Esta recensão, inspirada pela homofonia com uma das canções mais icónicas da banda britânica “The Moody Blues” (1967)1, tem por objecto uma obra de Ethan Hawke, Rules for a Knight. The Last Letter of Sir Thomas Lemuel Hawke, originalmente publicada em 20152.
Nascido em 1970, Ethan Hawke é, além de autor, um conhecido actor, director e produtor norte-americano, tendo merecido quatro nomeações para os Óscares da Academia de Hollywood, entre outras distinções, e figurando em dezenas de filmes e séries televisivas desde a década de 1980, incluindo o emblemático Dead Poets Society (1989). Hawke foi também o primeiro marido (1998-2005) da actriz Uma Thurman (n.1970) e, curiosamente, a obra em apreço é ilustrada pela sua segunda mulher, Ryan, numa materialização, por assim dizer, da própria complementaridade ‘conjugal’ entre a palavra e a imagem, tão profundamente característica da cultura, civilização e literacia medievais.
Antecedendo a apresentação de Rules for a Knight, cremos ser relevante reflectir, ainda que rapidamente, sobre o(s) sentido(s) do termo “medievalismo”, desde logo pela natureza e pelo âmbito da presente publicação. Um desses sentidos - porventura mesmo o principal - passa pela investigação e reflexão críticas e especializadas sobre o longo período medieval no quadro das diferentes ciências sociais e humanas (históricas, arqueológicas, literárias, linguísticas, artísticas, filosóficas, antropológicas...) e dos seus respectivos métodos, abordagens e objectivos. Contudo, há também que reconhecer que, na esteira da ‘demanda’ romântica pelas origens ou raízes identitário-culturais das nações e dos povos, uma Idade Média não raro retrospectivamente idealizada e objecto de revivalismos e nostalgias surge, a partir sobretudo do século XIX, como um referente e um ponto de ancoragem estéticos, simbólicos e ideológicos, podendo mesmo perfilar-se como uma norma ou forma de vida e assumir iniludíveis dimensões e contornos éticos, morais e comportamentais.
No caso britânico - aquele que nos interessa particularmente -, mercê da acção e dos escritos, entre outros, de Thomas Carlyle (1795-1881), A. W N. Pugin (1812-1852), John Ruskin (1819-1900) e William Morris (1834-1896), as conceptualizações e representações oitocentistas do período medieval surgem frequentemente como um contraponto positivo de realidades sociais e laborais decorrentes da industrialização; das migrações internas do(s) campo(s) para a(s) cidade(s), dando origem às primeiras grandes metrópoles da era moderna e a problemas urbanísticos e ambientais que continuam connosco; da consequente massificação, despersonalização e alienação das populações citadinas; do crescimento do agnosticismo, do ateísmo, do materialismo, do utilitarismo e do individualismo; da evolução arquitectónica e artística; do capitalismo e da mecanização da produção comercial, etc.
Finalmente, no campo ficcional, artístico e lúdico da(s) cultura(s) popular(es) de massas e independentemente de meios e plataformas, personagens, acontecimentos e ambiências, mais ou menos mi(s)tificados, de cariz ou aparência ‘medieval’ têm servido de ponte e pretexto para cruzamentos e sincretismos de (sub)géneros como o terror, o gótico, o fantástico, o maravilhoso, a ficção científica, etc3. Por sua vez, as delicadas (porqu)e complexas relações epistemológicas entre os estudos medievais e os estudos medievalistas são abordadas, entre outros, por David Matthews e Louise D’Arcens nas respectivas introduções4.
A exploração alargada de todos estes pontos não é, evidentemente, compaginável com uma simples recensão, razão pela qual começaremos por sublinhar apenas o jogo de máscaras e papéis entre autor e editor, patente na invenção de uma (pseudo) fonte histórica. Assim, na nota editorial (e não autoral) de abertura, assinada pelo próprio Ethan Hawke, pode ler-se:
“This letter was discovered in the early 1970s in the basement of our family farm […], following my great-grandmother’s funeral. How it came to be there and its authenticity have been sources of much inconclusive debate. Our family does, however, lay claim to a direct lineage to the noble Hawkes of Cornwall, and Sir Thomas Lemuel Hawke was […] killed at the Battle of Slaughter Bridge in the winter of 1483. […] The Hawkes were originally Hawkers and worked with hawks, falcons, and other birds. We are a family with a long history of ornithology”5.
Além da relação homofónica entre Hawke e hawk, remissível de imediato para a arte da falcoaria medieval, a referência a uma batalha - imaginária - de 1483, bem como ao Conde de Warwick6, evoca o contexto da chamada “Guerra das Rosas” (1455-1485, na datação convencional), não excluindo figuras e factos históricos quatrocentistas anteriores, como Henry V (1413-1422) e Agincourt (1415)7, para além da referência genérica a “[…] the tremendous amount of political upheaval in England […]”8.
O tempo diegético é a véspera da própria batalha e o pressentimento - ou a iminência - da morte justifica que Sir Thomas, o narrador, se dirija epistolarmente aos seus quatro filhos (Mary-Rose, Lemuel, Cvenild e Idamay, todos eles de tenra idade), procurando transmitir-lhes, em guisa de testamento e despedida, as lições e os ensinamentos recebidos, enquanto jovem escudeiro e já após armado cavaleiro, do seu próprio avô9. Neste contexto, não resistimos a evocar a abertura, ortograficamente adaptada para o efeito, da canção dos “The Moody Blues”:
“[K]nights in white satin,
never reaching the end.
Letters I’ve written,
never meaning to send.
(…)
Cause I love you,
Yes, I love you
Oh, how I love you oh”10
Em entrevista concedida a Eric Lach, jornalista de The New Yorker, Ethan Hawke revela: “’I’ve just always loved the idea of knighthood.’ […] It makes being a good person cool. Or, aspiring to be a good person cool’”11. O mesmo Lach descreve a obra, imediatamente a seguir, como “[…] a hybrid parenting guide and self-help book, on horseback.” No final, distribuídos por diferentes esferas de actividade, da religião à política, da música à literatura e ao desporto, são mencionadas algumas dezenas de ‘cavaleiros’, muitos dos quais personalidades contemporâneas12, pois, como se lê no introito ao penúltimo capítulo (“Love”), “The magnificent knights and ladies of this world have been great leaders and warriors, but also healers. They fight with love, lead with love, and heal with love”13.
Do ponto de vista de uma tipologia ou gen(ea)ologia textual, Rules for a Knight cruza convenções e registos discursivos da parábola, da alegoria e do exemplo (exemplum), sendo cada uma das vinte regras que compõem a (e correspondem à) estrutura capitular da obra14 apresentada de forma aforística, associada a uma ave e desenvolvida através da evocação de episódios e/ou de diálogos entre o narrador, enquanto jovem, e o seu sábio avô. Em nossa opinião, a norma mais significativa será talvez a segunda - “Never announce that you are a knight; simply behave as one.”15 -, mas, mais extensas ou mais breves, todas elas consubstanciam, com sabedoria, profundidade e beleza16, uma tradição gnómica bem patente na literatura inglesa desde o período anglo-saxónico.
Rules for a Knight justifica e mereceria uma articulação específica não só com os tratados e manuais de conduta medievais17 e renascentistas18, mas também com obras como The Broad Stone of Honour19, de Kenelm Henry Digby (1797 ou 1800, consoante as fontes-1880), entre outras mencionadas por Mark Girouard20. Transcrevemos, a este propósito, palavras de Digby citadas no capítulo que Girouard lhe dedica:
“Chivalry is only a name for that general spirit or state of mind which disposes men to heroic and generous actions, and keeps them conversant with all that is beautiful and sublime in the intelectual and moral world. […] this spirit more generally prevails in youth than in the later periods of men’s lives; and, as the heroic is always the earliest age in the history of nations, so youth, the first period of human life, may be considered as the heroic or chivalrous age of each separate man”21.
Esta ênfase na juventude marca igualmente as palavras do autor trecentista Geoffroi de Charny:
“[…] there are some whom everyone should consider to be wise. It is those who, from their youth, strive diligently to learn what is best to do, to distinguish good from evil, and to know what is reasonable to do; and because they recognize what course of action would be against reason, they endeavor to behave loyally, confidently, and according to what is right”22.
A dimensão e a intemporalidade - ou mesmo transtemporalidade - do ideal da cavalaria, das mensagens e dos códigos adjacentes e, em suma, da formação ético-moral do cavaleiro, incluindo as sobrevivências, os investimentos e as codificações caval(h)eirescas do século XIX23 e contemporâneas24, são temáticas vastíssimas (e, nessa medida, inspiradoras de bibliografias praticamente inesgotáveis)25, pelo que concluiremos, fazendo nossas as palavras finais do narrador:
“I love all of you and know you older children wish you could ride with me today, but I am grateful […] that you are all safe at home. If we do not meet again in this life, know that, as each new year passes, I will be in the autumn wind that rustles the leaves at your feet, the winter snowflakes that freeze your cheeks, the rains of spring that drench your hair, and the hot summer sun that burns your arms. I will be with you always”26.
Referências bibliográficas
Fontes
Fontes impressas
HAWKE, Ethan - Rules for a Knight. The Last Letter of Sir Thomas Lemuel Hawke. S.l.: Penguin Books, 2022 (Alfred P. Knopf, 2015).
Documentos áudio e video
THE MOODY BLUES - “Nights in White Satin”. YouTube. TheMoodyBluesVEVO. 14 de Junho de 2018. [Consultado a 5 Fevereiro 2024]. Disponível em https://www.bing.com/videos/riverview/relatedvideo?&q=the+moody+blues+nights+in+white+satin&&mid=C65957314F50952E1901C65957314F50952E1901&&FORM=VRDGAR (4:29).