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Angiologia e Cirurgia Vascular

versão impressa ISSN 1646-706X

Angiol Cir Vasc vol.14 no.1 Lisboa mar. 2018

 

CASO CLÍNICO

Tratamento endovascular de aneurisma da aorta abdominal em doente com rim em ferradura

Endovascular repair of an abdominal aortic aneurysm in a patient with coexistent horseshoe kidney

Inês Antunes1, Rui Machado1,2, Sérgio Teixeira1, Duarte Rego1, Vítor Ferreira1, João Gonçalves1, Gabriela Teixeira1, Carlos Veiga1, Carlos Pereira1, Rui de Almeida1,2

 

1Serviço de Angiologia e Cirurgia Vascular, Centro Hospitalar Universitário do Porto

2 Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar — Universidade do Porto

 

Autor para correspondência

 

RESUMO

Introdução/Objetivos: O rim em ferradura, malformação renal que resulta na fusão dos dois rins na linha média, é uma entidade infrequente e que raramente coexiste com AAA. Pelas particularidades anatómicas (íntima relação entre o rim e a aorta, variabilidade na emergência das artérias e veias renais e dos sistemas coletores), a cirurgia conven­cional pode ser tecnicamente difícil. O tratamento endovascular tem emergido como uma alternativa terapêutica em alguns casos de malformações renais congénitas. Apresentase o caso de um doente com rim em ferradura e AAA trata­do por EVAR na nossa instituição.

Material/Métodos: Revisão de um caso de rim em ferradura e AAA tratado por EVAR na nossa instituição com descrição do tratamento, resultado e complicações.

Resultados: Homem de 74 anos com antecedentes de doença cardíaca isquémica, insuficiência cardíaca congestiva e tabagismo, com diagnóstico incidental de AAA. Realizou angioTC que revelou AAA infra-renal, fusiforme, com 57mm de diâmetro e achado extra-vascular de rim em ferradura. Após estudo das características anatómicas, o doente foi propos­to para EVAR. Sob anestesia geral procedeu-se a abordagem cirúrgica das artérias femorais bilateralmente e à liberta­ção de endoprótese Endurant® II imediatamente distal a artéria renal acessória, dois extensores ilíacos esquerdos e um direito. Em angiografia de controlo constatou-se imagem compatível com Endoleak tipo1 pelo que se procedeu a nova dilatação do colo proximal com balão Reliant®. Na angiografia de controlo final verificou-se manutenção de algum refluxo para o saco aneurismático, em pequena quantidade, que se interpretou como provável Endoleak tipo 2. No pósoperató­rio o doente realizou angioTC que revelou Endoleak tipo 1 que levou a re-intervenção com implantação de um extensor aórtico Endurant® com bom resultado final. AngioTC de controlo no pós-operatório sem evidência de Endoleak e com permeabilidade das artérias renais.

Conclusões: O tratamento endovascular apresenta clara vantagem nos casos de rim em ferradura, anatomicamente complexos para cirurgia convencional. A vascularização renal nestes doentes é muito variável, por vezes com artérias acessórias responsáveis pela vascularização de percentagens consideráveis de parênquima. Assim, o planeamento préoperatório, é fundamental para avaliar a necessidade de excluir artérias renais acessórias e ponderar, de forma indi­vidualizada, a relação risco/benefício.

Palavras-chave: Aneurisma Aorta Abdominal; EVAR; Malformações renais; Rim em Ferradura; Endovascular.

 

ABSTRACT

Introduction/Aims: Horseshoe kidney (HSK) is a renal malformation that results from the kidney's fusion in midline. It is an unusual entity that rarely coexists with Abdominal Aortic Aneurysm (AAA). Because of the anatomical characteristics (intimate relationship between kidney and aorta, variability in the renal arteries, veins and collecting systems emergen­cy) conventional surgery can be technically difficult. Endovascular treatment has emerged as a therapeutic alternative in some cases of congenital renal malformations. We report a case of endovascular aneurysm repair (EVAR) in a patient with coexistent AAA and HSK.

Material / Methods: We review a case of a patient with coexistent AAA and HSK treated by EVAR in our institution with description of diagnosis, treatment, outcome and complications.

Results: A 74-year-old man was referred to our center with an asymptomatic AAA. He had medical history of ischemic heart disease, congestive heart failure and smoking. CT angiography revealed an infrarenal AAA, with 57 mm diameter and HSK. After studying anatomical features, the patient was proposed for EVAR. Under general anesthesia both femoral arteries were exposed. An Endurant® II endoprosthesis was deployed immediately distal to an accessory renal artery and two iliac extenders were deployed in the left and one in the right side. Control angiography found an image compatible with endoleak type1 so a new dilatation of the proximal neck with Reliant® balloon was performed. In the final control angiography there was still some reflux into the aneurysmal sac which was interpreted as probable endoleak type 2. Postoperatively angioCT revealed endoleak type 1 which led to reintervention with implantation of an aortic extender Endurant®, with good result. In control angioCT there was no evidence of endoleak and all renal arteries were patent.

Conclusions: EVAR has clear advantages in cases of coexistent AAA and HSK, anatomically complex for conventional surgery. Although renal vasculature in these patients is very variable, sometimes accessory arteries are responsible for vascularization of considerable percentages of parenchyma. Thus, preoperative planning is essential to assess the need to exclude accessory renal arteries and consider, individually, the risk / benefit ratio.

Keywords: Abdominal Aortic Aneurysm; EVAR; Renal malformation; Horseshoe kidney; Endovascular treatment.

 

INTRODUÇÃO

O rim em ferradura é uma malformação renal congénita que consiste na fusão dos dois rins na linha média, ante­rior ou posteriormente à aorta abdominal, geralmente pelos polos inferiores, gerando um istmo que pode ser constituído apenas por tecido fibroso ou conter parên­quima renal normal. (1) A par da fusão do parênquima renal, estão também presentes alterações ao nível do sistema coletor e das estruturas vasculares.(2) Considerada uma das mais frequentes malformações renais congénitas(3) é, ainda assim, uma entidade rara, com uma prevalência estimada entre 0.15 a 0.8%. Na maior parte dos casos, tratase de uma malformação assintomática, sem reper­cussão na função renal, diagnosticada incidentalmente em exames imagiológicos.(4)

Raramente coexiste com Aneurisma da Aorta Abdominal (AAA) (5)(6) mas quando ocorre, o tratamento do AAA por cirurgia convencional pode ser tecnicamente difícil pela complexidade anatómica associada ao rim em ferradura. O tratamento endovascular dos aneurismas da aorta abdomi­nal (EVAR) tem vindo a emergir como método de tratamento e tornou-se uma opção válida em determinados doentes com malformações renais congénitas.(11) A melhor estraté­gia de tratamento nestes casos ainda não está definida.

Pretende-se fazer uma revisão do tema através da apresen­tação de um caso de EVAR num doente com rim em ferradura, tratado na nossa instituição, e revisão bibliográfica.

CASO CLÍNICO

Homem de 74 anos, com antecedentes de doença cardíaca isquémica, insuficiência cardíaca congestiva, disritmia e tabagismo ativo. Medicado com ácido acetilsalicílico, clori­drato de propafenona, mononitrato de isossorbido, rosu­vastatina e clobazam. Foi encaminhado para a consulta externa de cirurgia vascular por AAA, assintomático, acha­do em ecografia abdominal. Realizou angioTC que revelou AAA infra-renal, fusiforme, com 57mm de diâmetro e achado extravascular de rim em ferradura (figura 1) com um istmo constituído por parênquima renal normal, duas artérias para o lado direito (uma renal e uma polar), uma artéria para o istmo e duas artérias para o lado esquerdo (uma renal e uma polar).

 

 

Após estudo das características anatómicas do aneurisma, o doente (classificado como ASA 3 na American Society of Anesthesiologists) foi proposto para EVAR. Sob anestesia geral procedeuse a abordagem cirúrgica das artérias femo­rais bilateralmente e à libertação de endoprótese Endu­rant® II –Medtronic (32x16x145) imediatamente justa artéria renal acessória, dois extensores ilíacos esquerdos (16x16x145 e 16x16x82) e um direito (16x16x82). Em angiografia de controlo constatou-se imagem compa­tível com endoleak tipo1 pelo que se procedeu a nova dilatação do colo proximal com balão Reliant® com manu­tenção de algum refluxo para o saco aneurismático, em pequena quantidade. Dada a proximidade em relação à artéria mesentérica superior (com origem praticamente ao mesmo nível da artéria renal esquerda) e a possibili­dade de o refluxo de contraste para o saco aneurismático poder corresponder a endoleak tipo 2, decidiu-se terminar o procedimento e re-avaliar a presença de endoleak por angioTAC no pós-operatório. Realizou angioTAC de controlo ao 4º dia de pós-operatório que revelou imagem compatí­vel com endoleak tipo 1 (figura 2) que levou a re-interven­ção com implantação de um extensor aórtico Endurant® II de 32mm (figura 3), com bom resultado final. Realizou nova angioTC, sem evidência de endoleak (figura 3), com permea­bilidade das artérias renais e da artéria mesentérica supe­rior (figura 4). Nenhuma das artérias renais/acessórias foi excluída pela endoprótese e não se registou agravamento da função renal no pós-operatório. Não se verificou qual­quer intercorrência durante o restante internamento e o doente teve alta ao 11º de pósoperatório.

 

 

 

 

 

 

DISCUSSÃO

Rim em ferradura e AAA são entidades que raramente coexistem mas, quando ocorrem em simultâneo e o AAA tem indicação de tratamento, surge um dilema acerca do melhor método a ser utilizado. A complexidade anatómi­ca associada implica algumas particularidades quer na cirurgia convencional quer no EVAR. As características da vascularização arterial renal devem ser cuidadosamente avaliadas préoperatoriamente e dispomos atualmente de várias classificações, das quais a mais usada é a clas­sificação de Eisendrath et al, apresentada na tabela 1.(7)(8)

Em 1957, Phelan et al publicaram o primeiro caso bem sucedido de tratamento de um AAA num doente com rim em ferradura. Nestes casos, a cirurgia convencio­nal pode ser tecnicamente difícil em parte pela íntima relação do rim com a aorta que pode dificultar o acesso à mesma ou a obtenção de uma adequada zona de clampa­gem. De referir que a melhor via de acesso não está defi­nida. A laparotomia mediana permite um melhor acesso à aorta abdominal mas envolve geralmente a necessidade de seccionar o rim o que aumenta o risco de hemorragia, fístula urinária e sépsis que pode complicar com infeção da prótese. O acesso por via retroperitoneal pode evitar interferência com o rim mas dificulta o acesso à artéria ilíaca contralateral.

Em 1997, Ferko et al descreveram o primeiro caso de tratamento de um AAA por EVAR num doente com rim em ferradura.(9)

Apesar de ter a vantagem de evitar a dificuldade ineren­te à complexidade anatómica apontada, algumas ques­tões têm de ser consideradas nestes doentes. A vascu­larização renal é muito variável e, por vezes, as artérias renais acessórias são responsáveis pela vascularização de percentagens consideráveis de parênquima renal. Deste modo, a exclusão das mesmas com a endoprótese pode levar a enfarte renal com agravamento da função renal e hipertensão. É difícil prever o impacto que a cobertura de artérias renais acessórias poderá ter na função renal do doente e não há critérios bem definidos.

Em 2004 Ruppert et al (10) publicaram uma revisão acerca do tema onde defendem que nos casos em que a artéria acessória para o istmo tem um diâmetro inferior a 3mm, a sua exclusão pela endoprótese é segura mas, quando esta tem um diâmetro superior a 3mm, os autores defen­dem que se proceda a uma angiografia seletiva de modo a avaliar a porção de parênquima renal vascularizado pela artéria em questão e decidir em conformidade. Os autores apresentaram ainda algumas considerações acerca do melhor tratamento de acordo com a classifica­ção de Eisendrath defendendo que para os rins classifi­cados como tipos I ou II o EVAR é o método de tratamento de eleição, desde que tecnicamente exequível, nos tipos III e IV, o EVAR pode ser o método escolhido, no tipo V não se deve recorrer ao EVAR.

O caso apresentado corresponde a um doente com rim classe III no qual, após avaliação das características aneurismáticas se considerou elegível para EVAR. Por outro lado, no presente caso, o istmo renal era constituí­do por parênquima renal e não por tecido fibroso o que desencorajou a abordagem por cirurgia convencional por se antever a necessidade de seccionar o rim, com todas as complicações inerente ao ato. Tratavase ainda de um doente com 74 anos e com comorbilidades significativas (ASA 3). O procedimento não diferiu de um procedimento normal e não registamos complicações renais nomeada­mente enfarte renal, agravamento da função ou apareci­mento/descompensação da tensão arterial.

 

CONCLUSÃO

AAA e rim em ferradura raramente coexistem. Não dispomos de indicações claras acerca do melhor tratamento a ofere­cer a estes doentes. O tratamento por cirurgia convencional nestes casos pode ser tecnicamente complexo devido à ínti­ma relação do rim com a aorta, a variabilidade dos sistemas coletores e das estruturas vasculares. O EVAR representa uma alternativa que deve ser ponderada quando tecnica­mente possível tendo em atenção as características do rim, a salientar as estruturas vasculares arteriais. Um planea­mento préoperatório cuidado é fundamental nestes casos com atenção à emergência das artérias renais e acessórias e possibilidade de obter uma zona proximal de ancoragem adequada. A decisão final deve ser tomada de forma indivi­dualizada ponderando risco/benefício.

 

BIBLIOGRAFIA

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9. Ferko A, Krajina A, Jon B, et al. Juxtarenal aortic aneurysm asso­ciated with a horseshoe kidney. Transfemoral endoluminal repair. Arch Surg 1997;;132(3):316-317        [ Links ]

10. Ruppert V, Umscheid T, Rieger J, et al. Endovascular aneurysm repair: Treatment of choice for abdominal aortic aneurysm coin­cident with horseshoe kidney? Three case reports and review of literature. J Vasc Surg 2004;;40(2):367-370        [ Links ]

11. Machado R, Silveira D, Almeida P, Almeida R. Hybrid surgery as a new perspective for treatment of abdominal aortic aneurysm associated with congenital pelvic kidney. Angiol Cir Vasc. 22. 2015        [ Links ]

 

*Autor para correspondência

Correio eletrónico: ines.antunes89@gmail.com (I.Antunes).

 

Recebido a 14 de maio de 2017

Aceite a 07 de fevereiro de 2018

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