Introdução: A rebelião de 1081 como um projeto coletivo
O relato vivo e detalhado da tomada de poder por Aleixo I (1081-1118) em abril de 1081, apresentado por sua filha Ana Comnena, chama a atenção por retratar este evento como uma empreitada coletiva que somente teve êxito em função do apoio ativo de diversos grupos e indivíduos1. É interessante que, no momento da deflagração da rebelião, ainda não estava claro quem seria o imperador: Aleixo ou Isaac, seu irmão mais velho. Isaac tinha todas as condições para ser aclamado: superava Aleixo em idade, tinha tanta ou mais experiência e dispunha de partidários. No entanto, Aleixo foi feito imperador pelos soldados de seu exército durante a assembleia em Chiza, perto de Adrianopla, na Trácia, sendo reconhecido como tal por seu irmão. Segundo Ana Comnena, a escolha por Aleixo deveu-se ao esforço conjunto da família de sua esposa, Irene, liderado pelo avô daquela, João Ducas, o kaisar2. Essa contribuição-chave da família Ducas para o sucesso da rebelião e da ascensão de Aleixo é um tema central no relato de Ana Comnena sobre o episódio, servindo de ponto de referência para o futuro relacionamento entre as duas linhagens.
Em função disso, era esperado o reconhecimento tácito desse apoio pelo novo imperador na forma de participação dos Ducas no governo ou mesmo de partilha de poder entre eles e os Comnenos. Porém, Aleixo tinha outras dívidas, em particular com os membros de sua própria família, especialmente com seu irmão, Isaac, que havia abdicado de sua candidatura imperial em favor de Aleixo, de forma que teve que incluí-los no governo, dando-lhes a posição ambicionada pelos Ducas. Este artigo, então, demonstrará que havia um choque de expectativas entre o novo imperador e os parentes de sua esposa. Esse desequilíbrio entre a demanda por espaço pelos diversos apoiadores da usurpação e a oferta de parcela de poder teria gerado descontentamentos por parte dos Ducas, assim como crises e a sensação entre aqueles de urgência em proteger o espaço conquistado. Esta instabilidade também teria resultado no surgimento de uma identidade paralela dos Ducas dentro do regime imperial patrimonial fundado por Aleixo I, a qual teria perdurado após sua morte e continuado a existir durante o reinado de João II (1118-1143). Esta identidade enfatizaria o papel desta família na tomada do poder e na legitimação do novo imperador, assim como demandaria espaço e poder.
Relação Comneno-Ducas na historiografia
Até recentemente, a relação entre Comnenos e Ducas não havia sido problematizada a fundo. Paul Magdalino foi o primeiro a questionar o discurso de unidade familiar, apontando as primeiras fragilidades do que ele denominou “consórcio familiar” que tomou o poder em 1081. Contudo, Magdalino afirma que Aleixo teria demonstrado respeito suficiente aos Ducas e que estes ficaram satisfeitos com o quinhão recebido de participação no governo3. Peter Frankopan se aprofundou nas divisões e crises internas do reinado de Aleixo I. Embora ele questione a lealdade de alguns familiares do imperador, como Adriano Comneno4, seu irmão, e Nicéforo Melisseno5, seu cunhado, não vê problemas na relação com os Ducas, afirmando somente, num trabalho mais recente, que, embora o casamento entre Aleixo e Irene tenha sido chave para sua escolha em vez de Isaac, os Ducas ainda poderiam manter ambições imperiais. Segundo o autor, Miguel VII Ducas (1071-1078), apesar de deposto por Nicéforo III Botaniates (1078-1081), poderia ter tentado retomar o trono. João Ducas poderia ter também mantido ambições. Logo, nomear Constantino Ducas, filho de Miguel VII, como coimperador e noivá-lo com Ana Comnena teriam sido tentativas de aplacar essas aspirações6. Isso, porém, seria entender todos os Ducas como um bloco familiar. Veremos à frente que a linhagem Ducas estava dividida em duas facções com objetivos diferentes e contraditórios. Tal divisão foi plenamente reconhecida no estudo de Larisa Vilimonović sobre a Alexíada de Ana Comnena, no qual, partindo de análises anteriores por Vlada Stanković7, a obra é tratada como uma manifestação de autoridade intelectual e política da autora como herdeira de ambas as ramificações da família Ducas. Segundo Vilimonović, Ana Comnena estaria, em sua obra, reagindo às apropriações da imagem e do reinado de seu pai feitas pela linha imperial da Dinastia Comneno, representada por seu filho mais velho, João II, e por seu neto, Manuel I (1143-1180)8.
Os Comnenos e os Ducas: as origens de uma colaboração conturbada
As famílias Ducas e Comneno entraram definitivamente na história política bizantina em 1057, quando uma rebelião militar liderada por Isaac Comneno depôs Miguel VI (1056-1057). Isaac era apoiado por um grupo de chefes militares insatisfeitos com o tratamento diferenciado dado aos funcionários civis, que, ao contrário dos militares, recebiam promoções. Isaac tentou implementar uma série de reformas econômicas e administrativas, mas sua posição foi enfraquecida em função de frustrações no campo de batalha. Uma doença relativamente grave lhe deu o pretexto para abdicar do trono e adotar a vida monástica. Em vez de passar o poder para um familiar, Isaac I nomeou como seu sucessor Constantino X Ducas (1059-1067), um dos chefes militares que haviam apoiado a rebelião que o levou ao poder9.
Seu irmão, João Comneno, foi apontado por Isaac I ao posto de domestikos das scholai do ocidente, que era oficialmente o comandante supremo das forças militares ocidentais10. Apesar disso, ele não foi considerado para suceder ao irmão, aceitando a decisão sem resistências. No entanto esposa, Ana Dalassena, não admitiu a marginalização de seu marido11. Este evento deu início ao seu antagonismo em relação aos Ducas, cujas consequências políticas reverberaram por décadas. A morte de Constantino X, em 1067, gerou uma crise relacionada à regência que resultou na tomada de poder por Romano IV Diógenes (1068-1071), oficialmente como protetor dos filhos de Constantino X. A consequência foi a emergência de duas facções na corte: a dos apoiadores dos Ducas e a dos apoiadores de Romano IV. Embora supostamente com o mesmo objetivo ‒ proteger os direitos sucessórios dos porfirogênitos ‒ ambos os grupos agiam como adversários e conspiravam uns contra os outros. Ana Dalassena, chefe da família Comnena desde o falecimento de seu marido em 1068, se aproximou de Romano IV através de uma aliança matrimonial entre sua filha Teodora Comnena e Constantino Diógenes, filho de Romano IV12. Como parte da aliança, Manuel Comneno, o filho mais velho de Ana Dalassena, também se casou com uma parente do imperador e recebeu um alto comando militar, mas faleceu pouco tempo depois13. A sorte dos Comnenos sofreu uma outra reviravolta com a derrota militar em Manzikert em 1071, frente aos turcos seljúcidas, e a guerra civil entre Romano IV e os Ducas que se seguiu. Romano IV foi derrotado, cegado e deposto14. Em seu lugar foi entronado Miguel VII Ducas (1071-1078), filho de Constantino X. Acusada de manter correspondência com Romano IV durante a guerra civil, Ana Dalassena foi exilada junto de sua família para Ilha de Prinkipos, no Bósforo, mas acabaram sendo chamados de volta à corte pelo imperador, em busca de uma reaproximação. De acordo com as práticas políticas da época, isso se deu através de alianças matrimoniais. O filho sobrevivente mais velho de Ana Dalassena, Isaac Comneno, casou-se com Irene, prima da imperatriz Maria da Alânia, e Aleixo, o segundo mais velho, casou-se com Irene Ducas, filha do kaisar João Ducas15.
Os Comnenos, então, se ligaram às duas ramificações da linhagem Ducas. A origem dessa divisão está no período conturbado da sucessão de Constantino X. Ao tomar o poder, este imperador nomeou seu irmão, João, kaisar, inicialmente um título imperial, mas que passou a ser cedido a herdeiros presumidos16. Essa concessão simbolizava o status elevado do irmão do imperador na corte e no governo. Com a morte de Constantino X, João Ducas tentou controlar a regência, mas acabou sendo marginalizado com a ascensão de Romano IV. João Ducas se converteu, desse modo, no líder da facção Ducas. O historiador Miguel Ataliates, que era um admirador de Romano IV e crítico dos Ducas, acusa esta família de constantemente conspirar contra o imperador, deixando implícito que a derrota de Manzikert em 1071 foi resultado da traição de Andrônico Ducas, filho do kaisar17. O Continuador Skylitzes dá mais detalhes sobre os membros deste grupo que, de acordo com ele, “preferiam ver o imperador morto”. Estes eram Nicéforo Paleólogo, Miguel Pselo e João Ducas18.
Ao se desfazerem de seu adversário, os Ducas entraram em divisões internas. Miguel VII Ducas era jovem e, de acordo com relatos contemporâneos a ele, incapaz19. Em função disso, João Ducas provavelmente acreditou que se tornaria a eminência parda por trás do trono de seu sobrinho, mas o imperador demonstrou preferência por outra pessoa: o eunuco Nicéforo, o logotheta do dromos20. O afastamento definitivo de João Ducas se deu em função de um episódio confuso no qual, - ao ser enviado para enfrentar o chefe normando rebelde Roussel de Bailleul, ser derrotado e tomado como prisioneiro por ele - , foi aclamado imperador pelas tropas fiéis a Roussel. No entanto, a rebelião foi rapidamente debelada por forças turcas enviadas pelo imperador, e João Ducas adotou o hábito monástico antes de retornar a Constantinopla, a fim de evitar uma punição mais severa.21 Esse episódio marcou o fim de qualquer tentativa de João Ducas de conquistar influência junto ao seu sobrinho. Quando Miguel VII, por sua vez, foi deposto por uma rebelião, João Ducas convenceu o usurpador, o octogenário Nicéforo III Botaniates (1078-1081), a se casar com a imperatriz Maria da Alânia22.
Os Ducas em busca de espaço no novo regime
Na iminência da tomada de poder pelos Comnenos em 1081, observamos que seus principais atores, embora ligados por parentesco e laços de casamento, tinham um histórico de desavenças, ressentimentos e antagonismos. Logo, não surpreende que desentendimentos surgiram desde o primeiro dia do novo regime23. Segundo Ana Comnena, houve uma separação física entre os Ducas e os Comnenos, pois, ao tomarem o poder, todos os Comnenos foram morar no “palácio alto”, enquanto a família de João Ducas, inclusive Irene, a esposa de Aleixo, foi morar no “palácio baixo”. Se isso não bastasse para alienar ambas as famílias, Ana Comnena informa que Maria da Alânia e seu filho Constantino Ducas foram morar junto dos Comnenos, dando início a um boato segundo o qual Aleixo planejaria divorciar-se de Irene para casar-se com a imperatriz Maria. Ana Comnena afirma que teria sido um boato mentiroso24. Ainda assim, muitos dentro do consórcio familiar que tomou o poder em abril de 1081 levaram essa possibilidade muito a sério. Uma delas foi Ana Dalassena, que provavelmente viu nesse plano uma possibilidade de se desvincular de João Ducas e sua família.
Os Ducas naturalmente se preocuparam e agiram em dois fronts. No primeiro, Jorge Paleólogo, um parente por casamento dos Ducas, tentou incitar os marinheiros da frota a aclamar Irene Ducas como imperatriz, mas os partidários dos Comnenos (hoi peri tous Komnenous) tentaram abafar as aclamações. Paleólogo, então, deixou claro que não foi pelos Comnenos que ele se ligou à rebelião, mas por Irene25. No segundo front, João Ducas abordou Cosma, o Patriarca de Constantinopla ‒ apontado ao cargo por Miguel VII, logo, conectado aos Ducas ‒ para convencê-lo a não dar ouvidos a Ana Dalassena. Ele também convenceu Maria da Alânia a abandonar o palácio em troca da coroação de seu filho e outros benefícios26. Ana Comnena não esclarece a que Cosmas não deveria dar ouvidos, mas, ao ficar sabendo que Aleixo queria substituí-lo por Eustrácio Garida, um monge do séquito de sua mãe, o patriarca deixou claro que não abdicaria antes de coroar Irene. Assim, fica evidente que João Ducas o abordou sobre seus temores de que sua neta seria substituída. Os movimentos dos Ducas colocaram os Comnenos em cheque, e, por fim, Irene foi coroada dias depois de Aleixo27.
Essas agitações evidenciam que ambas as famílias tinham concepções destoantes ou mesmo conflitantes sobre a distribuição de espaço e poder no regime recém-estabelecido. Representantes da família da imperatriz receberam posições, principalmente militares, nas províncias, mas na corte a situação era diferente. Os movimentos realizados pelo patriarca da família, o kaisar João Ducas, e o ultimato dado por Jorge Paleólogo ao observar que os partidários dos Comnenos não queriam aclamar sua cunhada eram prova de que esta família teria que ser assertiva na busca por espaço no novo governo. As primeiras decisões de Aleixo como imperador confirmaram essa percepção, uma vez que, ao partir para conduzir campanhas militares contra os normandos, ignorou os Ducas, deixando sua mãe e seu irmão, Isaac, como regentes em Constantinopla. Por ter adotado o hábito monástico, Dalassena não pôde portar nenhum título cortesão, mas sua posição como corregente é definida pelo fato de ser mãe do imperador28. Ela se representa como tal nos selos de chumbo por ela emitidos29. Ana Comnena transcreve na Alexíada um crisóbulo - um edito imperial - em que Aleixo dá poderes amplos e autônomos à mãe30. Já Isaac recebeu o grandioso título de sebastokrator criado por Aleixo especificamente para ele, sendo uma fusão de dois títulos até recentemente reservados ao imperador: autokrator e sebastos31.
Não é difícil imaginar como essas medidas podem ter irritado e preocupado os Ducas. A usurpação de 1081 foi, como apontado, uma iniciativa com a participação de diversos atores, e, se formos dar crédito ao relato de Ana Comnena, os Ducas tiveram um papel chave para o sucesso da empreitada. Dessa forma, todos os envolvidos imaginaram que ganhariam uma porção de poder correspondente ao seu papel. De fato, as primeiras determinações de Aleixo I deixaram claro a todos que ele estava disposto a partilhar poder. Essa era também uma decisão muito prática, pois o Império Bizantino enfrentava diversos desafios internos e externos e ceder poder autônomo a alguns de seus parentes revelou-se uma estratégia inteligente. Contudo, fica igualmente evidente que o imperador somente confiava num círculo muito restrito de familiares próximos para tal, o qual não incluía os Ducas.
A importância de Ana Dalassena como a principal figura feminina na corte, a quem um nível de poder autônomo foi cedido, acrescentava uma camada extra de preocupação devido à animosidade mútua entre ela e os Ducas. Ana Dalassena manteve essa posição até, pelo menos, 1094, quando ordenou o cegamento de um pretendente a porfirogênito que havia se ligado a um exército invasor cumano32. Segundo João Zonaras, Aleixo teria se cansado de ter que partilhar poder com a mãe, e ela, percebendo a impaciência do filho, se retirou ao Monastério de Pantepoptes, onde faleceu alguns anos depois33. A década de 1090 foi particularmente conturbada para Aleixo, uma vez que ele enfrentou uma série de conspirações de assassinato contra ele, que o levou a uma restruturação do seu círculo mais próximo de colaboradores34. A remoção de Ana Dalassena parece ter sido parte deste processo. A controvérsia relacionada a Leão, o Arcebispo de Calcedônia, pode ser compreendida dentro deste contexto. Esse episódio com anos de duração é bastante complexo envolvendo aspectos políticos, teológicos e eclesiásticos35. Aqui trataremos somente dos aspectos políticos, em especial no que tange o relacionamento entre Aleixo I e os Ducas.
Após tomar o poder em 1081, Aleixo I teve que lidar imediatamente com uma invasão normanda, ainda que sem recursos para recrutar um novo exército. A primeira iniciativa foi tentar arrecadar fundos entre seus parentes. Porém, quando isso não se mostrou suficiente, Ana Dalassena e Isaac Comneno, na época regentes em Constantinopla, sugeriram a apropriação de bens eclesiásticos de acordo com antigas leis canônicas da época de Heráclio I (610-641) que autorizavam tal iniciativa com o objetivo de resgatar cristãos que estavam em cativeiro. De acordo com a interpretação criativa dos Comnenos, os bizantinos sob jugo de invasores se enquadrariam nesta definição. Isaac, então, conclamou o synodos endemousa, a assembleia de oficiais do Patriarcado de Constantinopla e bispos presentes na capital, para ratificar a decisão. A maior parte da assembleia subalternamente aceitou a proposta, com a exceção de um pequeno número de clérigos liderado por Leão de Calcedônia. Essa resistência não foi somente apoiada por homens da igreja, mas também por leigos. Ana Comnena afirma que membros da burocracia instigavam Leão a resistir36. Há também sinais de proximidade entre o arcebispo de Calcedônia e os Ducas. Em uma carta de Teofilacto de Acrida, ele cumpre uma solicitação de Maria da Bulgária, a mãe da imperatriz, e pede ao diácono Nicetas, um sobrinho de Leão, que este intervenha junto a imperatriz em favor de Miguel Ducas, seu irmão, que havia desrespeitado um cânone37. Além disso, há um episódio curioso na Alexíada em que Jorge Paleólogo, ao retirar-se do campo de batalha durante a derrota em Dristra contra os petchenegos em 1087, encontra Leão de Calcedônia que lhe cede um cavalo para a fuga38. O episódio tem um tom hagiográfico, uma vez que naquele momento Leão estava exilado em Sozópole, logo teria sido uma visão. Ana Comnena afirma que essa visão era resultado da profunda devoção que Paleólogo tinha por Leão.
Ao analisar a controvérsia em torno de Leão de Calcedônia e o papel dos Ducas, Victoria Gerhold chega à conclusão de que seria uma manifestação de oposição a Aleixo, a qual também encontrou expressão nos conturbados primeiros dias de seu governo e nas tensões relacionadas com a sucessão deste imperador, que teria contraposto João Comneno a sua mãe e a sua irmã39. Contudo, faz mais sentido observar este episódio como uma forma encontrada pelos Ducas de demandar mais espaço no governo, atacando Ana Dalassena e Isaac, os quais ocupavam a posição de corregentes ambicionada pelos parentes da imperatriz. A primeira evidência disso é que o “Partido Calcedoniano” atacou uma política concebida por Isaac e Ana Dalassena; segundo, porque uma das exigências era a deposição do patriarca Eustrácio Garida e o retorno de Cosma40. Eustrácio, de acordo com a Alexíada, era um monge pouco sofisticado que ganhara a posição de liderança da Igreja Bizantina por gozar do favor de Dalassena, e Cosma foi seu antecessor apontado por Miguel VII que havia se comportado de forma tão leal aos seus benfeitores quando insistiu em coroar Irene antes de abdicar de seu posto41. No mais, ao associar a política de apropriação de bens a heresias como Iconoclasmo e Messalianismo, Leão de Calcedônia estava claramente tentando manchar a reputação daqueles que o sugeriram42.
Eustrácio acabou caindo em 1084, mas Cosma não foi trazido de volta. Em vez disso, Nicolau Gramático foi escolhido. Essa solução não satisfez Leão de Calcedônia que rechaçou o novo patriarca e se pôs em cisma com a Igreja, para, por fim, ser exilado em Sozópole em 108643. Ainda assim, o assunto não se resolveu: Leão ainda tinha muitos apoiadores, dentre os quais membros da família Ducas, e a cisão interna da Igreja permanecia. Isso era um problema sério para Aleixo, já que garantir a unidade dentro dela era uma das funções primárias de um imperador. A controvérsia foi somente resolvida em algum momento entre o fim de 1094 e início de 1095 durante o Sínodo de Blaquernes, quando membros da família imperial, outros membros da administração e da Igreja se reuniram para conciliar Leão de Calcedônia com o imperador44.
Irene Ducas e as questões sucessórias
Esse evento foi provavelmente também uma conciliação entre os Ducas e o imperador, que resultou no afastamento de Ana Dalassena e no reconhecimento da posição de Irene como a principal figura feminina na corte. Não é à toa que, a partir dessa data, ela começa a ter mais destaque no relato de sua filha. Irene passou a acompanhar Aleixo em campanhas militares, embora fosse incomum que imperatrizes bizantinas o fizessem e, por pelo menos uma ocasião, houve uma manifestação clara contra sua presença45.
Quando uma conspiração de assassinato foi descoberta no final da década de 1090, Aleixo decidiu poupar seus líderes, os irmãos Anemas, de serem cegados após a imperatriz e sua filha mais velha, Ana Comnena, intervirem pedindo misericórdia46. Mesmo que o episódio tenha sido uma encenação, é relevante que tanto Irene Ducas quanto Ana Comnena tenham participado dela, pois demonstra reconhecimento público de sua relevância e influência, semelhante ao mini panegírico imperial a Ana Dalassena incluído no encômio a Aleixo, composto por Teofilacto de Acrida47.
Zonaras também afirma que o papel de Irene Ducas cresceu no final do reinado de Aleixo. Segundo o autor, Aleixo não dava muita atenção à sua esposa no início do casamento, dedicando-se a casos extraconjugais, mas, com o tempo, a união entre os dois se fortaleceu e Irene findou por ganhar um espaço significativo no governo48. Zonaras assevera que a imperatriz favorecia Nicéforo Briênio, o marido de Ana Comnena, que já exercia um papel de regente no final do reinado de Aleixo, assim como tentava marginalizar João Comneno. Contudo, João garantiu o trono através de juramentos e assegurando o controle do palácio imperial enquanto seu pai estava no leito de morte49. Nicetas Coniates reporta os mesmos eventos que Zonaras, complementando com uma narrativa sobre uma conspiração de assassinato contra João II quando já era imperador em favor de Nicéforo Briênio e Ana Comnena, que não foi bem-sucedida devido à hesitação do primeiro50.
Leonora Neville interpreta esse relato como uma crítica de ambos os autores aos imperadores da Dinastia Comneno51. Ambos desaprovavam o regime por razões distintas e, assim, teriam caracterizado os protagonistas de forma negativa através da reversão de papéis de gênero. Aleixo, cuja masculinidade já havia sido comprometida pela deferência exagerada a sua mãe, teria sua hombridade ainda mais diminuída aos olhos do potencial leitor ao não ser capaz de controlar sua esposa, forçando-a a aceitar sua decisão de nomear João Comneno como seu sucessor. Já a conspiração em favor de Ana Comnena contra seu irmão seria também outro exemplo de uma reversão de papéis de gênero, pois, segundo Coniates, a conjuração não foi bem-sucedida porque Nicéforo Briênio teria hesitado num momento crucial. Mais à frente, Coniates afirma que Ana teria se lamentado que era ela que havia nascido com genitália feminina e seu marido com a masculina, e não o oposto52.
Neville não chega a questionar abertamente a historicidade do evento, mas ao apresentar, baseada no panegírico a Ana Comnena por Jorge Torniques, a relação dos irmãos como harmoniosa e Ana Comnena como desinteressada em política e completamente dedicada à família, ao seu trabalho intelectual e ao patrocínio literário, deixa claro a sua opinião quanto ao assunto53. Embora não discorde da interpretação dada por Neville de que as disputas internas da família imperial pela sucessão tenham sido negativamente caracterizadas por ambos os autores, Zonaras e Coniates, com objetivo de difamar os Comnenos, aqui concordo com Alicia Simpson, ela própria autora de diversos estudos sobre Coniates e sua obra, quando afirma que “Coniates não concebia eventos ficcionais em sua História; ele embelezava eventos muito reais”54.
Há diversos aspectos, dentro e fora da Alexíada, que evidenciam tanto uma relação problemática entre os irmãos, quanto a proximidade entre Ana Comnena e Irene Ducas. A Alexíada não é uma obra dedicada à crítica, mas à construção da imagem de Aleixo como imperador e à ênfase no relacionamento de Ana Comnena com seus pais, principalmente sua mãe. Ainda assim, percebe-se que a forma como Ana Comnena trata os sucessores diretos de seu pai ‒ seu irmão e seu sobrinho ‒ é longe de ser elogiosa. O nascimento de João é relatado com muito menos fanfarra e celebração do que o nascimento da própria autora55. Em certo ponto, ela critica a estupidez dos sucessores diretos de Aleixo - João II e Manuel I - por desfazer a política externa de seu pai56. Neville diz que essa é uma crítica política pontual que não diz muito sobre a relação entre os irmãos57. Se fosse somente isso, com certeza ela poderia ter encontrado formulações mais amenas, ou mesmo subliminares, para expressar este desacordo. A ênfase na estupidez dos sucessores (ἀβελτηρία τῶν διαδεξαμένων τὰ σκῆπτρα) manifesta uma desaprovação mais ampla e profunda. Em outra passagem, Ana Comnena expressa seu amplo desprezo (legitimado pelo de seu pai) pela astrologia, que estava bastante em voga no reinado de Manuel I e possivelmente já no de João II58. Ana Comnena lamenta por não ter acesso a muitos dos amigos de seu pai ainda vivos devido “à mudança da fortuna” e à ridícula posição na qual ela não era mais visível59. Neville afirma que a passagem é confusa e ambígua, interpretando-a como uma tentativa da autora de gerar pena e se afastar do reinado de seu pai ao afirmar que suas fontes eram soldados simples e não pessoas ligadas ao seu governo60. Contudo, se essa fosse a intenção, Ana Comnena poderia ter encontrado outras formas de apresentar a si e as suas fontes sem a evidente conotação política de sua afirmação. Neville está certa quando afirma que Ana Comnena não foi condenada ao encarceramento pelo resto de sua vida, mas essa passagem indica que suas ambições políticas possivelmente a tornaram uma persona non grata na corte de seu irmão e sobrinho. Por fim, em sua narração sobre a morte de Aleixo, infelizmente comprometida por diversas lacunas no texto, Ana Comnena confirma tanto Zonaras quanto Coniates afirmando que João II havia partido para o Grande Palácio, ou seja, abandonado seu pai e sua família nesse momento de profunda tristeza. Enquanto isso, sua mãe, irmãs e o resto família teriam cuidado do imperador moribundo e, após sua morte, manifestado o luto apropriado61.
A oração fúnebre a Ana Comnena por Jorge Torniques, composta pouco depois de sua morte em 1153, repete alguns temas da Alexíada62. Esta obra tem dois objetivos: primeiro, elogiar e justificar Ana Comnena como intelectual, não somente apreciadora das letras clássicas e patrona de intelectuais, mas também como autora; segundo, apresentá-la como boa filha e boa esposa. Segundo Neville, a caracterização de Ana Comnena por Torniques seria um contraponto à narrativa de Coniates, pois ele enfatiza em diversos pontos que ela não teria tido ambições políticas, mas havia dedicado sua vida integralmente à família e às letras63.
Curiosamente, Neville não aplica a Torniques o mesmo aparato crítico dirigido a Zonaras e Coniates. O elogio fúnebre de Ana Comnena é uma obra de natureza retórica, de modo que seu objetivo é retratar o objeto do elogio da forma mais positiva possível. Aspectos negativos de sua vida devem ser ignorados ou, se não for possível, justificados64. A própria Neville percebe que a ênfase dada por Torniques à humildade de Ana Comnena parece forçada, como uma tentativa de contrabalançar seus feitos intelectuais, que não seriam adequados para uma mulher na sociedade bizantina65. Uma reflexão semelhante não é feita para as afirmações por Torniques de que Ana Comnena não teria tido aspirações imperiais. Ele afirma que a morte de Constantino Ducas, o primeiro noivo de Ana Comnena, teria sido obra da Providência Divina, pois ela não nutria ambições políticas. Portanto, o casamento com Nicéforo Briênio teria permitido que ela se dedicasse às letras, a sua real vocação66. Essa afirmação contradiz a própria Ana Comnena que, na Alexíada, narra com orgulho a sua ligação com o jovem imperador e o fato de ambos terem sido aclamados juntos67. Mais importante, contudo, é que, ao narrar o leito de morte de Aleixo, Torniques rejeita rumores de que ela seria rival de seu irmão68. Essa inclusão, que está solta no texto e poderia perfeitamente ser tirada sem que isso comprometesse o argumento apresentado, é evidentemente apologética, demonstrando que tal rivalidade ou o boato sobre uma relação disfuncional entre os irmãos já circulava por volta de 1150, ou seja, quase cinquenta anos antes da composição da história de Coniates e era suficientemente conhecido para que o retórico sentisse a necessidade de rechaçá-lo em seu elogio. É importante recordar que essas obras eram escritas primariamente para um público contemporâneo e muito restrito, a elite letrada envolvida com o governo do império. Um círculo de pessoas muito pequeno, composta por não mais de algumas dezenas de pessoas, que se conhecia e estava familiarizado com os eventos relatados, tendo mesmo os testemunhado. Portanto, panegíricos e histórias primariamente ofereciam uma versão para fatos já conhecidos69. Isso dificulta muito a hipótese de que as disputas interfamiliares dos Comnenos tenham sido invenções completas dos historiadores, pois uma invenção seria imediatamente percebida e teria comprometido sua credibilidade70.
Também dispomos de uma fonte independente e externa à Bizâncio do final do século XII, que corrobora o relato de Zonaras e Coniates: Miguel, o Sírio. Em sua entrada sobre o início do reinado de João II, o cronista afirma que o novo imperador sofreu um complô organizado por seu irmão, irmã e mãe. Provavelmente, ele se enganou, confundindo o cunhado do imperador, Nicéforo Briênio, com um de seus irmãos, uma vez que não temos outra evidência de que João II teve qualquer problema com algum irmão no início de seu reinado71. Considerando a sua distância física e cultural de Constantinopla e o fato de que Miguel, o Sírio, muito provavelmente não lia grego, é improvável que tenha sido influenciado por Zonaras ou tido acesso a uma redação anterior da obra de Coniates72. Seu conhecimento sobre os distúrbios conectados à sucessão de Aleixo são certamente ecos distantes de histórias que já há muito circulavam na capital bizantina.
Ana Comnena provavelmente não odiava seu irmão, logo Neville está correta em tirar esse suposto sentimento do foco da sua interpretação da Alexíada. Porém, a ausência de rancores pessoais não exclui a existência de ambições políticas em conflito. Todas as fontes do período parecem confirmar isso e, ademais, que havia uma proximidade muito grande entre Ana Comnena, Nicéforo Briênio e Irene Ducas, assim como com o resto da família Ducas. Em função disso, Michael Angold sugere que Ana e Nicéforo fossem representantes dos interesses desta linhagem73. Neville discorda dizendo não haver razões para afirmar que Ana Comnena seria mais representante dos Ducas do que João II74. Contudo, ao analisarmos as obras e feitos dos três indivíduos acima mencionados - Ana, Nicéforo e Irene - veremos que todos se conectavam e compartilhavam discursos semelhantes, os quais enfatizavam o papel da família Ducas no governo do império.
O Monastério da Virgem Cheia-de-Graça (Kecharitomene)
Quando Aleixo I ainda estava vivo, Irene fundou dois monastérios para monges, o de Cristo Filantropo, onde Aleixo foi enterrado, e o da Virgem Cheia-de-Graça (Kecharitomene) para freiras75. Seguindo as tendências de patrocínio monástico de sua época, Irene determinou que o Monastério de Kecharitomene, o único dos dois cujo documento de fundação (typikon) sobrevive, seria independente e livre de influências de qualquer autoridade, da própria Irene, do imperador, do patriarca ou de pessoas privadas76. Ainda assim, ela conecta a instituição a sua família ao determinar uma protetora (ephoros, antilambanomene) cuja função era defender os interesses do convento e garantir que as regras estabelecidas pela fundadora fossem seguidas77. Além das obrigações, a protetora do monastério teria direito de habitar apartamentos imperiais construídos de forma anexa à instituição e não seria obrigada a viver de acordo com o regime monástico. A primeira protetora apontada por Irene foi sua filha Eudócia Comnena. Quando esta faleceu prematuramente, Irene aponta Ana Comnena como a protetora da instituição78. Eudócia provavelmente foi escolhida por ser a filha desamparada. Ela havia se casado com o filho de Constantino Iasites, mas a união foi rompida, e Eudócia havia se tornado freira79. Com sua morte, Irene passou os direitos e deveres de protetora a Ana, provavelmente a filha com que teria maior conexão e identificação80, estabelecendo que sua neta e filha de Ana, chamada de Irene Ducas como a avó, seria a herdeira do cargo de protetora. Após sua morte, os apartamentos deveriam ser transmitidos para sua descendência feminina, sendo aberto aos descendentes masculinos caso a feminina se extinguisse81. Vemos aqui Irene querendo assegurar que Ana Comnena e sua descendência possam gozar de conforto e uma alta posição social - protetores de um monastério imperial em Constantinopla - após a sua morte.
Esse gesto deixa clara a decisão da imperatriz de que Ana Comnena seria a herdeira de seu legado, que era da família Ducas82. Isso fica ainda mais evidente ao observar a lista de pessoas cuja memória deveria ser eternamente celebrada no monastério. Monastérios não eram somente monumentos ao prestígio social e riqueza de seus fundadores. Eram também manifestações de piedade individual e temores ligados à salvação da própria alma83. Assim, além de alguns trabalhos caritativos, os monges ou freiras deveriam rezar pela alma do fundador e de sua família para toda a eternidade. Dessa forma, os fundadores concediam parte significativa de seu patrimônio para assegurar o sustento material desses monastérios. A lista de comemorações do monastério da imperatriz diz muito sobre quem ela considerava sua família. Os primeiros na lista são Aleixo I e Irene, depois seu filho João II e sua nora, a também imperatriz Irene, em seguida e em ordem, filhos e genros, filhas e noras, seus pais e os pais de Aleixo e, por fim, os irmãos de Irene84. Ao observarmos a hierarquia e as presenças, assim como as ausências, percebe-se que, na concepção da fundadora, sua família era composta somente de seus filhos, filhas, genros e noras, seus pais e seus irmãos. Dos familiares de Aleixo somente seus pais são mencionados, seus irmãos e irmãs, cunhados e noras, tirando os Ducas, foram excluídos; Ana Dalassena não é citada pelo nome mas somente como “minha sogra”, dando a impressão que Irene parece ter quisto excluí-la da lista, mas não pôde.
Defendendo o legado dos Ducas
Com a morte de Aleixo I e o início do reinado de seu filho, João II, em 1118, entramos num período com menos informações sobre os eventos políticos internos em Bizâncio. Se, por um lado, a política externa deste imperador pode ser analisada através das fontes não bizantinas e a vigorosa produção literária composta durante o seu reinado nos permita estudar os gostos e tendências estéticas na corte imperial, João II não teve sua Ana Comnena, ou seja, um relato histórico focado em seu governo que nos permita analisar outras fontes, algumas delas sem datação definida, dentro de um quadro cronológico claro. Os relatos de João Cínamo e Coniates começam com o reinado de João II, mas o tratando como um prelúdio de reinados posteriores aos quais é dada maior ênfase85. Apesar dessa escassez, foi durante o governo de João II que obras exprimindo o ponto de vista dos Ducas foram compostas. Elas nos permitem esclarecer as ações tomadas e estratégias adotadas no período em que foram escritas e em épocas anteriores, apresentando-nos como esta família imaginava qual deveria ter sido seu papel no governo de Aleixo.
O século XI foi um período de inovações literárias em Bizâncio. Até esse ponto, a historiografia bizantina era composta por monges ou por membros da administração imperial86. Contudo, neste século observamos o surgimento de narrativas aristocráticas, isto é, relatos de eventos políticos compostos por representantes das famílias que aos poucos estavam monopolizando as principais posições de poder no Império. Esse gênero atingiu o seu ápice no século XII, pois, entre os principais historiadores do período, estão uma filha e o cunhado do imperador. Contudo, houve relatos anteriores a esses, mas, com a exceção do chamado Strategikon de Cecaumeno, não sobreviveram em sua maioria. Alguns, porém, foram incorporados a outras obras historiográficas87. Leonora Neville sugere que há um relato desse tipo de autoria de João Ducas, o kaisar e avô de Irene, que Nicéforo Briênio incorporou ao seu Material de História, obra resultante de uma encomenda da própria Irene, a qual, após a morte de Aleixo, pediu ao genro que compusesse uma história do reinado de seu marido. Neville afirma que as passagens nas quais João Ducas aparece são blocos autônomos que oferecem muitos detalhes sobre suas ações, muitos dos quais não são de grande relevância no quadro geral da obra de Briênio. Além do mais, tais trechos possuem características estilísticas, como uma nomenclatura mais arcaizante, que os distinguem do resto do texto. Esses elementos convencem a autora de que estas passagens não foram compostas originalmente por Briênio baseado em relatos orais, mas foram apropriações de um texto mais antigo de autoria de João Ducas ou encomendado por ele88.
Curiosamente, em seu estudo sobre a Alexíada, obra composta por Ana Comnena a partir do trabalho encomendado por Irene Ducas a seu marido, mas nunca terminado, Neville não questiona se o relato apologético sobre João Ducas não pode ter ido além do ponto onde Briênio termina ‒ um pouco antes da rebelião que leva os Comnenos ao poder em 1081 ‒ e continuado até depois da coroação de Aleixo, servindo, assim, também de fonte para Ana Comnena89. Larissa Vilimonović, porém, lança essa possibilidade em seu estudo sobre a Alexíada, que em muitos pontos discorda das conclusões de Neville sobre a mesma obra90.
De fato, os Comnenos não causam boa impressão no relato da Alexíada sobre a rebelião de 1081 e os eventos que se seguiram. O mencionado rumor de que Aleixo planejava divorciar-se de Irene Ducas para casar-se com Maria da Alânia logo após tomar o poder, com amplo suporte dos parentes da primeira, cria a óbvia impressão de que Aleixo e sua família seriam ingratos. Essa impressão fica ainda mais forte quando observa-se que João Ducas e sua família não somente apoiaram Aleixo, mas foram o fator decisivo para o sucesso de sua rebelião e para sua aclamação em vez de seu irmão Isaac: Jorge Paleólogo cede parte de sua fortuna para financiar a insurreição91; João Ducas se apropria dos recursos recolhidos por um coletor de impostos92 e recruta tropas turcas que encontrou;93 e, durante o cerco, é ele que sugere subornar a unidade de mercenários germânicos que guardavam um setor da muralha94. Quando as tropas rebeldes haviam entrado na cidade, os Comnenos aparecem como indecisos e tomando decisões equivocadas, como querendo visitar sua mãe e iniciando negociações com o imperador Nicéforo III. É pela ação decisiva de João Ducas que os Comnenos tomam as decisões corretas e, por fim, conseguem depor o imperador95. A imagem transmitida é bastante clara: os Comnenos seriam iniciantes na política, por isso os Ducas, uma família com larga tradição política, tendo coroado dois imperadores, deveriam governar conjuntamente.
O fato de que tanto Nicéforo Briênio quanto Ana Comnena incorporaram essa versão, ou mesmo o relato propriamente dito, favorável aos Ducas em suas obras, sinaliza que eles estavam ao menos parcialmente de acordo com essa opinião96. Essa era provavelmente a visão da imperatriz Irene Ducas, que originalmente incumbiu a história do reinado de Aleixo a Nicéforo Briênio. Apesar das motivações das obras expressas em seu prefácio sigam o lugar-comum historiográfico de não deixar que eventos relevantes e edificadores não caiam no esquecimento, a intenção de todos os envolvidos nesse projeto de longo prazo que tomou provavelmente mais de uma década para ser terminado foi além da preservação da memória familiar dos Ducas dentro da perspectiva mais ampla da história política recente do império97. Eles queriam sublinhar a importância que essa família teve para o sucesso da rebelião que levou os Comnenos ao poder em 1081, para escolha de Aleixo como imperador e para a estabilização do regime nos complicados primeiros anos de governo.
Conclusão
A linhagem Ducas foi uma dinastia imperial, a primeira a produzir um porfirogênito depois de décadas. Contudo, pela situação política interna e externa da época, acabaram sendo removidos do poder por Nicéforo III em 1078. Sem conseguir produzir um candidato forte para retomar o poder, João Ducas, o líder da família, se associou com Aleixo Comneno, na época um jovem comandante militar com grande potencial e já vitorioso no campo de batalha. O peso do apoio dos Ducas em sua ascensão ao trono é difícil de medir com exatidão, pois a principal fonte para o evento, a Alexíada, adota conscientemente um discurso cujo objetivo é destacar o papel dessa família no desenrolar dos eventos. Ainda assim, é possível assumir que os Ducas tiveram grande importância e que o novo imperador teria tido uma dívida para com eles. A expectativa era que Aleixo partilhasse poder com os familiares da sua esposa, mas ele preferiu fazê-lo com sua mãe e seu irmão. Os Ducas ficaram insatisfeitos. Contudo, não se viraram contra o imperador que ajudaram a entronar, provavelmente porque perceberam que tinham mais a perder com isso do que ganhar. Focaram os seus esforços em atacar indiretamente o irmão e a mãe de Aleixo, apoiando a resistência de Leão, o arcebispo de Calcedônia, contra as apropriações de bens eclesiásticos, política concebida por Isaac Comneno e Ana Dalassena, criando um cisma na Igreja e associando ambos a doutrinas heréticas. Embora um acordo tenha sido arranjado e o cisma entre Leão de Calcedônia e o imperador resolvido em 1095, os Ducas não conseguiram a partilha de poder que esperavam ter recebido em 1081. Contudo, as aspirações imperiais dos Ducas sobreviveram com Nicéforo Briênio e Ana Comnena. Não está claro em que medida ambos tentaram concretizar suas reivindicações. Provavelmente tentaram tomar o poder, visto por eles como parte do legado dos Ducas. Há sinais claros de que Irene Ducas tinha uma ideia clara do papel de sua família no governo do império e de que Nicéforo e Ana eram seus representantes. João II Comneno saiu, contudo, vencedor da disputa, e sua mãe, irmã e genro acabaram por aceitar o status quo, focando seus esforços em empreitadas literárias cujo objetivo era eternizar as memórias familiares e um projeto de poder abortado.
Referências bibliográficas
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