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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.35 Lisboa jun. 2024  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.4000/medievalista.7803 

Notas de investigação

A afirmação do pólo urbano e portuário de Setúbal no final da Idade Média no quadro da gestão territorial promovida pela Ordem Militar de Santiago em Portugal

The affirmation of the port town of Setúbal at the end of the Middle Ages within the territorial management strategy promoted by the Military Order of Santiago in Portugal

Ana Cláudia Silveira1 
http://orcid.org/0000-0002-2318-9526

1. Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais 1069-061 Lisboa, Portugal; clsilveira99@gmail.com


Recursos e estratégias económicas: as lógicas da gestão do território1

Apesar da relevância económica e estratégica que Setúbal assumiu no âmbito da organização dos domínios da Ordem Militar de Santiago de Espada em Portugal, o pólo urbano sadino permanece na actualidade como uma cidade mal compreendida, de difícil leitura quanto à evolução geomorfológica da paisagem e à organização espacial e topográfica do núcleo antigo. Muitos dos vestígios materiais do passado medieval setubalense encontram-se absorvidos pela natural evolução de um centro urbano onde se sucederam ao longo dos séculos intervenções multifacetadas, incluindo as relevantes obras portuárias realizadas na década de 1930, não sendo geralmente relevada a ligação da cidade aos Espatários, apesar de ter beneficiado da integração na respectiva Mesa Mestral logo desde a sua constituição em 1327. Este aspecto não pode ser dissociado da sua relevância económica e estratégica e da gradual afirmação como um dos principais portos marítimos portugueses, graças às dinâmicas económicas que o comércio internacional, de sal e não só, induziram.

A compreensão do estatuto singular assumido desde a Idade Média por Setúbal no âmbito da rede territorial de comendas da Ordem de Santiago em Portugal implica apreender a especificidade geográfica deste espaço, o papel desempenhado no âmbito do domínio jurisdicional dos Espatários, a importância militar inerente ao controlo do acesso a um território mais amplo, em conjugação com o elevado potencial proporcionado pelos vastos recursos disponíveis no seu território, associado aos fluxos comerciais que propiciava, aspectos que nos remetem para o valor económico e estratégico de que se revestiu esta vila tanto para a Ordem de Santiago como para a própria Coroa, exigindo uma análise atenta à complexa articulação de poderes que intervêm no território considerado. O estudo deste pólo urbano coloca igualmente a necessidade de o analisar, como qualquer outra cidade portuária marítima, num contexto geográfico que transcende a circunscrição territorial do concelho e respectivo termo, de forma a compreender as lógicas que presidiram à estratégia territorial e económica que vertebrou a constituição e evolução do domínio santiaguista em Portugal.

A este respeito, importa sublinhar a considerável relevância que as cidades portuárias evidenciam no processo de integração económica e de construção e hierarquização do território2, razão pela qual têm sido objecto de importantes estudos no âmbito da história medieval3, de forma a incrementar a compreensão sobre as estratégias de ordenamento e gestão do território numa escala regional e supra regional.

Paralelamente, no âmbito dos estudos sobre as ordens militares tem vindo a ampliar-se o campo de análise e o debate historiográfico sobre a sua presença urbana, procurando alcançar uma visão mais rigorosa da ligação dessas instituições às cidades4, incluindo as cidades portuárias, atendendo à importância económica e estratégica dos espaços portuários e à sua centralidade no âmbito da constituição de domínios económicos e da formação de redes territoriais. Os estudos realizados têm, assim, contribuído para esclarecer sobre os parâmetros da articulação entre os espaços urbanos e o extenso património rural progressivamente consolidado, no caso das ordens militares, através da construção das suas redes de comendas5, reflectindo ainda sobre as estratégias de territorialização desenvolvidas no âmbito da exploração económica dos seus domínios e explicando a afirmação política dos referidos institutos na sociedade coeva, que, em grande medida, se explica pela constituição de redes sociais envolvendo as oligarquias urbanas e pela convergência de interesses entre as ordens militares e certos grupos sociais, reforçando a respectiva influência na sociedade medieval6.

Embora na historiografia portuguesa o estudo das ordens militares tenha vindo a privilegiar os aspectos institucionais e a sua organização interna em detrimento das relações que estabeleceram com os espaços urbanos, da dimensão económica associada à gestão de vastos espaços territoriais e recursos económicos, ou, mesmo, da sua dimensão sociológica, é hoje admitida a inserção destas instituições em circuitos económicos que pressupunham o seu envolvimento em actividades especulativas e em operações financeiras associadas aos mercados urbanos e a redes comerciais que transcendiam a escala local, tendo sido igualmente demonstrada a proveniência de muitos dos membros das milícias do mundo citadino, assim como a sua inserção familiar em grupos associados ao exercício de cargos nas administrações municipais7.

As problemáticas que acabamos de enunciar encontram em Setúbal medieval um campo privilegiado de aplicação, uma vez que, apesar de existir um trabalho elaborado há cerca de trinta anos reunindo um assinalável conjunto de informações relativas a esta vila medieval8, as questões centrais atrás apontadas e os aspectos materiais da organização urbana medieval não haviam sido até agora objecto de análise. A acessibilidade de fundos documentais outrora por identificar ou indisponíveis e a actualização de enquadramentos históricos e problemáticas historiográficas, justificam a actualização de perspectivas sobre o passado tardo medieval da vila sadina.

Destaca-se, em particular, o significativo alargamento do corpus documental e a maior amplitude da tipologia documental utilizada, assinalando-se a relevância da documentação medieval local, integrada no Arquivo Histórico da Santa Casa da Misericórdia de Setúbal, no qual se conservam dois tombos relativos aos bens administrados por instituições assistenciais medievais incorporados no Hospital do Santo Espírito em 1501, bem como a documentação da Confraria e Hospital de Nossa Senhora da Anunciada, cuja análise foi de crucial importância, quer para esclarecer aspectos relativos à evolução e organização do espaço urbano e à gestão patrimonial efectuada, quer para identificar as elites locais e a própria oligarquia urbana e esclarecer a sua relação com a Ordem de Santiago.

Elucidativa foi ainda a análise de alguns fundos monásticos conservados no Arquivo Nacional da Torre do Tombo cuja relação com Setúbal não havia sido até agora suficientemente explorada ou valorizada, assim como a leitura de documentação integrada num universo limitado de arquivos familiares, onde se incluem algumas tipologias documentais distintas das existentes em outros fundos analisados, como é o caso de contratos de dote e arras, testamentos, instrumentos de partilhas e inventários orfanológicos, destacando-se especialmente o Arquivo da Família Gama Lobo Salema, que integra a documentação de famílias setubalenses como os Queimado de Villalobos, Miranda Henriques e Salemas, elucidando sobre os percursos dos seus membros, inserção social, estratégias de investimento e ligação às instituições locais.

Paralelamente, o trabalho realizado apoiou-se no contributo da iconografia e da cartografia produzida desde o século XVI e no exame de fotografias antigas, materiais que permitiram identificar e datar continuidades e mudanças no espaço urbano. Procedeu-se igualmente à integração dos contributos que a arqueologia urbana tem produzido nas últimas décadas e à observação da própria cidade actual, que constitui a nossa fonte directa de informação, constatando-se que, apesar da enorme transformação registada, conserva inúmeros vestígios da cidade medieval.

Assim, foram definidos como objectivos primordiais do trabalho realizado, num primeiro momento, contribuir para a compreensão da relevância de Setúbal e do seu porto no quadro da articulação de uma rede de comendas da Ordem Militar de Santiago em Portugal, que se estabilizou em 1327. Em segundo lugar, evoluir na reconstituição do espaço urbano e portuário da vila sadina, procurando evidenciar as marcas e as consequências da materialização da presença e da influência da instituição na construção paisagem urbana. Por último, analisar de que forma a intervenção da Ordem de Santiago neste espaço urbano se articulou com outros poderes aí presentes, designadamente o concelho e a Coroa, analisando as relações estabelecidas entre esse instituto religioso e as elites locais.

O enquadramento cronológico adoptado teve como terminus a quo o ano de 1249, correspondente à atribuição de foral a Setúbal pelo Mestre Paio Peres Correia, e como terminus ad quem o ano de 1526, que marcou a implementação de um programa urbanístico associado à regularização da Praça Nova do Sapal, intervenção que nos permite aceder a informação esclarecedora sobre o modo como até então se encontrava espacialmente organizada a urbe medieval, por contraste com as transformações operadas nesse momento no tecido urbano. Trata-se de um período fulcral para a estruturação do espaço urbano setubalense e para o processo de afirmação desta vila enquanto espaço portuário relevante, o qual se desenvolveu em paralelo à assunção da sua centralidade no âmbito da administração dos domínios da Ordem de Santiago em Portugal, numa fase em que esta se encontrava em processo de consolidação territorial e institucional.

Assim, atendendo aos objectivos e à cronologia enunciados, a síntese que se elaborou foi estruturada em quatro capítulos, sendo o primeiro dedicado à análise da evolução do domínio espatário em Portugal no período que decorre entre o final da conquista do Algarve (1249) e a consolidação da rede de comendas definida pelos Estabelecimentos do Mestre Pedro Escacho (1327), procurando definir e explicar os principais vectores seguidos pela instituição na implementação da estratégia territorial e patrimonial delineada no âmbito de um processo dialéctico, o qual se foi construindo entre os interesses económicos, militares, senhoriais e políticos da milícia e os interesses e estratégias de outros poderes, designadamente a Coroa e o bispado, e os respectivos agentes, com os quais foi necessário articular posições e alcançar composições. A Ordem de Santiago procurou concentrar os seus bens territoriais em espaços onde mais lhe interessou desenvolver investimentos, promovendo trocas de propriedades com o rei ou outros leigos, o que lhe permitiu adquirir um conjunto de terras e direitos sobretudo em três áreas principais e complementares entre si - em torno de Campo de Ourique, na Península de Setúbal e no litoral alentejano -, as quais eram passíveis de se articularem do ponto de vista económico e de se estruturarem numa rede territorial hierarquizada, garantindo, deste modo, o controlo pela instituição de fluxos comerciais e financeiros de importância significativa.

A configuração que o senhorio da Ordem de Santiago adoptou e a estruturação da sua rede de comendas são reveladoras quanto à estratégia prosseguida pela instituição desde o século XIII, denotando uma planificação e sistematização no sentido de promover o controlo da faixa litoral a sul do Tejo, de forma a assegurar a exploração dos recursos e potencialidades económicas e fiscais associadas à pesca, produção de sal e ao controlo das rotas terrestres, em grande parte herdadas do período romano, e também das fluviais e marítimas articuladoras do litoral, assegurando em simultâneo o controlo da principal área de produção cerealífera e de transumância do território português, de grande relevância e rentabilidade, o que advinha do controlo das vias de circulação que lhe davam acesso e da importância de que se revestiam os rendimentos especulativos destas produções no quadro do abastecimento dos mercados urbanos.

Detectam-se, assim, semelhanças com o que tem sido constatado a respeito das práticas gestionárias desenvolvidas pelas ordens militares presentes noutros espaços europeus, em que se verifica uma coincidência do património detido por estes institutos com a presença de importantes eixos de comunicação, quer se tratasse de vias naturais como os rios, de vias de peregrinação, de caminhos ligando importantes cidades, de caminhos de pastoreio ou de rotas comerciais, incluindo as que passavam por portos fluviais ou marítimos, o que pode ser explicado pelo papel assumido pelas comendas e, naturalmente pelas ordens militares, na gestão de fluxos de homens, de bens e de capitais9.

A progressiva afirmação da vila portuária de Setúbal no senhorio espatário

No contexto descrito, o rio do Sado e o seu estuário em particular desempenharam um papel fundamental no âmbito da estratégia de gestão territorial e económica da Ordem de Santiago, contribuindo para uma articulação do domínio Espatário e da sua rede de comendas, garantindo assim à instituição os recursos financeiros necessários à sua sustentabilidade e ao investimento nas actividades militares e caritativas que constituíam a sua vocação primacial.

O carácter estruturante dos cursos de água na construção das paisagens e dos sistemas ecológicos não pode ser dissociado da centralidade que assumem enquanto elementos fundamentais na constituição dos sistemas económicos e sociais. Ao permitirem o acesso a recursos naturais a que se atribui relevância estratégica e valor comercial, desempenham um papel fundamental na definição e estruturação dos territórios, na sua conexão, permitindo a comunicação entre diferentes espaços e sistemas organizacionais, possibilitando a criação de complementaridades e articulações e dando origem a processos planeados de hierarquização territorial frequentemente associados a dinâmicas de natureza económica, social e política. Em articulação com a rede de estradas, desempenham também um papel fundamental no controlo jurídico-administrativo do território. A compreensão e a avaliação destas dinâmicas requerem, pois, um estudo multidimensional e uma análise multidisciplinar, incluindo uma leitura geoarqueológica da paisagem actual, combinando aspectos ambientais com práticas económicas e representações sociais, de modo a compreender a sua evolução diacrónica a longo prazo, identificar eventuais continuidades e rupturas e determinar os factores que poderão ter contribuído para estes processos.

A importância das actividades e dos recursos existentes no vale do Sado e o papel estratégico desenvolvido ao longo da história pelo seu estuário, uma zona húmida de grande riqueza biológica e na qual existem extensos recursos ictiológicos, é desde há muito reconhecida, tendo sido uma unidade geográfica de grande importância para a economia, um factor de atracção para a instalação de várias civilizações e um elemento fundamental para a articulação do território e para a sua organização hierárquica.

O carácter articulador do rio Sado é particularmente visível a partir do século XIII, após a integração do território em torno do seu vale fluvial no domínio da Ordem de Santiago, emergindo o centro urbano de Setúbal, localizado no seu estuário, como o principal centro portuário da jurisdição da Ordem de Santiago. Enquanto ponto de confluência de fluxos terrestres, fluviais e marítimos e local de concentração de mercadorias e da procura por parte de outros mercados e centro distribuidor das produções da globalidade do senhorio santiaguista, desempenhava um relevante papel na dinamização de cadeias de produção e na gestão de transportes e abastecimentos. Assegurava, assim, quer o escoamento das produções do território controlado pela instituição, quer a ligação aos mercados nacionais e internacionais e a redes financeiras complexas, proporcionando a escala necessária ao desenvolvimento de redes e circuitos mercantis, promovendo ligações entre sistemas económicos distintos e complementares, assumindo-se como o centro polarizador do comércio regional, contribuindo ainda para a estruturação da fiscalidade, o que resultava da conjugação de múltiplas variáveis. Em primeiro lugar, as que derivam das condições físicas e geográficas que faziam desta zona um bom porto natural e proporcionavam uma grande variedade de recursos. Enquanto plataforma de distribuição de pessoas, bens e capitais, este porto tinha uma função de gateway, sendo por isso o vértice organizador e o elemento central da rede progressivamente hierarquizada de comendas que estruturava todo o domínio territorial da Ordem de Santiago em Portugal10.

Deste modo, procedeu-se a uma análise sobre a presença da Ordem de Santiago neste espaço urbano, procurando compreender a implantação na vila sadina de importantes estruturas políticas e administrativas do Mestrado de Santiago e estabelecendo os parâmetros económicos, jurisdicionais e topográficos dessa presença, aspecto ao qual tem sido prestada uma menor atenção no quadro dos estudos desenvolvidos em Portugal dedicados às instituições religiosas-militares. O estudo realizado permitiu, assim, evoluir na reconstituição do espaço urbano e portuário da vila de Setúbal. Tornou possível evidenciar as marcas e as consequências da materialização da presença e da influência da instituição na construção da paisagem urbana, documentada desde o primeiro quartel do século XIV e materializada desde logo na construção da muralha citadina referida ainda no reinado dionisino, a qual teve um papel estruturante na organização espacial da urbe, influindo na tessitura das ruas, na localização de equipamentos urbanos, na zonagem das actividades económicas e na definição dos diferentes sectores da vila medieval, num processo dinâmico em que a muralha se foi adaptando e acompanhando as alterações urbanísticas produzidas ao longo dos séculos.

Em articulação com a construção da muralha, promoveu-se a implantação do paço da Ordem de Santiago, estrategicamente posicionado de forma a garantir o controlo e defesa de uma das principais portas da vila, a da Ribeira, que abria sobre o rio Sado e em torno da qual se organizou o centro nevrálgico da actividade portuária e mercantil. O paço assumiu-se como um pólo ordenador da urbe, funcionando como um marcador arquitectónico em torno do qual se estruturou uma relevante área do núcleo urbano situada na sua envolvente11, condicionando a organização da rede viária, que adoptou um traçado geométrico, bem como a morfologia do parcelário, influenciando a organização topográfica em torno da respectiva área de implantação, onde se verificou a constituição de um conjunto compacto de propriedades da Ordem de Santiago, o que confirma a tendência destas instituições para promoverem uma concentração patrimonial nas imediações das respectivas casas das comendas12, assim influindo na hierarquização espacial das vilas medievais em que marcavam presença13.

A análise do tecido e do parcelário urbano permitiu distinguir unidades urbanísticas e apreender a progressiva ocupação do espaço, por vezes através de operações urbanísticas planificadas14, tanto do intramuros e como do arrabalde de Troino, este último estruturado progressivamente a partir do século XIV no âmbito de operações de loteamento urbano planificado em que se encontra documentado o envolvimento da Confraria e Hospital de Nossa Senhora da Anunciada e da Ordem de Santiago15.

Deste modo, foi possível detectar diferentes ritmos construtivos, bem como a ocorrência de alterações na localização de estruturas ou actividades que produziram efeitos na organização topográfica da vila. Procedeu-se ainda à localização de equipamentos urbanos, ao zonamento de algumas actividades e à análise sociotopográfica da vila, identificando a implantação de espaços marcados pela exclusão social, assumindo relevo particular os contributos que permitiram identificar a inserção da Mancebia na urbe e reequacionar a inserção das minorias religiosas no espaço, proporcionando dados inéditos sobre a localização e evolução, tanto da Judiaria, como da Mouraria setubalenses, propondo uma revisão sobre a implantação desta última no intramuros e analisando a evolução urbana proporcionada no final da Idade Média pela sua extinção, decorrente das transformações sociais subsequentes ao Édito de expulsão de 1496.

Na transição do século XV para o XVI, é visível a implementação de processos e mecanismos de afirmação institucional e política por parte dos diversos poderes presentes na localidade, expressos através de um conjunto de intervenções urbanísticas articuladas, incluindo o reordenamento e reconfiguração de determinadas áreas da vila como a praça nova do Sapal, a abertura de novas artérias e de novas portas na cerca urbana e a construção, reabilitação e ampliação de infraestruturas, como o novo paço concelhio, o paço da Ordem, a igreja de São Julião e de equipamentos urbanos ligados ao abastecimento público como o aqueduto, o Paço do Trigo, a cadeia e os açougues. No seu conjunto, reflectem, por um lado, a vitalidade económica e política da urbe e, por outro, contribuem para promover a nobilitação e embelezamento do espaço público, constituindo um reflexo da posição assumida por Setúbal no contexto regional e enquanto principal pólo urbano e portuário da Ordem de Santiago, concorrendo, assim, para o reforço da autoridade dos poderes políticos em presença.

A afirmação política e institucional da Ordem de Santiago que se encontra reflectida nas intervenções urbanísticas implementadas coincidiu com a afirmação económica deste pólo urbano, a qual, em grande medida se encontra associada não só aos seus recursos endógenos, com destaque para o peixe e o sal e incluindo igualmente outras produções como os vinhos, a grã ou o mel, mas também aos recursos exógenos, merecendo referência em particular o comércio de couros e cereais transportados através do Sado.

Esse dinamismo económico explica-se ainda pela capacidade que as instituições urbanas tiveram de implementar estratégias que permitiram minimizar as possibilidades de afirmação de espaços próximos que pudessem assumir-se como concorrenciais, resultando na consolidação de uma elite local cujo poder económico advinha da exploração dos recursos existentes, da armação de navios e da exploração de património imobiliário, a qual acedeu às principais magistraturas urbanas. Muitos desses homens apresentavam ou desenvolveram ligações à Ordem de Santiago e alguns experienciaram um processo de gradual assunção de responsabilidades ao serviço da instituição, ao mesmo tempo que consolidaram carreiras nos principais ofícios concelhios e capitalizaram tais experiências em processos de ascensão social. A forma como os Espatários promoveram uma interligação com as elites locais permitiu-lhe assegurar o controlo das principais magistraturas urbanas, garantindo que Setúbal fosse efectivamente, no final da Idade Média, um paradigmático pólo de poder da instituição.

Considerações finais

O estudo de Setúbal medieval fornece novos contributos e leituras, não só para a análise deste espaço urbano, como da globalidade do senhorio espatário em Portugal, enquadrando a sua progressiva afirmação numa análise interpretativa e comparativa face a outras realidades coevas, de forma a permitir a sua melhor contextualização e compreensão.

Esta análise, ao contribuir para colmatar o escasso conhecimento sobre a estruturação e organização do tecido urbano setubalense e respectiva evolução, permite inserir esta vila portuária no âmbito da produção historiográfica portuguesa recente que tem procurado impulsionar o conhecimento sobre a morfologia urbana medieval e respectiva evolução16, em particular no âmbito dos núcleos urbanos que, sob gestão de ordens militares, adoptaram modelos característicos do urbanismo planificado, oferecendo uma nova leitura da respectiva evolução topográfica, permitindo problematizar aspectos menos evidenciados sobre a presença destes institutos em Portugal, designadamente a sua relação com o mundo citadino e as intervenções urbanísticas implementadas nos espaços sob sua gestão. Em simultâneo, contribui para a reflexão relativa às cidades portuárias marítimas17 e para o seu papel no processo de constituição e desenvolvimento de redes urbanas e de estabelecimento de hierarquias territoriais, aspectos que continuam em aberto18.

Constitui, assim, um contributo para prosseguir futuras investigações relativas à gestão territorial promovida pelas ordens militares nos seus domínios e às estratégias económicas implementadas, assim como para aprofundar aspectos relacionados com a sua presença em espaços urbanos medievais, quer do ponto de vista urbanístico, quer do ponto de vista económico, de forma a ser possível avaliar a respectiva influência política e social, a constituição de redes sociais associadas a estas instituições, bem como a inserção de territórios geridos pelas ordens militares nas redes mercantis a nível ibérico e europeu, tornando possível a elaboração de análises comparativas em relação a outras regiões peninsulares e europeias.

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1Este texto apresenta uma síntese de: SILVEIRA, Ana Cláudia Oliveira -Setúbal, um Pólo de Poder da Ordem Militar de Santiago no Final da Idade Média. Lisboa: Universidade NOVA de Lisboa, 2022. Tese de Doutoramento. Esta investigação foi realizada sob orientação da professora Doutora Amélia Aguiar Andrade.

2 ANTUNES, Cátia; SICKING, Louis - “Ports on the Border of the State, 1200-1800: an introduction”. International Journal of Maritime History 19 (2007), pp. 274-286.

3 Ciudades y villas portuárias del Atlântico en la Edad Media. Nájera. Encuentros Internacionales del Medievo (Nájera, 27-30 de Júlio 2004). Logroño: Gobierno de La Rioja / Instituto de Estudios Riojanos, 2005; Ports maritimes et ports fluviaux au Moyen Âge. XXXV e Congrès de la Société des historiens médiévistes de l’Enseignement Supérieur Public (La Rochelle, 5 et 6 Juin 2004). Paris: Publications de la Sorbonne, 2005; BOCHACA, Michel; SARRAZIN, Jean-Luc (dirs.) - Ports et littoraux de l’Europe atlantique. Transformations naturelles et aménagements humains (XIV e -XVI e siècles). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2007; COULON, Damien (ed.) - Réseaux Marchands et Réseaux de Commerce. Concepts récents, réalités historiques du Moyen Âge au XIXe siècle. Journées d’études de la composante Mobilité-Échanges-Transferts 2005-2006, Équipe d’Accueil en Sciences Historiques de l’Université de Strasbourg. Estrasburgo: Presses Universitaires de Strasbourg, 2010; AÑIBARRO RODRÍGUEZ, Javier - La implantación urbana medieval en la costa de Cantabria. Santander: Publican, 2010; SOLÓRZANO TELECHEA, Jesús A.; BOCHACA, Michel; ANDRADE, Amélia Aguiar (eds.) - Gentes de Mar en la Ciudad Atlántica Medieval. Logroño: Instituto de Estudios Riojanos, 2012; CANCELLIERI, Jean-André; VAN CAUWELAERT, Vannina Marchi (eds.) - Villes Portuaires de Méditerranée Occidentale au Moyen Âge. Îles et continents, XII e -XV e siècles. Palermo: Associazione Mediterranea, 2015; POLÓNIA, Amélia; RIVERA MEDINA, Ana María (eds.) - La Gobernanza de los puertos atlánticos, siglos XIV-XX. Políticas y estructuras portuarias. Madrid: Casa de Velázquez, 2016.

4 OLIVEIRA, Luís Filipe - “As Ordens Militares e as Cidades”. In OLIVEIRA, Luís Filipe (coord.) - Comendas Urbanas das Ordens Militares. Lisboa: Edições Colibri, 2016, pp. 9-20.

5 CARRAZ, Damien - “Les ordres militaires et le fait urbain en France méridionale (XIIe-XIIIe siècle)”. In Moines et religieux dans la ville (XIIe-XVe siècle). Toulouse: Éditions du Privat, 2009 [Cahiers de Fanjeaux 44], p. 147.

6 CARRAZ, Damien - “Le monachisme militaire, un laboratoire de la sociogenèse des élites laïques dans l’Occident médiéval?”. In JOSSERAND, Philippe; OLIVEIRA, Luís Filipe; CARRAZ, Damien (eds.) - Élites et Ordres Militaires au Moyen Âge. Rencontre autour d’Alain Dumerger. Madrid: Casa de Velázquez, 2015, pp. 56-64.

7 OLIVEIRA, Luís Filipe - A Coroa, os Mestres e os Comendadores. As Ordens Militares de Avis e de Santiago (1330-1449). S.l.: Universidade do Algarve, 2009, pp. 170-187.

8 BRAGA, Paulo D. - Setúbal Medieval (Séculos XIII a XV). Setúbal: Câmara Municipal de Setúbal, 1998.

9 SILVEIRA, Ana Cláudia Oliveira -Setúbal, um Pólo de Poder da Ordem Militar de Santiago, pp. 39-135.

10 SILVEIRA, Ana Cláudia Oliveira -Setúbal, um Pólo de Poder da Ordem Militar de Santiago, pp. 223-224.

11 SILVEIRA, Ana Cláudia - “As casas da comenda mestral de Setúbal”. In OLIVEIRA, Luís Filipe (coord.) - Comendas Urbanas, p. 65-83; SILVEIRA, Ana Cláudia - “A gestão do património urbano da Ordem Militar de Santiago em Setúbal no final do século XV: indícios de uma polarização regional?”. In COSTA, Adelaide Millán da; ANDRADE, Amélia Aguiar; TENTE, Catarina (eds.) - Atas das Jornadas Internacionais de Idade Média O papel das pequenas cidades na construção da Europa medieval. Lisboa: IEM / Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2017, p. 419-442.

12 CARRAZ, Damien - L’Ordre du Temple dans la Basse Vallée du Rhône (1124-1312). Ordres militaires, croisades et sociétés méridionales. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 2005, p. 274-275; CARRAZ, Damien - “Expériences religieuses en contexte urbain: de l’ordo monasticus aux religiones novae: le jalon du monachisme militaire”. In CARRAZ, Damien (ed.) - Les Ordres Militaires dans la Ville médiévale (1100-1350). Clermont-Ferrand: Presses Universitaires Blaise Pascal, 2013, p. 51; CARRAZ, Damien; ASPORD-MERCIER, Sophie - “Le programme architectural d’un pôle seigneurial: la commanderie de Montfrin (Gard)”. Archéologie du Midi Médiéval 28 (2010), pp. 297-303.

13 CARRAZ, Damien - “Les ordres militaires et le fait urbain”, p. 138.

14Conforme detectado noutras urbes: BEIRANTE, Maria Ângela; DIAS, João José Alves - “O Património Urbano da Ordem de Cristo em Évora no Início do Século XVI”. In Estudos de Arte e História - Homenagem a Artur Nobre de Gusmão. Lisboa: Vega, 1995, pp. 61-67; CONDE, Manuel Sílvio Alves - Tomar Medieval. O espaço e os homens. Cascais: Patrimonia, 1996, pp. 84-87; ABBÉ, Jean-Loup - “Planification et aménagement de l’espace urbain de la moyenne Vallée de l’Aude au Moyen-Age. Esperaza, Couiza, Quillan, Limoux”. In GAUTHIEZ, Bernard; ZADORA-RIO, Elisabeth; GALINIÉ, Henri (eds.) - Village et Ville au Moyen Age: les dynamiques morphologiques, vol. 1. Tours: Maison des Sciences de l’Homme, 2003, pp. 154-160; DEMURGER, Alain - “Villeneuve”. In BÉRIOU, Nicole; JOSSERAND, Philippe (dirs.) - Prier et Combattre. Dictionnaire européen des ordres militaires au Moyen Âge. Paris: Fayard, 2009, pp. 966-967; VINAS, Robert - “Lotissement”. In BÉRIOU, Nicole; JOSSERAND, Philippe (dirs.) - Prier et Combattre, pp. 562-563; CARRAZ, Damien - “Les ordres militaires et le fait urbain”, pp. 138-139; BESSEY, Valérie - “L’implantation du Temple et de l’Hôpital dans les villes du nord du royaume de France (1100-1350)”. In CARRAZ, Damien (ed.) - Les Ordres Militaires dans la Ville médiévale, pp. 101-103; CLAUDE, Sandrine - “Impact et limites de la seigneurie de l’Hôpital sur l’évolution et les dispositions du paysage urbain à Manosque (XIIIe-XIVe siècles). In CARRAZ, Damien (ed.) - Les Ordres Militaires dans la Ville médiévale (1100-1350), pp. 284-286; TOOMASPOEG, Kristjan - “Les ordres militaires dans les villes du Mezzogiorno”. In CARRAZ, Damien (ed.) - Les Ordres Militaires dans la Ville médiévale (1100-1350), p. 176; TRÉTON, Rodrigue - “L’ Ordre du Temple dans une capitale méditerranéenne: Perpignan”. In CARRAZ, Damien (ed.) - Les Ordres Militaires dans la Ville médiévale (1100-1350), pp. 233-235; TRINDADE, Luísa - “Ordens urbanas ou Ordens do rei? Urbanismo das Ordens Militares no Portugal dos séculos XII a XIV”. In OLIVEIRA, Luís Filipe (coord.) - Comendas Urbanas, pp. 91-108.

15 SILVEIRA, Ana Cláudia - “A afirmação de um espaço periférico medieval: o arrabalde de Troino em Setúbal”. In RIBEIRO, Maria do Carmo; MELO, Arnaldo Sousa (coords.) - Evolução da paisagem urbana: cidade e periferia. Braga: CITCEM / IEM, 2014, pp. 117-137.

16 CARITA, Helder - Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna (1495-1521). Lisboa: Livros Horizonte, 1999; CONDE, Manuel Sílvio Alves - “O urbanismo regular e as ordens religiosas militares do Templo e de Cristo: as “vilas novas” e a evolução urbana de Tomar na Idade Média”. In CARREIRAS, José Albuquerque; VAIRO, Giulia Rossi (eds.) - Actas do I Colóquio Internacional Cister, os Templários e a Ordem de Cristo. Tomar: Instituto Politécnico de Tomar, 2012, pp. 271-300; SILVA, Manuel Fialho - Mutação Urbana na Lisboa Medieval. Das Taifas a D. Dinis. Lisboa, 2017; TEIXEIRA, Manuel; VALLA, Margarida - O Urbanismo Português, séculos XIII-XVIII. Portugal-Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1999; TRINDADE, Luísa - Urbanismo na Composição de Portugal. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2013.

17 ANDRADE, Amélia Aguiar - “A importância da linha costeira na estruturação do Reino medieval português. Algumas reflexões”. Historia. Instituciones. Documentos 35 (2008), pp. 9-24; BARROS, Amândio - Porto. A construção de um espaço marítimo nos alvores dos tempos modernos. Lisboa: Academia de Marinha, 2016; POLÓNIA, Amélia - A Expansão Ultramarina numa perspectiva local. O Porto de Vila do Conde no Século XVI, vol. II. Lisboa: IN-CM, 2007 e SILVA, Gonçalo Miguel Correia Melo da - As Portas do Mar Oceano: vilas e cidades portuárias do Algarve na Idade Média (1249-1521). Lisboa.

18 ANDRADE, Amélia Aguiar; COSTA Adelaide Millán da - “Medieval Portuguese Towns: the difficult affirmation of a historiographical topic”. In MATTOSO, José (dir.) - The Historiography of Medieval Portugal, c. 1950-2010. Lisboa: IEM, 2011, pp. 284-295.

Recebido: 30 de Outubro de 2023; Aceito: 03 de Novembro de 2023

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