1. Considerações iniciais
O tema desta pesquisa tem como foco a Linguagem e o Trabalho: os discursos das professoras donas de casa sobre as suas atividades de trabalho, dizeres que se referem às condições reais de realização das tarefas prescritas por normas antecedentes ao agir das trabalhadoras. A delimitação do estudo decorre da perspectiva teórica que envolve o diálogo entre os estudos ergológicos do filósofo Yves Schwartz e a abordagem enunciativo-discursiva de Dominique Maingueneau, ressaltando as práticas discursivas sobre o trabalho. O estudo interdisciplinar entre a abordagem ergológica, a cenografia e o ethos discursivo é fundamental para compreender o sujeito na atividade e em situações de trabalho, considerando que “atividade” se relaciona à ação do trabalhador em relação ao que se espera dele na “situação de trabalho”, ou seja, no contexto em que essa atividade acontece.
Estudar as práticas discursivas sobre o trabalho em contexto de pandemia, tendo por base o discurso de professoras donas de casa entrevistadas, faz-se relevante tanto do ponto de vista teórico quanto social para a compreensão, por exemplo: dos saberes mobilizados durante a realização das atividades laborais, dos debates de normas e valores, bem como das dramáticas vivenciadas por essas profissionais, tanto na área da educação quanto na atividade realizada no lar, como donas de casa.
A questão norteadora estabelecida para esta investigação se define da seguinte maneira: os discursos sobre o trabalho, enunciados pelas professoras donas de casa, constrói cenografias e ethos discursivos como imagens de si que permitem compreender o debate de normas orientado por valores e dramáticas de uso do corpo-si nas atividades laborais. Diante dessa questão, temos como objetivo de pesquisa identificar e analisar cenografias e ethos discursivos, manifestados nas práticas linguageiras sobre o trabalho das professoras donas de casa, que permitem compreender as dramáticas de uso do corpo-si nas atividades laborais.
No que diz respeito à fundamentação teórica, conferimos especial destaque às contribuições teóricas referentes à abordagem ergológica (Durrive, 2011; Nouroudine, 2002; Schwartz, 2014; (Schwartz & Durrive, 2010; Trinquet, 2010) em interface com a perspectiva enunciativo-discursiva (Maingueneau, 2005, (Maingueneau, 2008, Maingueneau, 2018a, Maingueneau, 2018b, 2020).
Foi sob esse enfoque interdisciplinar que elaboramos o seguinte percurso metodológico: a pesquisa é do tipo exploratória, com procedimento bibliográfico e de campo, mediante abordagem qualitativa. O corpus de análise se constitui de excertos de depoimentos selecionados a partir de duas entrevistas não estruturadas realizadas pelo WhatsApp[ ] com professoras donas de casa tendo por base a seguinte pergunta: de que forma você vem lidando com os desafios na sua profissão, tanto na atividade docente quanto no lar, diante do atual contexto da pandemia?
Estruturalmente, o texto deste artigo está assim organizado: primeiramente, detalhamos alguns conceitos teóricos basilares acerca da ergonomia da atividade, da ergologia e das dramáticas do corpo-si na atividade laboral. Em seguida, discorremos sobre cenografia e ethos discursivo como imagem de si. Prosseguimos com os procedimentos metodológicos, com a análise do corpus e com a apresentação dos resultados. Por fim, encerramos com as considerações finais.
2. Ergologia, cenografia e ethos
Este artigo tem especial interesse pela relação entre os estudos ergológicos e enunciativos com ênfase na análise das práticas discursivas sobre o trabalho das professoras donas de casa. Compreendemos que trabalhar é vivenciar uma experiência de si mesmo e de seu tempo, empreendendo à atividade o corpo e suas faculdades singulares, sendo a linguagem o resultado de uma atividade humana da qual faz parte o enunciador e o coenunciador (eu/tu) que agem discursivamente no mundo. Os sujeitos também expressam suas singularidades nas escolhas linguístico-discursivas em situações de trabalho, considerando os saberes da experiência mobilizados na atividade.
Apresentamos na sequência a fundamentação teórica que dá base a esta pesquisa, cujo conteúdo é representado pelos tópicos “Linguagem e trabalho: ergonomia da atividade e ergologia”, “ O corpo-si entre as dramáticas, o impossível e o invivível” e “Cenografia e ethos: imagens de si no discurso”.
2.1 Linguagem e trabalho: ergonomia da atividade e ergologia
A ergologia é uma démarche, concebida como o estudo da atividade humana, que reconhece a atividade de trabalho como aprendizagem permanente dos debates de normas e de valores que se renovam indefinidamente. A abordagem ergológica envolve “o projeto de melhor conhecer e, sobretudo, de melhor intervir sobre as situações de trabalho, para transformá-las” (Schwartz, Duc, & Durrive, 2010, p. 25). A noção de atividade originou-se na França, nos estudos de ergonomia, a partir de 1980, como uma proposta de investigação pluridisciplinar com a participação do filósofo Yves Schwartz, do sociólogo Bernard Vuillon e do linguista Daniel Faïta.
A ergonomia de abordagem francesa foi precursora no que concerne às questões e aos conceitos da ergologia. Demarcou como objeto de estudo a relação homem-trabalho e os desdobramentos desse encontro, visando construir ambientes laborais mais saudáveis. Segundo Duraffourg (2013, p. 39-40), “o campo de pesquisa e de intervenção da ergonomia é a própria atividade de trabalho (quando o homem está trabalhando, o que faz e como o faz?) [...]”. Mediante a observação do trabalho repetitivo realizado nas linhas de montagem, na administração científica do trabalho, foi possível perceber as enormes variabilidade, complexidade e subjetividade às quais está sujeito o homem em reais situações de trabalho e os efeitos nocivos produzidos pelas organizações tayloristas. Conforme Souza-e-Silva (2002, p. 64, grifo da autora), “decorre daí a célebre oposição trabalho prescrito ou tarefa/trabalho real ou atividade, alicerce da vertente dos estudos ergonômicos que elegeram a análise da atividade como fonte e método de construção de saberes sobre o trabalho”. Essa distância entre o trabalho prescrito (pelas normas antecedentes) e o trabalho real (executado aqui e agora) revela a singularidade do homem na atividade, a maneira própria do trabalhador gerir as situações inusitadas e impostas pelo meio laboral.
Nesse sentido, o ponto de vista da atividade humana constitui o cerne da perspectiva ergológica (Schwartz, 2010), que investe na busca pela compreensão das relações de trabalho através da análise do discurso do trabalhador quando ele enuncia sobre sua própria atividade. Desse modo, compreender-transformar a atividade de trabalho pela linguagem implica considerar a interdisciplinaridade entre os estudos discursivos e ergológicos, visto que a linguagem “é um elemento essencial na construção da ação e da significação, na afirmação das identidades profissionais [...]” (Faïta, 2002, p. 47). As relações profissionais se concretizam na e pela linguagem. O sujeito se relaciona com a atividade laboral individualmente quando dirige a sua fala para acompanhar e orientar seus próprios gestos quando trabalha. Ainda, de forma intersubjetiva, dirige-se ao outro, comunica-se, interage com colegas envolvidos em uma atividade realizada coletivamente.
Os estudos realizados pelos ergonomistas, ergólogos e analistas do discurso revelam que, de modo oposto ao que as organizações científicas tayloristas tentaram demonstrar, sem, todavia, conseguir, o trabalho não é simples. A partir do momento em que se trata da vida e da atividade humana, deparamo-nos com a complexidade do trabalho “no sentido de ser composto de várias dimensões intrínsecas: econômica, social, cultural, jurídica etc. [...] as atividades, os saberes e os valores são propriedades intrínsecas ao trabalho, que se manifestam no cruzamento e na contaminação mútua” (Nouroudine, 2002, p. 19).
Isso nos leva a destacar a importância dos saberes constituídos e investidos para que possamos analisar uma situação de trabalho. De acordo com Trinquet (2010, p. 100), “para compreender e analisar uma situação de trabalho, o procedimento de associar os saberes acadêmicos com os saberes da experiência daqueles que trabalham, certamente, consiste em uma atitude deontológica e ética [...]”. Ao colocar em diálogo o conjunto dos saberes elaborados por diferentes disciplinas, a ergologia busca recuperar valores no que diz respeito ao reconhecimento dos múltiplos saberes e experiências. Para tanto, propõe o dispositivo de análise baseado em três polos (DD3P), desenvolvido por Yves (Schwartz, 2010, p. 264, grifo do autor): “O dispositivo dinâmico de três polos é um dispositivo de trabalho cooperativo, de formação”, que se configura da seguinte maneira: a) o primeiro polo remete aos saberes disponíveis ou constituídos em desaderência com a atividade; b) no segundo polo, situam-se os saberes investidos na atividade (aqui e agora), pelas “forças de convocação e validação” que se referem aos saberes práticos e recriadores através dos debates de normas. Estão em aderência com a atividade; c) o terceiro polo (de exigências ergológicas), que faz mediação entre os dois polos anteriores, envolve os conceitos, a ética, os valores e os meios.
Abdallah Nouroudine (2002), analista das situações de trabalho oriundo da filosofia, confere destaque à relação trabalho/linguagem, configurando-a em três modalidades: a linguagem sobre o trabalho, a linguagem no trabalho e a linguagem como trabalho. De acordo com o filósofo, essa tripartição foi necessária para que se consolidasse um espaço de reflexão sobre o papel da linguagem em relação ao trabalho, embora a complexidade das relações laborais faça parte da linguagem em sua totalidade. Nouroudine (2002) emprega o conceito de “práticas linguageiras” como termo genérico que contempla os três aspectos da linguagem antes mencionados. A linguagem como trabalho é expressa pelo ator e/ou coletivo dentro da própria atividade, em tempo e lugar reais, logo, a linguagem no trabalho seria uma das realidades constitutivas da situação de trabalho global na qual se desenrola a atividade que, por vezes, trata de conteúdos que não se relacionam com sua realização, são conversas sobre a vida pessoal, política, atividades etc., assuntos que fazem parte do cotidiano dos sujeitos (Nourodine, 2002). De certa forma, a linguagem no e como trabalho são, simultaneamente, distintas e ligadas.
Em relação à linguagem sobre o trabalho, Nouroudine (2002) destaca que os protagonistas do trabalho, muitas vezes, expressam-se a respeito de sua atividade em situações nas quais os saberes são transmitidos de uns aos outros em uma equipe, de um serviço, de uma empresa, ou em relações pessoais entre amigos e familiares. Porém, mesmo assim, é “pertinente o questionamento acerca de ‘quem fala?’, ‘de onde ele/ela fala?’, ‘quando ele/ela fala?’ para que se compreenda onde se situa o campo de validação e de pertinência da ‘linguagem sobre o trabalho’” (Nouroudine, 2002, p. 26).
Nesta pesquisa, especificamente, nos atemos às dimensões da linguagem sobre o trabalho, ou seja, buscamos, a partir dos depoimentos das professoras donas de casa, convocar os saberes que emergem das práticas discursivas sobre o trabalho (Nouroudine, 2002, p. 22-25), compreendendo-o como lugar permanente de microescolhas (Schwartz & Durrive, 2010), debate de normas e valores, que possibilita às trabalhadoras normalizar e renormalizar suas experiências na atividade laboral. Nesse contexto, na próxima seção, destacamos o trabalho enquanto atividade humana exercido por um corpo-si, ou seja, um sujeito que vivencia dramáticas de usos de si.
2.2. O corpo-si entre as dramáticas, o impossível e o invivível
O trabalho, tal como evidenciou a ergonomia da atividade, é o lugar de uma distância inevitável entre o prescrito e o real, portanto, lugar de acontecimentos complexos, marcado por decisões a fim de preencher as lacunas do anteriormente instituído. Para a ergologia, nessa constatação se inscrevem as renormalizações, visto que, mesmo para mobilizar as normas antecedentes, o trabalhador pratica escolhas e, ao operar na busca por gerir essas normas, o homem faz história. A atividade se realiza frente aos limites das prescrições que exigem a ação dos seres humanos em meios afetados por múltiplas e pequenas variabilidades. Essas podem ser sociais, culturais, instituídas pela coletividade ou pelo próprio sujeito que se faz presente na atividade laboral de maneira singular.
Schwartz, 2010) ressalta que é “impossível para o meio evitar a variabilidade. Ainda mais que o humano, renormatizando, faz crescer a variabilidade: para ele, o idêntico seria invivível” ((Schwartz & Durrive, 2010, p. 190). As normas não podem antecipar toda atividade. Dessa forma,
esse obstáculo à antecipação absoluta, esse impossível, é uma condição de vida - porque evoluir em um mundo padronizado, inteiramente pensado pelos outros, seria invivível por um humano que tem necessidade de tentar recentrar o meio em torno de suas normas de saúde (Schwartz & Durrive, 2015, p. 380).
Ou seja, para agirmos em um mundo em que o prescrito (a padronização total) é impossível, é necessário que as pessoas reflitam, recorram a seus colegas quando isso for possível, e exerçam o uso de si para gerir as infidelidades do meio. Segundo Bavaresco e Freitas (2020),
as normas regulam a atividade, mas não devem ter um fim em si mesmas, [...] quando as situações de trabalho inesperadas acontecem, espera-se que o indivíduo utilize seu conjunto de valores, seus recursos pessoais para solucionar a demanda que extrapolou as normas (p. 121).
Essa infidelidade é gerida não como uma execução, e sim, uso:
Pessoalmente fui levado a propor a ideia de que toda atividade - todo trabalho - é sempre uso. Uso de si, mas com essa dualidade às vezes simples e ao mesmo tempo muito complicada, que é uso de si ‘por si’ e ‘pelos outros’[...] todo trabalho é problemático - problemático e frágil - e comporta um drama (Schwartz, 2010, p. 194).
Esse teórico chama de dramática todo problema da atividade em geral e do trabalho. Essas dramáticas podem ocorrer de forma particular e na coletividade das situações de trabalho. “A dramática do uso de si tem lugar quando ocorrem eventos que rompem os ritmos das sequências habituais, antecipáveis, da vida” (Schwartz & Durrive, 2015, p. 377). Daí vem a necessidade de reagir, no sentido de lidar com esses eventos, “fazer uso de si”. Ao mesmo tempo, a gestão de si produz novos eventos e, consequentemente, transforma a relação com o meio e entre as pessoas envolvidas na atividade. Diante de uma eventualidade complicada e inusitada, frente a um contexto de pandemia, por exemplo, cada professora dona de casa tratará os vazios de normas recorrendo a um universo de recursos pessoais hierarquizado por seu conjunto de valores do momento (Schwartz, 2011). Desse modo, a atividade aparece como uma tensão, ou seja, uma dramática.
Gomes (2021) defende que o dia a dia de trabalho docente é perpassado por diversas dramáticas:
Sempre haverá situações singulares e que exigirão do professor uma atitude não planejada nem pelas normas, nem por ele próprio. O docente tem a responsabilidade de gerir a distância entre o prescrito e o real quando percebe que a atividade preparada para a aula não levou os alunos a se engajarem [...] (p. 54).
Decidir mudar o planejamento de uma aula é enfrentar as provocações e os desafios do aqui e agora, é ir ao encontro do presente, ao que (Schwartz e Durrive, 2015) chamam de aderência. A aderência é definida como um fenômeno cuja significação está estreitamente ligada à situação vivida aqui e agora (no latim hic et nunc). Já a desaderência é abordada como conceito, cujo foco diz respeito às “normas que enquadram a atividade, porque elas estão voluntariamente desligadas do aqui agora” (Schwartz e Durrive, 2015), p. 376). Manipular conceitos, lutar contra limitações postas no momento presente significa estar em aderência com a atividade. Perante a desaderência de algumas prescrições, o corpo-si participa de processos de renormalização que estão no cerne da atividade.
Desse modo, a distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real remete à atividade de um corpo-si e ao debate de normas orientado por valores. O termo corpo-si foi escolhido por (Schwartz, 2014) para referir-se ao indivíduo que trabalha. De acordo com o filósofo, “foi para evitar inserir esse esforço de recentramento nas problemáticas demasiado codificadas do ‘sujeito’, da ‘subjetividade’ (que envolvia o risco de neutralizar a dimensão de uma busca da vida em nós) que preferimos usar o termo voluntariamente obscuro ‘si’” (Schwartz, 2014, p. 261). Tal conceito, de característica enigmática, refere-se a um corpo vivo de um ser psíquico e histórico. O corpo-si “trata-se de uma pessoa enquanto ela está em atividade: um centro de arbitragem que incorpora o social, o psíquico, o institucional, as normas, os valores” (Schwartz e Durrive, 2015, p. 376). Cada sujeito funciona com um certo número de normas intrínsecas que são aquelas do seu corpo-si, que as constitui pelas renormalizações sucessivas. É através dessas renormalizações que o indivíduo torna-se singular e produz história, pois os trabalhadores em atividade não cessam, portanto, de arbitrar diante dos vazios de normas ou da inadaptação frente à rigidez das normas antecedentes.
Diante do exposto, ressaltamos que toda situação de trabalho é única. O corpo-si mobiliza saberes constituídos e investidos, pelos usos de si, influenciado por seus valores individuais, diante da singularidade de cada situação laboral. Neste estudo, pretendemos desvelar as dramáticas de uso do corpo-si vivenciadas pelas professoras donas de casa através da análise da cenografia e do ethos discursivo. Dessa forma, na seção seguinte, abordaremos aspectos teóricos sobre a cenografia e o ethos discursivo como imagem de si.
2.3. Cenografia e ethos: imagens de si no discurso
A análise do discurso toma emprestada do teatro a metáfora de cena para se referir ao espaço instituído e ao espaço construído da enunciação, que se traduzem em duas dimensões do discurso como encenação para o linguista francês (Maingueneau, 2008): cena de enunciação e cenografia. A cena de enunciação é o espaço instituído, “dado” pela situação, dividido por conseguinte em cena englobante e cena genérica. A cena englobante diz respeito ao tipo de discurso mobilizado (um discurso pode ser do tipo político, científico, religioso...), enquanto a cena genérica “é a das normas constitutivas de um gênero ou de um subgênero de discurso” (Maingueneau, 2020, p. 19) - o discurso do tipo político, por exemplo, pode surgir encaixado em um gênero jornalístico, como o editorial. Já a cenografia, por sua vez, está ligada ao espaço construído da enunciação, ou seja: é elaborada no momento da enunciação, pelo enunciador, a partir do espaço instituído. De acordo com (Maingueneau, 2008, p. 51, grifo do autor), “a situação de enunciação não é, com efeito, um simples quadro empírico, ela se constrói como cenografia por meio da enunciação”. Isso significa que a cenografia, por ser do âmbito construído da enunciação, “deve ser legitimada e relegitimada pela própria enunciação que sobre ela se apoia [...]” (Maingueneau, 2020, p. 19).
No âmbito da cenografia, enquanto projeção da imagem de si do enunciador com vistas a atingir certo efeito discursivo, encontra-se o ethos. Maingueneau (2020, p. 9) afirma que “estudar o ethos é se apoiar em um dado simples [...]: o destinatário constrói uma representação do locutor por meio daquilo que ele diz e de sua maneira de dizê-lo”. Simplificadamente, essa representação pode ser positiva ou negativa de acordo com a imagem de si projetada pelo locutor em sua enunciação; consciente disso, até certo ponto, o locutor implementará certa cenografia para controlar o tanto quanto for possível o ethos construído pelo destinatário. Importante lembrar que o ethos não é um conceito nativo da Análise do Discurso francesa, mas adotado a partir da Retórica de Aristóteles (Maingueneau, 2020), em que ethos seria a imagem que o orador transmite de si mesmo e sua capacidade de persuadir o público através da phronesis (prudência, mais associada ao logos), areté (virtude, mais associada ao ethos) e eunoia (benevolência, mais associada ao pathos). Na década de 70, com o desenvolvimento da AD francesa, Oswald Ducrot recorreu ao ethos em sua teoria polifônica da enunciação, seguido por Amossy e, ainda, por (Maingueneau, 2008, 2020). Abordagens sobre ethos e cenografia apareceram nos escritos de Maingueneau na década de 80, o que levou à sua Teoria da Semântica Global publicada em 1984, sobretudo quanto ao modo de enunciação. Em anos recentes, a noção de ethos associada à cena de enunciação, sobretudo cenografia, tornou-se muito usada em estudos discursivos realizados por pesquisadores brasileiros.
Sabe-se, portanto, que a cenografia diz respeito à mobilização de cenas enunciativas que a engendram no processo enunciativo através do qual o locutor tem maior controle para promover efeitos de sentido de acordo com suas expectativas. Dessa cenografia emerge o ethos que resulta do processo construído discursivamente como resultado da imagem do enunciador que é elaborada pelo destinatário. É preciso, entretanto, destacar que o ethos não é conclusão de um processo simples e direto, ao estilo das antigas descrições da comunicação como “emissor > emissário”; o ethos envolve a imagem de si processada deliberadamente pelo enunciador, a imagem que acontece à revelia de suas intenções, bem como a imagem que o destinatário já retinha desse locutor antes da interação atual. A esses ethos, Maingueneau, 2008) dedica o seguinte esquema, conforme representado na Figura 1.
Nota: Adaptado de Maingueneau, 2008, p. 71)
O que chamamos de ethos, de facto, é o resultado desse processo, o ethos efetivo, resultado da interação entre o ethos pré-discursivo e o ethos discursivo. Simplificadamente, o ethos discursivo é aquele construído na enunciação, em ação na cenografia do locutor, e é em parte explícito (o ethos dito, aquilo que o locutor fala a respeito de si mesmo, validação literal de sua autoimagem) e em parte implícito (o ethos mostrado, aquilo que o locutor deixa transparecer para reforçar ou validar sua imagem de alguma forma). Por último, todos esses elementos são influenciados pelo ethos pré-discursivo, imagem de si trazida pelo locutor previamente à enunciação em curso - essa imagem, contudo, é apenas parcialmente precisa, já que o destinatário jamais terá acesso à totalidade do locutor; para preencher os vazios, o destinatário recorre a estereótipos orientados de acordo com universos de valores, que Maingueneau, 2008) chama de mundos éticos.
O político, por exemplo, em um debate televisivo às vésperas de uma eleição, toma a palavra e projeta determinado ethos através de uma encenação do discurso, mas também já carrega certo ethos prévio àquela enunciação. O destinatário (eleitor em potencial) não tem acesso à totalidade do político, mas tem certa opinião prévia em relação a ele e complementa essa imagem com valores do mundo ético que o político habita (se é um político de esquerda, de direita, de centro etc.) e do estereótipo ao qual ele está ligado (há um certo estereótipo de “político”, assim como há um certo estereótipo de “político de esquerda” e “político de direita”); esses dados entrarão em conflito ou em acordo com o ethos discursivo que o político em questão projeta no momento de sua fala para a construção final do ethos efetivo para o destinatário. Pouco adianta (embora seja possível) fazer uso do ethos dito e declarar com todas as letras “sou um administrador competente”, é preciso transmitir (ethos mostrado) essa competência através de sua fala, seus gestos, seu tom de voz, sua cadeia de raciocínio.
Do mesmo modo, um docente pouco familiarizado com a tecnologia necessária para ministrar aulas remotas com tranquilidade pode sentir que deve transmitir um ethos de competência com essa recém-adquirida necessidade para que sua falta de desenvoltura não seja confundida por alunos e colegas com uma falta de competência em relação à matéria de suas aulas. Nesse caso, o modo de dizer deve validar o que é dito, que por sua vez certifica o modo de dizer, o que (Maingueneau, 2005, p. 79) chama de “enlaçamento paradoxal” a partir do qual o destinatário “incorpora” o ethos àquela cenografia e o leva, gradualmente, a aceitar o mundo ético elaborado na fala do locutor. A esse elemento, Maingueneau (2020) chama de “incorporação”, pela qual o destinatário “veste” a imagem de si transmitida pelo locutor para habitar seu mundo ético; um exemplo seria a adesão de peças de vestuário, sotaque e trejeitos para que um estrangeiro se sinta mais à vontade, “assimilado” em um país estranho: o modo de se portar que implica a adesão não apenas de fatores cosméticos, mas também de valores culturais.
Conforme posto por Maingueneau (2020, p. 14, grifo do autor), “O destinatário incorpora [...] um conjunto de esquemas correspondentes a uma maneira específica de se relacionar com o mundo [... e com a] comunidade imaginária daqueles que aderem ao mesmo discurso”, legitimado, por sua vez, na persona do fiador, ligada a estereótipos e cenas validadas pela comunidade linguageira em questão. É uma cena validada hoje, em nossa sociedade, por exemplo, que o Terceiro Reich tenha sido uma máquina geopolítica assassina baseada no ódio e em delírios de superioridade racial, embora não fosse esse o caso até meados da década de 30, vide a vergonha histórica para a Revista Time que escolheu o então chanceler alemão como sua pessoa do ano em 1938. O estereótipo está ligado a valores culturais, componentes de mundos éticos que podemos habitar ou não. Esses valores podem mudar com o tempo, de modo que podem ser utilizados para afiançar ou não a imagem que o locutor deseja transmitir.
Desse modo, o ethos do sujeito, configurado discursivamente dentro de uma cenografia também organizada pelo discurso, interpela um modo de agir e um modo de ser presumidos pelo destinatário a partir da imagem de si que ele projeta. Se o sujeito age de certa forma, consequentemente, em razão de seu comportamento, ele aparenta também ser dessa mesma forma, eliciando um processo de identificação que o transforma em um modelo a ser imitado. Como veremos na análise, boa parte dos ethos projetados pelas professoras donas de casa em meio à pandemia da COVID-19 podem ser explicados ao se analisar essa luta para encontrar validação de sua profissão “oficial” e “não oficial” enquanto se exige competência absoluta em ambas.
3. Metodologia: uma interface entre estudos ergológicos e discursivos
A pesquisa neste estudo é do tipo exploratória, bibliográfica e de campo com abordagem qualitativa, conforme a classificação oferecida por (Prodanov e Freitas, 2013). A materialidade do corpus é composta por trechos selecionados de duas entrevistas não estruturadas realizadas por áudio, via WhatsApp, com profissionais que desempenham duas atividades de trabalho simultaneamente: a de professora e a de dona de casa. Sobre a coleta de dados, os discursos provenientes das entrevistas, cabe salientar que, naquele momento, em função das medidas sanitárias e distanciamento social em decorrência da pandemia da Covid-19, as entrevistas presenciais se tornaram inviáveis. Portanto, optamos pelo uso do aplicativo WhatsApp como um novo recurso que permitiu a continuidade dessa pesquisa, apesar da pandemia. A entrevista foi aplicada no ano de 2021 1.
Convém explicitar a concepção de entrevista seguida neste estudo. Partindo da discussão de (Rocha, Daher e Sant’Ana, 2004), compreendemos que a entrevista, no contexto de pesquisa acadêmica, pode ser entendida como um dispositivo de produção de textos a partir de uma perspectiva enunciativo-discursiva, ou seja, produção situada socio-historicamente enquanto prática linguageira que se define por uma cena enunciativa que a singulariza no contexto da atividade laboral de professoras donas de casa. O momento da realização da entrevista se trata, portanto, “de uma nova situação de enunciação que reúne entrevistador e entrevistado, situada num certo tempo, num espaço determinado, revestida de um certo ethos, com objetivos e expectativas particulares, etc”. (Rocha, Daher e Sant’Ana, 2004, p. 14).
Embasados na entrevista enquanto dispositivo enunciativo, ressaltamos a sua importância nessa pesquisa, por considerarmos a inter-relação entre entrevistador e entrevistado uma situação de enunciação única e irrepetível. Ainda, acreditamos que o olhar do pesquisador para a materialidade discursiva, no sentido de intervir, priorizando determinados excertos textuais em detrimento de outros se faz relevante. Esse olhar para as marcas linguísticas permite que se depreendam cenografias, que constroem ethos discursivos, como imagens de si, instauradas nos discursos das professoras donas de casa quando falam sobre as atividades laborais.
Destacamos que, na fase da coleta de dados, utilizamos o recurso de áudio do WhatsApp desde o instante em que convidamos as entrevistadas professoras e donas de casa para participar da pesquisa até a realização efetiva das entrevistas. A Entrevistada A é professora na Educação Básica. Ministra aulas em uma escola pública, na rede estadual de ensino da região norte do Rio Grande do Sul, Brasil. A Entrevistada B, por sua vez, é professora na rede municipal de ensino e atua no ensino fundamental, região norte do mesmo estado. As entrevistas foram realizadas no dia 19 de agosto de 2020, período crítico da pandemia da covid-19.
No momento da entrevista, enviamos um áudio para as entrevistadas com 5 questões elaboradas previamente. São elas: a) Quais orientações institucionais você segue para realização da atividade docente? Você considera essas orientações adequadas? Por quê?; b) Como é ser professora e dona de casa? Quais são os principais desafios enfrentados na sua dupla jornada de trabalho?; c) De que forma você vem lidando com os desafios na sua profissão, tanto na atividade docente quanto no lar, diante do atual contexto da pandemia?; d) Como você gere a diferença entre o que é planejado e o que é realizado nas atividades (docente e dona de casa)?; e) Como você se vê na profissão que escolheu? E na atividade do lar?
Dada a limitação de espaço desse artigo, foram consideradas, para fins de análise, respostas apenas para a seguinte questão: De que forma você vem lidando com os desafios na sua profissão, tanto na atividade docente quanto no lar, diante do atual contexto da pandemia?
Posteriormente, ouvimos todos os áudios registrados durante a aplicação de cada entrevista para transcrever os depoimentos; fizemos uma adaptação das normativas elaboradas pelos pesquisadores do Projeto NURC/SP, por meio do material organizado pelo professor Dino Preti (1993), intitulado Análise de textos orais. Essas normas, de acordo com os detalhamentos contidos no Quadro 1, permitem a materialização dos discursos realizados oralmente, sob o aspecto gráfico que evoca a fala.
Nota: elaborado pelos pesquisadores com base em Preti (1993)
No Quadro 1, ressaltamos que as normas possibilitam uma transcrição literal dos enunciados originados na oralidade. No entanto, a escrita não consegue reproduzir fielmente todas as características dos enunciados proferidos nas entrevistas, como a entonação, o ritmo e a velocidade da fala (Fumagalli, 2019). Assim, para que a transcrição se aproximasse ao máximo do real, buscamos respeitar, na medida do possível, as expressões originais das entrevistadas, incluindo as repetições de palavras, ênfases e expressões como “né”.
Referidas as normas das transcrições, convém destacar que as identidades das entrevistadas foram protegidas, sendo identificadas simplesmente como Entrevistada A, de quem separamos três excertos, e Entrevistada B, de quem separamos dois excertos.
Para seleção dos trechos analisados, definimos os excertos cujas materialidades representam questões importantes para análise das atividades laborais dos sujeitos envolvidos na pesquisa. Ainda, utilizamos um critério de relevância ao considerarmos que os depoimentos poderiam revelar e mostrar quanto à cenografia e aos ethos, como imagem de si, bem como quanto às dramáticas de uso do corpo-si das professoras donas de casa entrevistadas.
A análise, em sequência, terá basicamente duas etapas em interface, não excludentes: a) identificação de noções conceituais como debate de valores, vazio de normas, dramáticas de uso do corpo-si, assim como a questão da desumanização e do invivível de acordo com a abordagem interdisciplinar da ergologia, linguagem e trabalho; b) análise das cenas enunciativas que configuram cenografia(s) depreendida(s) dos conteúdos linguageiros, pistas e marcas linguísticas, expressos nos depoimentos das entrevistadas, cujo movimento discursivo constrói o ethos como imagem de si. Essa interface pode ser representada através do marco teórico e das noções conceituais de análise, conforme podemos verificar no Quadro 2:
Nota: elaborado pelos pesquisadores (2023)
A interface entre a análise do discurso com base na cenografia e no ethos, como imagem de si, conforme Maingueneau, 2005, (Maingueneau, 2008, Maingueneau, 2018a, Maingueneau, 2018b, 2020), e fundamentos teóricos da ergologia (Durrive, 2011; Nouroudine, 2002; Schwartz, 2014; (Schwartz & Durrive, 2010; Trinquet, 2010) na perspectiva da linguagem e trabalho, e ao utilizar, na análise, excertos discursivos extraídos dos depoimentos das duas professoras donas de casa entrevistadas, promove articulações que tornam possível evidenciar a realidade de uma jornada dupla de trabalho, mais especificamente, em meio à pandemia da COVID-19, caracterizando desafios diante da necessidade de ministrar aulas de modo remoto e de que maneira as fronteiras entre essas atividades de trabalho superpostas parecem ter sido apagadas nesse contexto pandêmico. Veremos, conforme Figura 2, o percurso metodológico, um dispositivo, que mobilizamos visando realizar análise dos resultados da materialidade linguageira coletada, e selecionada, decorrente das entrevistas aplicadas.
Nota: elaborada pelos pesquisadores (2023)
De acordo com os procedimentos metodológicos descritos e detalhados na Figura 2, apresentamos, na próxima seção, a análise do corpus.
4. O ethos e as dramáticas do discurso sobre as atividades de docente e de dona de casa
A pandemia da COVID-19 que atingiu o mundo no início de 2020 teve trágicas consequências humanitárias, sobretudo em países que não implementaram políticas públicas eficazes ou se viram ideologicamente fraturados pela politização de ações massivamente recomendadas pelos órgãos de saúde, como o uso de máscaras e a vacinação. Sabemos, contudo, que os resultados da pandemia vão além do número absoluto de mortes pela doença: o coronavírus alterou o modo como convivemos e trabalhamos, especialmente para profissões que têm por base a interação com grande número de pessoas, como é o caso do professor. Em se tratando do professor de ensino médio e fundamental, o tema adquire uma etapa extra de complexidade, já que a maior parte dessa classe trabalhadora é composta por mulheres, e boa parcela dessas mulheres precisa assumir duas funções: docente no horário comercial e dona de casa nas horas “vagas”. Parece-nos inescapável, nesse sentido, abordar essas questões sem considerar que o gênero é um ponto de inflexão sobre o qual as atividades de docente e de dona de casa se dobram, sobretudo à luz de contribuições importantes ao tema, como a de Hirata e Kergoat (2007), acerca dos novos parâmetros que regem a divisão sexual do trabalho neste século.
Até fevereiro de 2020, para docentes que também exerciam a atividade de donas de casa, essas funções permaneciam, na medida do possível, separadas. A pandemia, contudo, obrigou o professor a ficar em casa e dar suas aulas através do computador, o que significa que a dupla jornada de trabalho que antes era separada por algumas horas, passou a ser conduzida simultaneamente por docentes que, além de sua profissão remunerada, precisam também administrar a casa e cuidar dos filhos.
Esse é o contexto vivido pelas duas entrevistadas cujos depoimentos compõem nosso corpus. Assim, iniciamos a análise apresentando a questão e os excertos das entrevistas, conforme o Quadro 3:
Nota: elaborado pelos pesquisadores a partir da coleta e transcrição dos dados (2021)
As marcas/pistas linguísticas identificadas nos depoimentos das entrevistadas revelam a linguagem sobre o trabalho. A Entrevistada A abordou algo que ficou transparente nas jornadas de trabalho pandêmicas: o desrespeito forçado aos limites físicos e psicológicos do corpo humano. Quem não adoeceu por COVID-19 em 2020 e 2021, adoeceu por cansaço e estresse, o que está ligado às dramáticas de uso do corpo-si, sobretudo quando a Entrevistada A mencionou que “quando tu tá trabalhando num ritmo frenético tu não para pra cuidar da tua saúde […]”. De acordo com (Schwartz, 2014, p. 263), “De um lado, cremos poder afirmar que o trabalho como uso de si é uso de um corpo-si”, ou seja, é sempre considerado nos estudos ergológicos que a atividade de trabalho, mesmo quando realizada de modo supostamente exclusivamente intelectual, envolve indispensavelmente o uso do corpo do sujeito como uma entidade inseparável de si: mesmo quando a atividade exige somente que o trabalhador permaneça sentado e faça uso de seu raciocínio e sua voz, em caso de estafa ou consequências de tempo prolongado em uma mesma posição, por exemplo, é o corpo do sujeito que adoece e sofre, algo que é tratado com atenção pela ergologia (Durrive, 2011; Schwartz, 2014). Dessa forma,
Mesmo quando as formas do trabalho parecem prescindir do invólucro corporal, como no caso em que o único veículo e ferramenta de consumação da atividade industriosa é a linguagem (por exemplo, as formas de teletrabalho), é no entanto através de uma sinergia quase invisível, uma punção escura em todos os recursos localizados no seio deste invólucro, que a produção se realiza (Schwartz, 2014, p. 263).
Nesse sentido, o depoimento da docente revela o desproporcional uso de si pelos outros ao declarar que falta tempo para dar atenção à própria saúde. “Tu vai deixando pra lá enquanto não sente uma dor enquanto não sente uma indisposição muito forte […]”. Os pequenos sacrifícios do corpo em prol da atividade laboral se somam, acumulam, e resultam um prejuízo de saúde para o trabalhador.
Desse mesmo modo, a docente elabora através de sua fala um ethos discursivo de honestidade e transparência através de uma cenografia que, pelo modo de dizer, atesta e legitima o conteúdo do depoimento, de acordo com o enlaçamento paradoxal de que trata Maingueneau, 2005). Pode-se observar também que, através da objetividade com que o depoimento é dado, ou seja, sem maiores encenações e teatralidades, enumerando de modo claro os fatos do cotidiano da docente e dona de casa no Brasil da COVID-19, o destinatário pode facilmente incorporar o ethos da Entrevistada A, ela mesma fiadora do seu testemunho, e assimilar os valores com os quais é possível se relacionar com sua realidade (Maingueneau, 2020).
Há uma ampliação dessas noções no trecho seguinte, excerto 2 do depoimento da Entrevistada A: “Começamos a perceber que o nosso corpo não é de ferro né? e que... ficamos doentes ou já estávamos doentes né? e... com a pandemia esse ... esse ficar né acaba ahn... acaba sendo mais revelador do que se você continuasse naquele ritmo eu acho que o trabalho quanto ele é excessivo ele acaba fazendo com que a gente esqueça do humano né? e... a gente não pode esquecer do humano a gente tem que cuidar da nossa saúde em primeiro lugar então acho que esse é o maior desafio né?”.
Do mesmo modo, há o uso da linguagem sobre o trabalho (Nouroudine, 2002) para abordar a desumanização do trabalhador, algo que está no centro das preocupações da ergologia. A multiplicidade de tarefas a realizar ao mesmo tempo e a dificuldade de controlar o próprio curso de seu trabalho evidenciam que se trata de um trabalho que é vivido negativamente de modo intenso: “é um trabalho que se intensifica de modo que a carga se torna cada vez mais difícil de suportar” (Schwartz et al., 2010, p. 30). Referimo-nos a uma forma de atividade historicamente específica, em “situações mercantis” (Schwartz & Durrive, 2010, p. 30); ao trabalho como atividade humana.
Observamos com frequência nesses últimos anos o processo de desumanização do sujeito em todas as áreas e campos laborais, seja no campo da saúde, em que relatos de médicos e enfermeiros enfrentando plantões de até 18 horas se tornaram comuns, seja na discriminação das atividades de trabalho “essenciais” e “não essenciais”, cenário esse em que muitos trabalhadores foram dispensados ou foram obrigados pela necessidade financeira a se submeterem a altos riscos de contaminação pelo vírus da Covid-19. No caso do professor das redes pública e particular, foram numerosos os protestos em 2020 em favor da volta presencial às aulas, o que ocorreu paulatinamente em 2021, mesmo sem uma cobertura vacinal adequada.
Tal situação de negligência imposta à saúde do trabalhador é refletida no depoimento da Entrevistada A, sobretudo quando ela afirmou que “o trabalho quando ele é excessivo ele acaba fazendo com que a gente esqueça do humano”. Quando a atividade laboral é excessiva, acumulado com a atividade de dona de casa e em um contexto insalubre tanto física (em razão do coronavírus) quanto psicologicamente (em razão do isolamento social), adentramos o campo do impossível e do invivível, conforme Schwartz e Durrive (2005), já que esse mundo de valores e normas que nos é imposto (o do contexto pandêmico, e, não raro, normas específicas desse contexto) exige a criação de novas normas não antecipáveis. De acordo com (Schwartz, 2014),
Temos de agir num mundo que não criamos, saturado, portanto, por inúmeras normas antecedentes de diversos níveis e graus de proximidade com as exigências do presente. Ora, dissemos que era a um só tempo impossível e invivível a submissão desse nosso agir ao controle estrito por essas normas antecedentes (p. 264).
Nesse sentido, a imagem de si transmitida pela docente e dona de casa em seu depoimento interpela o sujeito à elaboração de um ethos de franqueza, mas também de sofrimento em razão da situação limítrofe de insalubridade com que o professor brasileiro é forçado a batalhar. Isso pode significar, inclusive, a falta de equipamentos adequados e a necessidade de se adequar rapidamente a uma nova modalidade de interação, dessa vez à distância, conforme é evidenciado pelo excerto: “Foi um divisor de águas pra começar a trabalhar com tecnologia quando muitos de nós né? sabíamos apenas o básico e de repente a gente se vê numa situação que o trabalho não pode parar né? e como ele não pode parar você precisa se adaptar a uma realidade nova e aí vem toda a questão tecnológica e tu tem que aprender a mexer em tempo recorde ahn... formações assim que não te ajudam porque na prática é diferente né? os problemas eles se dão no dia a dia no desenrolar dos acontecimentos... então isso pra mim também foi um dos maiores desafios né? de... da questão tecnológica né? de você conseguir cativar o aluno estando longe dele deixar tuas aulas né”.
A Entrevistada A, nesse excerto, deixou clara a questão do vazio de normas e das renormalizações necessárias no desempenho de uma atividade de que tratam (Schwartz e Durrive, 2010), visto que “Advêm dessas arbitragens decisões sempre parcialmente não antecipáveis, ‘renormalizações’; [...] Daí vem a ideia de que esse uso de si é uma imposição contínua dessas micro-escolhas permanentes [...]” (Schwartz, 2014, p. 261). O docente brasileiro, sobretudo o da rede pública, sempre foi bastante mal aparelhado tecnologicamente; por mais que nos anos recentes tenha havido um esforço para providenciar certos equipamentos, como notebooks, é seguro dizer que uma aula remota exige um bom microfone para um áudio limpo, rápida conexão de internet, uma câmera relativamente boa, um hardware que suporte as demandas da aula online diariamente e, sobretudo, treinamento do docente no uso dessas tecnologias.
Conforme destacado pela Entrevistada A, “tem que aprender a mexer em tempo recorde ahn... formações assim que não te ajudam porque na prática é diferente né? os problemas eles se dão no dia a dia no desenrolar dos acontecimentos”. Insere-se aqui a questão dos saberes investidos e constituídos de que trata Trinquet, 2010, p. 100) quando afirma: “[...] coloca-se em prática um saber pessoal, para preencher e gerir a distância prescrito/real [...]. Esse saber investido - que é um verdadeiro saber - é complementar do saber constituído [...]”. É preciso associar ambos para a resolução de problemas na atividade; esse saber pessoal deve ser ativado no âmbito do que a docente traz ao dizer que “formações não ajudam porque na prática é diferente”, ou seja, o cotidiano da atividade laboral do ensino remoto exige os saberes constituídos, mas esses não dão conta de abarcar todas as situações que podem surgir durante a atividade, ao passo que tais lacunas são preenchidas pelos saberes investidos da docente.
Na sequência, veremos em detalhes os dois excertos selecionados, conforme depoimento da Entrevistada B, também uma docente e dona de casa que exerceu seu trabalho no contexto da pandemia da COVID-19.
O depoimento da Entrevistada B, ao ser questionada sobre a forma como vem lidando com os desafios na profissão, tanto na atividade docente quanto no lar, diante do atual contexto da pandemia, evidencia que para dar conta da dupla jornada laboral a docente e dona de casa precisa, também, do auxílio constante de familiares, principalmente das avós que, nesse cenário pandêmico, tornaram-se ainda mais suscetíveis a infecções graves transmitidas pelo vírus. Os enunciados do excerto 1 da entrevistada B permitem realçar, sob a perspectiva ergológica, o debate de normas, valores e intensas dramáticas do uso do corpo-si, como é possível observar em “eu ano passado tinha muito medo por causa da minha mãe já tem sessenta e poucos anos né ficava com minha filha de manhã tinha que ir pra escola né quando retornou eu acabei que... minha filha não voltou o ano passado ela ficou no remoto né? por causa que a mãe não tinha feito vacina eu tinha muito medo né?”. De acordo com Schwartz, 2010, p. 195), “essa dramática do uso de si é revivida permanentemente, porque o uso de si pelos outros é talvez em um certo momento mais forte”. Em meio à pandemia, a preocupação com a saúde da mãe se intensifica e o medo de que ela contraia o vírus passa a fazer parte da vida da docente entrevistada.
A realidade nos mostra que no trabalho sempre é preciso fazer escolhas. Não há outro jeito. A docente e dona de casa escolheu contar com a ajuda da avó para organização da casa e cuidado com a filha, já que a carga de trabalho estava difícil de suportar. Trabalhar é fazer uso de si e “Se fazemos escolhas, por um lado elas são feitas em função de valores - mas por outro, essas escolhas são um risco, já que é preciso suprir os ‘vazios de normas’” (Schwartz, 2010, p. 191). Então, enfrentar uma dupla jornada laboral demandou, necessariamente, que a profissional imaginasse soluções de maneira a esperar um bom resultado para sua família, apesar de todas as insuficiências geradas pela pandemia.
No que diz respeito à perspectiva enunciativo-discursiva, as pistas linguísticas identificadas no depoimento da Entrevistada B apontam marcas de subjetividade e intersubjetividade na linguagem sempre que a trabalhadora enuncia “eu”, tornando evidente uma inter-relação constitutiva da enunciação ao se dirigir ao “tu”. Maingueneau, 2008) afirma que o enunciador e o coenunciador se definem em cada situação de enunciação tornando legítimo o próprio dizer, sendo assim, ocupam espaços importantes nas cenas enunciativas. A partir disso, depreendemos que a enunciação é marcada pela dinâmica de um quadro cênico em que se verifica a cena englobante (discurso da dona de casa/docente), a cena genérica (entrevista) e a cenografia (construída no e pelo próprio texto).
A cenografia construída pela dona de casa e docente remete o coenunciador a diferentes espaços evocados pela situação de enunciação aqui/agora como em “minha filha de manhã tinha que ir pra escola né [...] ela ficou no remoto né”, percebemos o espaço da escola e da sala de aula on-line. Quando a profissional enuncia “[...] estamos todo dia na sala de aula... a minha filha retornou as aulas normal, [...] aqui em casa”, vemos uma mudança na cenografia na medida em que o lugar da fala nos remete aos espaços da instituição de ensino (onde ela exerce a docência), a sala de aula presencial (escola da filha) e ao lar (onde vive com sua família). É pela cenografia instaurada discursivamente que revelamos quem é o enunciador (Maingueneau, 2008).
A Entrevistada B, pela maneira de dizer, mostrou que possui diferentes funções na família e na atividade laboral (filha, mãe, dona de casa, professora). A “voz” e o “tom” quando ela informou sentir “muito medo por causa que a mãe não tinha feito vacina”, evidencia o ethos discursivo do medo e da insegurança diante da pandemia. Além disso, na situação de enunciação, o ethos mostrado no discurso revela, por meio de uma cenografia que remete ao início da pandemia, um “tom” de preocupação, a imagem de si de uma filha zelosa e comprometida com a saúde e bem-estar da mãe.
A qualidade do ethos remete à figura do fiador que, mediante sua fala, atribui uma identidade compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir em seu enunciado (Maingueneau, 2008). Referimo-nos ao mundo ético daquelas professoras donas de casa que, mesmo diante da pandemia, enfrentaram uma dupla jornada laboral sem deixar de lado os cuidados com a família.
Vejamos que, no discurso “mas ai agora este ano a mãe já fez as duas doses nós fizemos uma... que estamos todo dia na sala de aula então está ficando mais tranquilo... a minha filha retornou as aulas normal este ano a vó já estava né protegida é o nosso grande esteio né nós precisamos da vó pra tudo né se a vó não está bem todos nós padecemos né aqui em casa né que é a minha mãe daí nós precisávamos de ela estar bem de ela estar tranquila né?”, a dona de casa e docente relatou que a família está mais tranquila porque a avó fez as duas doses da vacina. O fato de a avó estar imunizada é de grande importância, pois no contexto da pandemia a matriarca da família realizava as atividades domésticas e cuidava da filha pequena para que a trabalhadora pudesse dedicar parte do tempo, também, para exercer a docência.
Conforme Schwartz e Durrive, 2010, p. 191), “Se admitimos que o trabalho é sempre singularização, por si-mesmo, devemos reconhecer, por outro lado, que não agimos de forma individual. Não agimos sozinhos”. Então, quando a dona de casa e docente diz “ a vó é o nosso grande esteio... se a vó não está bem todos nós padecemos né aqui em casa”, percebemos dramáticas do uso do corpo-si e, mais do que isso, evidenciamos que as situações a serem geridas, as renormalizações e a gestão de si na atividade de trabalho acontecem de maneira coletiva. “A confrontação com a tecelagem das normas antecedentes, o tratamento dos vazios de normas sempre comporta, mais ou menos, uma gestão coletiva” (Schwartz, 2011, p. 139). Isso refere que o trabalho é uma realidade individual (singular) e, ao mesmo tempo, profundamente marcada pela coletividade.
A partir do momento que há usos de si e não simplesmente execução, o uso encontra outros sujeitos que fazem parte da atividade de trabalho. No contexto pandêmico, estávamos em um universo social no qual os limites entre individual e coletivo se confundem no espaço tempo. Não havia mais privacidade no interior dos lares das professoras donas de casa. A “invasão” do trabalho na vida pessoal se intensificou, conforme é evidenciado no excerto: “acho que o grande desafio foi esse nós transformamos as nossas casas né em salas de aula nós não tivemos a nossa privacidade se foi às vezes tava dando aula eu comecei a dar aula eu comecei a dar aula na cozinha você tinha ao mesmo tempo que iniciar a aula você tinha uma reunião concomitante ai no meio da aula te chamavam pra uma outra coisa que tu tinha que resolver de imediato então assim foi todas as redes possíveis suportes os alunos te chamam né?”.
Impulsionada pela tentativa de articular permanentemente o uso de si por si e pelos outros e gerir as variabilidades impostas pelo meio, a dona de casa e docente salientou que o grande desafio foi transformar a casa em sala de aula. Ter que ministrar aulas na cozinha, responder mensagens dos alunos nas redes sociais e, ao mesmo tempo, participar de reuniões on-line revela que a pandemia acabou criando “vários” vazios de normas nessa dupla jornada laboral. Um deles foi o apagamento dos limites que separam o professor da pessoa para seus alunos.
Desse modo, as dramáticas do uso do corpo-si tornaram-se difíceis de suportar “porque existe a questão do equilíbrio sempre presente em relação com o uso de si ‘pelos outros” (Schwartz, 2015, p. 37). Esse equilíbrio, importante para a saúde do trabalhador, não fez parte da rotina da docente e dona de casa. Porque, se havia um vazio de normas - e no ensino remoto as situações foram se complicando pelo fato dos alunos requisitarem o professor em qualquer horário - a trabalhadora necessitava de alternativas para preencher as lacunas. E isso foi se tornando inquietante e até mesmo desagradável e angustiante, conforme podemos verificar nos enunciados: “os alunos te chamam né? é ligações WhatsApp, Facebook, é Insta, enfim, na madrugada eu recebi um trabalho na madrugada e uma noite eu acordei sobressaltada porque de madrugada você tem sempre uma tragédia né? nunca vou esquecer vinte pras três da manhã de um sábado para um domingo mulher... eu... aqui em casa eu me acordei já mal assustada”.
Cada um procura no trabalho um equilíbrio aceitável entre o uso de si requisitado e consentido (Schwartz, 2010). Quando a entrevistada B informou “meu marido e eu... nós acabamos conversando com eles silenciei todos os grupos né? e disse olha tem que colocar né também pra eles isso eles faziam trabalhos na madrugada retornavam na madrugada então foi bem complicado orquestrar... orquestrar a nossa rotina nós tínhamos também que organizar a dos alunos”, a dona de casa e docente confirma que, naquele contexto, foi necessário construir outras normas (uma produção de normas na própria atividade) com os alunos, ou seja, regras essenciais para um bom andamento das aulas e que, também, garantissem o respeito à privacidade da professora.
Destacamos, com base em (Maingueneau, 2008, p. 51), que “a situação de enunciação não é, com efeito, um simples quadro empírico, ela se constrói como cenografia por meio da enunciação”. Essa enunciação acontece no tempo presente mediante uma determinada cena enunciativa, da qual fazem parte os sujeitos envolvidos na atividade de trabalho. A cenografia da vida em família, construída pelo depoimento da entrevistada B, evidencia imagens de si de uma docente e dona de casa que se vê em confronto com problemas de diversas ordens. No que diz respeito ao ethos dito e mostrado, explicitado nas palavras da profissional, destacamos: “a nossa privacidade se foi” e “foi bem complicado orquestrar a nossa rotina nós tínhamos também que organizar a dos alunos”. Ao falar sobre esse desafio enfrentado no trabalho, a entrevistada B explicitou um ethos discursivo descontente, diante da intensa carga de trabalho no contexto da pandemia.
Desse modo, salientamos que o discurso das professoras donas de casa desencadeia imagens de si que tendem a se modificar a cada situação de enunciação em que as entrevistadas falam sobre o trabalho. Tais circunstâncias são identificadas através de cenografias estabelecidas no e pelo discurso, as quais evocam diferentes situações vivenciadas pelas trabalhadoras na atividade laboral no contexto da pandemia, o que, consequentemente, faz emergir ethos discursivos semelhantes, tal como podemos verificar resumidamente no Quadro 4.
Nota: elaborado pelos pesquisadores (2023)
Por fim, percebemos que, nos discursos das entrevistadas, são visíveis diversas dramáticas de uso do corpo-si que resultam debates de normas, valores e constantes renormalizações, tanto na atividade docente quanto nas tarefas realizadas no lar. Ao verbalizar sobre o trabalho, as profissionais estruturam o seu fazer laboral no espaço/tempo, tornando-se sujeitos da sua própria ação, pois é no discurso, em uma determinada situação de enunciação, que professoras donas de casa revelam a sua subjetividade ao construírem imagens de si na instância discursiva, fazendo a gestão de si na atividade laboral e na vida pessoal, mesmo diante do enfrentamento de dramáticas constantemente vividas na pandemia. Diante desse contexto, foi necessário articular permanentemente o uso de si por si e o uso de si pelos outros: aqueles que fazem parte de toda atividade de trabalho (alunos, familiares, colegas de trabalho), pois preencher e gerir o vazio de normas antecedentes é fazer valer ali suas próprias escolhas de bem viver, suas próprias referências, em um debate individual e coletivo orientado por valores do corpo-si.
5. Considerações finais
Que a pandemia teria um grande impacto em nossa sociedade era algo visível desde meados de março de 2020, quando o Brasil entrou em franco isolamento social e os casos ainda eram esparsos. Naquela época, a Itália mandava ao mundo sinais do caos que esperava a todos. O que poucos conseguiram prever foram as transformações mais sutis que mesmo hoje teimam em não desaparecer, pelo contrário: algumas parecem ter se instalado em definitivo. O custo da pandemia não se mede apenas por sua régua mais cruel, a das vidas humanas perdidas, mas também pelas alterações no cotidiano da classe trabalhadora; no caso da professora que acumula a atividade de dona de casa (ou seria a dona de casa que desempenha, também, a atividade de professora? Qual identidade, de “professora” ou de “dona de casa”, é prevalente?), desempenhando ambas as funções nos mesmos cômodos e nas mesmas horas do dia, esse impacto parece redobrado. Buscamos, neste artigo, compreender um pouco da realidade dessas mulheres que são pilares da sociedade em duas frentes: em nível familiar e em nível comunitário (por sua atuação no ensino).
O tema desta pesquisa, como evidenciado nas considerações iniciais, teve como foco a Linguagem e o Trabalho: os discursos das professoras donas de casa nas atividades e envolveu o diálogo entre os estudos ergológicos do filósofo Yves (Schwartz, 2011, Schwartz, 2014) e a abordagem enunciativo-discursiva de Dominique Maingueneau, 2008a, 2020), ressaltando as práticas discursivas sobre o trabalho. Este estudo interdisciplinar se revelou pertinente não apenas para compreender o sujeito em situação de trabalho, mas também no contexto da pandemia e sua formação como ser social, devido, inclusive, à construção de imagens de si, seu ethos discursivo que se mostra na enunciação na e sobre a atividade laboral.
Com base na questão norteadora, delimitada nas considerações iniciais, foi concebido o objetivo de pesquisa, enunciado, do mesmo modo, na primeira seção deste artigo. Constatamos, a partir dessa questão norteadora e de acordo com esse objetivo, que a interface entre a análise do discurso e a ergologia mostrou-se eficaz e pertinente ao permitir que fosse possível identificar as dramáticas do uso do corpo-si vivenciadas pelas professoras donas de casa, mediante seus depoimentos relatados nas entrevistas, nas quais houve a manifestação de diferentes cenografias, de diversas cenas enunciativas, em que as entrevistadas mobilizaram ethos discursivos específicos para exercer a fala sobre suas atividades de trabalho (a atividade de professora e a atividade de dona de casa) cujos limites se viram confundidos pela pandemia, resultando assim novas dramáticas e em necessidade constante de renormalização dessas atividades.
É preciso notar que este estudo possui algumas limitações quanto à sua abrangência: para um retrato mais fidedigno da experiência da professora dona de casa na pandemia da COVID-19, seria necessário entrevistar um número maior de pessoas com um número mais amplo de perguntas. Consideramos, entretanto, que os relatos selecionados representam porção significativa do tipo de experiência que a professora e dona de casa teve no Brasil durante a pandemia em 2020 e 2021.
Consideramos, por fim, que este estudo provê importante contribuição para futuras pesquisas que venham a exercitar a interface entre os estudos ergológicos e a Análise do Discurso francesa, além de ajudar a cristalizar relatos in loco de pessoas reais sobre um período com base no qual logo serão atualizados os vindouros livros de história. Dessa forma, este artigo se caracteriza, além de por sua interface entre a ergologia, de Schwartz, e a teoria enunciativo-discursiva de Maingueneau, pelo retrato das experiências dessas mulheres -docentes e donas de casa, para quem a divisão sexual do trabalho significou (como é usual) trabalho em dobro: a necessidade de equilibrar duas atividades que, sob a pandemia, se aproximaram até se fundirem uma à outra.
No fim das contas, por mais que se escreva a respeito, que se analise com pretensa objetividade e rigor científico a atividade de trabalho e o discurso neste mundo, tomado de assalto pela primeira grande pandemia do novo século, restam as pessoas e suas vidas reais, suas ações, realizações e suas decepções. O desafio ao ler (e escrever) um artigo como este é jamais ceder à impressão por vezes transmitida pela letra fria de que esses relatos são como histórias longínquas que pertencem a desconhecidos. A COVID-19 podou muitas coisas, mas que nossa empatia e sensibilidade para com a experiência humana não esteja entre elas.