1. Introdução
O Encontro Internacional sobre o Trabalho - EITA 1 formulou como seu tema e título uma pergunta que sempre deveríamos nos fazer: “Trabalhar pra quê?”. Durante os dias do encontro, além desta, certamente muitas outras indagações puderam ser feitas, bem como possíveis respostas que envolvam o Trabalho e o Trabalhar nas diferentes mesas, simpósios, posteres.
Pretendemos contribuir com reflexões e achados advindos de investigações desenvolvidas baseadas na perspectiva da Psicologia Social do Trabalho 2, tal qual a temos construído no Brasil, e que se configura como:
“(...) uma psicologia social que focaliza os fenômenos e problemas do trabalho e, para tanto, conta com elementos que a singularizam, enraizados em sua história, em seus princípios, em seus objetivos, em sua ética não liberal e nas áreas e disciplinas com as quais dialoga. (...) A constituição da PST não aconteceu como decorrência de um projeto definido a priori, e ela emerge em um momento de cruzamento de múltiplas forças, em um contexto de redemocratização do país e de busca por leituras da psicologia social voltadas para iluminar os problemas da nossa sociedade. Trata-se de um processo recente, de cerca de três décadas, ainda em andamento, e não de uma proposta acabada. Tal construção foi motivada pelo sentimento de indignação com a percepção da injustiça em nossa sociedade, que é bastante desigual, e, em especial, pelo modo como se dá a exploração do trabalho em nosso país” (Sato, Coutinho, & Bernardo, 2017, p. 11).
“O trabalho é compreendido (...) em sua materialidade e em sua historicidade, o que exige a consideração das relações de poder presentes na divisão social do trabalho e nos valores e ideologias - entendidas aqui no sentido marxista -, bem como das condições e das peculiaridades do capitalismo contemporâneo” (Sato, Coutinho, & Bernardo, 2017, p. 13).
Assim, ancorada, a Psicologia Social do Trabalho volta-se para o exame e intervenção de situações e contextos de trabalho que “restringem as ações das pessoas, constrangem seus modos de ser e limitam suas condições de vida” (Sato, Coutinho, & Bernardo, 2017, p. 14). Afinal, sua intenção é tornar o trabalho um lugar humanamente melhor habitável. E, para dar conta destas tarefas, apoia-se, sobretudo, na visão e nos conhecimentos das trabalhadoras e trabalhadores, algo comum a muitas abordagens teóricas que apoiaram os trabalhos apresentados neste evento. Sobretudo, entendemos que a Psicologia Social do Trabalho articula-se com os estudos a seguir apresentados na medida em que lhes serviu de calço teórico-metodológico; estão assentes em seus princípios epistemológicos e ético-políticos e por eles se guiaram em seus respectivos processos investigativos.
Algo a se destacar sobre a Psicologia Social do Trabalho é o fato de ela ter como fontes de seu pensamento e de suas práticas dois campos interdisciplinares de pesquisa e intervenção bastante importantes no Brasil: o da Saúde do Trabalhador - entendido como um movimento que envolve a ação de entidades sindicais de trabalhadores e é objeto de políticas públicas de saúde -, e o da Economia Solidária - entendida uma luta travada por trabalhadores e trabalhadoras pelo direito coletivo ao trabalho e de resistência à precarização, o que envolve organizações populares, empreendimentos autogeridos, universidades e é objeto de políticas públicas de trabalho.
Nosso objetivo é discutir as potencialidades de alguns modos pelos quais trabalhadores resistem e enfrentam a precarização crescente do trabalho. De início, vale lembrar Robert Castel (1995), que pontuou que a condição de assalariado, à qual, nas palavras do autor, está:
“(...) vinculada a maior parte das proteções contra os riscos sociais foi, durante muito tempo, uma das situações mais incertas e, também uma das mais indignas e miseráveis. Alguém era assalariado quando não era nada e nada tinha para trocar, exceto a força de seus braços. Alguém caía na condição de assalariado quando sua situação se degradava: o artesão arruinado, o agricultor que a terra não alimentava mais, o aprendiz que não conseguia chegar a mestre (...)” (Castel, 1995, p. 21).
Esta situação muda significativamente no processo histórico e, contemporaneamente, no ocidente, de modo geral, o trabalhador pobre consegue escapar da vulnerabilidade, da miséria e da precariedade se for assalariado. Além de prover condições materiais, o assalariamento também forneceu elementos para a criação de ideário que justificou a desvalorização de outras formas de trabalho, que foram precarizadas.
Tal reflexão é especialmente relevante quando miramos a situação de países do chamado Terceiro Mundo ou do Sul Global. Especificamente, o contexto laboral brasileiro, é complexo e desigual, próprio de uma região onde a relação de assalariamento não se efetivou de forma majoritária. É, pois, necessário afirmar que a presença de formas não capitalistas de trabalho, produção, comercialização e crédito nos países subdesenvolvidos é algo antigo e persistente e que, frequentemente, tais formas constituem as únicas possibilidades de sobrevivência para parcelas da população que vivem com pouca ou nenhuma proteção laboral. Se as formas tradicionais aparecem como “informais” (aos olhos da OIT) e mantêm-se na precariedade, devemos indagar se isso se deve a características intrínsecas a elas ou à maneira como foram invisibilizadas ou negadas pelas elites e seus legisladores.
Não aprofundaremos aqui na discussão sobre os limites do uso do termo “trabalho informal” para definir a ampla diversidade de trabalhos que escapam à modalidade “emprego”. Nesse sentido, vale a pena conhecer investigações de pesquisadores latinoamericanos que teorizam sobre a “economia popular”, como (Giraldo, 2017); “nanoeconomia”, como (Spink, 2009) e a “viração”, como (Gregori, 2000). E, também, de pesquisadores que estudaram a realidade de trabalho no continente africano. (Grassi, 2003) descreve a complexidade organizativa do comércio transnacional desenvolvido pelas rabidantes caboverdeanas; (Lopes, 2007), por sua vez, descreve a vida e o trabalho nos grandes mercados, como o Roque Santeiro, em Angola, que recebeu o mesmo nome de uma das novelas brasileiras, transmitidas naquele país; e (Nouroudine, 2011) que aponta a existência e a importância para a sobrevivência da população de União de Comores de muitos trabalhos que não implicam em trocas mercantis. Ou seja, o universo do trabalho em nossos países se caracteriza pela polimorfia que, por muito tempo, ficou invisibilizada.
No Brasil, o processo de “modernização” em que se buscou hegemonizar a relação de assalariamento no país, invisibilizou toda uma gama de atividades laborais consideradas atrasadas, fora de seu tempo e imaginou-se que, de algum modo, elas viriam a ser extintas.
Assim, por exemplo, a feira livre, o camelô, a quitandeira (que tem origem no trabalho das negras angolanas) e o vendedor ambulante são modalidades de comércio e de trabalho que têm origem desde o Brasil Colônia e que ainda persistem em centros urbanos, sofrendo preconceito, desprezo e violência do poder público e competição desleal com as empresas modernas (supermercados, os shoppings centers) e práticas higienistas. O Brasil Moderno, expressão de (Ianni, 1994) é uma ideia, talvez um desejo, pois a nossa realidade de trabalho é como um mapa arqueológico, no qual presente, passado e futuro convivem.
O processo de invisibilização de algumas formas de trabalho no Brasil já havia sido notada por João do Rio, no Rio de Janeiro do início do século XX. Assim, ele lembra dos catraieiros (que conduzem catraia - pequena embarcação), dos carroceiros (que fazem transporte em carroças), dos ciganos comerciantes, dos trapeiros (que catam trapos e papelão para vender), dos apanha-rótulos e selistas (que apanham rótulos e selos usados para vender a colecionadores), dos caçadores, das ledoras (aquelas que leem - deve-se considerar a importância desta profissão num contexto no qual, talvez, muitas pessoas fossem analfabetas). (João do Rio, 1997) denomina estes trabalhos como “profissões ignoradas”, “pequenas profissões" e “profissões sem academia”. Assim como estas, atualmente muitas outras existem, e continuam a ser ignoradas.
Em nosso contexto, a precarização do trabalho no neoliberalismo agrava as incertezas e vulnerabilidades existentes anteriormente. Em termos estatísticos, o trabalho na forma de emprego sempre alcançou apenas uma parcela da população trabalhadora. Desta forma, o entendimento sobre a precarização do trabalho, bem como a agenda de pesquisa sobre o tema devem ser orientados a partir do chão de nosso país.
Como afirmam (Muradas e Pereira, 2018, p. 2120):
“O desempenho de funções precárias e subalternas nas relações de trabalho contemporâneas no Brasil atinge trabalhadoras e trabalhadores periféricos, interseccionalmente oprimidos pela raça e gênero desde a colonização, que continuam silenciados por uma narrativa única de matriz eurocêntrica de celebração da liberdade pelo trabalho subordinado, fruto da colonialidade do saber ainda presente no Direito do Trabalho Brasileiro”.
Assim, desigualdades antigas e persistentes, somadas à substituição de postos de trabalho regulados por novas formas laborais precárias (a uberização, por exemplo), impõem implicações também para os trabalhadores, obrigando-os a lidarem com riscos prementes da manutenção da vida na ausência ou precariedade da seguridade social, seja essa advinda da cidadania ou do trabalho regulado.
Mas também há resistências e enfrentamentos por dentro do atual sistema socioeconômico, e disso trataremos a seguir. Uma das formas de resistência à precariedade do trabalho é, como sabemos, a luta pelo trabalho assalariado em condições dignas e protegido - luta pelo emprego e conquista ou manutenção de direitos trabalhistas e previdenciários dos assalariados 3-, mas também há formas de enfrentamento ao trabalho subordinado mediante a construção de trabalhos sustentados por vínculos e redes sociais solidárias. Tal construção dá-se não apenas movida pela necessidade frente ao desemprego e a extrema precariedade e miséria, mas, também pela convicção política de que há outros tipos de relação de trabalho que permitem situar e colocar o trabalho na vida de modos mais condizentes com o bem viver e não com os preceitos utilitaristas e instrumentais, próprios da relação de trabalho no capitalismo. E, por isso, estas formas podem contribuir para responder à pergunta-título deste Encontro.
No Brasil, iniciativas nesta direção podem ser observadas em contextos urbanos e rurais. As ações que emergem do cotidiano de diferentes grupos, mais do que projetos formatados a priori, versam sobre aquilo que as pessoas entendem como sendo o melhor e o possível para elas e para aquele lugar.
O que interessa aqui é a capacidade coletiva de costurar relações de ajuda mútua, planejar e concretizar transformações possíveis no cotidiano, resistindo à racionalidade econômica capitalista e também à precarização do trabalho. São práticas autóctones que reúnem a busca de satisfação de necessidades de sobrevivência material com a convivência social, a reprodução da cultura e a construção de formas de ser solidárias. Elas permitem recuperar o “potiron”, que entre os Guarani antigos expressava “todas as mãos” (Bartolomeu, 1996) e que atualmente significa mutirão, ajuda mútua, e o “tanomoshi”, palavra japonesa que designa o consórcio comunitário de dinheiro. Vale também lembrar que em crioulo caboverdiano, “djunta-mon” significa juntar as mãos, cooperar, fazer juntos.
Como dizia Sylvia Leser de Mello, para alguns segmentos sociais, a sobrevivência está alicerçada na solidariedade, pois não é possível viver se não se contar com o outro. Solidariedade, aqui, não é um ato de benemerência, mas é a base para a sobrevivência das pessoas.
No “Ensaio sobre a dádiva”, (Mauss, 1950) descreve a relação entre povos “primitivos” na Polinésia, na qual dar e receber faziam parte da moral e da economia, tecendo-se uma rede. Note-se que a doação não é apenas material, mas é, também, uma doação espiritual.
A economia popular, segundo (Giraldo, 2017), escapa à relação de assalariamento e baseia-se em práticas desse tipo. Tais práticas podem dar origem à construção de empreendimentos solidários (cooperativas autogestionárias), podem soldar o vínculo necessário para que pessoas criem trabalhos individuais a partir de recursos disponíveis, assemelhando-se, muitas vezes a uma bricolage, e podem reunir e articular práticas no território que respondam à satisfação de necessidades em diversas esferas (trabalho, saúde, habitação, educação, cuidado), mantendo os recursos econômicos no bairro.
Passamos a descrever brevemente algumas iniciativas para, então, destacarmos elementos relevantes destas formas organizativas como forma de enfrentamento.
2. As iniciativas
2.1. Cooperativa Unidas Venceremos - Univens, Porto Alegre (RS)
Esta Cooperativa segue princípios da Economia Solidária, os quais preveem que as decisões em todos os níveis sejam tomadas democraticamente, incluindo as retiradas, a duração da jornada de trabalho, a organização do trabalho, e que cada pessoa tenha um voto. Tal cooperativa foi criada por mulheres de um bairro popular. A cooperativa produz artigos como: camisetas, sacolas promocionais, aventais. Ela produziu sacolas para o Fórum Social Mundial.
De início, o grupo era formado apenas por mulheres, trinta e cinco, cujas idades variavam de 18 a 80 anos. A maioria delas era casada e tinha filhos, e teve que interromper os estudos antes de completar o ensino fundamental. À época, a situação de trabalho delas era precária. Muitas faziam, em casa, trabalhos de costura esporádicos e mal remunerados, as facções. Uma delas contou que ganhava o equivalente a um litro de leite por um dia inteiro de trabalho. Eram tempos de Crise do Emprego no Brasil, crise econômica e social, que se estendeu pelos anos 90 e que afetou severamente os setores mais pobres da classe trabalhadora. A ideia de constituir a Univens surgiu no seio de um pequeno grupo de vizinhas, nas reuniões do Orçamento Participativo (OP) 4, política pública que propiciou uma experiência comunitária importante, responsável por uma profunda transformação do bairro. Muitas delas já se conheciam em razão de experiências anteriores, baseadas em relações solidárias, de ajuda mútua, como a construção da capela e a luta por uma creche comunitária.
A luta das moradoras do bairro obteve conquistas importantes. Por isso, a história da Univens confunde-se com a história da Vila. Ao lutar por elas, os lugares de moradora e cooperada surgem mesclados e formam “um emaranhado”, nas palavras da cooperada Terezinha. A imagem parece potente para ilustrar o campo formado por relações solidárias que não se restringem à cooperativa, estendem-se pelo bairro - território que, a seu turno, confere materialidade, história e cotidiano a essas relações, por intermédio de seus agentes: “(...) as pessoas para trabalharem na cooperativa têm que ser da comunidade (...). É um emaranhado, que é pro crescimento em si” (Terezinha, entrevista, março de 2004).
A pesquisa demonstrou que as relações solidárias, alicerces dessa experiência política e comunitária, não apenas são anteriores à cooperativa como foram condições necessárias para a organização dela. Após transformar o território em que vivem e passar por intensa formação política, na prática da democracia participativa no OP, o grupo voltou-se coletivamente para a condição maltratada que comungavam como trabalhadoras.
A construção da autogestão demandou um longo e trabalhoso processo, no qual o processo dialético entre resistir ao sistema dominante e criar um modo autoral de sobreviver a ele parece infindável, nas palavras das trabalhadoras. Mais que o desenlace histórico deste modo de viver o trabalho, de modo geral, é a trama do cotidiano juntas o que importa mais para elas.
Esse processo formou lideranças importantes que atuam em âmbito nacional no campo da Economia Solidária. E, atualmente, este empreendimento integra uma rede de cooperativas populares que compõem uma cadeia do algodão agroecológico formada por cooperativas nos estados de Rondônia, Ceará, Paraíba, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, a Justa Trama 5 (Andrada & Sato, 2014).
2.2. Coletivo do MST - Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, situado em Rondônia, na Amazônia
Trata-se do caso de trabalhadores rurais que após dois anos de ocupação “sob a lona” - sendo constantemente ameaçados de despejo - desenvolveram um processo de coletivização da terra e do trabalho. Note-se que este coletivo está situado numa região onde o agronegócio está ostensivamente presente e onde trabalhadores rurais, ligados a movimentos sociais, são vítimas de violência, muitas vezes, fatal.
Mais do que uma escolha entre muitas, a cooperação se constituiu, neste grupo, como uma necessidade, uma questão de sobrevivência diante das condições de vida da população camponesa. Nas primeiras iniciativas de cooperação os homens saíam para trabalhar na roça enquanto as mulheres permaneciam em suas casas para realizar o trabalho doméstico e cuidar das pequenas hortas e animais que ficavam no entorno. As dificuldades econômicas, entretanto, levaram algumas famílias a fazer diariamente suas refeições juntas. Diante da escassez de mão de obra, concluíram que era importante que as mulheres também trabalhassem no roçado e na horta e decidiram “juntar as panelas”, tornando coletivo todo o processo de alimentação das famílias envolvidas nas experiências de cooperação agrícola.
Assim foi criada a “cozinha coletiva”, um barracão de madeira com um fogão a lenha construído no centro da agrovila, para onde as famílias levaram seus utensílios domésticos e passaram a cozinhar e se alimentar diariamente. Com o tempo, a cozinha, que parecia ser apenas uma forma de resolver problemas práticos da cooperação no dia-a-dia, tornou-se o motor de sustentação de uma experiência de coletivização mais ampla, que passou, inclusive, a questionar a divisão sexual do trabalho que vigora ali, tema em permanente tensão.
Ao mesmo tempo em que o trabalho na produção e parte do trabalho doméstico eram coletivizados, fez-se necessário coletivizar as terras. Inspirados pelas experiências de coletivização parcial que aconteciam nos assentamentos no país e também nas experiências socialistas conhecidas (especialmente as experiências cubanas) definiram que experimentariam também viver numa única terra, sem divisas de lotes (que era a forma designada às famílias). Mais do que a quantidade de terras de cada um, importava a maneira que trabalhariam nela e as condições objetivas que permitiriam que isso acontecesse. A forma coletiva e autogerida de organizar o trabalho na produção incidiria diretamente sobre o sentido dado à terra. A agroecologia e as práticas econômicas solidárias foram tomadas como base para a produção agrícola. A consciência agroecológica também incidia na compreensão acerca da saúde humana e animal e, por isso, a homeopatia popular e as ervas medicinais foram essenciais para os cuidados. O trabalho coletivo exigia a terra coletiva e então, em 2003, constituiu-se o “Coletivo 14 de Agosto”.
Desta experiência depreendemos que a maneira como estas famílias percebem o trabalho na agricultura se transforma a partir da coletivização, alargando-se: o que antes era trabalho para si, torna-se o trabalho para nós. O caráter autônomo do uso da terra e a propriedade coletiva dos meios de produção possibilita a construção de socialidades e materialidades coletivas e alternativas organizativas diferentes do modo de trabalhar da família camponesa tradicional. A construção desse cotidiano é marcada pela solidariedade e amizade, pelo sentimento de pertencimento e proteção, por aprender a planejar, decidir e fazer junto e pela convicção de que a coletivização é um tipo de enfrentamento político.
Entre as diferentes implicações das escolhas que o grupo fez ao longo de mais de 20 anos, evidenciou-se a produção de uma territorialidade camponesa combativa e anticapitalista, enraizada em uma história de luta e também numa cosmologia que entende a terra e o trabalho como elementos constitutivos da vida camponesa com sentidos muito distintos da territorialidade do capital. Nesta perspectiva, a terra é herança, é sagrada e é viva; o trabalho é o que se faz para viver bem e a cooperação é uma forma histórica e cotidiana de resistir do campesinato (Candido, 2001). Articularam, no seu fazer cotidiano, política, memória e projeto de sociedade, a partir da autogestão, do trabalho entendido em sua totalidade (produção e reprodução da vida) e da terra como lugar de vida, habitado, povoado.
Enfim, coletivizaram a terra e a produção, bem como a comercialização dos produtos e também construíram uma escola. Em um horizonte socialista, as práticas foram orientadas pela agroecologia, solidariedade e amizade.
2.3. Conexões entre quatro bairros da cidade de São Paulo
Trata-se de conexões criadas pela população de bairros pobres situados na Zona Sul da cidade de São Paulo e que sofreram um agudo processo de desindustrialização nos anos 1990. O desemprego por ele provocado agravou as condições de vida da população que já era pobre e dois dos bairros testemunharam aumento significativo da violência: Capão Redondo e Jardim Ângela.
Além do medo sentido, a população também construiu resistências, articulando cultura, trabalho e educação. A ação contra a violência conseguiu, em cerca de vinte anos, tornar a Zona Sul um celeiro de produção cultural. Na conjunção entre cultura, solidariedade e trabalho surgiram diferentes coletivos entendidos ali como “empreendimentos culturais solidários”. Atrelar cultura, solidariedade, trabalho e renda significa realizar, coletivamente, atividades econômicas a partir da valorização da própria cultura e, com isso, viver a cultura no cotidiano. Como exemplo, um grupo de cabeleireiros/as que valoriza a estética afro-brasileira vive dessa cultura e a recria cotidianamente.
E também há redes de cooperação. Há empreendimentos que prestam consultoria em agricultura urbana para organizações que cultivam hortas comunitárias. Tais hortas fornecem produtos para grupos do setor da alimentação que valorizam os sabores das culturas ancestrais. As hortas demandam a construção e instalação de cisternas, o que é realizado por coletivos relacionados à ecologia. O mesmo tipo de união ocorre entre os setores da reciclagem e da construção, em que empreendimentos de coleta fornecem entulho para outros que fabricam tijolos. Também há grupos que fazem reformas nas moradias que, por sua vez, são financiadas por bancos comunitários.
As ações desses empreendimentos demandam serviços de artes visuais, comunicação, informatização, contabilidade, abrindo espaço para outros coletivos que vão surgindo e se estruturando. Ao mesmo tempo em que aumenta a complexidade das relações econômicas entre empreendimentos solidários, ampliam-se os potenciais de desenvolvimento local, pois trata-se de moradores que trabalham, produzem e consomem na região (Esteves, Pereira, & Spink, 2019). Esta rede amplia-se mais e mais.
2.4. Criação individual de trabalho e geração de rendimento
Trata-se do caso de duas mulheres que se apoiavam mutuamente na produção artesanal de roupas infantis. Elas moram no mesmo bairro e trabalharam como operárias numa fábrica de confecção onde aprenderam a costurar. Após o fechamento desta fábrica, desempregadas, elas resolveram criar esse trabalho, ideia que uma delas teve ao saber que a fábrica têxtil na qual fizera um bico (trabalho extra) doava retalhos. Cada uma delas costurava de forma individual e independente em suas respectivas casas e cada uma obtinha rendimento a partir da fabricação e da comercialização individual.
E os recursos eram escassos. Cada uma construiu seu próprio negócio, mas trabalhavam em cooperação em algumas etapas do processo de trabalho: iam juntas buscar o retalho na fábrica (transportavam grandes volumes de material em ônibus, além de caminharem cerca de 700 m a pé); resolviam, juntas, problemas técnicos do trabalho de costura e da comercialização das roupas. Essa interação ocorria regularmente, quando discutiam e resolviam conjuntamente os pequenos e grandes problemas, mesmo que afetassem apenas uma delas. Assim, desenvolvia-se o aprendizado contínuo e conjunto.
Essa forma de cooperação solidária, criada com base na amizade, ocorria mesmo que cada uma delas costurasse em suas respectivas casas. Ambas confeccionavam roupas infantis, entretanto, criavam modelos diferentes e assim foram definindo seus respectivos estilos: Vera fazia modelos mais simples e mais baratos e vendia as roupas para bancas nas feiras livres e Judith confeccionava roupas com modelos mais sofisticados, com mais detalhes, com outros tipos de acabamento e as comercializava para pequenas lojas nos bairros da região. A diferença de estilo era devido à diferença de qualificação de ambas - Judith dominava melhor as técnicas de costura. Deve-se destacar que embora fossem negócios individuais, a relação de ajuda mútua estava presente em vários momentos do trabalho.
Note-se que elas faziam o trabalho em suas casas (na cozinha, no quarto ou na sala) e se não fosse a doação da matéria-prima e o empréstimo da máquina para uma delas, não seria possível criar este trabalho. Além da prática de “juntar as mãos” entre elas, a solidariedade também é praticada pelos seus vizinhos, amigos e parentes. Apenas assim foi possível “criar” esse trabalho. A vida social e econômica dá-se no bairro.
3. Pertencimento e participação na resistência à precarização do trabalho e da vida
Os quatro casos mostram táticas (Certeau, 1990) criadas por trabalhadores para resistir à pobreza, à segregação e à vulnerabilidade social produzidas pela economia capitalista mediante formas para resolver os problemas específicos de cada comunidade: violência, desemprego, subemprego, insuficiência de rendimento, dificuldades relacionadas a moradia, poder do latifúndio. A resistência à precarização se dá mediante relações de ajuda mútua, solidárias (Mauss, 1950) que são sustentadas em vínculos de amizade, de parentesco e de vizinhança. São eles que fornecem o suporte social necessário para a existência, de modo a evitar situações de maior vulnerabilidade social.
A pessoalidade que sustenta os vínculos sociais mostrou-se importante para a construção de coletivos organizados de forma autônoma, bem como para que as práticas solidárias sustentem a criação de pequenos trabalhos individuais. Em todos os casos, as relações de confiança foram construídas no decorrer de longos períodos de uma convivência que é facilitada pela proximidade territorial, comunitária e/ou vecinal.
Os produtos e serviços oferecidos priorizam atender a determinados mercados (organizações, movimentos sociais, coletivos e moradores do lugar) e adotam, intencionalmente, formas de comercialização que permitem, ao menos parcialmente, reter os recursos econômicos no circuito inferior da economia urbana (Santos, 2004), fortalecendo a economia popular, a comunidade e os sentimentos de pertencimento e de participação.
A resistência política pode ser sustentada tanto por uma clara orientação anticapitalista, como é o caso da cooperativa de confecção e do Coletivo do MST, como pode ser motivada por uma sensibilidade irritável, como fala (Thompson, 1993) que define o limite do suportável - caso da criação individual de trabalho e também das Conexões da Zona Sul.
Em todos os casos, as redes sociais compostas por entidades, movimentos sociais, igreja e pessoas mostraram-se importantes para construir e manter as iniciativas criadas. Por sua vez, há iniciativas que tendo se consolidado passam a ter papel na difusão de possibilidades de resistência política nos moldes que seguem. Assim, se essas iniciativas foram forjadas pela necessidade, como também ocorre ao submeter-se ao trabalho subordinado, a experiência de trabalho e de resolução de problemas do lugar mediante formas solidárias pode levar a que trabalhadores consigam desenvolver coletivamente a opção de não mais serem empregados.
Entendemos que a precariedade, no contexto de uma realidade híbrida como a brasileira (Oliveira, 2013), possibilita a geração de “sujeitos organizáveis e organizados” dando nova conotação aos “processos constitutivos de resistências, coleticvidades y mobilización” (Julián, 2017, p. 31) que vão “okupando” (León-Cedeño, 2006) cotidianamente espaços e produzindo uma racionalidade capaz de fazer frente a própria condição de precariedade.
Nos quatro casos destaca-se a importância dos fenômenos trabalho, comunidade e território, com diferentes centralidades, produzindo solidariedade, identidade e enraizamento. Eles demonstram que o trabalho congrega as pessoas e suas ações, fortalecendo a solidariedade social, que a comunidade amalgama e afirma as identidades sociais, e que o território sustenta o cotidiano de práticas sociais cuja singularidade e possibilidade se dá naquele lugar e produz enraizamento.
Ao nosso ver, a solidariedade advinda do trabalho, a identidade proveniente da comunidade e o enraizamento decorrente do território, em conjunto, produzem o pertencimento e a participação social - próprios da nossa condição gregária - que são necessários para resistir e sobreviver ao avanço do capitalismo como modo de produção, como ordenador de regras e criador de valores e de modos de ser.
Embora tais casos tenham origens, propósitos e alcances distintos, a existência deles evidencia a possibilidade da construção de relações sociais solidárias, capazes de produzir e sustentar outra economia e outras subjetividades (anti-hegemônicas), a depender de cada circunstância, necessidade e intencionalidade.
“A primera vista, el mundo parece una multitud de soledades amuchadas, todos contra todos, sálvese quien pueda; pero el sentido común, el sentido comunitario, es un bichito duro de matar. La esperanza todavía tiene quien la espera, alentada por las voces que resuenan desde nuestro origen común y nuestros asombrosos espacios de encuentro” (Galeano, 2009).
4. Considerações finais
Para finalizar, é importante destacar que tivemos, entre 2003 e 2016, uma Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES), situada no Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que teve à frente o saudoso Prof. Paul Singer. A SENAES daquele período implementou estratégias de mapeamento, reconhecimento e registro dos empreendimentos solidários, desenvolveu políticas de comércio justo e de finanças solidárias, e articulou a redação e aprovação de normas, regulamentos e decretos visando o tratamento adequado aos trabalhadores associados, inclusive atuando pela aprovação da Lei 12.690/2012, Lei das Cooperativas de Trabalho, que avançou no entendimento sobre a autonomia coletiva e a autogestão realizada por trabalhadores associados.
Já o período compreendido entre 2016 e 2022 se caracterizou, em âmbito federal, pelo desmonte das estruturas de governo, colapso das políticas sociais, e retrocesso nas pautas progressistas no congresso nacional. Em 2023 a SENAES, assim como o próprio MTE, foi reconstruída e, desde então, busca compor uma coordenação interministerial das políticas de reestruturação socioprodutiva, sobretudo atuando em conjunto com secretarias do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA) e do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Embora a atual retomada de políticas de economia solidária seja importante, também é fato que a atuação do governo federal ainda negligencia a necessidade da regulamentação do trabalho coletivo, de natureza associativa ou familiar, como modo de proteger trabalhadoras/es que desenvolvem suas atividades sob o regime de autonomia coletiva.