1. Introdução
Este texto foi escrito a partir da conferência que apresentei no Encontro internacional sobre trabalho - EITA, realizado em agosto de 2022 no Brasil, em João Pessoa e organizado na Universidade Federal da Paraíba.
Optei por privilegiar aqui o que me pareceu essencial esclarecer a propósito da minha circunspeção, sedimentada ao longo do meu percurso académico, acerca de certos usos, particularmente na análise da relação com o trabalho, da noção de ‘subjetividade’, noção oriunda da filosofia visando abarcar “aquilo que depende, de forma pertinente, de um sujeito individual ou de um tipo de sujeitos” (Millière, 2016, tradução livre).
Certo é que as razões dessas minhas reticências não são alheias à minha formação académica na área da psicologia que, na Universidade de Bruxelles (ULB) dos anos ‘60, se caraterizava ainda pela predominância de um paradigma de cariz positivista. A prudência face aos contributos da filosofia era vivamente recomendada e a noção de subjetividade era tida como “notoriamente ambígua” (Millière, 2016, tradução livre) e, sobretudo, assaz simplificadora para referir a complexidade e a diversidade dos posicionamentos dos indivíduos face a acontecimentos ou situações.
E na área da psicologia do trabalho, embora os nossos mestres já começassem a afirmar posturas libertas dos preceitos positivistas, a confrontação com o mundo empresarial não deixava de revelar a face da aura negativa da noção de subjetividade: as convicções referentes ao mérito da organização científica do trabalho de F. Taylor e de H. Ford e as suas pretensões de monopólio da objetividade, reenviavam de bom grado para o registo da subjetividade as análises críticas dirigidas às suas opções técnico-organizacionais.
Entretanto, e já há alguns anos, a noção de subjetividade ganhou outro protagonismo.
Assim, na história das ciências, vários autores realçaram que a pretendida objetividade científica era resultante de construções inscritas nas abordagens próprias aos indivíduos que as realizaram - o que levou alguns outros autores a saudar a pertinência da “subjetividade do investigador” (Feldman, 2002) nos projetos de desenvolvimento de novos conhecimentos, atribuindo deste modo uma conotação positiva à noção de subjetividade no campo da epistemologia das ciências.
E também sabemos como certas escolas da psicologia do trabalho têm mostrado um claro interesse pelos estudos e intervenções num campo definido como abrangido pela subjetividade. Esses contributos, aliás, convenceram alguns ergonomistas a igualmente considerar que “a ergonomia não pode evitar a questão da subjetividade (…) que é uma realidade (…) sempre presente na atividade (…)”, até como “estímulo acionado para permitir que qualquer coisa aconteça” (Sznelwar & Hubault, 2015, pp. 54, 55 e 56, tradução livre).
Essas controvérsias mais recentes reavivaram a minha reflexão. Neste texto, irei explorar alguns momentos da sua evolução, que se inscrevem sempre em encontros e colaborações, alguns recentes e outros bem mais antigos.
2. A noção de subjetividade e seu potencial valor heurístico
2.1. Delinear um ‘panorama conceitualizado’
Tendo trabalhado nos últimos anos, de forma muito regular, com vários colegas brasileiros, partilhei projetos (Lacomblez, 2023) até com alguns que não hesitam recorrer à noção de subjetividade nas suas investigações e análises do trabalho.
E foi no âmbito dessas colaborações que descobri, graças a Milton (Athayde, 2020), a obra de Suely Rolnik, filósofa e psicanalista brasileira contemporânea, conhecida pela centralidade que atribuiu na sua análise da cultura brasileira, a partir do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade (de Andrade, 1928), à noção de "subjetividade antropofágica" (Rolnik, 1998). Uma cultura que, nesta perspetiva, nasceu sob o signo do canibalismo ao “engolir o colonizador, suas forças, seu corpo” (Rolnik, 2008, p. 204, citado por Brum Schaeppi, 2016, p. 69, tradução livre), acabando por produzir um modo particular de ser mestiço, na devoção crítica e irreverente de uma alteridade. Daí que o imaginário dos brasileiros retomasse, como componente de um mito fundador, os banquetes dos tupinambás que, no século XVI, “tinham como prato (preferido) os europeus que vieram explorar seus mundos” (Rolnik, 2008, p. 204, citado por Brum Schaeppi, 2016, p. 69, tradução livre) - recorrendo Suely Rolnik à noção de subjetividade antropofágica para realçar que escolhiam, para os engolir, os europeus suscetíveis de lhes dar novas forças - afastando aqueles que poderiam lhes causar alguma debilidade. Foi, aliás, deste modo que Hans Staden, 2010), esse aventureiro alemão capturado pelos Tupinambás em 1555, e feito prisioneiro para ser devorado num banquete ritual, acabou salvando a sua pele, já que a sua aparência deixava acreditar que os “sabores da bravura” iriam estar ausentes da sua carne.
Nesta análise, a noção de subjetividade configura aquilo que Renato Di Ruzza e Yves Schwartz designam de ‘panorama conceitualizado’ (Di Ruzza & Schwartz, 2021, p. 21, tradução livre), essencial para enquadrar o desenvolvimento de uma demonstração. Essa ‘subjetividade antropofágica’ reveste, deste modo, o estatuto de conceito, enquanto noção abstrata que estrutura e permite melhor entender uma realidade que, todavia, e necessariamente, se revela complexa e díspar.
2.2. O ‘panorama conceitualizado’ da Psicodinâmica do trabalho
2.2.1. A mobilização da subjetividade diante de um mundo real que resiste e a confrontação com a dúvida
A Psicodinâmica do trabalho (PdT) nos oferece igualmente um ‘panorama conceitualizado’ recorrendo à noção de subjetividade. Nesse contributo, capital para muitos colegas e estreitamente associado à obra de Christophe Dejours, o trabalho é definido em torno daquilo que envolve, do ponto de vista subjetivo, o facto de trabalhar - distinguindo-se explícita e deliberadamente das abordagens designadas de ‘mais clássicas’ e, em particular, daquelas que apreendem o trabalho enquanto “relação salarial” (Dejours & Gernet, 2012, 2012, p. 76, tradução livre).
A PdT fundamenta a sua definição do trabalho na irredutibilidade da distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real - e no axioma segundo o qual os trabalhadores são, em razão de terem de realizar a sua tarefa, levados a assumir desvios ou mesmo infrações no âmbito desse desempenho, dando assim provas da sua engenhosidade, iniciativa e inventividade. E é, precisamente, essa busca do melhor compromisso entre as exigências da tarefa e os propósitos do sujeito que desencadeia, na perspetiva da PdT, a mobilização da subjetividade: diante de um mundo real que resiste, e diante das falhas, das lacunas ou omissões dos procedimentos, o/a trabalhador/a passa a ser confrontado/a com a dúvida, a hesitação, até com o medo, o desânimo ou a raiva - e a experiência de trabalho é, ou acaba por ser, sobretudo, uma experiência afetiva que, como escreveu Isabelle Gernet, “apela a toda a subjetividade, isto é, apela ao mesmo tempo, o corpo e o pensamento do sujeito” (Gernet, 2009, p. 82, tradução livre).
E a tese da "centralidade do trabalho" para a subjetividade completa este panorama conceitualizado da PdT - sendo assim essencial para esta abordagem identificar as condições em que o trabalho é estruturante, ou, ao contrário, patogénico para a saúde mental, enfraquecendo, desse modo, a subjetividade (Dejours & Gernet, 2012).
2.2.2. A criatividade lexical em PdT
No entanto, não raras vezes, o panorama conceitualizado da PdT, quando convocado na análise das especificidades de casos concretos, não deixa de fazer eco à crítica de Raphaël Millière sobre o caráter ‘notoriamente ambíguo’ dos usos da noção de subjetividade “para referir assuntos tão diferentes como atitudes proposicionais, pontos de vista ou modos de compreensão, factos ou experiências conscientes” (Millière, 2016, tradução livre).
Assim, referir, como aconteceu durante este evento em João Pessoa, o ‘confronto subjetivo’, o ‘facto de se proteger subjetivamente’, ou ‘a economia familiar subjetiva’, revela seguramente uma bela criatividade lexical, mas a utilidade heurística de tais asserções não convence.
E mencionar a ‘relação subjetiva com os outros’ ou as ‘vivências subjetivas’ nos persuade sobretudo da utilidade discursiva do pleonasmo.
De qualquer modo, a experiência mostrou-nos, também, que se suprimirmos dos textos em causa essas referências à noção de subjetividade, nem sempre invalida o propósito dos autores.
Diremos, então, que tais expressões desempenham sobretudo uma função de ‘forças de convocação e reconvocação’ (Durrive & Schwartz, 2008) da própria abordagem paradigmática da PdT - relembrando-a, difundindo-a e evidenciando explicitamente a filiação dos autores.
2.2.3. A banalização da noção de subjetividade
Esta criatividade lexical sustentou, de facto, o processo da larga difusão da abordagem da PdT, e sabemos como se revelou particularmente útil e convincente em conjunturas de multiplicação de suicídios no local de trabalho.
Todavia, tal criatividade lexical provocou igualmente uma progressiva banalização do uso da noção de subjetividade na análise das atividades de trabalho, suscitando ou reativando o interesse de certos atores do mundo do trabalho para as perspetivas que privilegiam “aquilo que depende, de forma pertinente, de um sujeito individual” (Millière, 2016, tradução livre).
Os mestres da PdT conhecem bem o desafio que suscitam as suas intervenções quando são confrontados, nas empresas e organizações onde intervêm, com vontades de atribuir responsabilidades individuais aos trabalhadores para qualquer evento indesejável. Aliás, nos contenciosos desencadeados pelo aumento dramático de suicídios, souberam demonstrar que o argumento da vulnerabilidade e da predisposição psicológica se revelava claramente frágil na explicação da etiologia da passagem ao ato (Dejours & Bègue, 2009). Era o trabalho, a organização, as condições de trabalho e as relações de trabalho tecidas, que elucidavam o ato de modo determinante.
Contudo, a banalização do uso da noção de subjetividade, seja nas ciências do trabalho, seja nas solicitações e projetos dos seus protagonistas, não deixa de estar na origem de ambiguidades e frequentes mal-entendidos.
3.1. A PdT convocada nos modelos de gestão empresarial
Assistimos, há já alguns anos, à proliferação de políticas de gestão que, em contextos de crescente complexidade das normas de produção, apostam deliberadamente num maior envolvimento dos trabalhadores, de modo a poder contar com a sua capacidade reguladora e criativa na resolução dos inúmeros imprevistos e dificuldades do dia a dia produtivo.
A noção de subjetividade é, então, amplamente convocada (Mercure & Bourdage-Sylvain, 2017) - alguns propondo, até, definir a PdT como o “modelo managerial” que conta com o facto do “trabalho prescrito ser transformado em trabalho vivo através do envolvimento da subjetividade do trabalhador”, mantendo constante a preocupação de “combinar a perspetiva emancipadora e a necessária restauração de uma autoridade legítima” (Moynot, 2023, pp. 48, 49, 50, tradução livre).
Na verdade, a inflexão inovadora deste tipo de proposta decorre sobretudo do uso privilegiado da noção de subjetividade e da aura que, oportunamente, deu às intervenções sugeridas. Reencontramos, pois, nesses ensaios teórico-metodológicos, uma já longa tradição de gestão dos recursos humanos, para a qual foram determinantes os trabalhos dos pesquisadores da Universidade de Harvard, efetuados nos inícios do século XX, em grande parte na Western Electric Company de Hawthorne, e frequentemente associados ao nome de Elton Mayo.
Se é verdade que, nos relatos desses estudos, não é referida a noção de subjetividade, contudo a afinidade é patente com a hipótese da existência de uma ‘lógica dos sentimentos’, prevalecendo nos comportamentos dos trabalhadores e potencialmente contraproducente face à ‘lógica do custo e da eficiência’ e dos valores que prevalecem na empresa. Tratava-se em consequência, para a equipa de Harvard, de reorientar as políticas de gestão dos recursos humanos, integrando melhor o que permitem, mas também o que impedem esses ‘sentimentos’ (Roethlisberger & Dickson, 1949).
Nada de novo, assim, em termos de técnica managerial.
Mas é outra, obviamente, a conjuntura atual, nos planos dos recursos tecnológicos, dos sistemas de emprego e da dinâmica da concorrência - uma conjuntura propícia à procura de um ‘trabalhador ideal’ cujo envolvimento na atividade profissional o deverá mobilizar totalmente.
As retóricas que recorrem à noção de subjetividade encontraram deste modo a sua justificação. Mas as imprecisões que caracterizam tal noção abriram caminho para todos os excessos que, na verdade, não tardaram a contrariar as expectativas deixadas pelas perspetivas emancipadoras de um envolvimento pessoal, feliz e eficaz. E os exemplos se multiplicam de trabalhadores que, vendo as suas capacidades de regulação ultrapassadas por situações extremamente degradadas, acabam por perder qualquer margem para a reflexão e a expressão (Mercure & Bourdage-Sylvain, 2017) - gerando-se assim situações onde é evidente o risco de destruição de si próprio e dos colegas de trabalho (Christo, 2013).
3.2. Ambiguidade e arbitrariedade
O legado das pesquisas de Harvard, ao sublinhar a dimensão potencialmente contraproducente dos ‘sentimentos’, acabou também por pôr em causa e entravar muitas investigações que recorrem às várias formas de expressão dos trabalhadores. Daí que, frequentemente, o argumento da subjetividade seja utilizado como modo de denegação dos contributos das ciências sociais e humanas nas análises do trabalho, quer no mundo académico quando prevalece a convicção de que é matéria exclusiva das ciências ditas exatas, quer no mundo empresarial. Assim, ainda há pouco tempo, no Quebeque, na sequência de um grande inquérito sobre a evolução das condições de trabalho (Vézina et al., 2011), as associações patronais contestaram e desvalorizaram publicamente os resultados apresentados, apoiando-se essencialmente no argumento da subjetividade para descredibilizar os dados recolhidos no âmbito do tal inquérito.
3.3. Quando os relatos de algumas práticas da PdT se revelam parcos nos usos da noção de subjetividade
Esses usos da noção de subjetividade, com sua dose de arbitrariedade e mal-entendidos que inevitavelmente provocam - particularmente quando tal noção é convocada para projetos de intervenção no terreno do trabalho propriamente dito -, constitui um desafio essencial para a PdT. Mas sabemos como a comunidade que reúne adquiriu a capacidade de refletir e debater acerca do “contexto social e político que pesa sobre o exercício das nossas práticas, onde muitos meios são utilizados para impedir os profissionais da psicodinâmica do trabalho de trabalharem em condições adequadas” (Dejours, 2018, p. 14, tradução livre).
Além disso, “há que acrescentar que o projeto da PdT foi, desde o início, dividido em duas esferas de práticas”: além da “prática da intervenção no local de trabalho, nas empresas, nas administrações, na indústria, na agricultura e nos serviços”, abrange também a “prática dedicada ao tratamento de pacientes que sofrem de patologias relacionadas com o trabalho” (Dejours, 2018, p. 12, tradução livre).
E esta última vertente prática revela-se hoje, mais de que nunca, fundamental para a comunidade da PdT, pois “o ritmo de trabalho intensificou-se para além dos limites do corpo e da psique humana” (Grenier-Pezé, 2018, p. 31, tradução livre).
Assim, em campos de intervenção definidos fora do local de trabalho, isto é, fora do contexto que interferiu direta ou indiretamente no transtorno dos trabalhadores, o propósito é o de “reconstituir cronologicamente o momento a partir do qual as condições em que realizavam o trabalho se alteraram, até ao ponto em que o próprio trabalho se tornou difícil, danificado e impraticável”. Logo, a postura, que é, indubitavelmente, de cariz clínico, se distancia, no entanto, das perspetivas terapêuticas essencialmente centradas na história pessoal, porque: “ouvir as vivências do trabalhador e relacioná-las constantemente com os seus problemas pessoais equivale a responsabilizá-lo pelo seu mal-estar. É fazê-lo admitir que o que lhe está a acontecer é o resultado do que ele é, e não do que ele faz. O seu sofrimento situa-se nas fronteiras entre o individual, o organizacional, o político e o social” (Grenier-Pezé, 2018, p. 24, tradução livre).
Esta prática contribui seguramente para “consolidar o arcabouço científico (da PdT) que terá provavelmente muitos mais bons anos pela frente” (Dejours, 2018, p. 11, tradução livre).
Não faltarão, então, oportunidades para seguir as evoluções dos usos em PdT da noção de subjetividade. E para já, notamos que os textos referentes às práticas terapêuticas se revelam bastante parcos nesses usos - como se a criatividade lexical a volta da subjetividade, acima referida e ilustrada, não se mostrasse à altura da complexidade e da riqueza dos casos analisados.
4. Analisar a atividade de trabalho sem recurso às noções de subjetividade
4.1. Superar a oposição entre o subjetivo e o objetivo. As instruções ao sósia.
Se procurarmos superar a oposição entre o subjetivo e o objetivo, encontraremos recursos interessantes nos trabalhos desenvolvidos pela equipe de Ivar Oddone na Itália, durante as décadas de ‘60 e ‘70 do século passado. Afastando-se de qualquer postura que considere os comportamentos e as tomadas de posição dos trabalhadores como emergindo do campo da subjetividade, procuraram afirmar o princípio da co-existência de vários registos de racionalidade. Tal posição constituirá o fundamento de uma opção metodológica primordial, a "instrução ao sósia": uma técnica hoje bem conhecida, particularmente em certas esferas da psicologia do trabalho e da ergonomia da atividade, embora muitas vezes empobrecida por certos usos que dela se faz.
O ponto de partida dessa proposta teórico-metodológica foi a constatação da existência de um impasse na coleta e no tratamento dos depoimentos dos trabalhadores sobre as suas condições de trabalho. Impasse porque, explicaram esses pesquisadores italianos, se é verdade que esses encontros e colaborações se realizavam num contexto de uma relação de confiança e de espontaneidade, na prática os trabalhadores tentavam, na maioria das vezes, formular e transmitir aquilo que viviam e sabiam numa linguagem que julgavam corresponder à linguagem dos pesquisadores - com vista a se fazerem entender e poder assim convencê-los.
O recurso à instrução ao sósia foi desenvolvido para limitar os inconvenientes deste viés:
“A técnica consiste em pedir ao trabalhador que forneça ao pesquisador as instruções necessárias para substituí-lo no trabalho, de modo que ninguém note a substituição. O resultado é uma espécie de observação indireta na qual a atividade laboral é reconstruída, mesmo em aspetos que podem parecer menos relevantes, como se fossem observados do ponto de vista do trabalhador” (Re & Lacomblez, 2020, p. 18).
A experiência do/da trabalhador/a é, então, progressivamente posta em diálogo com as categorias de análise do investigador, encontrando-se, no verdadeiro sentido da palavra.
Mas, neste percurso, cada um dos protagonistas, cientista ou trabalhador, toma igualmente consciência dos limites e das potencialidades de cada uma das análises e dos seus registos linguísticos. Todos estarão assim envolvidos, concretamente, numa reflexão epistemológica crítica, identificando os diferentes tipos de saberes e as diferentes formas do seu registo e acumulação. Alessandra Re costuma sublinhar que só assim passa a ser possível construir uma linguagem partilhada e perspetivar novos instrumentos de análise e de intervenção, desenvolvidos através da mobilização de um conhecimento científico que se enraíza, então sim, no enorme potencial de mudança da experiência dos trabalhadores.
Logo, não há, nesta perspetiva, por um lado, uma abordagem subjetiva das condições de trabalho, e por outro, uma análise objetiva. Aqui, a análise e as propostas de alternativas são descobertas conjuntamente, num debate entre “especialistas científicos” e “especialistas da experiência”, para caminhar num movimento de transformação do trabalho e de sua organização. Trata-se de uma dinâmica própria que esta equipe denominou de “comunidade científica ampliada”, cuja finalidade essencial é a de possibilitar a quem trabalha um envolvimento num processo de apropriação do poder na conceção da organização do trabalho - e, assim, progressivamente, “expandir as fronteiras do pensável”(Oddone, Re, & Briante, 2023, p. 6).
4.2. Construir novos conhecimentos nos encontros de saberes
Outras pesquisas se inseriram neste mesmo tipo de questionamento, por volta da mesma época. Teceram a trama de uma tradição científica e de intervenção hoje bastante sólida (Teiger & Lacomblez, 2013). Mas também revelaram argumentos complementares em relação ao uso da noção de subjetividade. São disto reveladores os percursos de afirmação da ergonomia da atividade e da psicologia do trabalho que lhe é próxima.
4.2.1. A ergonomia da atividade: os primeiros passos do projeto de uma emancipação - sem a subjetividade
São deveras conhecidos os trabalhos dos colegas franceses, Jacques Duraffourg, Antoine Laville e Catherine Teiger, iniciados no final dos anos 60 quando eram pesquisadores da equipe de Alain Wisner no Conservatoire National des Arts et Métiers - CNAM (Teiger & Lacomblez, 2013). Para eles, o desafio fundador emergiu da constatação dos impasses da pesquisa laboratorial, de grande importância até então na tradição da ergonomia. Preocupados por tal perspetiva positivo-comportamentalista das mais restritas, as suas críticas incidiram particularmente na conceção, veiculada pelas experiências de laboratório, de um trabalhador metamorfoseado em sujeito a-histórico, isolado da realidade social e de qualquer história da vida no trabalho.
E, de facto, tal modelo teórico-metodológico não resistiu à investigação que empreenderam a propósito do trabalho de mulheres na indústria eletrónica - um estudo solicitado pelos dirigentes sindicais do setor com a seguinte enunciação: “Somos os responsáveis pela secção de eletrónica, todos homens, e as nossas sócias, todas mulheres, acham o trabalho muito pesado. Chegam a ter crises de nervos e gostaríamos de saber se tudo isto é realmente sério... Não estou a exagerar!” (Teiger, 2006, p. 82, tradução livre).
A formulação da dúvida inicial era suscetível de encaminhar para uma interpretação em termos de ‘lógica dos sentimentos’ ou de subjetividade. Contudo, a equipa posicionou-se logo no plano das condições de trabalho e de emprego definidas para a relação salarial em causa, no âmbito de uma organização do trabalho de tipo tayloriana - assumindo-se claramente na tradição que Christophe Dejours e Isabelle Gernet designaram de ‘mais clássicas’ (Dejours & Gernet, 2012, p. 76). Todavia, nem por isso desconsideraram o desânimo e a experiência afetiva que “apela ao mesmo tempo, o corpo e o pensamento do sujeito” (Gernet, 2009, p. 82, tradução livre). A opção foi a de perceber melhor que trabalhar é encontrar-se na encruzilhada de prescrições que incidem no uso de si e, obviamente, no uso do corpo - o que, aliás, levou mais tarde Yves Schwartz, partindo, em parte, das pesquisas da equipa de Wisner, a criar o conceito de corpo-si (Schwartz, 2023), de modo a evidenciar que, na atividade de trabalho, o que está envolvido vai do mais biológico ao mais cultural, do mais consciente ao mais inconsciente.
No plano metodológico, a equipa apostou então numa “combinação de métodos” de modo a “preservar a riqueza e a complexidade da situação real de trabalho, ultrapassar as limitações de cada um dos métodos e basear a interpretação dos resultados no seu grau de convergência/divergência” (Teiger, 2006, p. 92, tradução livre), complementando essa opção com um princípio orientador de "reconhecimento de ignorância" (Teiger, 2006, p. 90, tradução livre), isto é: assumindo abertamente a consciência dos limites do conhecimento científico existente na altura em matéria de condições e organização do trabalho e dos seus efeitos na evolução da saúde.
Foi esta postura que levou a equipa a prever que o desenvolvimento da pesquisa fosse avaliado por um grupo constituído conjuntamente com as operárias. Periodicamente, operárias e pesquisadores analisavam, então, as etapas do processo da pesquisa, os seus resultados, assim como as dúvidas, as necessidades de reorientação, os ajustes metodológicos ou mesmo o planeamento de outras pesquisas. O princípio de uma construção progressiva de novos conhecimentos resultantes da colaboração de todos os atores envolvidos estava assim a dar os seus primeiros passos (Teiger, 2006, p. 80) - contribuindo de maneira decisiva à configuração e afirmação do paradigma da ergonomia da atividade.
Assim, a ausência de referência à noção de subjetividade, tal como entendida pela PdT, não impediu à tradição da ergonomia da atividade, contrariamente ao afirmado por Laerte Sznelwar e François Hubault, “abrir uma perspetiva de autonomia e de emancipação da prescrição heteronormativa” ((Sznelwar & Hubault, 2015, p. 57, tradução livre).
4.2.2. Uma psicologia do trabalho definida para além do obstáculo epistemológico das noções generalizadoras
A escola criada nos anos 60 por Jean Marie Faverge na ULB assume a mesma perspetiva de emancipação de quem trabalha, embora inscrita na área da psicologia do trabalho (então dita industrial). Mas a crítica da ilusão do poder explicativo das noções generalizadoras foi mais explícita.
A clareza do distanciamento resultava da batalha forjada, principalmente no período posterior à segunda guerra mundial, por uma geração de psicólogos franceses contra os axiomas da ‘psicologia das aptidões’, predominante na altura nas práticas da orientação escolar e profissional. Faverge, sob a direção de André Ombredane, investiu-se na demonstração, com vários estudos empíricos, dos impasses das análises regidas pela noção de aptidão, concluindo “essa noção, enraizada em nós, de aptidão (…) não representa nada sem o significado da tarefa proposta” (Faverge, 2009). As pesquisas então realizadas com o objetivo de uma identificação precisa das atividades de trabalho e das suas dificuldades, puseram em causa de forma evidente os métodos baseados na noção de aptidão e sua consequente separação aleatória das operações exigindo, por exemplo, capacidades de atenção, de memória, de precisão visual ou gestual.
Porém, tais pesquisas acabaram por ter outro papel decisivo no percurso científico de Faverge, pelo facto de terem evidenciado um campo de investigação e de intervenção de particular riqueza e interesse. Na verdade, a noção de aptidão revelou ser um autêntico obstáculo epistemológico ao desenvolvimento de análises aprofundadas, alicerçadas em observações concretas e precisas, que permitem, essas sim, levantar o véu sobre a complexidade e a extrema variabilidade da confrontação do/da trabalhador/a com as situações de trabalho.
E, se a noção de aptidão é apenas uma ‘fachada’ que convém contornar para descobrir o que oculta, as outras noções generalizadoras, como a subjetividade, também o são.
Apoiando-se nesta experiência e nesta convicção, Faverge desenvolveu, com a equipa de investigadores belgas, um número significativo de estudos que sustentaram a afirmação da bem conhecida teoria da regulação: o conhecimento do processo de produção é construído, configurado, pelo operador numa atividade reguladora, sempre exercida num quadro temporal constrangedor, a fim de "manter um certo equilíbrio ou uma certa concordância entre constrangimentos que em princípio se opõem, se contradizem" (Faverge, 1966, p. 56, tradução livre). Este saber do operador é, então, um saber ativo, envolvido na situação, inscrito no tempo da ação - elaborado num processo onde a atividade cognitiva é constantemente permeada pela experiência motora, visual e auditiva.
No que passou a constituir a tradição favergiana, é evidente, como o foi para as duas tradições atrás referidas, que a identificação das situações enfrentadas pelos trabalhadores não podia ser efetuada sem eles: por razões éticas, mas também porque a sua experiência nem sempre é facilmente percetível e também pouco visível. Os encontros entre operadores e analistas do trabalho são, portanto, intrínsecos à análise da atividade, concebidos como momentos de troca de saberes sem hierarquia pré-definida e inseparáveis da finalidade da démarche de Faverge, isto é: reunir condições suscetíveis de permitir um exercício mais sereno, menos aleatório e menos arriscado, menos perigoso, da atividade de cada operador. Um projeto de emancipação, também, e também independente da noção de subjetividade.
4.3. Uma comunidade epistêmica emancipada da noção de subjetividade
Tem sido claro que, para esta abordagem, como para a da equipa italiana ou a que se revelou decisiva na afirmação do paradigma da ergonomia da atividade, a noção de subjetividade (e os seus equívocos) acabou por ser suplantada pela preocupação de documentar concretamente o que Pierre Rolle designou de "movimento real" - ou seja: "o debate entre o organismo humano e o seu ambiente, a invenção simultânea do sujeito e do seu objeto, as aprendizagens e reações que, ao longo da vida, nos fazem passar constantemente (…) ao conceito" (Rolle, 2022, pp. 112 e 113, tradução livre).
À guisa de síntese, podemos então evocar uma comunidade epistêmica baseada numa convicção segundo a qual os avanços científicos das disciplinas científicas que incidem sobre o trabalho inscrevem-se no encontro com os saberes experienciais. E aqui, o cientista não é um sujeito que deveria sublimar todo e qualquer tipo de subjetividade para conseguir atingir uma objetividade científica no estudo da realidade em causa. É o cientista de uma Comunidade científica ampliada tal como a definiu Ivar Oddone.
5. O carater heurístico das análises comparativas
Neste relato da trajetória da minha reflexão, acabei por avançar com um esboço de uma análise comparativa de abordagens que, estudando a relação tecida com a atividade de trabalho, recorrem ou não à noção de subjetividade.
Um artigo de Ana Claudia Leal Vasconcelos e Helder Pordeus Muniz, 2017) realçou o carater heurístico da análise comparativa no âmbito desta reflexão, ao demostrar como as obras de Christophe Dejours e de Yves Schwartz, “em movimentos de aproximação e afastamento da noção de subjetividade, teorizaram sobre os processos experienciados por aqueles que estão implicados no trabalhar”. Destacam que Dejours convoca “uma subjetividade ancorada e constituída a partir do corpo (…) um segundo corpo, um corpo subjetivo (pensante e erótico) que se constrói a partir de um primeiro corpo biológico e orgânico”, E lembram que, do seu lado, Schwartz, ao propor o conceito de corpo-si, “introduz uma alternativa à conceção de subjetividade, evidenciando uma entidade que (…) integra uma sinergia entre biológico, psíquico e histórico” (p. 320).
Este contributo vai obviamente ao encontro da problemática desta minha conferência. E é igualmente um apelo à vigilância face ao uso frequentemente indiscriminado da noção de subjetividade.