Introdução
O percurso textual que nos ocupa teve o seu início no labor literário que se desenvolveu nos círculos letrados próximos a ‘Abd al-Raḥmān III e contemporâneos do início do poder califal no al-Andalus.
Tomou forma integrando fontes de cariz historiográfico e geográfico, e entre as quais foram incorporadas, por via moçárabe, informações provenientes de fontes latinas tardo-antigas e visigóticas, procurando ligar dessa forma o novo poder califal islâmico aos anteriores poderes, de tipo “imperial”, que tinham vigorado na Hispânia, respetivamente o romano e o visigótico1.
Além da argumentação jurídica islâmica que teria de justificar o porquê do surgimento de um califado quando existia um outro califa sunita em Bagdad2, argumentação essa que fala na fraqueza do califado abássida ante a emergência xiita fatímida no Norte de África3, constata-se a busca de recuperação e apropriação das anteriores memórias imperiais ligadas à Hispânia, quer fossem memórias de origem romana quer fossem de origem visigótica.
1- Percursos andalusis
Akhbār Mulūk al-Andalus [Notícias dos Monarcas da Hispânia] (AMA)
Esta obra, cujo texto árabe original é dado por perdido, tratar-se-ia de uma coletânea de Crónicas califais, dos reinados de ‘Abd al-Raḥmān III (912-961), de al-Ḥakam II (961-976), e chegaria, pelo menos, ao início do reinado seguinte, o de Hišām II, atendendo a que não se constata qualquer notícia referente a este último monarca, se tomarmos o que sobreviveu nas crónicas romances4.
A obra procuraria, para além dos relatos respeitantes aos reinados em causa, ir mais longe, a montante, buscando descrever geograficamente a Península Ibérica e, simultaneamente, historiar todos os povos que antes do califado andalusi aqui tinham estado e vivido “desde a descendência de Noé”5.
A essa obra ficou associado indelevelmente o nome al-Rāzī, nome de família dos dois cronistas, respetivamente, Aḥmad (888-955) e ‘Īsā (925-989) al-Rāzī, pai e filho6, o qual acabou fazendo história, até ao presente.
A coletânea em causa veio a ser fonte para obras andalusis posteriores, entre as quais sobressaem duas do século XI: a obra historiográfica Al-Muqtabis, de Ibn Ḥayyān, que era filho de um secretário do ḥājib al-Manṣūr7; e uma segunda obra, esta geográfica e que aqui e agora nos interessa mais, o Kitāb al-Masālik wa l-Mamālik, obra geográfica de Al-Bakrī, diplomata, geógrafo, poeta, filólogo e botânico. Sendo esta última uma obra vasta, infelizmente até ao presente não se conhece qualquer manuscrito onde a parte relativa a al-Andalus não esteja omissa, ou seja, também esta é dada por praticamente perdida8.
No século XII, os chefes do movimento almóada, quando se estabeleceram em al-Andalus, perceberam que aquele movimento tinha que abandonar as suas origens algo heterodoxas, e procurar uma legitimação islâmica através da associação do seu poder à memória do passado califal omíada andalusi9.
Para concretizar esse objetivo, e entre outras iniciativas, foi encarregado Ibn Ġālib, letrado andalusi que viveu no século XII, de dedicar-se à composição de uma grande obra (Farḥat al-anfus), geográfica e historiográfica, sobre al-Andalus10. Para essa composição, Ibn Ġālib tomou como modelo as antes referidas Crónicas califais, as Akhbār Mulūk al-Andalus, e delas terá reproduzido a organização textual, para além de muitos conteúdos provenientes dos dois al-Rāzī. No entanto, por Ibn Ġālib ter usado também conteúdos provenientes da obra Kitāb al-Masālik wa l-Mamālik, de al-Bakrī, acabou por complexificar, para futuro, e até ao presente, as questões em torno da estratigrafia textual da sua própria obra11.
Da obra de Ibn Ġālib evidenciam-se dois aspetos principais: uma função jurídica-teológica, buscando ligar-se diretamente à memória do califado omíada, certificando a nova “ortodoxia” do movimento almóada; e uma função pragmático-administrativa, pois ao descrever pormenorizadamente o espaço peninsular, suas regiões, núcleos urbanos, eixos viários e riquezas naturais, permitia uma mais fácil taxação fiscal de cada região12.
O facto de fazer a descrição do al-Andalus “no ano de 400 h. [1009 d.C.]”, como surge no título que, na fonte, antecede todo o périplo discursivo e descritivo, remete para o momento último do grande poder omíada em al-Andalus, já que a realidade territorial andalusi em meados do século XII era bastante menos extensa do que um século e meio antes13.
O texto árabe da obra de Ibn Ġālib também se considera perdido14, subsistindo apenas um resumo da mesma. A versão mais extensa dessa obra será a que foi traduzida, de árabe para português, e que ficou conhecida como “Livro de Rasis”.
O Livro de Rasis
O chamado Livro de Rasis15, que desta forma seria designado no texto da tradução original portuguesa, traduzindo corretamente a expressão árabe Kitāb al-Rāzī, foi o produto de uma tradução de árabe para português, de um exemplar da obra de Ibn Ġālib, levada a cabo no âmbito da corte senhorial dos Aboim-Portel, João Peres de Aboim (m. 1281) e seu filho Pero Eanes de Portel (m. 1314)16.
É possível que a obra tivesse chegado às mãos daqueles Senhores em Silves, algures entre 1264 e 1267, durante o período em que ambos foram os “tenentes do Algarve”, em pleno diferendo entre Afonso III de Portugal e Afonso X de Leão e Castela, relativamente à posse do Algarve17.
Aquela tradução decorreu dentro de uma orgânica colegial, seguindo o modelo afonsino: com um leitor e um redator, e sendo a tradução feita diretamente para a linguagem vernácula18.
A tradução, e principalmente a redação, terá decorrido entre 1279, após a morte do Rei Bolonhês, e 1314, quando faleceu Pero Eanes de Portel19.
Sendo João Peres alguém que tudo devia a Afonso III, não seria pacífica uma exaltação daqueles senhores em função do seu papel no Algarve, face ao valor político e diplomático do monarca para conseguir, de facto, aquele disputado território a sul.
Sublinhamos este aspeto porque se constatam, no texto do Apartado Geográfico, algumas interpolações textuais de cariz laudatório para com os Aboim-Portel, destacando as regiões de maior importância para a construção da memória senhorial daquela linhagem, com especial relevo o Algarve20.
Esta obra, direta ou indiretamente, acabou por vir alterar o modo como, em parte da cronística peninsular posterior, se concebe o elogio e a descrição da Espanha, levando ao abandono, definitivo, do modelo textual que se iniciara com a Crónica Moçárabe de 754 e que chegara até às grandes produções historiográficas do Rei-Sábio, em que a Laude isidoriana surge acompanhada do dolo moçárabe. No pós-1344, e remontando ao traduzido Livro de Rasis, encontramos em algumas crónicas da Baixa Idade Média Peninsular a laude islâmica, de origem califal21, num novo modelo textual, digamos que mais “raziano”, da cronística cristã peninsular22.
3- Na Cronística Peninsular Baixo-Medieval
Entre o Livro de Rasis e a Crónica do Mouro Rasis
O Livro de Rasis, com origem no âmbito senhorial dos Aboim-Portel, não terá sido o produto de uma empresa literária desconhecida de um genro de Pero Eanes de Portel, o letrado historiador e genealogista D. Pedro Afonso, filho ilegítimo do rei D. Dinis e mais tarde 3.º Conde de Barcelos23.
Alguns momentos marcantes da vida de D. Pedro terão originado algumas das diferentes cópias da obra, que resultaram em diferentes trajetos futuros e das quais conseguimos identificar, pelo menos, três variantes textuais com origem na tradução de Livro de Rasis, e que identificámos como α, β e γ24.
Testemunho α: o texto original de Livro de Rasis, que depois terá sido confiscado ao Conde D. Pedro, quando este, em virtude da sua posição durante a guerra civil que confrontava seu pai D. Dinis com o seu irmão e herdeiro D. Afonso, se exilou em Castela, entre 1317 e 132225.
O Livro de Rasis terá ficado nos meios literários da Corte Régia, e a sua presença constata-se lá, um século mais tarde, dentro dos labores literários que tomaram forma na fase pós-conquista de Ceuta, quando há que começar a construir uma nova historiografia para uma nova dinastia que acabara de se legitimar em África. O Livro de Rasis foi usado como fonte, numa dupla elaboração que terá decorrido praticamente em simultâneo: uma, a da chamada Crónica de Portugal de 1419; e a outra, mais extensa, a da versão de 1420 da Crónica Geral de Espanha de 1344, a qual apresenta particularidades textuais que se vão reproduzir nos testemunhos portugueses posteriores, Li e Ev, mas que já não se voltam a encontrar nas Crónicas castelhanas posteriores com origem comum na C134426.
Veremos mais adiante o trajeto deste testemunho original do Livro de Rasis.
Testemunho β: a cópia que o Conde D. Pedro terá levado para o seu exílio em Castela. Quando perdoado por seu pai D. Dinis e preparado para regressar a Portugal, D. Pedro terá deixado aquele texto a D. João Manuel, Senhor de Vilhena (1282-1349), o qual depois o terá traduzido para castelhano27. Desta primeira tradução castelhana terá saído o ms. Ca, (redigido por volta de 1430) e, mais tarde, sucessivamente, os mss. Mo e depois o Es28 .
É a partir desta sequência textual castelhana que surgiu a designação, que perdurou, de Crónica do Mouro Rasis, e de tal forma se popularizou que remeteu para a sombra a designação portuguesa original de Livro de Rasis.
Testemunho γ: a cópia que D. Pedro, após o seu regresso de Castela, terá obtido e que veio a usar, mais tarde, na composição da sua Crónica de 1344.
A Crónica Geral de Espanha de 1344 (C1344)
A Crónica Geral de Espanha de 1344 no seu apartado historiográfico apresenta significativas diferenças relativamente a outras crónicas gerais anteriores, nomeadamente até Afonso X, no entanto, a descrição geográfica é uma cópia praticamente textual do que surgia no Livro de Rasis.
Relativamente à Crónica original, do Conde D. Pedro de Barcelos, de 1344 (C1344p), não subsiste qualquer testemunho português.
Da tradução castelhana da anterior (C1344e), conhecem-se apenas dois testemunhos, o ms. M e o ms. E29.
No final do século XIV foi redigida uma segunda versão portuguesa da C1344, de autor anónimo, e que apontamos para cerca de 1400 (V1400p&e)30. Esta versão também foi traduzida para castelhano. Não se conhece qualquer testemunho português desta versão. Subsistem, entre outros mais recentemente identificados, os mss. castelhanos U, S, V e Q31.
No final da segunda década do século XV, e em consequência da vitoriosa empresa portuguesa em África com a conquista de Ceuta, teve lugar uma terceira versão da C1344 (V1420p), que terá sido levada a cabo, conjuntamente ou em paralelo, com a produção da Crónica de Portugal de 141932. A versão de 1420 foi retocada a partir do Testemunho α do Livro de Rasis, pois os textos portugueses que remontam àquela versão, ao menos no apartado geográfico, são mais completos do que os das anteriores versões. Daquela versão, da qual não há testemunhos castelhanos, subsistem dois mss. pouco posteriores, dos meados do século XV, mss. L e P; e ainda dois outros, mais tardios, do século XVII, os mss. Li e Ev33.
Historia del Moro Rasis, (HMR) foi nome com que Ambrosio de Morales (1513-1591) identificou a obra de onde copiou o excerto do ms. E. A HMR, entendida então como uma cópia parcial da primeira tradução castelhana do Testemunho β, seria, de facto uma cópia parcial de um dos mss. castelhanos da C1344, eventualmente o ms. M34. Este ms. E de Ambrosio de Morales virá a ter um papel importante no século seguinte, como veremos adiante.
4- Entre o Humanismo e o Cataclismo
A saga do ms. inicial do Livro de Rasis
O testemunho α, que seria o texto original ou o mais próximo do LR e que tinha sido usado nos meios cronísticos régios portugueses do início do século XV, chegou à posse do humanista André de Resende no século seguinte, provavelmente durante o período entre 1533 e 1540, quando o erudito eborense esteve na Corte portuguesa, onde foi mestre de línguas clássicas e teólogo de vários dos filhos do rei D. Manuel, designadamente os Infantes D. Duarte, D. Afonso e D. Henrique35.
Daquele texto Resende traduziu alguns excertos para latim. O envio que Resende fez de excertos do LR, em latim, a alguns humanistas europeus, como João Vaseo e Bartolomeu Quevedo36, deu azo a que, mais tarde, fosse aventada a hipótese de que, entre os séculos XIII e XIV, durante a fase inicial de tradução, tivessem existido duas traduções, uma para português e outra para latim. A confirmar-se, terá sido uma metodologia já então ultrapassada, mesmo em Leão e Castela37.
O manuscrito em causa ficou em herança ao filho de André, Barnabé de Resende, que o terá facilitado a Duarte Nunes de Leão, que o usou38.
Após a morte de Barnabé de Resende, em 159639, grande parte do espólio, que lhe chegara de seu pai, foi posto em venda, e aquele ms., logo nos primeiros anos do século XVII, já estava na posse do erudito e polígrafo Manuel Severim de Faria, Chantre da Sé de Évora40. Tendo este falecido em 1655, a sua extensa biblioteca e as suas coleções passaram ao seu sobrinho, Gaspar de Faria Severim, que a estimou e ampliou41. Por intermédio do casamento da filha de Gaspar, D. Maria Francisca de Noronha, na casa dos Condes do Vimieiro, todo aquele extenso espólio bibliográfico, em que se incluía o manuscrito que fora de Resende, passou para a posse dos Condes do Vimieiro42.
A presença daquele manuscrito na biblioteca do Palácio dos Condes do Vimieiro, em Lisboa, foi referida em 1724 na então muito recente Real Academia da História. Aquela notícia bibliográfica foi feita pelo Conde da Ericeira, que sucintamente identificou e descreveu o manuscrito em causa. A destruição daquele Palácio no vórtice do Terramoto de 1755, e da perda de grande parte da sua biblioteca, levou ao desaparecimento do manuscrito em causa43.
5- A dinâmica da erudição barroca espanhola
Nos meios letrados espanhóis do séc. XVII foi levado a cabo um empreendimento literário e erudito, e o objetivo do mesmo era reconstituir, o mais completamente possível, o texto “original” da já então designada Crónica del Moro Rasis (CMR), a partir de dois mss.: o Ca (de Toledo) e o E (de Ambrosio de Morales), considerados os mais completos, em conteúdos e na correção textual.
O método era comparar ambos os mss. e procurar suprir as lacunas de um, pelo que a mais se encontrasse no outro, ou seja, buscar produzir um género de “somatório textual” assim considerado mais completo, da CMR.
Os vários exemplares que foram produzidos por aquele processo, ficaram designados como “os híbridos do século XVII”, e até meados da década de 70 do século XX, conheciam-se quatro: um em Copenhaga, dois em Madrid e um em Paris. Um número hoje largamente ultrapassado44.
Em forma propedêutica, prévia àquela pretendida reconstituição, foi feita uma redação-sondagem comparativa entre ambos os textos referidos. Um exemplar, o único conhecido até hoje, daquela redação prévia é o que consta no ms. LV, texto castelhano, que está no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa.
O texto em causa contém uma cópia do ms. E, devidamente identificada na parte introdutória do mesmo, e nas margens da mancha de texto surgem notas informativas, sempre que se constatavam diferenças textuais entre o ms. E e o ms. Ca, geralmente lacunares, de um deles em relação ao outro45.
6- A visão das Luzes
Depois de todo aquele esforço de reconstrução erudita e de uma proto-crítica textual que teve lugar durante o século XVII, em Espanha, o “Século das Luzes” vai proporcionar, relativamente a este tema, um cenário praticamente oposto.
A abordagem crítica e validação documental seguidas pelas Luzes, em grande parte muito mais associadas aos estudos linguísticos do que aos contextos históricos e historiográficos, acabou considerando a Crónica do Mouro Rasis ou Cronicão de Rasis como uma mistificação literária, uma fraude textual medieval e à qual se atribuía uma origem árabe apenas por questões de autoridade.
Entre os principais detratores espanhóis da CMR, no seio dos homens das “Luzes” do século XVIII ao primeiro terço do século XIX, destacam-se Gregorio Mayans (1699-1781), Miguel Casiri (1710-1791), Jose Antonio Conde (1766-1820) e Diego Clemencín (1765-1834)46.
Parecia que o assunto “Crónica do Mouro Rasis” estava definitivamente encerrado, em consequência da grande descredibilização que aquela plêiade de eruditos vinha avolumando ao longo de quase uma centúria.
7- Al-Rāzī / Rasis resgatado
Pascual de Gayangos, arabista espanhol que na década de 30 do século XIX, estudara e traduzira de árabe para inglês, e publicara a obra de al-Maqqarī, autor magrebi do século XVII d.C., e que usara textos remontando aos al-Rāzī47, ao confrontar-se com o texto da Crónica del Moro Rasis, deu-se conta de que havia muitas semelhanças e coincidências textuais entre o texto da Crónica e o que ele conhecia a partir dos textos de al- Maqqarī.
Ou seja, era, de facto, possível identificar a origem árabe do texto da Crónica. Não se tratava, portanto, de um texto ficcionado e a que fora atribuída uma também mitificada autoria árabe, como tinham postulado os homens das “Luzes” em Espanha, numa análise depreciativa e negativista da CMR.
Em consequência daquela identificação, em 1852, Gayangos, com a Memória apresentada à Real Academia da História de Madrid, acabou resgatando, definitivamente, o tema, a obra e a questão da sua autoria. A partir daquele momento o tema ficou, de novo e cientificamente, relançado, após o período sombrio das “Luzes”.
8- Recuperação do tema
Após a recuperação da obra e da área temática por Pascal de Gayangos, não houve, no entanto, avanços muito substanciais, porque então ainda não estavam identificadas, estudadas e publicadas muitas obras árabes que permitissem um consistente estudo comparativo com o texto da CMR.48
Terá que chegar o final da centúria de Oitocentos, e mesmo de entrar já o século XX para que Ramón Menéndez Pidal primeiro, e mais tarde, Claudio Sánchez-Albornoz, confirmassem a origem árabe da História pré-islâmica presente na Crónica, sob a qual até então subsistiam dúvidas49.
9- Em busca do texto perdido
A partir de meados do século XX começou a surgir um volumoso e muito importante conjunto de textos, estudos, edições e traduções, que alteraram substancial e definitivamente o panorama desta área temática.
Entre eles o estudo e a edição da C1344, levados a cabo por L. F. Lindley Cintra (1951-61), a partir da sua tese de doutoramento. O estudo prévio à edição demonstrou a ligação textual direta entre a CMR e a C1344, mas também que a origem da C1344 era efetivamente portuguesa.
Pouco depois e correlacionado com o ponto anterior, em 1953, E. Lévi-Provençal propôs uma reconstituição da parte geográfica da CMR, usando para tal o excerto geográfico da C1344 que Lindley Cintra lhe tinha facultado, e que o investigador francês considerou muito mais próximo do texto da primitiva tradução do que os diferentes testemunhos castelhanos50.
Na primeira metade da década de 70 Diego Catalán Menéndez Pidal e María Soledad de Andrés levaram a cabo duas obras de referência, incontornáveis e monumentais: os estudos e as edições pluritextuais dos diferentes testemunhos da C1344, em 1971, e identicamente para a CMR, em 197551.
Àquelas obras associaram-se, ainda, também durante as décadas de 50 e 60, as edições e as traduções de várias fontes árabes, entretanto identificadas, e com a vantagem de se tratar de autores que tinham sido recetores dos dois al-Rāzī: Ibn Ġālib (1955), Ibn Sa‘īd (1964), al-‘Uḏrī (1965), al-Bakrī (1968), e Ibn al-Šabbāt (1971)52.
Em síntese, durante o período entre 1951 e 1975, assistiu-se globalmente a uma autêntica ‘explosão bibliográfica’, sobretudo ao nível da edição de fontes, tanto romances como árabes.
Por um lado, os vários testemunhos cronísticos cristãos da perdida obra raziana, depois de devidamente analisados e identificados, começaram a ser objeto de edições críticas, por vezes em formato pluritextual.
Por outro, nuns escassos 16 anos, ocorreu um extraordinário ciclo de edição de fontes árabes, direta ou indiretamente devedoras dos al-Rāzī, aumentando em muito o número de textos disponíveis com informações sobre a geografia hispânica, que logo começaram a ser disponibilizados ao conjunto dos medievalistas ibéricos.
Nunca a reconstituição do “al-Rāzī árabe perdido” parecera tão próxima. O meio científico exalava um clima de entusiástica expectativa53.
10- Conclusões no início do século XXI
A reconstrução do texto árabe das Akhbār Mulūk al-Andalus originais é bastante difícil, para não dizer impossível, por uma série de razões. Para uma aproximação textual à matriz árabe, temos que:
Ibn Ġālib, no século XII, usou a obra dos dois al-Rāzī, mas também usou a de al-Bakrī, o qual é igualmente devedor àqueles, causando uma certa “sobreposição textual” difícil de destrinçar;
Na parte historiográfica, nunca poderão ser postos de parte os excertos recolhidos por Ibn Ḥayyān, ainda que este não tenha copiado integralmente o texto dos al-Rāzī;
O apartado historiográfico foi sendo, sucessivamente, muito alterado por várias re-escrituras do texto, já nos âmbitos das cronísticas cristãs peninsulares;
Relativamente ao apartado historiográfico, devem ter-se também em muita atenção as fontes cristãs latinas, romances ou árabes, como os textos de Rodrigo Ximénez de Rada e a Crónica Pseudo-Isidoriana, esta nas várias versões.
Relativamente à parte geográfica do Livro de Rasis, ao menos a matriz árabe (proveniente de IG) do texto do Apartado Geográfico, e que subsiste nas CMR e C1344, pode ser reconstruído, com grande proximidade, a partir das fontes geográficas árabes, em especial as andalusis e ou magrebis54.
11- A força do mito
Subsistem, é certo, possibilidades de reconstruções textuais, ainda que no mito a sua força e o seu desafio se reforcem pela quase intangibilidade.
Tantas perdas textuais, uma quase aparente maldição, ao longo de tantos séculos, avolumaram as dificuldades ao propósito reconstrutivo, mas poder tocar o mito de perto, de forma algo reiterada, é por vezes mais apetecível do que resolver o próprio mito, para que o mesmo não perca o seu encanto.
Contribuamos, pois, para procurar esclarecer o mito, mas façamos com que o mesmo possa subsistir.
Fontes
Fontes impressas
AL-MAQQARĪ - History of the Mohammedan Dynasties of Spain. Trad. Pascual de Gayangos. Londres, 1840-1843.
Crónica de Portugal de 1419. Edição crítica com introdução e notas por Adelino de Almeida Calado. Aveiro: UA Editora, 1998.
Crónica del Moro Rasis. Ed. Diego Catalán e María Soledad de Andrés. Madrid: Gredos, 1975.
Crónica Geral de Espanha de 1344. Ed. L. F. Lindley Cintra. 3 vols. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1951-1961.
IBN ĠĀLIB - Farḥat al-anfus. Ed. Luṭfī ‘Abd Al-Badī. Revista del Instituto de Manuscritos Arabes I/2 (1995), pp. 272-310.
IBN ĠĀLIB - “Una descripción de España de Ibn Gâlib”. Trad. parc. cast. Joaquín Vallvé Bermejo. Anuario de Filología 1 (1975), pp. 369-384.
I edición crítica del texto español de la Cronica de 1344 que ordenó el Conde de Barcelos don Pedro Alfonso. Ed. Diego Catalán e María Soledad de Andrés. Madrid: Gredos, 1971.