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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.20 no.1 Porto jun. 2024  Epub 31-Jul-2024

https://doi.org/10.4000/120d3 

Atas de seminários

Trabalhar, para quê?

¿Por qué trabajar?

Travailler, pour quoi faire?

Work, what for?

1CRTD-Conservatoire national des arts et métiers. 41 rue Gay Lussac 75005 Paris. dominique.lhuilier@lecnam.net


Resumo

A atenção aos propósitos do trabalho é uma exigência proporcional aos impedimentos contemporâneos para pensar e debater essa questão. A intensificação e a dispersão do trabalho, bem como sua casualização, incentivam o foco no presente em detrimento da projeção temporal implícita na atenção aos seus propósitos. As experiências de vida revelam os conflitos de propósitos (intrapsíquicos, interpessoais, sociais, políticos) no cerne do trabalho. Essas experiências de rutura biográfica, como a crise de saúde e seus confinamentos, podem levar a uma reavaliação do significado da vida e do trabalho. Elas nos permitem romper com a negação da interdependência de nossas esferas da vida e reavivar a questão do significado do trabalho. As perguntas sobre os objetivos perseguidos, a utilidade social das contribuições individuais, a possibilidade de associar o trabalho ao desenvolvimento pessoal, territorial, social e ambiental e as questões éticas e políticas associadas abrem um vasto campo de debate que nos permitirá retirar o trabalho da prioridade dada ao emprego.

Palavras-chave: significado do trabalho; propósito do trabalho; rutura biográfica; conflitos de propósito; ética

Resumen

La atención a los fines del trabajo es una exigencia a la altura de los impedimentos contemporáneos para pensar y debatir esta cuestión. La intensificación y dispersión del trabajo, así como su precarización, fomentan la concentración en el presente en detrimento de la proyección temporal que implica la atención a sus finalidades. Las experiencias vitales revelan los conflictos de finalidad (intrapsíquicos, interpersonales, sociales, políticos) en el seno del trabajo. Estas experiencias de ruptura biográfica, como la crisis de salud y sus confinamientos, pueden conducir a una reevaluación del sentido de la vida y del trabajo. Permiten romper con la negación de la interdependencia de nuestras esferas vitales y reavivar la cuestión del sentido del trabajo. Las preguntas sobre los objetivos perseguidos, la utilidad social de las contribuciones individuales, la posibilidad de asociar el trabajo al desarrollo personal, territorial, social y medioambiental, y las cuestiones éticas y políticas asociadas, abren un vasto campo de debate que nos permitirá retirar el trabajo de la prioridad concedida al empleo.

Palabras clave: significado del trabajo; finalidad del trabajo; ruptura biográfica; conflictos de objetivos; ética

Résumé

L’attention portée aux finalités du travail est une exigence à la mesure des empêchements contemporains de penser et débattre de cette question. L’intensification et la dispersion du travail, mais aussi sa précarisation, favorisent une focalisation sur le présent au détriment de la projection temporelle que suppose l’attention portée à ses finalités. Des expériences de la vie constituent des révélateurs des conflits de visées (intrapsychiques, interpersonnels, sociaux, politiques...) au cœur du travail. Ces expériences de rupture biographique telle que la crise sanitaire et ses confinements peuvent conduisent à une réévaluation du sens de la vie et du travail. Elles nous permettre de rompre avec le déni des interdépendances de nos domaines de vie et de raviver la question du sens du travail. Les interrogations sur les objectifs poursuivis, s l’utilité sociale des contributions singulières, la possibilité d’associer travail et développement personnel, territorial, social, environnemental, les questions éthiques et politiques associées, ouvrent alors un vaste champ de débats permettant de désincarcérer le travail de cette priorité donnée à l’emploi.

Mots clés: sens du travail; finalités du travail; rupture biographique; conflits de visées; éthique

Abstract

Attention to the purposes of work is a requirement commensurate with the contemporary impediments to thinking about and debating this issue. The intensification and dispersion of work, as well as its casualization, encourage a focus on the present to the detriment of the temporal projection implied by attention to its purposes. Life experiences reveal the conflicts of purpose (intrapsychic, interpersonal, social, political) at the heart of work. These experiences of biographical rupture, such as the health crisis and its confinements, can lead to a re-evaluation of the meaning of life and work. They enable us to break with the denial of the interdependence of our spheres of life and to revive the question of the meaning of work. Questions about the objectives pursued, the social usefulness of individual contributions, the possibility of associating work with personal, territorial, social and environmental development, and the associated ethical and political issues, all open up a vast field of debate that will enable us to remove work from the priority given to employment.

Keywords: meaning of work; the purpose of work; biographical break; conflicts of purpose; ethics

1. Introdução

Por que devemos abordar essa questão, refletir juntos e trocar ideias durante o encontro internacional sobre trabalho - EITA, um evento científico internacional e multidisciplinar realizado em 2022 na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), em João Pessoa, Brasil? Do meu ponto de vista, sem dúvida, há várias razões: em primeiro lugar, a constante expansão dos obstáculos para reflexões sobre o mundo do trabalho. Muitas transformações no trabalho dificultam a reflexão e o ato de pensar sobre os propósitos da atividade na qual estamos envolvidos, tanto individual quanto coletivamente. E esses impedimentos não se limitam apenas a estratégias defensivas que buscam evitar o confronto com a realidade, como teorizado pela psicodinâmica do trabalho (Dejours, 1980). Voltaremos a esse ponto.

A atenção dada ao "como fazer", em detrimento de uma reflexão sobre os fins buscados, está ganhando terreno, inclusive nas ciências do trabalho. Reconhecer o trabalho não apenas como um contexto ou situação social, mas como uma atividade, pode favorecer a ênfase no gesto, uma análise que prioriza as formas de execução, relegando para segundo plano os objetivos esperados. O "como fazer" tem um caráter contingente e concreto, centrado nos meios e maneiras de realizar as tarefas. No entanto, quando a questão do "como" prevalece sobre a do "por que", quando os meios suplantam os fins, todas as derivações são possíveis. A história nos mostrou que é possível transformar o extermínio de milhões de seres humanos em uma atividade produtiva cuja eficiência foi aprimorada. Atualmente, sabemos como a busca por eficácia pode resultar em efeitos destrutivos no meio ambiente, levando a uma crise ecológica sem precedentes. Isso também leva ao desenvolvimento de processos que fragilizam a saúde, pois o trabalho se torna cada vez mais insustentável. A produtividade do trabalho humano aumentou consideravelmente na história..., mas para quê?

Os desafios inerentes à atividade de trabalho vão além daqueles relacionados à eficácia, desempenho ou rentabilidade, conforme definidos pelas lógicas instrumental ou econômica. As atividades humanas representam simultaneamente uma produção de si e do mundo, sendo a ação entendida como práticas sociais de construção e transformação de um mundo compartilhado. Essas atividades são permeadas por objetivos diversos e contraditórios, motivos opostos que exigem arbitragens e compromissos em relação aos fins visados. Além disso, os conflitos de objetivos (sejam eles intrapsíquicos, interpessoais, sociais, políticos) estão no cerne do trabalho. E esses conflitos provavelmente deveriam ocupar uma posição central em nossas análises e intervenções. Isso implica em pensar sobre eles.

2. O trabalho de pensar impedido

No contexto contemporâneo, a condição do trabalhador, na França e em muitos outros países, gira em torno de duas figuras simétricas e aparentemente opostas: o excesso de trabalho e o subemprego.

O excesso de trabalho está inserido em um contexto de intensificação laboral que não se limita mais ao aumento do ritmo de trabalho. Atualmente, incorporam-se a densificação e a complexificação do trabalho (Gaudard & Volkoff, 2023). Ambas são produzidas pela crescente utilização das Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC), pela pressão crescente dos clientes, pelo imperativo de rastreabilidade, que se traduz por uma dupla prescrição de realizar e produzir evidências do que foi feito, pela frequência da necessidade de tomar decisões com urgência e pelo imperativo de arbitragem entre objetivos contraditórios. Os transbordamentos da esfera profissional para a esfera privada também são uma realidade. A organização do trabalho em modo de projetos, que tende a se generalizar, frequentemente leva o trabalhador a se envolver simultaneamente em diferentes programas, a ter que realizar malabarismos entre eles e, consequentemente, leva à dispersão. Isso resulta na frequência de sentimentos de desposseção, caracterizados pela pressão, solicitação, visibilidade e pela sensação de falta de estrutura, refletida na ênfase à multiatividade no emprego, até em vários empregos simultaneamente, e na tendência à dispersão e fragmentação da atividade de trabalho (Datchary, 2011).

Os estudos de Caroline Datchary destacam um fenômeno importante que impede o trabalho de pensar quando o envolvimento na atividade é constantemente fragmentado, suspenso e desviado por numerosas interrupções. Cada vez mais, existem situações marcadas por uma variedade de tarefas a serem tratadas, onde as atividades se sobrepõem e as demandas dos usuários, clientes e colegas são múltiplas. Isso impõe pressão sobre a dinâmica das sequências de atividade, resultando regularmente em sobreposição de urgências. Ser obrigado a suspender atividades já iniciadas e reagir às solicitações de um ambiente em constante mudança requer agilidade temporal e adaptabilidade contínua, tornando-se desgastante com o tempo.

A dispersão amputa a reflexividade, concentra-se no malabarismo temporal, fixa-se no imediato e apaga as finalidades e a projeção no horizonte. O problema aqui não é apenas a sobrecarga cognitiva. O impacto psíquico a longo prazo de tais exposições é extremamente pesado: a ausência de limites gera a ausência de referências estáveis e desperta angústias de fragmentação. O sinal de angústia é uma reação defensiva do ego diante da ameaça que paira sobre sua unidade. A fragilização da identidade e a manutenção de um eu diferenciado do não-eu e unificado se traduzem pelo medo da destruição de seu próprio corpo ou psiquismo. Há o risco de um colapso do self unitário, da organização do ego que está então ameaçada (Lhuilier, 2023).

A concentração, a reflexão e a elaboração se perdem, pois essas ações pressupõem um fundamento, uma base dentro de uma contenção, um invólucro psíquico. Didier (Anzieu, 2013), a partir de seus estudos sobre o eu-pele examina as condições do ego-pensante, aquelas que permitem a atividade de pensar. Ele lista as principais funções do invólucro psíquico relacionadas a este trabalho de pensar: consistência (que possibilita conferir peso às ideias, um centro de gravidade), contenção (manter juntas as ideias, delimitar campos próprios ao centro, ao núcleo e uma periferia onde armazenar ideias em espera), constância (proteger a mente de transbordamentos para preservar o trabalho de pensar), significância (fixar as ideias por meio de sinais), concordância (a partir desses sinais, estabelecer entre as ideias sistemas de coerência, convergência), individuação (ter ideias pessoais que emergem e contrastam com um fundo comum de pensamentos pré-concebidos).

Pensar é adiar as respostas às perguntas, tomar o tempo para elaborá-las, evitar a precipitação e retomar o controle da organização temporal do trabalho. Por outro lado, pular constantemente entre várias atividades, perder-se em uma infinidade de pequenas tarefas que são concluídas rapidamente e não exigem muita atenção, degradam a mobilização na recentração que o trabalho de pensar implica (Amado & Lhuilier, 2023).

As angústias de fragmentação despertam o temor de um colapso, chegando ao esgotamento, quebra ou ruptura. As narrativas de burnout tornam-se cada vez mais comuns, resultando de complexos sociopsíquicos que combinam sobrecargas (trabalho excessivo, intensificação do trabalho, dispersão, ...) e envolvimento (motivado por diferentes razões, como a busca por qualidade no trabalho mesmo quando as condições são desfavoráveis, identificação com a organização ou profissão, aspiração por uma promoção social altamente valorizada ou o desejo/necessidade de "ganhar mais"). Esses processos sociopsíquicos levam à síndrome de exaustão profissional, que está se tornando a principal forma de psicopatologia do trabalho nos dias de hoje (Hamraoui et al., 2021). Além disso, é importante ressaltar que o burnout não ocorre sem sequelas; frequentemente, observam-se graves distúrbios cognitivos e danos duradouros à memória, lógica e concentração.

A segunda situação predominante é a do subemprego, manifestando-se por "meias jornadas" impostas, pelo aumento de trabalhadores precários, excluídos, desempregados e usuários de benefícios sociais mínimos. O trabalho, sempre a ser recomeçar, de procurar emprego, de inscrição em novos ambientes de trabalho, de adaptação a novas organizações, de necessidade contínua de demonstrar habilidades, de regulação do investimento pessoal necessário para a qualidade do trabalho e ao mesmo tempo arriscado devido à possível perda no final do contrato, de construção da cooperação com novos colegas que também podem limitar seu compromisso com aquele percebido como "de passagem". Além disso, inserir-se em uma história já em andamento, sem conhecer suas motivações e recursos, e sem um futuro a ser construído em conjunto, tudo isso gerando, ao longo do tempo, desgaste, cansaço e exaustão.

Com a idade, aumentam as dificuldades em "encontrar um lugar". A precariedade vivenciada (Castel, 2007) é um poderoso fator de insegurança, mas também de ressentimento, especialmente quando o sentimento de injustiça se intensifica devido à discrepância percebida entre a contribuição (duplo investimento no trabalho e na busca de emprego) e a remuneração (financeira e, sobretudo, simbólica, de um lugar não mais efêmero, mas duradouro).

O custo do trabalho de conseguir uma colocação (Sibony, 1991), aliado à precarização de segmentos cada vez mais amplos do mundo do trabalho, demonstra o desenvolvimento de formas de desgaste no trabalho sem qualidade (Sennett, 2000), onde apenas o curto prazo se impõe como horizonte. Este regime temporal imposto e as situações permanentes de incerteza (Hartog, 2003) fragilizam todas as áreas de vida desses trabalhadores intermitentes cada vez mais numerosos. Como pensar sobre o para quê trabalhar quando a projeção temporal é bloqueada?

Aqui, assim como em situações de sobrecarga de trabalho, a ausência de coletivos impede o exercício do pensamento. A precariedade, de fato, é a arma de destruição em massa dos coletivos de trabalho (Castejon, 2010). No entanto, a precarização é um elemento consideravel nos dias de hoje. Isso não se refere apenas à precariedade no emprego, que inclui a explosão de empregos precários, o aumento de contratos temporários, trabalho temporário, flexibilidade externa, terceirização, trabalho informal, imposição de horários parciais e o desemprego em massa. Envolve também a precarização do proprio trabalho, pelo desenvolvimento da polivalência, das mobilidades geográfica e profissional, pela frequência de reestruturações organizacionais, reorganizações internas, rotatividade de lideranças, reorientação de objetivos, ou ainda pelo confronto com obsolescências rápidas e inovações contínuas.

Todas essas mudanças resultam em uma precarização das funções, profissões e ambientes de trabalho, gerando isolamento e até mesmo solidão. Sem coletivos, não há base para se construir um lugar.

O processo de se situar implica em fazer seu lugar e não apenas ocupar um lugar: destacar-se, marcar a singularidade. Isso se faz em um duplo movimento, de integração e distinção, de posicionamento e deslocamento. A questão de encontrar um lugar é de natureza ontológica; ela concerne o fato de existir. Daniel (Sibony, 1991) esclarece: "É mais do que simplesmente criar espaço em uma natureza pré-existente (...). Em vez de ser um lugar para acomodar um corpo, o que está em jogo é uma trama que inclui sujeito e objeto: ela contém a matéria a ser trabalhada, o gesto de investi-la e o desejo de operar com ela uma parte de seu próprio ser." A lógica do "tapa-buraco", como denominada por Sibony, caracteriza as políticas de emprego. Essa lógica sugere que, para encontrar trabalho na França, basta "atravessar a rua"1. A despeito da profissão, das condições de trabalho ou dos próprios desejos projetados na busca por resposta à pergunta central: trabalhar, para quê?

Em ambas as situações - excesso de trabalho e subemprego -, ocorre, de fato, uma mesma amputação da atividade própria, conforme a concepção de F. Tosquelles:

"Não se deve confundir o conceito de atividade com a mera execução de movimentos, ou mesmo de esforços consentidos de aplicação e resistência submetidos ao desejo do mestre da escola ou do mestre de obra. Atividade significa atividade própria: uma atividade que brota e se enraíza no sujeito ativo para florescer, se necessário, em um contexto social. Podemos conceber uma escola ou um hospital psiquiátrico onde todos se movimentam e onde parece haver um tipo de agitação, sem que nenhum doente ou criança realize alguma atividade própria" (2009, p. 46).

A amputação da atividade própria pode assumir a forma de uma atividade "embalada", dissociada do sujeito, formatada e reduzida a um simples "funcionamento". Ou pode se manifestar como uma repressão do movimento e da mobilização psíquica pelo não-trabalho forçado. Em ambos os casos, refletir sobre as finalidades do trabalho, sobre o próprio trabalho, torna-se um verdadeiro desafio!

As novas formas de organização e gestão do trabalho podem, como muitos concordam, tornar o trabalho insuportável: a atividade perde seu significado e valor social, recuando para uma visão meramente instrumental de preservação do emprego. Não se trata mais de viver no trabalho, mas apenas de sobreviver dele. No entanto, o trabalho nunca é meramente a produção de bens ou serviços; sempre envolve a produção e afirmação da própria existência, a perseverança do ser. O trabalho é essencialmente uma questão de existência: não um estado de plenitude beatífica e definitiva, mas uma busca contínua, uma demanda interna de ser e, portanto, acima de tudo, de dizer não! Ser um sujeito implica esquivar-se às designações de lugar no desejo do Outro, tanto no trabalho quanto nos demais aspetos da vida. É nessa perspetiva que encontramos a exigência de reinventar o trabalho.

3. Reavaliar as finalidades do trabalho

Há experiências de vida que são reveladoras e até mesmo analisadoras, dos conflitos de objetivos (intrapsíquicos, interpessoais, sociais, políticos) no cerne do trabalho: todas as experiências de rutura na vida cotidiana que interrompem os afazeres em andamento, as atividades que são realizadas “porque são necessárias”, ou porque "as fazemos há muito tempo". Em suma, interrompem a rotina.

A doença, o luto, a demissão, o desemprego, a prisão, o afastamento, a crise sanitária e a imposição de confinamentos são ruturas que conduzem a uma reavaliação do sentido da vida e do trabalho (Lhuilier, 2002; Lhuilier et al., 2009; Lhuilier & Waser, 2016; Lhuilier et al., 2024). A interpretação convencional dessas ruturas as reduz a perdas associadas a elas, a faltas, falhas, limitando assim suas possibilidades. No entanto, essa leitura negligencia outra transformação: a ativação dos desejos do sujeito. Reconhecer a vulnerabilidade da vida aumenta as exigências em relação a ela: trata-se de "não mais perder a vida ao ganhá-la" e de conceder a si mesmo o direito de construir uma vida profissional mais alinhada com aspirações e valores pessoais, encontrar/criar um modo de vida mais habitável e atento a ela. Isso suscita uma série de questões existenciais sobre o sentido da vida, sobre o que importa fundamentalmente, sobre o próprio desejo.

Essas rupturas estabelecem uma fronteira entre um antes e um depois. E as reavaliações, buscando compreender o que a vida pode ser no futuro, fundamentam-se em recursos que variam de acordo com as desigualdades de gênero, raça, classe e saúde. Para aqueles que possuem recursos sociais ou proteções que os resguardam de forte precariedade, o período de afastamento, licença por doença, desemprego ou encarceramento pode representar um momento de reconstrução. É uma oportunidade para avaliar o papel do trabalho em suas vidas e, de maneira mais abrangente, os propósitos do trabalho no qual estão envolvidos ou que estão buscando.

4. A crise sanitária e seus ensinamentos

O mundo do trabalho foi profundamente transformado pela crise sanitária e pelos confinamentos. Uma nova configuração da divisão do trabalho surgiu, adicionando ou modificando as estruturas anteriores. De maneira esquemática, podemos identificar: os "sem trabalho" confinados, que incluem tanto os desempregados antigos quanto os novos, os excluídos antigos e os recém-chegados, abrangendo aqueles que enfrentavam essa situação antes da crise sanitária e aqueles que temporária ou permanentemente se juntaram a eles. Estes experimentam simultaneamente a perda abrupta de suas atividades profissionais e o confinamento, sendo que a primeira amplifica a segunda. Novas atividades em tempo integral surgem como substitutas, principalmente na esfera doméstica e familiar, resultando em uma intensificação dos desafios e tensões na distribuição das tarefas de acordo com o gênero.Parte superior do formulário

Soma-se a estes aqueles que são cada vez mais numerosos e estão permanentemente "em teletrabalho": os que precisam equilibrar atividades familiares e profissionais. Isso implica em muitas arbitragens, negociações e compromissos. Impõe-se aqui uma nova atuação: a construção de uma organização e condições de trabalho que sejam compatíveis com as demandas de ambos os domínios de atividade.

A última categoria engloba aqueles que estão "sobrecarregados de trabalho" e não experimentaram o confinamento, como profissionais de saúde, agentes de limpeza, assistentes sociais, caixas, entregadores, motoristas, coletores de lixo, carteiros, agricultores, criadores de animais, bombeiros, policiais... Todos estes servem aos primeiros no sentido de que o confinamento de alguns foi viabilizado pelo trabalho dos outros. Esses profissionais, agora sob os holofotes, descobriram que suas atividades, frequentemente invisíveis, desvalorizadas e mal remuneradas, poderiam ser reconhecidas como "essenciais" para a vida.

Esse novo contexto do mundo do trabalho abriu outros cenários para o futuro e, desde esse período, surgiram alternativas e inovações que constituem maneiras e recursos diversos para viver e trabalhar de maneira diferente.

A experiência da crise surge como uma rutura: uma quebra na continuidade de si mesmo, nas relações com o ambiente, nas regulações e nos mecanismos de defesa usuais. Mas essa profunda desorganização também pode inaugurar movimentos alternativos de reorganização. Pois a crise possui duas faces: é um período de transição representando o perigo de um aumento da vulnerabilidade para o sujeito, mas também uma oportunidade de desenvolvimento.

“Ao mesmo tempo que uma destrutividade em ação aprofunda a crise [forças de desordem, desintegração], uma criatividade em ação é despertada. A crise tem sua ambiguidade fundamental pelo fato de liberar ao mesmo tempo forças de morte e forças de regeneração (...). Ela é ao mesmo tempo um revelador e um executor: ela revela o latente e o virtual, ela coloca em movimento tudo o que pode trazer mudança, transformação, evolução” (Kaës et al., 1979).

Além disso, e apesar das representações associadas a experiências negativas, devemos reconhecer a dupla face das provações. O processo de desvinculação e desmembramento que essas experiências podem causar também abre caminho para novas elaborações. A potência dos afetos associados, sem dúvida, desempenha um papel fundamental nesse movimento dual de destruição e criação.

Assim, ‘antes’ predominava uma concepção diferenciada de vulnerabilidade. Essa visão gerava uma representação dual do mundo do trabalho: de um lado, os saudáveis, robustos, lutadores, eficientes, performáticos, ou seja, "aptos"; e, de outro, os frágeis, vulneráveis, deficitários, os "inaptos", relegados e instados a cuidar de si mesmos e a se reciclar.

A resistência ao reconhecimento da vulnerabilidade humana alimenta a crença na performance, na onipotência, na autosuficiência. A incessante busca por "sempre mais" - mais produtividade, mais adaptabilidade, reatividade, rapidez - tem um custo significativo, não apenas humano, mas também social, ecológico e econômico.

Hoje, a vulnerabilidade tende a ser experienciada, descoberta e compartilhada. Diante dessa revelação, surge a oportunidade de pensar globalmente na vulnerabilidade da vida, especialmente quando a crise ecológica evidencia como a Terra pode se tornar rapidamente insustentável para a existência humana. Esse despertar deve nos conduzir a uma mudança de foco: da questão da qualidade do trabalho, com suas ambiguidades crônicas, para a atenção e cuidado em relação a um trabalho sustentável.

O termo "sustentável" aqui significa livre de condições que possam provocar desgaste a longo prazo, patologias duradouras e exclusão profissional. Trata-se de reorganizar o trabalho de maneira a não mais excluir os chamados "frágeis", como idosos, doentes, deficientes, acidentados, trabalhadores desgastados, jovens com dificuldades de inserção, mulheres com dupla jornada (profissional e doméstica), e aqueles rotulados como "baixos níveis de qualificação" inseridos em empregos desqualificados e desqualificantes. Sustentável ainda pois está a serviço de um desenvolvimento durável da vida humana e não humana.

Essas crises fissuram as ideologias que tentam nos fazer acreditar cronicamente, indefinidamente, que estamos em guerra. Guerra econômica em mercados globalizados, guerra contra a pandemia, guerra contra a desordem que representaria a dissolução das fronteiras nacionais; promoção da figura do "herói", da "missão", da "união sagrada", da delegação de nosso futuro a um Estado-Maior conduzindo suas tropas para a vitória. Para que se possa convocar a exigência de reconstrução nacional, a suspensão do debate e da crítica, e o imperativo de uma produtividade aumentada. A retórica da guerra apaga o trabalho, elude as contradições, impede o pensamento e o debate.

Durante a pandemia, testemunhamos com perplexidade uma inversão na hierarquia das profissões, indo das mais prestigiosas às mais "modestas" e das mais valorizadas às mais invisibilizadas. A divisão moral e psicológica do trabalho experimentou, de repente, uma espécie de pirueta. Esse fenômeno poderia abrir espaço para uma reflexão coletiva sobre as atividades essenciais para a vida e a humanização da existência. Nos meandros do confinamento e das indagações existenciais que podem surgir, uma reavaliação da hierarquia de valores e prioridades se manifestou. Em alguns casos isso ocorreu, provavelmente entre aqueles que não enfrentam cronicamente situações de sobrevivência.

Optar pelo cuidado ou persistir no credo produtivista? Reconhecer a necessidade dos outros ou persistir no imaginário enganador da auto-suficiência?

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5. Romper com a negação das interdependências de nossas esferas de vida

Esta crise pode proporcionar a oportunidade de romper com a negação das interdependências de nossas esferas de vida. A experiência de cada um de nós está agora maciçamente confrontada com a necessidade de regular as restrições e exigências do trabalho produtivo e reprodutivo (Galerand & Kergoat, 2013, 2013). Quando o trabalho/emprego desaparece e resta apenas o recuo para a esfera doméstica, o desequilíbrio nos compromissos e investimentos desloca-se para outros desafios: aqueles relacionados à divisão de gênero em papéis e tarefas domésticas e familiares. De facto, as relações familiares foram verdadeiramente postas à prova pelo confinamento, para o melhor e para o pior, como evidenciado pelo aumento da violência contra mulheres e crianças.

O fantasma da separação das esferas de atividade se desfaz. As mulheres, provavelmente mais do que os homens, já sabiam que essa divisão é apenas uma ilusão, que não somos unicamente trabalhadores ou forças produtivas (Galerand & Kergoat, 2008). Temos outras vidas, outras formas de de atividade. Podemos mesmo considerar que a imposição à divisão, em prol de uma ênfase no aqui e agora da execução de uma tarefa ou compromisso, assim como a exigência de uma total disponibilidade de si mesmo na atividade profissional, seja sinônimo de amputação de si. E, potencialmente, de alienação, ao ser capturado por um único mundo, o da organização produtiva e seus propósitos.

A diversidade de expectativas, princípios, valores e metas nos diferentes contextos nos quais participamos impede a uniformidade e evita que nos fixemos em uma única visão de mundo. Na verdade, existem várias realidades possíveis. O atual foco no cuidado pode servir como base para mudanças duradouras, transcendendo a crise.

A atenção a si mesmo (Foucault, 1984), ou a necessidade de cuidado (Tronto, 2009), refere-se a um regime específico de subjetivação que reequilibra o uso de si pelos outros no trabalho, juntamente com o uso de si por si mesmo. Desta forma, distancia-se do assujeitamento àquilo que é apresentado como uma realidade obrigatória e inalterável, resistindo às relações de poder e dominação.

A necessidade de cuidado aqui remete à "atividade genérica que compreende tudo o que fazemos para manter, perpetuar e reparar 'nosso' mundo, de modo que possamos viver nele da melhor maneira possível. Esse mundo inclui nossos corpos, nós mesmos e nosso ambiente, todos os elementos que procuramos conectar em uma rede complexa, em apoio à vida" ((Fischer & Tronto, 1991, p. 40).

Tal preocupação consigo mesmo é frequentemente analisada como indicativa de novas expectativas dos sujeitos no trabalho e reveladora de um movimento mais amplo em direção ao individualismo. Mas esta análise muitas vezes deixa de reconhecer que tais expectativas possuem uma dimensão eminentemente social e política. Na verdade, "se reconhecer como doente ou ameaçado (como escreve Foucault) ou se admitir como dependente dos outros a todo momento (como escreve Tronto) permite fundamentar um ser conjunto" (Mozère, 2004, p. 8). Este fundamento se baseia no reconhecimento da vulnerabilidade da vida, da fragilidade humana, o que faz de cada um de nós um ser pelo qual devemos nos preocupar.

A experiência de vulnerabilidade não está isenta de possibilidades de ação, mesmo diante da redução dos recursos disponíveis. A vulnerabilidade inclui uma dimensão de potencialidade e instiga a reflexão sobre as formas de recomposição da capacidade de agir em situações de incerteza.

"Ao contrário da fragilidade, da fraqueza ou mesmo da precariedade, que são conceitos deficitários, qualificando negativamente os atores apontando a falta (incorporada ou situacional), a vulnerabilidade obriga a considerar a capacidade ativa dos indivíduos, de qualquer magnitude que seja. No esquema conceitual da vulnerabilidade, os indivíduos são dotados, por essência teórica, da competência para agir. Nesse sentido, trata-se de uma noção intrinsecamente capacitadora" (Soulet, 2014, p. 113).

6. Finalidades e sentido do trabalho

A crise sanitária evidenciou as transformações na relação com o trabalho, atreladas às grandes mudanças que contribuem para sua degradação. E a questão do sentido do trabalho torna-se cada vez mais premente (Coutrot & Perez, 2022). Perda de sentido do trabalho ou fragilização das condições de construção do sentido do trabalho? Os questionamentos acerca dos objetivos almejados, da utilidade social das contribuições individuais, da possibilidade mesmo de associar trabalho e desenvolvimento pessoal, territorial, social, ambiental, além de considerações éticas e políticas associadas, abrem um amplo campo de debates, permitindo libertar o trabalho da primazia dada ao emprego.

O sentido do trabalho, jamais enfatizado o bastante, não se prescreve, não se decreta, não se impõe. Ele é sempre co-construído em um duplo movimento de investimento de desejos inconscientes e validações sociais. Esse processo de atribuição de sentido está constantemente em reconstrução na intersubjetividade nascida da atividade compartilhada. Trata-se de uma construção intersubjetiva que pressupõe um espaço transicional, situado entre a realidade exterior e a realidade interna, paradoxal por não ser nem externo nem interno. Este é um espaço de ilusão ou espaço potencial (Winnicott, 1975) que se situa entre o subjetivo e o objetivo, entre o concebido subjetivamente e o percebido objetivamente. Um espaço que deixa lugar para sonhos, fantasias, desejos latentes ou potenciais.

A busca de sentido remete à questão do lugar atribuído ao desejo, em suas interações com a energia pulsional e com a sublimação, como a expressão socializada da pulsão. Contudo, a sublimação só pode se concretizar se o envolvimento na ação e seus efeitos encontrarem validação e reconhecimento social.

Notamos aqui que essa questão de reconhecimento não pode ser contida na esfera das atividades de trabalho assalariado sob o prisma dos julgamentos feitos pelos prescritores e colegas, julgamento de utilidade e beleza (Dejours, 2011).

As regras da profissão (Molinier, 2006), o gênero da profissão (Clot, 2008), assim como as normas e valores do coletivo de trabalho não devem restringir a questão do sentido do trabalho e seu reconhecimento. Embora sejam referências indispensáveis, elas também são construções sociais ancoradas na divisão técnica e social do trabalho. Essas divisões representam diferentes maneiras de entender o que deve ser feito, o que é fundamental, e o que constitui um trabalho bem feito à luz de referências próprias ao lugar ocupado nessas divisões e das atividades a elas relacionadas.

Além disso, a divisão do trabalho é também uma divisão moral e psicológica (Hugues, 1996). Isso cria o campo do "trabalho sujo". Uma construção que se baseia em processos de delegação e relegação, à invisibilidade de atividades desinvestidas e desvalorizadas. E, em cada uma das profissões, diferencia tarefas que são fontes de prazer, de gratificações narcísicas, e outras consideradas ingratas ou condenáveis.

Nossos próprios trabalhos frequentemente se concentram naqueles que têm a responsabilidade de lidar com o negativo, o "trabalho sujo" (Lhuilier, 2005) e que estão sempre expostos à confrontação com o que é constituído, pelo processo de projeção-expulsão, como "mau objeto". E o alcance mortífero do "mau objeto" solicita estratégias defensivas, até mesmo ideologias defensivas (Dejours, 1980) que produzem regras, normas, valores profissionais a serviço da defesa individual e coletiva. Assim, os corporativismos defensivos criam tipos de profissão ou culturas profissionais distantes do trabalho de cultura entendido como a construção de uma referência comum ao universal humano.

Tomemos como exemplo os guardas de prisão em estabelecimentos denominados "de segurança máxima": as normas profissionais fundamentam-se em uma representação do prisioneiro como um monstro a ser dominado. Definido unicamente por sua periculosidade, ele não pode mais ser objeto de identificação. Essa alteridade radical neutraliza a culpa que pode surgir ao desempenhar certas tarefas, como revistas corporais, vigilância no parlatório..., todas aquelas que implicam falta de respeito não apenas à privacidade, mas também à dignidade. E que pressupõem o exercício de certa violência.

O social e o cultural não são sinônimos. As normas profissionais são construções sociais que podem servir a várias finalidades: orientar, regular atividades, mas também negar, racionalizar e fundamentar corporativismos (Kaës, 1980). Daí a necessidade de relacionar a questão das regras e valores no trabalho, na profissão, àquelas das atividades relacionadas a outros domínios de vida, mas que também remetem todas à construção humana da humanidade. Essas atividades também proporcionam o apoio recíproco dos investimentos afetivos e das funções sociais das instituições que sustentam o sujeito em sua busca por unidade nas diversas esferas de suas atividades sociais. Esse apoio é simultaneamente um suporte e um fortalecimento (Palmade, 2003).

Na abordagem que adotamos em psicossociologia clínica do trabalho (Lhuilier, Barros, & Araujo, 2013), o trabalho não é apenas uma atividade, é também uma instituição que tem uma dupla funcionalidade : social e psíquica. A instituição trabalho é uma construção da sociedade e da cultura. Em suas diversas formas (e, portanto, não redutíveis à do emprego assalariado), ela orienta e regula as atividades produtivas. Ela atua como um terceiro abstrato que media as relações ao mesmo tempo em que as regulamenta. Ela orienta práticas na medida em que constitui uma referência para construir o sentido da praxis. Mas a instituição também é uma formação psíquica no sentido em que mobiliza investimentos, representações, valores que fundamentam a identificação do sujeito com as finalidades que ela define. Ela sustenta e legitima as atividades sociais.

Ao abordar o trabalho como uma instituição, restauramos no cerne de seus desafios as finalidades buscadas. Pois o trabalho não é um fim em si mesmo, mas um meio a serviço de multiplas finalidades. Trabalhar pressupõe ser orientado pela concepção, e, portanto, pela ideia que temos sobre o que buscamos fazer, sobre objetivos almejados e reajustados ao longo da atividade. Portanto, é essencial refletir sobre o para quê fazer e observar a própria atividade por meio dessas perspectivas, desde as mais micro até as mais macro. Destacamos a importância de considerar a unidade dialética das atividades humanas para esclarecer a construção do sentido do trabalho, ancorada em nossa condição humana.

Em nossa prática clínica, observamos que o que dá sentido e valor à atividade, para o sujeito, não derivam apenas da satisfação de seus desejos pessoais ou da mera conformidade com as regras e valores da profissão. A construção do sentido do trabalho, de suas finalidades, emerge em controvérsias axiológicas entre os diversos domínios da vida. Portanto, vai além de cada segmento na divisão técnica, social, moral e psicológica do trabalho e do chamado fora do trabalho. Essas controvérsias axiológicas trans-atividades, trans-profissões, trans-organizações, contribuem para o trabalho de cultura, um trabalho de civilização da realidade e de humanização. Ele inscreve cada um em um conjunto trans-histórico: o da civilização a ser preservada e desenvolvida. E a participação nesse trabalho de cultura pode ser percebida através de cada uma de nossas atividades.

O trabalho de cultura é construído por meio da participação em um mundo compartilhado, impulsionado pela atividade produtiva. Mas o que significa participar? Joëlle Zask (2011) oferece uma definição que se desdobra em três tipos de experiências: "participar" (de um conjunto social), "contribuir com uma parte" (contribuir) e "receber uma parte" (beneficiar-se); aqui a participação é concebida e desenvolvida na articulação mais ou menos harmoniosa entre essas três experiências.

Essa participação nos poupa de uma parcela do sofrimento ontológico, inerente à finitude da vida, atribuindo grande importância às questões de vulnerabilidade e à transmissão, inclusive no trabalho. Sofrimento inerente à prova da realidade que impõe limites aos desejos e projetos, e que sustenta no trabalho essa busca pela transformação da realidade e não apenas a adaptação a ela. Sofrimento que se manifesta também em nossas relações com outros seres humanos, que solicita o investimento em vias de resistência à destrutividade por meio da mediação de um trabalho comum, a serviço da Kulturarbeit.

O trabalho de atribuição de sentido compreende renúncias e recriações. Desconstrução e reconstrução, portanto. Esse trabalho psíquico passa pela experiência do que representa um problema, a reflexão sobre essa experiência e a busca, até mesmo a experimentação, de soluções. Ele é fundamentado tanto no trabalho real, nas interpretações que o sujeito faz de suas vivências passadas, quanto nas projeções que implicam a conceção e a reflexão sobre as finalidades buscadas. Este é um processo de atribuição de significado no qual a atividade desempenha um papel crucial. Pois a atividade é portadora de experiências temporais, onde o tempo se realiza e se desdobra em dois níveis: sincrônico na confrontação de temporalidades múltiplas (tempo regulado pelos outros e por si mesmo) e diacrônico na articulação das categorias do tempo presente, passado e futuro (Sivadon & Zoïla, 1983). Em outras palavras, a construção do sentido do trabalho, na atividade e através dela baseia-se em um esforço de reflexão e diálogo sobre as condições de sustentabilidade do trabalho para cada um, para o desenvolvimento civilizacional, com respeito pela vida.

7. Conclusão

As atividades apresentam sempre uma dupla face, instrumental e política; as questões de fins e meios atravessam cada uma delas. Essa dualidade das atividades pode ser vinculada aos dois imperativos vitais, da autopreservação (viver) e da autoafirmação (existir), os quais não podem ser alcançados isoladamente, mas sim em relação aos outros. A dimensão política fundamental de nossas atividades, de todas as nossas atividades sociais, está assim, contida nessa indagação crucial: trabalhar, para quê?

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1Em 15 de setembro de 2018, durante a Jornada Europeia do Patrimônio realizada no Palácio do Eliseu, o presidente da República Francesa conversa com um homem que lhe explica que não consegue encontrar emprego em sua profissão, a horticultura, apesar de seus esforços. O presidente responde: "Eu atravesso a rua e encontro trabalho para você! Percorra todos os cafés e restaurantes de uma rua”.

Recebido: 19 de Dezembro de 2023; Aceito: 28 de Janeiro de 2024

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