Introdução
O percurso de vida de Nuno Álvares Pereira tem sido amplamente abordado pela historiografia nacional1. Seja nas biografias, cuja lista já vai longa, seja em inumeráveis artigos, sobressai a dimensão militar e religiosa do herói de Aljubarrota. Por vezes a vertente humana também é merecedora de atenção. Recorre-se à genealogia, relatam-se episódios da sua educação, comenta-se o casamento, enaltecem-se as ações virtuosas que predizem, senão a santidade, uma renovada espiritualidade2. As crónicas de D. Fernando e, sobretudo, de D. João I, de Fernão Lopes3, a par de uma outra, anónima, dedicada ao próprio Nuno Álvares4, escrita poucos anos depois da sua morte - às quais podemos juntar, com as devidas reservas impostas pela sua parcialidade, a tardia Crónica dos Carmelitas5-, são as fontes que, por incontornáveis face à pródiga informação que transmitem, acabam por condicionar a generalidade dos estudos6. Porém, as referências biográficas a Nuno Álvares Pereira terminam com o fim das campanhas militares que opuseram Portugal e Castela, embora a crónica senhorial acrescente a participação na conquista de Ceuta, bem como a doação aos netos e entrada no convento do Carmo em 1422. Este vazio narrativo sobre as duas décadas que antecedem a sua fuga mundi, encontra eco na escassa produção de estudos sobre uma terceira dimensão da vida de Nuno Álvares Pereira - o exercício do poder senhorial7.
No início deste período, Nuno Álvares Pereira ligou-se particularmente a Almada, uma das inúmeras terras com que D. João recompensou generosamente o contributo militar do “segumdo braço da deffenssom do reino”8.
1. Almada e Nuno Álvares Pereira, ano de 1384
A vila, sobranceira ao rio, coroando o esporão que terminava em Cacilhas, face a face com a ribeira de Lisboa, constituía um ponto decisivo no controlo do Tejo e da margem sul, dominando um porto privilegiado para o acesso a Lisboa. Por isso, no convulso período de 1383-1385, em particular durante o cerco de Lisboa por D. João I de Castela, o território de Almada tornou-se familiar a Nuno Álvares.
Segundo Fernão Lopes, a importância estratégica de Almada foi atempadamente percecionada pelo conselho régio. Em reunião realizada a 1 de janeiro de 1384, quando Almada ainda era controlada por homens de D. Leonor Teles9, considerou imperioso que Almada tomasse voz pelo Mestre de Avis, dado “que era assi come chave do mar pera quallquer armada que elRei de Castella sobre a cidade quisesse fazer”10. Na versão da Estoria11, D. João recebeu a notícia da eclosão de um conflito em Almada, entre os grandes da vila - “todos eram chegados e criados da rraynha”12 - e os miúdos, partidários do Mestre13. A resolução do problema coube a Nuno Álvares Pereira, que, com cerca de quarenta lanças, se colocou à porta do castelo, impedindo entradas e saídas. Os moradores aí compareceram e acabaram a prometer obediência ao Mestre, após um convincente discurso do Condestável. O episódio acabou com “todos” a receberem por senhor a D. João que, entretanto, se deslocara para Almada14.
Como Almada era o ponto de passagem mais chegado a Lisboa, terão sido inúmeras as vezes que Nuno Álvares Pereira cruzou o território, como aconteceu quando, nomeado fronteiro do Alentejo, para aí se deslocou numa campanha coroada com a vitória nos Atoleiros. Terá sido, precisamente, a título de recompensa deste êxito militar que D. João, a 1 de julho desse ano de 1384, contemplou Nuno Álvares Pereira com a doação do condado de Ourém, a par de diversas vilas e lugares entre as quais se contava Almada15, já então cercada pelas forças castelhanas.
A 1 de agosto, Almada acabou por soçobrar e, um mês decorrido, Nuno Álvares tentaria recuperar o controlo da vila. Após uma tentativa frustrada de entrada no castelo, saqueou, sem contemplações, a urbe e o arrabalde. Antes de partir para Coina, reuniu as suas tropas em formação ordenada, bandeira ao alto, numa elevação ao cabo da vila, para que fossem percebidos na outra margem, por invasores e sitiados16. Quatro dias depois D. Juan I, levantou o cerco.
2. A presença de Nuno Álvares Pereira em Almada
A 20 de agosto de 1385, escassos seis dias após Aljubarrota, D. João I certificou novamente Nuno Álvares Pereira como senhor de Almada, em diploma emitido pela chancelaria régia. Na verdade, o teor do texto, sem mencionar qualquer confirmação, não difere na substância do anterior. Trata-se de uma pura e irrevogável doação, de juro e herdade, com toda jurisdição cível e crime, mero e misto império, todo o senhorio alto e baixo. Incorporava rendas, foros, tributos e direitos reais. Ressalvava ao rei as alçadas e a correição17.
Embora haja registos de iniciativas do condestável relativas a Almada (v. infra), incluindo um ato de compra de uma propriedade18, a sua presença efetiva na vila só é percetível no declinar de Trezentos e nos primeiros anos da centúria seguinte.
Tanto a Crónica de D. João I como a Estoria de Dom Nuno Alvrez Pereyra registam que, depois da intervenção nas negociações de paz em Olivença, a 8 de fevereiro de 1399, Nuno Álvares Pereira encontrou-se, de passagem, com o rei em Évora e, enquanto este partiu para Lisboa, o condestável “se foy a Almada” 19. Na sequência imediata destes acontecimentos, perante a notícia da fuga para Castela do prior Álvaro Gonçalves Camelo, colocou-se a questão da sucessão no priorado, que não era consensual, dado que D. João I e Nuno Álvares apontavam diferentes nomes para o cargo. Na versão da Estoria, a negociação foi intermediada pelos respetivos escrivães da puridade: Gonçalo Lourenço, que se deslocou, para o efeito, a Almada e Gil Aires, que, “em outro dia”, compareceu em Lisboa e acabou por fechar um entendimento com o rei, no caso a escolha do prior por eleição interna20.
Para além dos procedimentos do monarca e do condestável se encontrarem aqui ao mesmo nível protocolar, o centro decisório de Nuno Álvares Pereira parece radicar em Almada. Mas outros indícios colocam a vila como alvo principal das iniciativas do Condestável nos anos imediatos. Em 1403, ou ainda antes, projetou a edificação de vários moinhos de maré, assunto a que voltaremos, e no ano seguinte valorizou os paços que possuía no interior do castelo de Almada.
Em agosto de 1404, escambou uma casa que aí possuía por uma outra contígua aos seus paços, uma vez que “lhe era compridoira pera juntar com eles pera fazer hũu eirado porque os seus paços nom tinham eirado tal”. E reforça, ainda, a justificação: “porque dezia que lhe era neçesaria pera os dictos seus paaços e a nom podia pera elles escusar pera eirado”21. Nesse mesmo ano está documentada a presença efetiva de Nuno Álvares em Almada, aquando das diligências que efetuou para viabilizar o funcionamento de Santa Maria do Carmo22, pelo menos, seguramente, nos dias 28 de julho e 27 de setembro.
3. O exercício do poder senhorial
3.1. O relacionamento com D. João I: questões jurisdicionais
Desde cedo, Nuno Álvares Pereira fez valer os seus direitos como donatário de Almada. Em dezembro de 1387, agravou-se ao monarca da atuação do Vedor da Fazenda régia e do corregedor de Lisboa. Estava em causa a imposição da descarga, na cidade, de sardinhas e de outras espécies que os pescadores e barqueiros de Almada capturassem no mar, bem como o respetivo pagamento da dízima, sob pena de perda de bens e de prisão23. D. João, atendendo ao motivo invocado - a doação da vila de juro e de herdade, com mero e misto império - concedeu que pudessem desembarcar em Almada o que pescassem e que a dízima revertesse para o Condestável24. Porém, no início de Quatrocentos o enquadramento jurídico da doação de Almada não foi suficiente para legitimar a edificação de uns moinhos de água nos esteiros do termo. Por um diploma datado de 29 de setembro de 140325, sabemos que corria uma demanda entre o rei, como autor, e Nuno Álvares Pereira como réu. Argumentava o procurador régio, Álvaro Mendes, que “os esteiros e abras com suas terras” de Corroios, Algenoa, Amora e Arrentela, onde o Condestável “per sy e per outros se trabalhaua de fazer e mandar fazer” azenhas, pertenciam ao rei. Entendia Pedro Afonso, ouvidor e procurador do Condestável, que este recebera em doação Almada e seus termos “com todos os djreitos e proueitos e perteenças” que o rei aí detinha na vila e no termo.
Como os preitos e demandas, além do desfecho incerto, eram suscetíveis de se arrastarem no tempo, com as despesas inerentes, e atendendo ao interesse público da obra (“proueito comunal”), D. João I chegou a uma avença com Nuno Álvares. Por esta “trasauçom e amjgavil composiçom”, o Condestável recebia os esteiros a título de aforamento. Conforme mais abaixo se especifica, o aforamento perpétuo e hereditário dos “esteiros e abras e terras e agoas [deles]” para em cada um se construírem azenhas, era feito por um valor abaixo do “justo preço” (menos de metade)26, pelo que se acautelava a segurança do contrato27. À cabeça das cláusulas contratuais, consta a garantia da possibilidade de alienação das azenhas em favor do mosteiro de Santa Maria do Carmo.
Mais ainda, como D. João I, considerando que o futuro é imprevisível (“os fectos e negoçios dos omeens som uariamtes e nom ham continuadamente hũu seer”) e, eventualmente, sucedesse a anulação do contrato - releva-se que se a sua posse tivesse ocorrido por inerência da tutela senhorial de Almada, como reivindicava o Condestável, o problema seria o mesmo -, decide-se pela doação dos esteiros, abras, terras, azenhas e suas rendas. Mas, em aparente contradição, manteve-se a obrigação do pagamento da pensão28.
À decisão, D. João I associou a rainha, D. Filipa de Lencastre, os infantes, Duarte, Pedro e Henrique, os quais, dada a solenidade requerida pela natureza jurídica do caso, primeiramente aconselharam-se com o distinto rol de personalidades que passo a enumerar, e que assinam a carta como testemunhas: D. João, arcebispo de Lisboa; o doutor João das Regras, Gonçalo Vasques de Melo, Afonso Eanes das Leis, Gonçalo Peres, Fernando Álvares e João Afonso de Santarém, todos do conselho régio, Álvaro Gonçalves, Chanceler-mor, Gonçalo Lourenço, Escrivão da Puridade e João Afonso de Alenquer, Vedor da Fazenda.
A solenidade do ato fica clarificada com o esclarecimento de que a “pura e irreuogauel doaçam” se fazia “sem enbargo da ley primeira e Segunda .Capitullo. de petitis bonorum sublatis” liuro xo Capitullo primeiro quod sunt Regalia colacione xa"29. Justificava-o os muitos serviços que “bem e lealmente” o condestável prestara ao rei, a ajuda em “ganhar a terra e nossos regnos de mãos de nosso enmjgos”. O que estava, pois, em questão eram as regalia, o domínio exclusivo do monarca sobre determinados bens30. Os moinhos de maré, cuja edificação originara o pleito, situavam-se nas “abras” dos esteiros, ou seja, nos espaços que ciclicamente eram ocupados pelas águas do Tejo nas marés altas. E, como registarão as Ordenações Afonsinas, os rios constavam dos direitos reais31, que não transitavam necessariamente para o donatário da jurisdição, pelo que este para promover o seu aproveitamento económico carecia de especial concessão32. O Condestável não podia apropriar-se dos esteiros por sua iniciativa, enquanto detentor da jurisdição do território, mas tão-somente por voluntária cedência de um monarca que, na retórica discursiva do documento, o procurava proteger. Em última análise, era a afirmação da superioridade do poder régio que estava em causa.
Nesse sentido, é inevitável relevar o nome de João das Regras, então no declinar da sua longa carreira política. Nomeado pelo, ainda, Mestre de Avis como conselheiro em 1384, este Doutor em Leis esteve presente ao longo dos anos subsequentes nos atos e nas decisões de maior relevo33 e, é inevitável notá-lo, opondo-se, não raro, a Nuno Álvares Pereira, juntamente com outros conselheiros34. Segundo Fernão Lopes, foi, até, o principal instigador de D. João I35, quando, em finais de 1393 e inícios do ano seguinte, D. João I não só anulou as doações de Nuno Álvares aos seus seguidores e tentou recuperar terras que lhe havia concedido em préstamo36, como tomou os seus vassalos, agora acontiados régios37. D. João I afrontava, assim, diretamente o poder de Nuno Álvares Pereira, impedindo-o de formar um exército privado38.
Em 1403, já não era o ascendente feudal e militar de Nuno Álvares Pereira que preocupava D. João I, mas a demonstração, ainda que meramente jurídica ou, se quisermos, simbólica da superioridade do poder régio face ao poder senhorial do, ainda, condestável do reino. De certa forma, um prolongamento das tensões entre os legistas, que haviam legitimado a ascensão ao trono a D. João I, e o braço armado que sustentou todo esse processo39.
Independentemente da ambiguidade final da avença de 1403, uma consequência prática adveio. Pagando uma pensão, por insignificante que fosse, pelas azenhas e edifícios que ele próprio mandava erguer e custeava, Nuno Álvares Pereira apenas parcialmente concretizou o empreendimento e não demorou muito a entregá-lo a Santa Maria do Carmo.
3.2. O relacionamento com o concelho
3.2.1. Almada: a senhorialização do concelho
A tutela senhorial de Almada não trazia novidade, era um facto recorrente. Primeiro fora a integração no poderoso senhorio de Santiago, que terminara em dezembro de 1297, com o escambo efetuado entre D. Dinis e a Ordem. Poucos anos volvidos, em 1305, nova troca colocou o concelho nas mãos de D. Maria de Aboim e do seu segundo marido, João Fernandes de Lima40, até data incerta. Para os anos posteriores, sobre o estatuto do concelho, apenas sabemos que, em 1348, a rainha D. Beatriz assumia a jurisdição de Almada41 e, em 1371, a infanta D. Maria, irmã de D. Fernando, era seguramente a donatária do senhorio, tendo sido, aliás, alvo de forte contestação42. No início do ano seguinte, a 5 de janeiro, Almada será doada a D. Leonor Teles, a título de arras, com poderes muito alargados43.
No início da tutela de Nuno Álvares Pereira, algumas situações, presumivelmente atribuíveis ao donatário, suscitaram o descontentamento do concelho, que, em finais de 1387, enviou três “recados” a D. João I. Num primeiro, o concelho requeria a confirmação da isenção do relego na vila, que não era respeitado, assim como do descoutamento de um caminho (além de outras coisas), privilégios que o Mestre de Avis, como regedor e defensor do reino, havia outorgado e cuja carta se havia perdido44. Mais, acontecia a tomada indevida de bestas e armas45 e, finalmente, o almoxarife ordenava prisões de forma arbitrária, o que feria as prerrogativas municipais (“he comtra dereito em serdes priuados da uossa Jurdiçam e comtra o costume e hordenaçõoes do Regno”)46. Os três agravos, eufemisticamente nominados de “recados”, não referem explicitamente o Condestável, mas é certo que, nessa mesma altura em que o rei emitiu as respostas - sempre favoráveis ao concelho, note-se -, aquele já se empenhava no exercício dos seus poderes de donatário desde há vários anos, como comprova a referida questão do desembarque do pescado, em 1378.
3.2.2. A nomeação dos tabeliães
Uma questão sensível no exercício do poder senhorial respeitava à nomeação dos tabeliães. Responsáveis pela elaboração dos contratos e das escrituras em geral, a que conferiam fé pública, os tabeliães articulavam-se intimamente com a gestão municipal. Ligados ao exercício da justiça e do poder local - assistiam a processos judiciais e às reuniões de vereação -, e eram, ainda, testemunhas privilegiadas em diversos atos. Os senhores, ao assumirem a nomeação dos tabeliães e escrivães, melhor podiam conhecer e controlar os mecanismos da justiça e da administração local, bem como, em última análise, a própria comunidade47. Os monarcas haviam-se esforçado, em particular a partir de D. Dinis, por conservar na sua dependência a criação dos tabeliados. A lei de D. Fernando de 13 de setembro de 1375, além de determinar que apenas ao rei pertencia fazer tabeliães, revogava anteriores concessões dessa regalia. Mas abria excepções para infantes e condes, o almirante e o alferes-mor, o mosteiro de alcobaça e os mestres das ordens militares48. Ainda assim, mesmo nestes casos, a escolha dos tabeliães carecia da aprovação do soberano. Tinham que se submeter a um exame de aptidão na Corte e ao exercício do ofício era imprescindível a carta régia de autorização49. Não obstante, o pagamento dos direitos sobre estes tabeliães passava a reverter para o senhor da terra50.
No período considerado, a documentação revela onze tabeliães, nove ditos pelo Conde(estável) e dois em que esse dado está omisso. Não há nenhuma referência a um qualquer tabelião pelo rei51. Que era do donatário que emanava a autoridade do tabelião, comprova-o a alteração na intitulação quando D. Isabel, neta do Condestável, assumiu a jurisdição52. Já do escrivão concedido ao notário, o único caso conhecido não deixa quaisquer dúvidas: era indigitado por carta do Condestável53.
3. 2. 3. A ingerência no poder local
A relevância do ouvidor
Nuno Álvares Pereira, como era imprescindível ao exercício do poder senhorial, dispunha de um corpo de oficiais. Além do já citado almoxarife, a documentação apenas identifica um tesoureiro e um contador, como testemunhas de dois atos54, e o ouvidor, que merece particular atenção55.
As doações que incluíam o mero e misto império, isto é, a jurisdição cível e criminal, concediam aos senhores poderes judiciais56. Conforme estipulava a referida lei de D. Fernando de 13 de setembro de 1375, mais tarde fixada nas Ordenações Afonsinas57, em termos processuais, competia aos detentores de jurisdições uma justiça intermédia58, que não decidia nem em primeira nem em última instância, isto é, situava-se entre as decisões dos juízes da terra e as do rei, cabendo-lhe as apelações, tanto dos feitos cíveis como dos criminais. Ainda assim, um poder de peso. Em 1387, D. João I garantiu ao Condestável que as apelações e os agravos nas suas terras tinham que ir primeiro perante ele ou os seus ouvidores, antes de subirem à Corte59. E do exercício dessa justiça intermédia encarregava-se o ouvidor60, que se constituía, assim, como um elemento chave da administração senhorial61. Mas, em Almada, essa era apenas uma faceta da sua prolixa atividade. Participava, ao lado de autoridades municipais - fossem juízes, vereadores, procurador -, não só nas audiências, onde ouvia os feitos, o que ultrapassava as suas competências legais62 e, de alguma forma, permitia a sua ingerência nas decisões de primeira instância63, mas também em reuniões vicinais ordinárias64 ou alargadas65. Podia-lhe caber, até, a deliberação66 ou, releve-se, a imposição de uma postura concelhia em resposta a um agravo feito por vizinhos 67. E, como era recorrente por parte dos senhorios de Almada, a tentar retirar privilégios aos ouriveseiros da Adiça68.
A interferência nas magistraturas locais: a escolha dos juízes
O controlo da vida concelhia não se limitava à nomeação dos tabeliães ou à intromissão do ouvidor na governação concelhia, alcançava as próprias magistraturas municipais.
Com efeito, durante os trinta e sete anos de gestão senhorial do Condestável, deparámo-nos com seis juízes explicitamente ditos “pelo conde” 69. Fica a dúvida se o Conde interferia, de alguma forma, diretamente na sua designação, eventualmente seleção, ou se se limitava à confirmação. Mas, em todo o caso, intervinha na sua escolha e esta seria a sua prática habitual70. Que não tem paralelo no exercício de outros donatários. Anteriormente apenas conhecemos o registo de um juiz na vila pela rainha, ao tempo de D. Leonor Teles71; depois a menção ao detentor do senhorio desaparece72, o que não será acidental, como se depreende de um dos agravos apresentados por Almada nas Cortes de 1459, em Lisboa. A propósito do desrespeito do ouvidor de D. Isabel pelas liberdades fundamentais do município, acusado de intromissão na eleição das autoridades locais, o concelho invocou o costume: feita a dita eleição, os nomes dos juízes eram enviados à infanta a fim de serem confirmados73. Costume esse que, pelos vistos, não funcionaria ao tempo de Nuno Álvares Pereira.
Outras formas de intervenção na gestão municipal são sugeridas pela ordem transmitida, em 1405, aos vereadores, enquanto responsáveis pela administração dos bens da gafaria de S. Lázaro de Cacilhas juntamente com o seu mamposteiro, para que procedessem ao abaixamento de um foro74.
Homens do Condestável
Gil Aires, o Escrivão da Puridade75, nomeado como cavaleiro e criado do senhor Conde, em 1406, foi o seu mais fiel servidor fora dos campos de batalha. Em 1398, esteve ao lado de Nuno Álvares76, aquando da estranha doença que o acometeu durante três meses77, pelo menos durante o retiro em Alferrara, o que supõe que já o serviria há algum tempo78. No ano seguinte, como vimos, foi o seu interlocutor junto de D. João I e estaria sempre presente nos diversos atos que envolveram o processo de transmissão de bens a Santa Maria do Carmo, inclusivamente no auto de posse dos mesmos. Voltaria ao mosteiro, onde encontraria a sua morada perpétua79, quase duas décadas depois, em 1423, a testemunhar o ato de doação do convento à ordem do Carmo, mas já enquanto Vedor “para as coisas” de Ceuta80. No ano anterior, redigira as cartas de doação de Nuno Álvares aos seus netos Afonso, Fernando81 e Isabel82, provavelmente o último serviço que prestou ao Condestável, que, entretanto, já o havia recompensado com doação, em sua vida, das rendas do barco de Sacavém83 e de uma quinta em Murfacém, termo de Almada84.
João Afonso e Rodrigo Eanes são os únicos ouvidores que a documentação revela. Com todas as ressalvas a que a homonímia obriga, é inevitável associar o primeiro ao criado do rei e seu contador cujos serviços são solicitados pelo Condestável, em 1390, porque lhe era “compridoiro” para se encarregar dos contos de sua casa e porque já o tinha servido nessa função85. Tudo indica tratar-se do mesmo João Afonso, futuro Vedor da Fazenda, a quem Nuno Álvares Pereira contemplou, com o barco de Sacavém, em 1393, segundo a Estoria86 (o mesmo que foi concedido a Gil Aires). Em 1400 já era, efetivamente, Vedor da Fazenda e esteve na preparação da empresa de Ceuta87. De permeio, terá servido como ouvidor em Almada nos anos de 1410 e 1413. Embora esta acumulação de funções pareça singular, o certo é que não constitui caso único.
O outro ouvidor, Rodrigo Eanes, é mencionado como sendo do desembargo do rei88. Informação adicional, coloca-o como ouvidor de D. Filipa de Lencastre entre 1390 e 1412, subscrevendo cartas a título excecional sobre matérias do livramento dos feitos nas terras da rainha89. Nesse mesmo período, participou em vários atos em Almada e, neste caso, não subsiste nenhuma dúvida quanto à sua identificação.
Embora fosse habitual, à época, a acumulação de funções dos homens da escrita ao serviço do rei, e eventualmente também de outrem90, estes casos sugerem possíveis dificuldades do Condestável no recrutamento de oficiais que lhe assegurassem a administração dos seus vastos domínios91; ou, até, as fragilidades de estruturação de uma casa por alguém que passara largos anos em permanente deslocação, assoberbado pelo comando de homens de guerra, de resto eficazmente organizados e dirigidos92. Recordemos que, em 1391, delegou na mãe, Iria Gonçalves, a responsabilidade da elaboração de contratos de exploração sobre a totalidade das suas propriedades, e que, um ano antes, a mesma já representara interesses de Nuno Álvares93.
Também será de registar que a concretização de um empreendimento tão caro a Nuno Álvares Pereira como era a edificação do Carmo94 tenha sido confiado a um vizinho de Almada, Vasco de Moura, nomeado, em 1404, procurador e administrador do mosteiro95. Detentor da exploração de várias terras no termo96, Vasco de Moura já sobressaía entre os moradores da vila, em 138597. Distinguiu-se como juiz98, antes e depois, portanto, dessa nomeação. A última notícia que sobre ele obtivemos data de 1414, quando integrou uma comitiva concelhia que se deslocou a Coina, a defender os direitos de “Juridiçam do Condeestabre e da dicta vila d Almada”99.
Conclusão
A importância de Almada para Nuno Álvares Pereira ter-se-á esbatido no declinar da década. Por um lado, a obra do Carmo estava consolidada, a doação de bens ao mosteiro executada e garantida a sua administração. Por outro, com a reconfiguração geográfica dos bens do Condestável, primeiro pela doação à filha Beatriz, em 1401, depois pelo escambo feito com o rei, em 1408, o património e as rendas do Condestável ficaram concentrados no Alentejo100. Espaço onde promoveu a edificação de várias igrejas, ao que dizem as crónicas. De permeio, Ceuta foi o palco da sua última ação militar.
O Nuno Álvares Pereira que encontrámos em Almada é um senhor ciente do seu poder jurisdicional - poder esse que exerce nos limites permitidos pelas condições da doação régia -, preocupado com os seus réditos e diligente no controlo da vida concelhia.
Do condestável do reino, do guerreiro, apenas fica a evocação, enviesada, dos muitos serviços prestados a D. João e ao reino, a propósito da doação de 1403; da religiosidade, que perpassa as suas biografias, remanesce o empenho na viabilização do mosteiro do Carmo com a sua “catedral” gótica.
Ambas as vertentes estão projetadas na eleição de Almada como centro da sua atividade nos anos iniciais de Quatrocentos. A proximidade a Lisboa era, certamente, favorável à direção das obras do Carmo. E na sua permanência, por transitória que fosse, adentro da única fortaleza de onde podia olhar Lisboa encontraria a dimensão simbólica do estatuto de poder - ele que desejava ser o único conde do país101 - que o seu protagonismo militar, e até político, lhe conferia. Afinal, porque era imprescindível ao seu paço do castelo de Almada um anexo dotado de um eirado?
Fontes
Fontes manuscritas
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- Tombo do hospital de Santa Maria.
- Tombo de S. Lázaro de Almada.
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- Chancelaria de D. Fernando, Lv. 1.
- Colecção Especial, Cx. 72.
- Convento de Santa Clara de Santarém (Ordem dos Frades Menores, Província de Portugal,), Mç. 12.
- Convento de Santa Maria do Carmo de Lisboa (Ordem do Carmo), Lvs. 12, 14, 18.
- Feitos da Coroa, Núcleo Antigo 357.
- Gaveta 21.
- Leitura Nova, Místicos, Lv. 1.
- Leitura Nova, Odiana, Lvs. 3 e 5.
- Mosteiro de Santa Maria de Belém de Lisboa (Ordem de São Jerónimo,), Mçs. 2, 3.
- Mosteiro de S. Domingos de Lisboa (Ordem dos Pregadores,), Lv. 7.
- Mosteiro de S. Vicente de Fora (Cónegos Regulares de Santo Agostinho),1ª Inc., Mçs. 11, 16, 23; lv. 65.
Lisboa, Arquivo Municipal de Lisboa-Arquivo Histórico (AML-AH):
- Chancelaria Régia, Livro II de D. João I.
Fontes impressas
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Chancelarias portuguesas. D. Duarte. Org. de João José Alves Dias. Vol. I, Tomos 1 e 2 (1433-1435). Lisboa: Centro de Estudos Históricos, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 1998.
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