanais de Madre de Dios com a retorta Anamei © Wanamei 2014 

A retorta apresentada pelos sindicatos mineiros, na Figura 5 acima, foi desenvolvida com três comunidades mineiras representativas da diversidade da atividade de mineração artesanal na região de Madre de Dios. De facto, tanto o nível de mecanização utilizado na mina como o nível de "formalização técnica" alcançado, bem como o estatuto jurídico, social e cultural, mas também a situação geográfica de cada comunidade mineira, eram variáveis, o que permitiu reunir um grupo de mineiros constituído por cento e quarenta pessoas, bastante representativo da paisagem da região. A concessão Sol Naciente, de Don Braulio, situa-se na fronteira da região de Cusco (o solo é mais grosso e o ouro é mais espesso), onde a titularização do solo está bastante avançada, são utilizadas máquinas carregadoras de extração de terra aurífera (sistema de carregador shute) e foram implementadas medidas de segurança (EPI, sinalização, construção de zonas de queima, etc.). Tal como previsto na lei os trabalhadores ficam alojados na concessão, mas esta não constitui uma comunidade em si. O caso oposto é o da comunidade de Fortumil, que vive na zona de Fortuna e ali extrai ouro desde os anos 60, sendo uma das mais antigas comunidades mineiras, cujos anciãos são provenientes da região de Cusco. A aldeia (que tem uma pequena escola, centro de saúde, campo de futebol, etc.) tem à sua saída um local de queima onde os diferentes parceiros da concessão vêm fazer a amálgama e a queima final. Os locais de mineração estão espalhados pelas terras à volta da comunidade e são utilizados sistemas de traca (Figura 6). Por último, existe a comunidade Harakmbut dos Amarakaeri, um povo indígena da Amazónia que se dispersou quando os espanhóis estabeleceram missões. Sob o impulso de alguns dos que se "evadiram" das missões, a comunidade foi reconstruida, graças, sobretudo, à produção de ouro (Geslin & Baudin, 2016). Localizada na área protegida de Boca Inambari, essa comunidade trabalha com técnicas muito empíricas, nas terras e nos rios, utilizando os sistemas de caranchera e chupadera.

Figura 6 : Em cima, os sistemas de extração utilizados pelas três comunidades estudadas : das esquerda para a direita : 1. Sistema de carregador Shute, concessão Sol Naciente, Don Braulio ; 2. Sistema Traca, concessão Fortumil ; 3. Sistema de chupadera, Boca Inambri. Em baixo, entrevistas como mineiros da Fortumil na zona de trabalho dedicada e seguindo as normas de gestão ambiental e de saúde (Fotografia © Wanamei, 2012) 

O projeto Wanamei foi desenvolvido com estas três comunidades e envolveu muitos outros intervenientes de diferentes setores, estatutos e interesses: governos nacionais e regionais, peritos oficiais, universidade local, ONG locais e internacionais, peritos em cooperação internacional, associações de mineiros, centros de formação, outros artesãos (soldadores, mecânicos), jornalistas, compradores suíços, etc. Além disso, a compreensão das dinâmicas de mudança e do poder em jogo em torno das práticas mineiras foi uma preocupação constante e necessária para nos permitir acompanhar os mineiros no caminho para um desenvolvimento sustentável e duradouro.

Não são tanto os resultados deste projeto, mas os dados acumulados durante a sua realização, que nos levam, em primeiro lugar, a apresentar as dimensões sociais, culturais e simbólicas que entram em jogo nos processos de formalização da atividade de mineração e, em segundo lugar, a discutir ou questionar as racionalidades de ação sugeridas por medidas jurídicas e políticas tais como as da Convenção de Minamata.

4. A Convenção de Minamata: pano de fundo da realidade dos mineiros

Em 2012, um ano após o início do projeto, a sombra da Convenção começava-se a vislumbrar, acrescentando uma camada espessa ao futuro dos mineiros de Madre de Dios, já obscurecido por uma cadeia de iniciativas e discursos políticos de ressonância regional, nacional e internacional. Ainda que se esforçando para entrar no processo de formalização regido pela lei de 2001, todos os mineiros artesanais da região ficaram em situação de ilegalidade no início de 2012, aquando da promulgação do Decreto 1100, que reforça as medidas de formalização e aplica sanções drásticas em caso de incumprimento. Este decreto, uma resposta do governo peruano ao início das negociações da Convenção de Minamata e à pressão internacional na sequência da cobertura mediática da desastrosa onda de pilhagem de ouro na região devido à crise financeira de 2008, criou uma situação dramática para os mineiros da região, afetando diretamente a sua identidade.

4.1. Uma questão de identidade e de territorialidade

O decreto legislativo 1100, declarado de "necessidade pública, interesse nacional e aplicação prioritária", reafirma os requisitos administrativos para o exercício da mineração artesanal (entre outros, a titularidade das concessões e a autorização de exploração), mas sobretudo acrescenta requisitos inéditos relativos às práticas técnicas que afetaram particularmente os mineiros de Madre de Dios, ao declarar, no seu artigo 5.º (ver caixa), que todas as máquinas utilizadas na região são proibidas em locais definidos que correspondem, em grande parte, aos locais de mineração da zona.

Extrato do Decreto Legislativo 1100 de 18 de fevereiro de 2012: "Artigo 5.º - Proibições É proibido, no âmbito da mineração artesanal e da mineração em pequena escala, o seguinte: 5.1 A utilização de dragas e outros dispositivos semelhantes em todos os cursos de água, rios, lagos, lagoas, lagunas, espelhos de água, pântanos e aguaçais. Entenda-se por dispositivos semelhantes os seguintes: a) Unidades móveis ou portáteis que aspiram materiais dos leitos dos rios, lagos e cursos de água com o objetivo de extrair ouro ou outros minerais. b) Dragas hidráulicas, dragas de sucção, barcos gringo, barcos castillo, barcos de dragagem, tracas e carancheras. c) Outros que disponham de uma bomba de sucção, independentemente do tamanho, e que incorporem ou não uma peneira ou calha. d) Qualquer outro dispositivo que cause um efeito ou dano semelhante."

Ao definir a mineração ilegal desta forma, através dos sistemas técnicos utilizados, este decreto, cuja interpretação jurídica é complexa, gerou muita confusão e desespero. Além disso, a sua tradução literal fez com que quase todos os mineiros da região ficassem em situação de ilegalidade, não obstante a grande maioria estivesse em processo de formalização. De facto, é importante salientar que este processo já era particularmente difícil em Madre de Dios, uma vez que os títulos de propriedade dos solos e dos subsolos, por serem historicamente pouco claros, permitiu que muitos mineiros se instalassem na região em décadas anteriores sem esta institucionalização. A esta informalidade histórica e cultural de propriedade deve acrescentar-se a lógica da corrupção presente nas interações comerciais, mas também nas administrativas (Ruiz Peyré & Sosa, 2019) e, por fim, a impossibilidade de o Ministério Energia e Minas responder atempadamente a todos os pedidos de autorização de exploração. De igual modo, até mesmo a concessão de Don Braulio, que cumpre todos os requisitos para ser formal, tendo em conta que trabalha com um carregador Shute nas terras, ficou em situação de ilegalidade nessa altura, uma vez que não conseguiu obter as autorizações necessárias.

Este decreto veio, consequentemente, somar-se aos caminhos já complexos no sentido da formalização, mas acrescentou uma dimensão simbólica fundamental ao afetar a identidade destes mineiros através dos seus instrumentos de trabalho e da sua prática técnica em geral. De facto, com este texto de lei, os mineiros com quem trabalhámos, habitantes de Madre de Dios, mineiros há gerações, foram comparados aos saqueadores e devastadores da Amazónia. Além disso, alguns meses após a sua promulgação, as sanções não tardaram a chegar por meio da intervenção das Forças Armadas, que começaram a bombardear os locais declarados ilegais, conferindo a esta região as características de uma zona de guerra (ver Figura 7), provocando não só angústia, mas também medo e desconfiança.

Figura 7 : Ao longo da Rota Interoceânica, após a intervenção das Forças Armadas num acampamento ilegal © Carole Baudin, 2013 

Tal como o território que habitam, os mineiros e as comunidades mineiras da região viram a sua identidade mudar, a fronteira entre a ilegalidade, a informalidade e a formalidade do seu comércio a ficar porosa e frágil, mudando ao mesmo tempo que as dinâmicas de territorialização que evoluem segundo as escolhas, interesses e forças geopolíticas, bem como os fluxos geomorfológicos naturais que reconfiguram o mapa da região todos os anos. Importa também assinalar que uma das formas de regulação da atividade de mineração na região por parte do Estado, foi a definição de zonas "operacionais" autorizadas (ver Figura 8). Porém, a noção de autorização através do espaço não é tão clara como as cores do mapa. Além disso, a grande maioria dos mineiros encontrava-se na zona rosa, que autoriza minas, mas o decreto, ao proibir o trabalho em zonas húmidas, lagos, etc., reconfigura a interpretação deste zonamento. Em particular, vários mineiros contaram-nos as consequências e as situações absurdas que ocorreram neste território: em primeiro lugar, ao obrigar a trabalhar nas terras, promulga indiretamente a desflorestação das zonas de exploração; em segundo lugar, os efeitos esperados da proibição de trabalhar nos rios na geomorfologia da zona e na preservação da rede hidráulica, são anulados pelo facto de a alguns quilómetros de distância, na zona brasileira, as dragas continuarem a trabalhar. Os mineiros estão também perfeitamente conscientes do carácter holístico e transfronteiriço do impacto da mineração, apontando para a ineficácia da política nacional na zona.

Figura 8 : Mapa concebido pela DREM (Direção Regional de Energia e Minas) em 2011, no qual as zonas a rosa representam áreas de atividade produtiva supostamente autorizadas (minas, agrossilvicultura, castanheiros, etc.), a verde, as zonas protegidas (reservas naturais) e, a amarelo, as zonas protegidas (reservadas aos povos indígenas). Os pontos de cor vermelha correspondem ao posicionamento das ONG estabelecidas na região 

4.2. Conhecimentos científicos, competências técnicas vs. saberes e práticas empíricos

Como vimos anteriormente, o decreto 1100 apresentou uma ligação fundamental entre o sistema técnico e a identidade. De facto, ao identificar e descrever as máquinas utilizadas pelos mineiros e os locais de trabalho como ilegais, este texto denuncia as suas práticas empíricas como sendo nocivas. Pior ainda, muitos projetos em curso e peritos internacionais que atuavam na região falavam de "tecnologias limpas, ou verdes, e de ouro limpo". A pele das palavras é importante, e os mineiros começavam sempre as reuniões do Grupo de Trabalho com uma catarse sobre o facto de as suas técnicas e práticas não serem mais "sujas" do que o cianeto e outros tóxicos utilizados nas grandes indústrias, ou do que os bombardeios sancionadores e os vestígios que deixavam na floresta (ver Figura 9).

Figura 9 : Vestígios do bombardeio das Forças Armadas, no percurso do rio Inambri. © Carole Baudin, 2013 

Este ponto é fundamental porque põe em evidência, através da semântica, o carácter unicêntrico das lógicas de desenvolvimento subjacentes aos processos de formalização. De facto, o carácter unilateral das dinâmicas de desenvolvimento está presente desde que cientistas e peritos internacionais começaram a realizar medições das emissões de mercúrio e a iniciar projetos de cooperação técnica no quadro do programa de diagnóstico lançado pelo PNUA-PNUMA. Consta, igualmente, que as comunidades eram abordadas todas as semanas por uma ONG e consultores ou técnicos de programas internacionais ou regionais, cada um com o seu próprio objetivo de "bom desenvolvimento", com métodos de formação para as "boas práticas", apoiados por folhetos didáticos, mas, sobretudo, todos com um discurso mais moralizador do que explicativo e cooperativo. Além disso, em Puerto Maldonado, a capital da região, encontra-se uma densa rede de peritos e de ONG, criando bastante confusão entre as diferentes iniciativas.

Testemunhos de alguns projetos de desenvolvimento técnico "limpo" (ou seja, sem mercúrio) foram as máquinas escondidas em garagens (ver Figura 10) que nos foram reveladas, vestígios das tentativas de cooperação alemã e suíça, entre outras. A primeira, uma máquina de lixiviação em pequena escala que dormia debaixo de uma cobertura, foi rapidamente posta de lado, apesar do seu preço, não só porque não convenceu em termos de eficiência com o ouro local (em particular no rácio custo/desempenho/tempo), mas sobretudo porque implicava competências e conhecimentos químicos, eletrónicos e de lógica conceptual no seu manuseamento que não se enquadravam nas formas de pensar e de agir, mais orgânicas e mecânicas, dos mineiros de Madre de Dios (Baudin, 2017). Por outro lado, algumas destas máquinas não estão adaptadas às condições locais (temperatura, humidade, poeira, insetos, etc.) e deixam rapidamente de funcionar, não existindo a possibilidade de manutenção local. A outra, ainda que mais próxima das necessidades locais, também não foi convincente, a despeito do processo participativo que lhe deu origem. Esta máquina, desenvolvida pela Caritas com o apoio da cooperação suíça, baseia-se no princípio da separação do ouro por gravimetria. Não obstante o facto de a máquina ter quatro tabuleiros rotativos dispostos em série, não consegue separar o ouro muito fino da zona (o ouro, em algumas partes da região, encontra-se em grãos com apenas alguns mícrones). Da mesma forma, após várias horas de trabalho, esta máquina consegue alcançar terra aurífera, mas não ouro puro. Este ponto do ciclo de produção do ouro é fundamental para os mineiros, pois, nos dias de hoje, o produto do dia de trabalho é a bola de ouro com um valor que varia não só em função da quantidade, mas também da cor e do brilho. É importante notar que a bola de ouro pode ser controlada, pois permite que o ouro não seja volátil (e que se possa perder). De igual modo, estes projetos técnicos não conseguem competir com a utilização de mercúrio, uma vez que não conseguem propor respostas pertinentes para os mineiros em termos de eficiência, produtos, capacidades e/ou recursos, nem ao nível de dimensões mais imateriais como a relação e o valor do ouro em bola. O mesmo aconteceu, segundo as memórias dos mineiros, com a mesa vibratória e outros tipos de técnicas que chegaram à região.

Figura 10 : À esquerda, elementos de uma máquina de lixiviação ; à direita, demonstração da máquina gravimétrica desenvolvida pela ONG Caritas Suiça. © Wanamei, 2014 

No que respeita às campanhas de medição realizadas, foram sobretudo peritos internacionais que se deslocaram aos locais de mineração e às ruas onde se situam as lojas de revenda de ouro para medir as emissões de mercúrio. Para se poder medir com exatidão as emissões, é necessário equipamento e formação específicos que não estavam disponíveis na região. Esta vaga de peritos "gringos" gerou desconfiança e, por vezes, violência: as pessoas estrangeiras dificilmente se podiam aproximar das lojas de revenda. De facto, é relevante dizer que eram transmitidas muito poucas informações sobre estas campanhas, exceto que se foi compreendendo progressivamente que o mercúrio era tóxico e que a produção de ouro era a responsável. Foram raras as vezes em que assistimos a uma sessão de informação completa sobre o objetivo destas medidas a nível mundial. Não obstante estes aspetos, se os mineiros aceitam a veracidade dos dados científicos, se também estão dispostos a compreender a nocividade do mercúrio, o facto de este ser um elemento natural e de ser utilizado "desde sempre" nas minas e, de repente, os membros do governo e os cientistas o identificarem como altamente tóxico parece-lhes desconcertante. Tanto mais que o mercúrio líquido ainda se encontrava nas feiras, entre o incenso e as ervas medicinais, como um remédio que "cura a alma" ou, mais prosaicamente, a diarreia. Tal como sucede com muitas outras substâncias tóxicas utilizadas nas atividades produtivas sujeitas a regulamentação, os gestos de precaução e as práticas de proteção requeridas pelas normas não se conseguem adquirir no curto espaço de tempo exigido a nível legal, particularmente quando se trata da utilização de uma substância "tradicional".

As políticas públicas são aqui confrontadas com factos técnicos, que são atos sociais "eficazes e tradicionais" (Mauss, 1950) que devem ser compreendidos e respeitados para poderem ser alterados, mais ainda quando as mensagens relativas à utilização de mercúrio se cruzam com todos os demais esforços que os mineiros têm de empreender para se formalizarem. "Pedem-nos para sermos advogados, contabilistas, engenheiros ambientais, ... e não tarda, químicos!”, disseram-nos os mineiros ao descrever o longo processo para chegar à formalização. De facto, este processo é uma corrida de barreiras para quem tem um nível de ensino maioritariamente básico e um acesso à informação complexo. Os recursos humanos de apoio são escassos e muitos peritos locais viram aqui a oportunidade de fazer um bom negócio, tornado os seus serviços muito caros - e sem qualquer garantia de resultados - para os parcos recursos destes mineiros 5. Se bem que o Estado tenha empreendido muitos esforços para facilitar os procedimentos administrativos, o processo não deixa de ser uma enorme barreira para os mineiros que não dispõem de conhecimentos especializados nem de recursos financeiros para compreender, gerir e realizar todos os estudos e passos necessários para proceder à legalização da sua atividade.

Quer seja ao nível do diagnóstico, da formação ou do apoio técnico prestado por intervenientes locais ou internacionais, é de destacar que as diferentes iniciativas se regeram sempre por uma abordagem baseada numa lógica puramente operacional, descontextualizada e orientada pela prescrição ex nihilo de boas práticas. Poucas iniciativas se basearam nos saberes locais e nas formas de pensar e de atuar dos mineiros para impulsionar as dinâmicas de desenvolvimento. De igual modo, os requisitos para desenvolver uma atividade mineira sustentável e adaptável baseiam-se numa lógica e filosofia muito distantes das do nível local, onde o social, o económico, o técnico e o simbólico se articulam. De facto, ouvimos muitas vezes os mineiros lamentarem o facto de todos estes projetos se centrarem em salvar a fauna e a flora, deixando de lado os seres humanos. Uma lógica que rompe com as suas crenças originais, pois recordamos que nesta parte do mundo existem comunidades cujas crenças e tradições animistas propõem uma forma diferente de entender a nossa relação com o ambiente, ligando outra visão ecológica (no sentido literal da relação de um organismo com o seu ambiente), que não é ouvida.

5. Discussão: O prescrito e o real

5.1. Da escala e da temporalidade

Em 2017, entrou em vigor a Convenção de Minamata, que obriga desde então os Estados Partes a aplicarem as disposições internacionais relativas à mineração aurífera artesanal, que consistem em propor estratégias e desenvolver planos de ação para reduzir as emissões de mercúrio resultantes desta atividade. Enquanto países como a Colômbia e o Equador decidiram tomar medidas para erradicar o mercúrio da mineração aurífera artesanal, o Peru optou por continuar com a sua política de formalização e regulamentar a sua utilização, propondo uma estratégia de plano de ação multissetorial em 2016. Esta iniciativa multissetorial mostra, como sublinham (Ruiz Peyré e Sosa, 2019), que o governo reconhece "a interligação das questões ambientais, sociais e económicas na implementação da Convenção de Minamata", mas, segundo estes autores, deve-se ir mais longe "e colocar no centro da discussão as desigualdades existentes nos territórios mineiros e a necessidade de lidar com as relações de poder desfavoráveis para os setores vulneráveis" (Ruiz Peyré e Sosa, 2019, p. 196).

De facto, vimos anteriormente como as dinâmicas globais da governação ambiental se traduzem na região de Madre de Dios, evidenciando os complexos nós entre as questões sociais, económicas, técnicas e culturais envolvidas e revelando as desigualdades, os conflitos e as crises sociais provocadas pela implementação de leis e planos de ação nacionais. Importa também assinalar que as experiências dos mineiros de Madre de Dios revelam a necessidade de ir também para além do território nacional, inclusivamente do administrativo, pois, como vimos, certas resoluções são anuladas pela proximidade com o Brasil, que não segue as mesmas políticas, pois lamentavelmente não se realizam ações de cooperação e comunitárias eficazes entre os países que constituem esta vasta zona da Amazónia.

De igual modo, esta Convenção, ao tentar regular a utilização de mercúrio nas atividades produtivas, está em tensão entre a política ambiental e a política social. A noção de um território de governação e de ação é, consequentemente, problemática.

O nosso exemplo mostra como as ações políticas supranacionais devem ser reveladas por ações concertadas em territórios cuja definição deve certamente ser revista à luz das questões sociotécnicas, ambientais e sanitárias, mais do que na sua forma política e económica. De facto, o caso dos mineiros artesanais da região de Madre de Dios convida-nos a pensar os sistemas de trabalho a partir do território, na sua dimensão natural, social e simbólica, e sugere, por conseguinte, que as ações podem ser realizadas a este nível territorial que transcende as fronteiras políticas e económicas.

Parece-nos, assim, fundamental realçar a escala e a dimensão temporal da implementação da Convenção, uma vez que o mercúrio é claramente um problema holístico, sendo óbvio, a partir do exemplo de Madre de Dios, que a sua implementação a nível nacional ou regional não é sustentável. Este é o dilema destas convenções de direito internacional que, por serem supranacionais, admitem que o problema é mundial, mas não têm poder para influenciar a aplicação nos territórios relevantes, ou seja, territórios que não sejam apenas administrativos. Convidar à elaboração de ações de cooperação entre as nações para lidar com esta questão não é suficiente; de facto, até agora, a única cooperação que se verificou é sobretudo uma transferência técnica e metodológica que perpetua uma dinâmica de desenvolvimento unicêntrica.

Igualmente importante é a dimensão temporal que participa na complexidade da implementação e que, acima de tudo, implica que os planos de ação possam manter-se coerentes apesar das mudanças de governos e de intervenientes locais. Vimos que em Madre de Dios, após a lei de formalização de 2001, o decreto 1100 provocou o desespero das comunidades mineiras, com a impressão de um retrocesso incompreensível para estas. Este texto de lei corresponde às primeiras informações recebidas sobre a Convenção de Minamata, o que obviamente influenciou a sua perceção. A política de "mão dura" contra a mineração ilegal mostrou os seus limites - de facto, a mineração ilegal continua a existir na região 6

. Após esta experiência e da mudança de governo, o esforço de formalização foi retomado através do Decreto-Lei 1293 de 2016, que declara a formalização da MAPE como uma ação de interesse nacional e ordena a criação de um Registo Integral de Formalização da Mineração (REINFO), com o objetivo de controlar, centralizar e tornar transparentes as organizações mineiras e os mineiros individuais. Contudo, ainda que a ambição fosse facilitar o processo administrativo, uma grande parte dos mineiros de pequena escala de Madre de Dios também não se conseguiu formalizar, uma vez que as raízes dos problemas não foram trabalhadas (titularização, custos dos estudos ambientais, capacidades de gestão, etc.). Por último, este processo continua hoje a ser trabalhado através do PAN-MAPE, que corresponde ao Plano de Ação Nacional do Peru para responder aos requisitos da Convenção de Minamata. Estas oscilações entre a política simultaneamente de sanção e de apoio da MAPE estão inscritas nas memórias locais. Há mais de 20 anos que muitos dos mineiros de pequena escala que conhecemos no projeto Wanamei ainda não são "formais".

A temporalidade das ações públicas, e os seus ciclos, são confrontados com a temporalidade vivida pelos mineiros.

5.2. Da racionalidade da ação

Em abril de 2019, após três anos de trabalho interministerial, foi aprovado o Plano Nacional de Implementação da Convenção (PAN) que está atualmente em vigor sob o acompanhamento e monitorização do Ministério do Ambiente (MINAM).

Os objetivos que o PAN se propõe atingir para cumprir os requisitos da Convenção de Minamata, são: 1) reduzir as emissões e descargas de mercúrio, 2) reduzir os riscos para a saúde pública decorrentes da exposição ao mercúrio, 3) recuperar áreas degradadas e/ou locais contaminados por este metal, 4) prevenir a exposição ao mercúrio de populações vulneráveis, 5) formalização e sustentabilidade da mineração aurífera artesanal e em pequena escala, 6) gestão do comércio e prevenção do desvio de mercúrio, 7) reforçar as capacidades institucionais para prevenir a mineração ilegal e promover atividades alternativas sustentáveis; e finalmente 8) assegurar a sustentabilidade do Plano, que inclui atividades de diagnóstico e a identificação de intervenientes para assegurar a sua aplicação ((MINAM, 2020b).

É conferido um enfoque especial à dinâmica participativa promovida pelo MINAM para a elaboração e implementação deste Plano, com a realização de 10 workshops em regiões prioritárias com representantes dos governos regionais, representantes de associações mineiras, populações vulneráveis, etc., e com a presença de funcionários de diferentes setores e níveis do governo.

É de salientar o facto de este PAN integrar a questão da sustentabilidade das medidas e a tratar a partir de uma abordagem multissetorial e participativa, ou seja, a partir do método de implementação.

Ainda que tal represente um passo positivo e avançado, não parece ser suficiente no caso das comunidades mineiras em regiões como Madre De Dios. De facto, as soluções sustentáveis para reduzir a utilização de mercúrio na MAPE não podem resultar de workshops mundiais pontuais, uma vez que é improvável que as questões que implicam sejam resolvidas por grupos de trabalho, mesmo que sejam constituídos por múltiplos intervenientes.

Até agora, uma das dificuldades sentidas nas ações empreendidas é o facto de se terem tentado implementar mudanças com base num diagnóstico que "criminaliza" os mineiros. Com efeito, todos os projetos que tivemos a possibilidade de estudar na região de Madre de Dios já contemplavam a abordagem participativa com múltiplos intervenientes. Porém, todos tomaram como ponto de partida assinalar as práticas técnicas dos mineiros como poluentes. De igual modo, estabeleceu-se uma dinâmica unicêntrica em que as "boas práticas" que os trabalhadores e as comunidades deviam adotar se socializam, sem partir das crenças e dos saberes existentes. Pensamos que este é um problema significativo para a implementação sustentável de soluções e que se prende com a racionalidade da ação (Guérin et al., 2021) que é adotada neste tipo de projetos que visam gerar mudanças com base em normas de políticas ambientais e sanitárias. A experiência antropotecnológica demonstrou que para gerar melhorias sociotécnicas duradouras, é necessário adotar uma abordagem pluricêntrica, ou seja, conceber soluções que se integrem nas formas de pensar e de agir dos intervenientes e das comunidades locais 7

O projeto Wanamei contrastava, de facto, com os projetos existentes na região, que pregavam "boas práticas" a comunidades vulneráveis que viviam na precariedade. De facto, o próprio nome Wanamei provém da cosmologia dos Harakmbut, sendo esta a Árvore da Vida que salvou os seres vivos do dilúvio original. Ao adotar este nome, reivindicamos desde o início a nossa vontade de nos apoiarmos nos saberes, práticas e crenças das comunidades com que trabalhamos. Além disso, o nosso projeto foi alimentado desde o início por um estudo etnográfico centrado nas práticas técnicas como eixo de estudo, promovendo as lógicas locais e permitindo-nos observar as redes de intervenientes, as dinâmicas de circulação dos saberes e as práticas sociotécnicas para nestas nos podermos apoiar. Obviamente, como já foi referido, a nossa metodologia previa trabalhar com uma rede de intervenientes heterogéneos, para além das três comunidades parceiras do projeto. Para nos permitir conceber em conjunto dispositivos técnicos que pudessem melhorar as condições de vida e de trabalho dos mineiros, as nossas análises estudaram sempre as atividades reais dos mineiros, tendo em conta as dimensões macroscópicas que as influenciam, tais como as normas sobre a formalização, as prescrições que estavam a ser preparadas com a Convenção de Minamata, os diagnósticos da OIT sobre o trabalho precário e forçado, as normas dos direitos humanos relativas aos povos indígenas e tribais, as dinâmicas políticas regionais, nacionais e internacionais, etc., e tudo isto numa leitura histórica, atual e antecipatória. As práticas técnicas também foram estudadas a partir de uma abordagem abrangente das culturas, crenças e tradições subjacentes (por exemplo, mitos relacionados com o ouro; ver (Baudin 2017), tendo em conta a memória local de desenvolvimento, as experiências de projetos de desenvolvimento anteriores que deixaram marcas na memória, influenciando, consequentemente, a forma como um novo projeto é (ou não) acolhido. Esta abordagem antropotecnológica (Baudin, 2023, em curso) que cruza as dimensões macro, meso e microscópica da atividade mineira foi fundamental para conseguir desenvolver os dois dispositivos já apresentados e, sobretudo, para apoiar os mineiros numa dinâmica sustentável.

Mas onde certamente o nosso projeto se diferenciou, foi no posicionamento da conduta da intervenção. Aparentemente semelhante a uma abordagem participativa, a nossa metodologia distingue-se, contudo, por trabalhar com os mineiros de forma contributiva. A diferença é importante, porque não se trata de "consultar" os mineiros propondo-lhes soluções já concebidas para resolver problemas estabelecidos, mas sim de discutir com estes as questões às quais se deve dar resposta, bem como a cronologia de ação antes de iniciar o trabalho de conceção conjunta. Isto significa solicitar a intervenção dos mineiros, posicionando-os como peritos, tal como os agentes técnicos, cientistas e políticos suscetíveis de fornecer e desenvolver soluções. Assumir este papel não foi fácil para os mineiros no início, uma vez que estão habituados a receber os conhecimentos e a seguir passos prescritos. Posicioná-los como "os que sabem e conhecem o ouro e a sua produção" foi uma novidade para eles. Ao mesmo tempo, os grupos de trabalho que criámos, reunindo os mineiros com os intervenientes institucionais, peritos científicos e políticos, permitiram construir grupos alargados e refletir sobre a questão da exposição e contaminação por mercúrio a partir de uma abordagem baseada no reconhecimento de uma "nocividade ampliada", retomando aqui um conceito de Ré e Lacomblez, em que "os fatores económicos e sociais já não são externos e adicionais, mas fazem parte integrante da nocividade real do trabalho, na medida em que atuam como verdadeiros multiplicadores da nocividade em consequência da exposição" ( (Ré e Lacomblez, 2020). Isto significa igualmente que nestes grupos de trabalho a responsabilidade pela contaminação por mercúrio não foi apontada apenas para as atividades dos mineiros, mas foi considerada de um ponto de vista mais difuso, em que os políticos assumiram parte das responsabilidades, assim como os peritos técnicos pela sua forma de prestar apoio.

Além disso, nestes grupos, graças à utilização de objetos intermediários (como a restituição heurística de observações, a análise coletiva de "tecnologias alternativas", o intercâmbio de práticas, o esboço de soluções, etc.), foram produzidos conhecimentos e saberes intermediários (Baudin, 2023, em curso) sobre a atividade de mineração artesanal na região e sobre as situações de risco de exposição e contaminação por mercúrio.

Por último, as soluções concebidas foram sempre pensadas a partir de uma abordagem"open source", ou seja, os dispositivos técnicos estão disponíveis na Internet ao abrigo do direito creative commons, deixando em aberto a possibilidade de outros intervenientes, de outros locais, retomarem a solução, a ajustarem de acordo com as suas necessidades, de a fazerem evoluir, etc.

Desta forma, a retorta Anamei foi adaptada para ser utilizada em Burquina Fasso sob o impulso dos intervenientes locais (ver Figura 11).

Este exemplo mostra a possibilidade de escalar as soluções e as medidas tomadas a nível local, sem necessidade de estabelecer prescrições de atividade, mas propondo soluções ajustáveis e evolutivas.

Figura 11 : Apropriação da retorta Anamei em Burquina Fasso. © Wanamei, 2020 

6. Conclusão

A Convenção de Minamata é interessante porque é representativa dos acordos mundiais em matéria de política ambiental e sanitária, cuja tradução a nível da ação pública nacional mostra os seus limites quando confrontada com as realidades das pessoas e das comunidades. Mais ainda, quando se tenta regulamentar uma substância tóxica, como é o caso do mercúrio, através do controlo de uma atividade produtiva desenvolvida de forma informal e empírica durante décadas por populações precárias. Em particular, vimos como as traduções nacionais podem gerar conflitos sociais e aumentar a precariedade e as vulnerabilidades ao agravar as desigualdades nos territórios, mostrando também os complexos nós que se tecem entre os aspetos ambientais, sanitários, sociais e técnicos. Neste âmbito, o caso do ouro em Madre de Dios é emblemático da dificuldade em tentar regular as práticas técnicas segundo uma abordagem unicêntrica, ou seja, estabelecendo de forma unilateral e descontextualizada o que devem ser as "boas práticas" sem ter em consideração não só as dimensões socioeconómicas, mas também as dimensões mais imateriais e culturais relacionadas com o desempenho real da atividade produtiva. Além disso, a implementação desta Convenção nesta região revela, em particular, a necessidade de questionar a noção de território na implementação dessa política, mas também de refletir sobre o desfasamento temporal entre a temporalidade da execução das ações políticas e as temporalidades vividas pelos trabalhadores e pelas comunidades relacionadas. Por último, esta Convenção é também a oportunidade de refletir sobre as racionalidades de ação que transcendem as ações públicas que buscam implementar mudanças a partir de uma abordagem multissetorial e participativa. Todavia, no âmbito destas políticas, ainda se vislumbra mais governação do que democracia, uma vez que a participação não é suficiente para alcançar soluções sustentáveis. É necessário trabalhar na capacitação dos trabalhadores no domínio desta questão ambiental e sanitária, e isto passa por partir das suas próprias formas de pensar e de agir no mundo.

Referências Bibliográficas

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1As figuras 1, 2, 3, 4 e 8 encontram-se em inglês para que se mantenham fidedignas ao seu conteúdo e compreensíveis tendo em conta a sua fonte (relatórios redigidos em inglés pelo PNUMA).

2Ver https://www.unep.org/explore-topics/chemicals-waste/what-we-do/mercury/global-mercury-assessment

3Ver https://mercuryconvention.org/es/asociacion-mundial-sobre-el-mercurio

4Os autores Ruiz Peyré e Sosa salientam assim que "(...) não obstante a maioria dos países concorde que uma maior colaboração internacional facilitaria um controlo mais eficaz do mercúrio, há desacordos significativos entre os países sobre a forma de regulamentar o mercúrio a nível nacional e mundial (Söderholm, 2013)" (Ruiz Peyré & Sosa, 2019, p. 198).

5"Este processo pode demorar entre três a quatro anos e custar cerca de 30 000 dólares (entrevista 2). Anualmente, este custo pode significar entre 10 000 e 7500 dólares, dependendo do número de anos que a formalização exija" (Ruiz Peyré & Sosa, 2019, p. 204)

6"A abordagem de mão dura contra a mineração ilegal, por outro lado, não parece estar a dar os resultados esperados. Este ano, estão a ser estabelecidas três bases militares em La Pampa (redação do El Comercio, 2019). Estas não são as primeiras intervenções militares na zona, o que sugere que a militarização como mecanismo para lidar com esta questão complexa não conseguiu ser suficiente (García, 2019). A estratégia de militarizar os problemas causados pela mineração em pequena escala como mecanismo para gerar ordem de forma clara e expedita tem pouca eficácia a longo prazo, uma vez que esta estratégia é incapaz de atacar a raiz subjacente à racionalidade da utilização de mercúrio e de operar fora dos limites do Estado (Spiegel et al., 2018)" (Ruiz Peyré & Sosa, 2019, p 216)

7Sobre as antropotecnologias, ver o número especial da revista Laboreal: Antropotecnologia, ferramenta ou engodo? Volume 8 N.º 2 | 2012: https://doi.org/10.4000/laboreal.6378

Recebido: 07 de Abril de 2023; Aceito: 07 de Junho de 2023

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