1. Contexto
Esta tese tem como objeto o conceito de emancipação e as condições para a sua concretização no trabalho contemporâneo. A interpelação da juventude transmitida na imprensa e particularmente a de sete jovens diplomados do AgroParis Tech 1 em abril de 2022 reenvia à urgência de nos interrogarmos sobre o lugar do trabalho e daquelas que são as suas condições emancipadoras. Apresentando no seu discurso 2, os seus futuros empregos potenciais como fazendo “mais parte dos problemas do que das soluções”, esses engenheiros, homens e mulheres, interrogam o trabalho e as suas funções no emprego assalariado. Esta interpelação inscreve-se num contexto de demissão de bullshit jobs3mas também de um número crescente de trabalhadores afetados por problemas nomeadamente psicossociais 4. Assim, desde 1989, a legislação francesa exige das empresas uma obrigação de meios e de resultados em matéria de saúde dos trabalhadores. Mais recentemente, esta assumiu a forma de um incitamento, em numerosos textos e acordos 5, para que as empresas adotem medidas preventivas para evitar esses danos à saúde física e mental.
Uma crise de sentido, amplamente comentada e analisada (Clot, 2020; Coutrot & Perez, 2022; Dromard & Roth, 2019; Dujarier, 2021) para a qual o conceito de “emancipação” reveste um caráter de atualidade e constitui uma forma de resposta.
A etimologia do termo reenvia ao latim “emancipare”, que designa o ato de libertar um escravo do direito de venda. Efetivamente, libertados do domínio dos senhores esclavagistas, que tomavam os escravos pela mão para significar as suas escolhas no momento da compra, eles podiam emancipar-se. A etimologia remete-nos assim para um conceito político estritamente associado às noções de autonomia, liberdade de ação e poder de agir.
Ainda hoje, diferentes discursos e usos são associados ao conceito de emancipação. Pode-se destacar por exemplo os trabalhos sobre educação e pedagogia, na tradição de Paulo Freire, assim como trabalhos sobre movimentos feministas com o conceito de empowerment (Brun, 2017). Também é utilizado nos discursos políticos. No entanto, esta democratização do uso não diz nada sobre a definição que lhe é dada, tanto mais que a diversidade de definições e interpretações poderia ser suficiente para desencorajar quem se interesse por ela.
Com efeito, este conceito, na construção histórica, política e mesmo revolucionária, está a ser objeto de uma reapropriação e de uma “reescrita liberal” (Tarragoni, 2021). Esta reescrita baseia-se na valorização da emancipação individual, uma “livre iniciativa de si próprio”, “self made men” em inglês. Na sua primeira campanha eleitoral, E. Macron utilizou este conceito para defender o seu projeto de sociedade, fazendo dele “um verdadeiro alicerce antropológico da nação start-up” (Tarragoni, 2021, p. 11). Uma reapropriação que inclui o trabalho, visto quer como uma alavanca de emancipação individual, em competição com todos os outros e fora de qualquer realidade social seja unicamente fora do trabalho, no lazer ou na família.
Partindo de uma definição de atividade baseada na reelaboração constante da norma, mesmo nas mais ínfimas situações de trabalho, partilhada pelas ergodisciplinas, não é possível pensar num trabalho totalmente alienado e alienante. A abordagem ergológica define a atividade como “um impulso de vida e de saúde que é específico do ser humano, cada vez que ele se compromete a fazer alguma coisa” (Schwartz & Durrive, 2009, p. 253). Esta definição salienta que há sempre um existente, um já presente de onde as alternativas políticas devem ser retiradas de alternativas renormalizadas.
Na tradição da abordagem ergológica, das investigações e ensinamentos realizados nos últimos 40 anos, a nossa investigação parte de um pedido social, de um trabalho de campo de cinco anos nos portos petrolíferos de Fos e Lavera. Financiado no âmbito de uma convenção industrial de formação para investigação (CIFRE) 6. O objetivo deste estudo ergológico era duplo: apoiar a empresa, o seu comité de direção e os seus representantes eleitos na implementação de uma política de prevenção de riscos psicossociais, a fim de melhorar a saúde dos/as trabalhadores/as e interrogar as condições de emancipação no trabalho, visando construir novos conhecimentos a partir deste diálogo de saberes.
2. Tese defendida
A tese sustenta que a emancipação no trabalho é possível e que constitui mesmo uma questão de saúde. Pensar as condições de emancipação no trabalho permite sair de uma visão monocromática, concebendo o trabalho de um ponto de vista que não o do sofrimento (Dejours, 1998) e da alienação. Assim, ela situa-se aqui em oposição à visão desumanizadora das relações sociais que chegou ao seu paroxismo, tal como é denunciado pela indignação epistemológica de Christine (Castejon, 2015) relativamente aos riscos psicossociais.
A partir da década de noventa, uma abundante literatura, tanto institucional como científica, proveniente de várias disciplinas, documenta e analisa tudo o que, no trabalho, restringe a liberdade dos trabalhadores, sem, todavia, interrogar as condições de um outro possível.
3. Problemática
O futuro terá de passar unicamente pelo abandono do mundo do trabalho? Numa espécie de retirada? Deveremos procurar outras possibilidades para uma vida sem contradições profundas entre quem somos e o que fazemos? É utópico supor que se encontram no trabalho as condições da sua emancipação e de uma ação sobre o mundo que não seja destrutiva?
4. Método
Esta investigação teve lugar nos portos petrolíferos de Fos e Lavera, na empresa Fluxel com 235 trabalhadores filializada em 2011. Esta empresa é recente neste novo perímetro, mas tem uma história rica e secular que partilha com o porto autónomo de Marselha, o principal porto francês, atualmente designado por GPMM: Grand Port Maritime de Marseille. Ela herda e prolonga uma tradição de diálogo social “musculado” e continua a ser um bastião histórico da CGT, a confederação geral do trabalho. Enquanto porto petrolífero, a atividade da empresa é única e consiste, através de uma rede de oleodutos, no fornecimento de “granéis líquidos” 7 a dois grandes tipos de atividade: a refinação de petróleo e a petroquímica.
Graças à sua situação geográfica no centro dos fluxos internacionais, funciona como intermediária entre a terra e o mar, entre os navios e os industriais da zona da lagoa de Berre, no vale do Rhône e do grande sul europeu. Trata-se de um elo vital da economia francesa, representando 60% das entradas de petróleo em França. Apesar de uma diminuição dos fluxos (-43% de toneladas entre 2008 e 2021 8), a Fluxel continua a ser o primeiro porto de hidrocarbonetos no ano 2022 em França e o terceiro na Europa. Uma última caraterística original: a sua atividade de serviços está atualmente privatizada mantendo-se de interesse nacional.
Na sequência de vários alertas internos provenientes da medicina do trabalho, foi decidida em 2017 uma avaliação de riscos graves. Diagnosticando a existência de riscos psicossociais, a avaliação dos peritos salientou a relação entre estes e os fatores organizacionais. A pressão interna dos representantes eleitos para alterar os modos de organização que constituíam fonte de tensões foi reforçada por um acompanhamento próximo dos inspetores da Carsat, da inspeção do trabalho e de uma médica do trabalho. Em torno do desejo partilhado pelos representantes eleitos e pela direção de “redescobrir o orgulho de trabalhar aqui”, mas também de “identificar um projeto comum” integrado no roteiro da nossa missão, é de facto uma abordagem da empresa que foi lançada no momento da nossa investigação. O comprometimento da direção traduziu-se pelo facto de a missão ter sido conduzida diretamente pelo presidente e pela constituição de um grupo de trabalhadores voluntários representando todas as direções da empresa. Desta forma, o projeto foi construído combinando, no mesmo momento e com o mesmo método, o acompanhamento da implementação de uma política de prevenção primária dos riscos psicossociais, e o nosso objeto de investigação: as condições de emancipação no trabalho.
A mobilização da abordagem ergológica para intervir no terreno não definiu a priori um método. Vários conceitos sugerem modos de intervenção, quer sejam específicos da abordagem ergológica, como os GRT (Groupes de Rencontres du Travail - grupos de encontros do trabalho 9), quer sejam partilhados com outras ergodisciplinas, tal como definido por François Daniellou (Gaudart & Rolo, 2015), como a auto-confrontação simples ou cruzada (Clot, 2020). No entanto, se os conceitos ajudam na análise, eles sobretudo orientam a nossa ação, que deve visar a transformação. Assim, a nossa investigação baseou-se sobretudo nos conceitos de reservas de alternativas, de projets héritages (Schwartz, 2017) e de DD3P - Dipositivo Dinâmico de Três Polos ((Schwartz, 2000).
O DD3P (cf. Figura 1) constitui um dos conceitos originais da abordagem ergológica. Se o diálogo entre os dois polos dos saberes investidos (transmitidos pelos protagonistas da atividade) e dos saberes instituídos (ou saberes disciplinares) se encontra em outras disciplinas das ciências da educação (por exemplo, entre o aprendiz e o investigador), o dispositivo ergológico é único devido à sua estrutura em tríptico.
Além disso, esta esquematização original constitui um contributo deste trabalho de investigação, ao denominar o terceiro polo como aquele do mundo comum a construir, também designado por polo epistemológico e ético ou mundo dos valores (Di Ruzza & Schwartz, 2021). Partindo desta condição de partilha de um mundo comum a construir para colocar em diálogo os saberes investidos e instituídos, foi necessário criar um formato original de entrevista. Um formato único, criado e experimentado neste trabalho de investigação, a que chamámos de Entrevistas Dialogadas (EDg), inspiradas na metodologia das entrevistas semidiretivas (Imbert, 2010, p. 24). Estas EDg permitiram ir para além do quadro da empresa e da missão, e de fazer destas discussões, não um testemunho ou um aprofundamento de um tema, mas um verdadeiro DD3P em que cada um estava empenhado em ensinar ao outro com o propósito da construção de novos conhecimentos sobre as condições de emancipação.
4.1. Uma investigação incorporada para a prevenção dos riscos psicossociais
Adotámos de Pierre Veltz a expressão investigação incorporada, que ele define 10 como uma investigação-ação que não se limita a observar os atores, mas que se envolve num co-trabalho com esses atores. Para este sociólogo, só podemos compreender um sistema fazendo parte dele, procurando com os operacionais compreender, analisar e avançar no sentido da resolução de um problema por eles identificado, o que constitui uma convergência com as exigências epistemológicas da abordagem ergológica (Di Ruzza & Schwartz, 2021).
A nossa intervenção, sob a orientação direta do presidente da empresa e em articulação com os representantes eleitos responsáveis pela saúde e pelas condições de trabalho, tem como objetivo a prevenção primária dos riscos psicossociais. Esta forma de atentado à saúde foi mais difícil de ser apreendida, mensurada ou mesmo compreendida por algumas pessoas da empresa (eleitos, trabalhadores e direção). De facto, para alguns, as condições de remuneração, a segurança no emprego e as atividades sociais e culturais são mais favoráveis na empresa relativamente a outras da mesma região e parecem responder a todas as necessidades. No entanto, os problemas foram identificados e formulados pelos trabalhadores. É importante a inscrição de uma prevenção primária, porque se distingue da terciária, que repara, e da secundária, que protege contra os riscos. Tem como objetivo reduzir os fatores de risco psicossociais, agindo na fonte sobre a organização do trabalho, sobre o funcionamento da empresa assim como sobre a gestão. Este tipo de prevenção foi uma escolha indispensável para partilhar e para concretizar o objetivo da transformação.
Este trabalho interno foi realizado com um grupo de trabalhadores voluntários. Tratou-se de um projeto original e inovador para a empresa, uma vez que a sua legitimidade assenta no seu carácter voluntário e na sua representatividade. Pela primeira vez, os quatro departamentos da empresa estiveram representados. Este fórum de discussão sobre o trabalho foi concebido como um espaço de autonomia e de neutralidade, no sentido em que estava afastado das relações de força ou de poder muito presentes na empresa. Foram elaborados um plano de ação e um quadro organizacional, identificando os papéis e as responsabilidades de cada um e os projetos em cada uma das direções. Com base em dois pré-diagnósticos realizados anteriormente, uma avaliação dos riscos graves realizada em 2017 por uma consultora de saúde no trabalho e um acompanhamento externo por um perito em saúde no trabalho para avaliar os riscos em 2019, foram identificadas três temáticas para dar prioridade às ações: a comunicação, a prescrição do trabalho e o reforço do enquadramento. A pilotagem sobre a política de prevenção incidiu principalmente sobre o método, com a criação de um modus operandi para os grupos de trabalho. A definição e o respeito dos perímetros de cada um dos grupos de trabalho envolveram um trabalho de fundo em diferentes domínios e constituíram uma condição para discutir o trabalho de cada grupo e identificar e partilhar eixos de melhoria.
4.2. Um pé dentro, um pé fora: as entrevistas dialogadas
Apesar destas condições favoráveis, um trabalho a longo prazo, com uma duração de 5 anos, entre 2018 e 2023, é necessariamente confrontado com vários acontecimentos na vida da empresa, nomeadamente uma renovação importante do comité de direção. A pandemia de Covid implicou também o afastamento físico de alguns trabalhadores durante vários meses e a suspensão dos fóruns de discussão e dos grupos de trabalho que tinham sido iniciados. A abordagem de prevenção prosseguiu, no entanto, sem permitir responder integralmente à questão de investigação sobre as condições de emancipação e as suas definições. Tal como foi definido, o DD3P permitiu a construção de novos saberes e constitui o protocolo desta investigação. No entanto, o diálogo entre os dois polos de saberes investidos e instituídos só é possível na condição de que o terceiro seja partilhado: o mundo comum a construir. Nesta investigação, a identificação das condições de emancipação foi possível através de um diálogo de saberes, mas a política de prevenção da empresa e, mais genericamente, a prevenção primária, objeto deste diálogo, não permitiu a partilha de um terceiro polo como “mundo comum a construir”. No entanto, o trabalho realizado na empresa a partir de 2018 permitiu acumular conhecimentos sobre as alavancas de transformação identificadas pelos trabalhadores. Foram analisados vários tipos de documentos (atas, documentos oficiais, fichas de comunicação, recomendações e modos operatórios), num total de quase uma centena (99). Com base neste trabalho, foi elaborada uma grelha de análise que abrange cinco grandes temas identificados:
- o reconhecimento;
- a perícia;
- o coletivo de trabalho/ a divisão do trabalho;
- a comunicação;
- a governação, o sentido e o objeto da empresa.
As entrevistas (EDg) foram, portanto, realizadas enquanto doutoranda a trabalhar num projeto de investigação. Esta nova posição na interlocução permitiu uma maior liberdade nas perguntas e respostas, mas também o anonimato das respostas tratadas para efeitos de investigação. Uma postura, com um pé dentro, porque o conteúdo da discussão se apoiava na nossa missão, mas também na confiança acordada, e um pé fora, porque, apesar de as entrevistas se realizarem frequentemente na empresa e durante o horário de trabalho, o anonimato das pessoas envolvidas era total e as gravações das entrevistas não eram difundidas nem transcritas na íntegra. 19 pessoas participaram voluntariamente nestas entrevistas, conversações a que chamámos entrevistas dialogadas, porque constituem uma implementação original do DD3P, mobilizada anteriormente em grupos.
5. Resultados
Os resultados relevam em três domínios diferentes: metodológico, filosófico e político.
O primeiro campo diz respeito ao que funda a abordagem ergológica - o seu “posicionamento original e princípio fundamental” para Renato Di Ruzza, trata-se de considerar que “nada de sério pode ser dito sobre o trabalho de forma independente daqueles que trabalham” (Di Ruzza &Schwartz, 2021, p. 9). É esse “princípio epistemológico que define a ergologia e não um objeto, como seria por exemplo o trabalho” (Di Ruzza & Haveli, 2003, p. 51). Este princípio epistemológico consiste em considerar que a “disciplina epistémica”, que visa neutralizar as especificidades e as singularidades individuais para produzir modelizações, não é suficiente em si mesma, mas que precisa de ser complementada (no caso das ciências humanas) por uma “disciplina ergológica” que se dote dos meios para interrogar o ponto de vista das pessoas. Segundo Yves Schwartz (Schwartz & Durrive, 2009, p. 128), sem este complemento, assistimos a uma “usurpação”. Esta disciplina foi adotada para construir a metodologia de intervenção na empresa. No entanto, ao esquematizar o DD3P com um terceiro polo do “mundo comum a construir”, trata-se de reafirmar um acordo necessário e prévio, tanto político como ético, para colocar em diálogo os saberes investidos e instituídos. Esta condição foi assegurada para construir as possibilidades de emancipação, mas com a exigência de sair da posição de responsável pelo projeto para passar à de investigadora e poder conduzir a nossa investigação ergológica (Prévot-Carpentier, Nicoli, & Paltrinieri, 2020).
O segundo contributo e resultado é filosófico. É formulada uma definição original de emancipação a partir da análise e do estudo de outros conceitos relacionados, definidos por outros autores ou correntes, como o poder de agir, o empowerment e o enraizamento. A emancipação é definida como uma iniciativa, na sequência dos trabalhos de Louis (Durrive, 2015). O Constrangimento e a iniciativa são pensados como estando em tensão, ultrapassando o modelo de interiorização do constrangimento. A iniciativa, a autonomia e a emancipação só se ganham e se definem contra o constrangimento e a alienação.
Por fim, o último resultado é político. Reforça a afirmação inicial da investigação de que a emancipação no trabalho é possível. Uma emancipação no trabalho, por oposição a uma emancipação pelo trabalho (Davezies, 2009). A preposição “pelo” supõe uma causalidade, tornada difícil hoje nas suas condições de realização em virtude da intensificação do trabalho e das condições degradadas que têm, por vezes, conduzido ao esvaziamento das possibilidades e a utopia ligadas ao trabalho. Afirmá-lo modifica profundamente a análise do trabalho como ferramenta política (Schwartz, 2021) e de transformação, e recoloca a abordagem ergológica como ferramenta ao serviço da transformação.