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Acta Obstétrica e Ginecológica Portuguesa

versão impressa ISSN 1646-5830

Acta Obstet Ginecol Port vol.18 no.3 Algés set. 2024  Epub 30-Set-2024

https://doi.org/10.69729/aogp.v18i3a01 

Editorial

Rastreio do cancro do colo do útero em Portugal: grande margem para melhoria

Cervical cancer screening in Portugal: great room for improvement

Célia Amorim Costa1  2 
http://orcid.org/0000-0002-3020-2944

1 Assistente Hospitalar de Ginecologia/Obstetrícia (Ginecologia Oncológica), Hospital de S. João, Porto. Portugal

2 Professora Auxiliar Convidada, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Portugal.


Estima-se que em 2020, na União Europeia a 27, o cancro do colo do útero tenha contribuído para 2,5% de todos os novos casos de cancro diagnosticados nas mulheres e para 2,4% de mortes causadas por cancro nas mulheres1. No entanto, existe heterogeneidade significativa entre os diferentes países europeus. Em Portugal, a taxa de incidência em 2020 foi de 7,0%, com uma taxa de mortalidade de 3,1%2, o que coloca Portugal numa posição intermédia entre os países com os melhores e os piores indicadores (estes, essencialmente países do leste europeu).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) estabeleceu como objetivo a eliminação do cancro do colo do útero3 e a estratégia assenta essencialmente em dois pilares: vacinação contra o HPV-Human papillomavirus (prevenção primária) e rastreio (prevenção secundária).

A vacina contra o HPV foi incluída no Programa Nacional de Vacinação em 2008, ou seja, pouco depois da entrada no mercado da primeira vacina, com ajustes sucessivos relativamente à idade de administração, género alvo e tipo de vacina. Atualmente, e desde 2020, é administrada a vacina nonavalente aos 10 anos, a rapazes e raparigas. Com esta estratégia, Portugal tem uma taxa de cobertura vacinal acima de 90% na população mais jovem, com melhor desempenho que muitos outros países europeus e EUA4,5.

Está instituído a nível nacional um programa de rastreio do cancro de colo do útero de base populacional, tendo-se estabelecido em 2017 como teste primário a pesquisa de serotipos oncogénicos do HPV, a realizar de 5 em 5 anos6. No entanto, no terreno existe a perceção de falhas evidentes, nomeadamente a grande heterogeneidade na forma como o rastreio é aplicado. Com efeito, há mulheres que fizeram rastreio porque foram convocadas, e que de outro modo não o teriam feito, permitindo a deteção e tratamento de lesões cervicais pré-malignas ou malignas em estadios iniciais; por outro lado, há outras que se apresentam com cancro do colo do útero avançado que nunca foram convocadas para rastreio e, portanto nunca o fizeram, ou que até já se tinham dirigido ao Centro de Saúde (CS) para «pedir um Papanicolaou» e conseguiram apenas uma requisição para uma citologia (não teste HPV), a realizar num laboratório (não no CS), por uma funcionária indiferenciada. Parece uma questão de sorte ou azar, dependendo a doença (e morte) vs saúde, do CS e/ou médico que lhes «saiu na rifa». Fica efetivamente a ideia de que a implementação do programa não acontece de forma estruturada e supervisionada, dependendo apenas da vontade dos Médicos de Família individualmente ou das unidades de saúde que integram, sem que tenha que se prestar contas, ou haja incentivos ou penalizações pela implementação adequada ou não do programa (eventual exceção para as USF modelo B em que existe incentivo financeiro se este indicador for cumprido - contribuirá também este fator para as assimetrias?). Esta aleatoriedade e iniquidade, naturalmente, não deveriam existir.

Foi elaborado um relatório sobre a situação dos rastreios oncológicos organizados de base populacional com dados até 2022, publicado em Dezembro de 20237. Verifica-se que a taxa global de cobertura populacional do rastreio do cancro do colo do útero em 2022 foi de 64,0% e em 2021 de 51,0%. Existem assimetrias regionais importantes, com taxas de cobertura em 2022 de 92% na região Centro e 74% na região Norte, mas de apenas 41% e 38% na região de Lisboa Vale do Tejo e Algarve, respetivamente. Portanto, globalmente, a taxa de cobertura populacional encontra-se bem abaixo do objetivo estabelecido pela Estratégia Nacional de Luta contra o Cancro, Horizonte 2030, de alcançar uma proporção de cobertura populacional superior a 95% até 20308. Em contrapartida, a taxa de adesão das mulheres ao rastreio é elevada: 94,0% em 2022, 94,4% em 20217.

Está estabelecido que uma das competências do Programa Nacional para as Doenças Oncológicas (estrutura na dependência da Direção Geral de Saúde) é «promover e dinamizar a monitorização dos programas de rastreio, no que se refere à eficácia e equidade dos mesmos e aos ganhos em saúde proporcionados»9. Em Dezembro de 2023 foi publicado por esta entidade um estudo intitulado Identificação de barreiras e de facilitadores da implementação e otimização dos programas de rastreio oncológico10, cujo objetivo era fazer um diagnóstico da situação, identificar os problemas e possíveis soluções para uma adequada implementação dos programas de rastreio. Foram identificados vários problemas, entre os quais: a) a não uniformização de procedimentos nas várias regiões do país, nomeadamente no que toca à convocatória/angariação de doentes, sendo realizada de forma sistemática com listagens nalgumas zonas, noutras de forma oportunística; b) em parte as assimetrias parecem dever-se a diferentes graus de investimento pelas antigas ARSs; c) desmotivação e saturação dos profissionais, que fazendo rastreio têm mais trabalho, nomeadamente no preenchimento de dados, utilização de plataformas digitais adicionais etc; d) ausência de articulação entre diferentes plataformas digitais (por ex., SiiMA Rastreios e Sclinico) e excesso de informação pedida pelo SiiMA Rastreios; e) falta de recursos humanos.

Ainda em Dezembro de 2023, por deliberação da Direção Executiva do SNS, foi constituído o Núcleo de Coordenação Nacional dos Programas de Rastreio de Base Populacional, que entrou em funções em 01 de janeiro de 2024 cujo objetivo é «consolidar a implementação dos programas de rastreio de base populacional...» e «...adotar medidas que promovam a harmonização de práticas nacionais e assegurem a qualidade e uniformização de procedimentos realizados no SNS...» já através da correção de falhas identificadas e aproveitando sugestões referidas no estudo acima11.

Ou seja, o programa de rastreio do cancro do colo do útero tem problemas importantes, nomeadamente uma taxa de cobertura populacional abaixo do desejável e iniquidade no acesso. No entanto, aparentemente estão a ser tomadas medidas positivas no sentido da sua resolução. Resta aguardar que haja uma operacionalização efetiva e que as medidas saiam do papel, para não continuarmos a ver as mulheres a morrer de uma doença totalmente evitável, por uma questão de sorte ou azar.

Referências bibliográficas

1. Sil1. European Cancer information System (https://ecis.jrc.ec.europa.eu - acedido em Setembro de 2024) [ Links ]

2. RON. Registo Oncológico Nacional de Todos os Tumores na População Residente em Portugal, em 2020. Instituto Português de Oncologia do Porto Francisco Gentil - EPE, ed. Porto, 2023. [ Links ]

3. Global strategy to accelerate the elimination of cervical cancer as a public health problem. Geneva: World Health Organization; 2020 [ Links ]

4. Colzani Edoardo, Johansen Kari, Johnson Helen, Pastore Celentano Lucia. Human papillomavirus vaccination in the European Union/European Economic Area and globally: a moral dilemma. Euro Surveill. 2021;26(50). [ Links ]

5. European Cancer Organizatoin: HPV Prevention Via Gender Neutral Vaccination Programmes (https://www.europeancancer.org/content/hpv-action-area-1-hpv-prevention-via-gender-neutral-vaccination-programmes.html - acedido em Set 2024) [ Links ]

6. Despacho n.º 8254/2017, de 21 de setembro. Diário da República, 2.ª série, n.º 183. 2017 [ Links ]

7. Avaliação e monitorização dos rastreios oncológicos organizados de base populacional, 2022. Lisboa: Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde, Programa Nacional para as Doenças Oncológicas. Ministério da Saúde Dez 2023. [ Links ]

8. Estratégia Nacional de Luta contra o Cancro, Horizonte 2030. Despacho n.º 13227/2023, 27 de dezembro de 2023. Diário da Republica, 2.ª série, n.º 248. [ Links ]

9. Despacho n.º 7275/2022, de 7 de junho. Diário da Republica, 2.ª série, n.º 110. 2022 [ Links ]

10. Lunet N et al. Identificação de barreiras e de facilitadores da implementação e otimização dos programas de rastreio oncológico. Ministério da Saúde. Direção-Geral da Saúde, Programa Nacional para as Doenças Oncológicas. Dez 2023. [ Links ]

11. SNS. Deliberação n.º DE-SNS 212/2023, de 29/12/2023. 2023. Constituição do "Núcleo de Coordenação Nacional dos Programas de Rastreio de Base Populacional". [ Links ]

Endereço para correspondência Célia Amorim Costa E-mail: celia.m.amorim.costa@gmail.com

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