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Medievalista

versão On-line ISSN 1646-740X

Medievalista  no.36 Lisboa dez. 2024  Epub 30-Set-2024

https://doi.org/10.4000/medievalista.8412 

Recensões

Recensão / Review: Rules for a Knight. The Last Letter of Sir Thomas Lemuel Hawke

1 Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies, 1069-061 Lisboa, Portugal; miguel.alarcao@fcsh.unl.pt

Hawke, Ethan. -, Rules for a Knight. The Last Letter of Sir Thomas Lemuel Hawke. ., London: :, Penguin Books, ,, 2015.


Esta recensão, inspirada pela homofonia com uma das canções mais icónicas da banda britânica “The Moody Blues” (1967)1, tem por objecto uma obra de Ethan Hawke, Rules for a Knight. The Last Letter of Sir Thomas Lemuel Hawke, originalmente publicada em 20152.

Nascido em 1970, Ethan Hawke é, além de autor, um conhecido actor, director e produtor norte-americano, tendo merecido quatro nomeações para os Óscares da Academia de Hollywood, entre outras distinções, e figurando em dezenas de filmes e séries televisivas desde a década de 1980, incluindo o emblemático Dead Poets Society (1989). Hawke foi também o primeiro marido (1998-2005) da actriz Uma Thurman (n.1970) e, curiosamente, a obra em apreço é ilustrada pela sua segunda mulher, Ryan, numa materialização, por assim dizer, da própria complementaridade ‘conjugal’ entre a palavra e a imagem, tão profundamente característica da cultura, civilização e literacia medievais.

Antecedendo a apresentação de Rules for a Knight, cremos ser relevante reflectir, ainda que rapidamente, sobre o(s) sentido(s) do termo “medievalismo”, desde logo pela natureza e pelo âmbito da presente publicação. Um desses sentidos - porventura mesmo o principal - passa pela investigação e reflexão críticas e especializadas sobre o longo período medieval no quadro das diferentes ciências sociais e humanas (históricas, arqueológicas, literárias, linguísticas, artísticas, filosóficas, antropológicas...) e dos seus respectivos métodos, abordagens e objectivos. Contudo, há também que reconhecer que, na esteira da ‘demanda’ romântica pelas origens ou raízes identitário-culturais das nações e dos povos, uma Idade Média não raro retrospectivamente idealizada e objecto de revivalismos e nostalgias surge, a partir sobretudo do século XIX, como um referente e um ponto de ancoragem estéticos, simbólicos e ideológicos, podendo mesmo perfilar-se como uma norma ou forma de vida e assumir iniludíveis dimensões e contornos éticos, morais e comportamentais.

No caso britânico - aquele que nos interessa particularmente -, mercê da acção e dos escritos, entre outros, de Thomas Carlyle (1795-1881), A. W N. Pugin (1812-1852), John Ruskin (1819-1900) e William Morris (1834-1896), as conceptualizações e representações oitocentistas do período medieval surgem frequentemente como um contraponto positivo de realidades sociais e laborais decorrentes da industrialização; das migrações internas do(s) campo(s) para a(s) cidade(s), dando origem às primeiras grandes metrópoles da era moderna e a problemas urbanísticos e ambientais que continuam connosco; da consequente massificação, despersonalização e alienação das populações citadinas; do crescimento do agnosticismo, do ateísmo, do materialismo, do utilitarismo e do individualismo; da evolução arquitectónica e artística; do capitalismo e da mecanização da produção comercial, etc.

Finalmente, no campo ficcional, artístico e lúdico da(s) cultura(s) popular(es) de massas e independentemente de meios e plataformas, personagens, acontecimentos e ambiências, mais ou menos mi(s)tificados, de cariz ou aparência ‘medieval’ têm servido de ponte e pretexto para cruzamentos e sincretismos de (sub)géneros como o terror, o gótico, o fantástico, o maravilhoso, a ficção científica, etc3. Por sua vez, as delicadas (porqu)e complexas relações epistemológicas entre os estudos medievais e os estudos medievalistas são abordadas, entre outros, por David Matthews e Louise D’Arcens nas respectivas introduções4.

A exploração alargada de todos estes pontos não é, evidentemente, compaginável com uma simples recensão, razão pela qual começaremos por sublinhar apenas o jogo de máscaras e papéis entre autor e editor, patente na invenção de uma (pseudo) fonte histórica. Assim, na nota editorial (e não autoral) de abertura, assinada pelo próprio Ethan Hawke, pode ler-se:

“This letter was discovered in the early 1970s in the basement of our family farm […], following my great-grandmother’s funeral. How it came to be there and its authenticity have been sources of much inconclusive debate. Our family does, however, lay claim to a direct lineage to the noble Hawkes of Cornwall, and Sir Thomas Lemuel Hawke was […] killed at the Battle of Slaughter Bridge in the winter of 1483. […] The Hawkes were originally Hawkers and worked with hawks, falcons, and other birds. We are a family with a long history of ornithology”5.

Além da relação homofónica entre Hawke e hawk, remissível de imediato para a arte da falcoaria medieval, a referência a uma batalha - imaginária - de 1483, bem como ao Conde de Warwick6, evoca o contexto da chamada “Guerra das Rosas” (1455-1485, na datação convencional), não excluindo figuras e factos históricos quatrocentistas anteriores, como Henry V (1413-1422) e Agincourt (1415)7, para além da referência genérica a “[…] the tremendous amount of political upheaval in England […]”8.

O tempo diegético é a véspera da própria batalha e o pressentimento - ou a iminência - da morte justifica que Sir Thomas, o narrador, se dirija epistolarmente aos seus quatro filhos (Mary-Rose, Lemuel, Cvenild e Idamay, todos eles de tenra idade), procurando transmitir-lhes, em guisa de testamento e despedida, as lições e os ensinamentos recebidos, enquanto jovem escudeiro e já após armado cavaleiro, do seu próprio avô9. Neste contexto, não resistimos a evocar a abertura, ortograficamente adaptada para o efeito, da canção dos “The Moody Blues”:

“[K]nights in white satin,

never reaching the end.

Letters I’ve written,

never meaning to send.

(…)

Cause I love you,

Yes, I love you

Oh, how I love you oh”10

Em entrevista concedida a Eric Lach, jornalista de The New Yorker, Ethan Hawke revela: “’I’ve just always loved the idea of knighthood.’ […] It makes being a good person cool. Or, aspiring to be a good person cool’”11. O mesmo Lach descreve a obra, imediatamente a seguir, como “[…] a hybrid parenting guide and self-help book, on horseback.” No final, distribuídos por diferentes esferas de actividade, da religião à política, da música à literatura e ao desporto, são mencionadas algumas dezenas de ‘cavaleiros’, muitos dos quais personalidades contemporâneas12, pois, como se lê no introito ao penúltimo capítulo (“Love”), “The magnificent knights and ladies of this world have been great leaders and warriors, but also healers. They fight with love, lead with love, and heal with love”13.

Do ponto de vista de uma tipologia ou gen(ea)ologia textual, Rules for a Knight cruza convenções e registos discursivos da parábola, da alegoria e do exemplo (exemplum), sendo cada uma das vinte regras que compõem a (e correspondem à) estrutura capitular da obra14 apresentada de forma aforística, associada a uma ave e desenvolvida através da evocação de episódios e/ou de diálogos entre o narrador, enquanto jovem, e o seu sábio avô. Em nossa opinião, a norma mais significativa será talvez a segunda - “Never announce that you are a knight; simply behave as one.”15 -, mas, mais extensas ou mais breves, todas elas consubstanciam, com sabedoria, profundidade e beleza16, uma tradição gnómica bem patente na literatura inglesa desde o período anglo-saxónico.

Rules for a Knight justifica e mereceria uma articulação específica não só com os tratados e manuais de conduta medievais17 e renascentistas18, mas também com obras como The Broad Stone of Honour19, de Kenelm Henry Digby (1797 ou 1800, consoante as fontes-1880), entre outras mencionadas por Mark Girouard20. Transcrevemos, a este propósito, palavras de Digby citadas no capítulo que Girouard lhe dedica:

“Chivalry is only a name for that general spirit or state of mind which disposes men to heroic and generous actions, and keeps them conversant with all that is beautiful and sublime in the intelectual and moral world. […] this spirit more generally prevails in youth than in the later periods of men’s lives; and, as the heroic is always the earliest age in the history of nations, so youth, the first period of human life, may be considered as the heroic or chivalrous age of each separate man”21.

Esta ênfase na juventude marca igualmente as palavras do autor trecentista Geoffroi de Charny:

“[…] there are some whom everyone should consider to be wise. It is those who, from their youth, strive diligently to learn what is best to do, to distinguish good from evil, and to know what is reasonable to do; and because they recognize what course of action would be against reason, they endeavor to behave loyally, confidently, and according to what is right”22.

A dimensão e a intemporalidade - ou mesmo transtemporalidade - do ideal da cavalaria, das mensagens e dos códigos adjacentes e, em suma, da formação ético-moral do cavaleiro, incluindo as sobrevivências, os investimentos e as codificações caval(h)eirescas do século XIX23 e contemporâneas24, são temáticas vastíssimas (e, nessa medida, inspiradoras de bibliografias praticamente inesgotáveis)25, pelo que concluiremos, fazendo nossas as palavras finais do narrador:

“I love all of you and know you older children wish you could ride with me today, but I am grateful […] that you are all safe at home. If we do not meet again in this life, know that, as each new year passes, I will be in the autumn wind that rustles the leaves at your feet, the winter snowflakes that freeze your cheeks, the rains of spring that drench your hair, and the hot summer sun that burns your arms. I will be with you always”26.

Referências bibliográficas

Fontes

Fontes impressas

HAWKE, Ethan - Rules for a Knight. The Last Letter of Sir Thomas Lemuel Hawke. S.l.: Penguin Books, 2022 (Alfred P. Knopf, 2015).

Documentos áudio e video

THE MOODY BLUES - “Nights in White Satin”. YouTube. TheMoodyBluesVEVO. 14 de Junho de 2018. [Consultado a 5 Fevereiro 2024]. Disponível em https://www.bing.com/videos/riverview/relatedvideo?&q=the+moody+blues+nights+in+white+satin&&mid=C65957314F50952E1901C65957314F50952E1901&&FORM=VRDGAR (4:29).

Estudos

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1THE MOODY BLUES - “Nights in White Satin”. YouTube. TheMoodyBluesVEVO. 14 de Junho de 2018. [Consultado a 5 Fevereiro 2024]. Disponível em https://www.bing.com/videos/riverview/relatedvideo?&q=the+moody+blues+nights+in+white+satin&&mid=C65957314F50952E1901C65957314F50952E1901&&FORM=VRDGAR (4:29).

2HAWKE, Ethan - Rules for a Knight. The Last Letter of Sir Thomas Lemuel Hawke. [London:] Penguin Books, 2015.

3Consultem-se, por exemplo, PUGH, Tison; WEISL, Angela Jane - Medievalisms. Making the Past in the Present. London and New York: Routledge, 2013; MARSHALL, David E. (ed.) - Mass Market Medieval. Essays on the Middle Ages in Popular Culture. Jefferson, North Carolina, and London: McFarland & Co. Inc., Publishers, 2007; e STURTEVANT, Paul B. - The Middle Ages in Popular Imagination. Memory, Film and Medievalism. London/New York/Oxford/New Delhi/Sydney: Bloomsbury Academic, 2019 (I. B. Tauris & Co., 2018).

4MATTHEWS, David - Medievalism. A Critical History. Cambridge: D. S. Brewer, 2015, pp. 1-10 e D’ARCENS, Louise (ed.) - The Cambridge Companion to Medievalism. Cambridge: Cambridge University Press, 2016, pp. 1-13.

5HAWKE - Rules for a Knight, pp. 3-4.

6HAWKE - Rules for a Knight, pp. 45-46. Trata-se de Richard Neville (1428-1471), cognominado the Kingmaker, pelo seu protagonismo na entronização e deposição de Henry VI (1422-1461 e 1470-1471) e Edward IV (1461-1470 e 1471-1483).

7Nomeados em HAWKE - Rules for a Knight, p. 8 e p. 145.

8HAWKE - Rules for a Knight, pp. 75-76.

9“A dark wind murmurs secrets into my ear as I write to you this evening. Perhaps this whisper is only the deceitful voice of fear, but […] I am afraid I will never see you again. […] If I return safely home from tomorrow’s battle, all the better; but should I not, […] turn to these pages whenever you might look for my voice in guidance. I do not want you children to use my untimely death, or any setback that life may deliver, as an excuse not to take […] responsibility for yourselves.” (HAWKE, Ethan - Rules for a Knight, pp. 5-6)

10THE MOODY BLUES - “Nights in White Satin”. YouTube.

11LACH, Eric - “Ethan Hawke explains his thing for knights”. The New Yorker, November 9, 2015 [Consultado a 5 Fevereiro 2024]. Disponível em https://www.newyorker.com/culture/culture-desk/ethan-hawke-explains-his-thing-for-knights.

12Citemos apenas, a título de exemplo, os Padres do Deserto, Victor Hugo, Martin Luther King Jr,, Nelson Mandela, Madre Teresa de Calcutá e Simone Weil.

13HAWKE, Ethan - Rules for a Knight, p. 130.

14Em tradução aproximada, Solidão; Humildade/Modéstia; Gratidão; Orgulho; Cooperação; Amizade; Perdão; Honestidade/Honradez; Coragem; Bondade; Paciência; Justiça; Generosidade; Disciplina; Dedicação; Fala; Fé; Igualdade/Equidade; Amor; Morte.

15HAWKE, Ethan - Rules for a Knight, p. 17.

16Logo na apresentação da primeira regra (Solidão), pode ler-se: “In silence, we can sense eternity sleeping inside us.” (HAWKE, Ethan - Rules for a Knight, p. 13)

17Cf., por exemplo, o Livro da Ordem de Cavalaria (c.1274-1276), de Ramon Llull (c.1232-1315 ou 1316), ou A Knight’s Own Book of Chivalry (1350 ou 1351), de Geoffroi de Charny, nascido algures entre 1300 e 1306, porta-estandarte real de França e falecido na batalha anglo-francesa de Poitiers (1356).

18Cf. Il Libro del Cortegiano (1528), de Baldassare Castiglione (1478-1529).

19A edição original, publicada anonimamente, tinha por título The Broad Stone of Honour, or Rules for the Gentlemen of England (1822). Esta obra foi posteriormente dividida e publicada em quatro volumes, sob o título de The Broad Stone of Honour: Or, the True Sense and Practice of Chivalry (1828-1829 e 1844-1848).

20GIROUARD, Mark - The Return to Camelot. Chivalry and the English Gentleman. New Haven and London: Yale University Press, 1981.

21GIROUARD, Mark - The Return to Camelot, p. 62.

22CHARNY, Geoffroi de - A Knight’s Own Book of Chivalry, p. 81.

23“A obra em questão [The Broad Stone of Honour] foi efectivamente lida por uma boa parte da ‘élite’ intelectual da década de 1820, tendo tido uma grande influência na recuperação do ideal de cavalaria entre os jovens no século XIX. Nas chamadas escolas públicas (“public schools”), o tipo de educação e a disciplina têm a marca […] de Digby, não só na afirmação de […] valores como a generosidade, a honra, a lealdade, a franqueza, as boas maneiras, a modéstia, a cortesia para com as senhoras, a crença em Deus, como a grande importância atribuída à preparação física […] através do desporto como exercício de aprendizagem de um comportamento cívico.” (RAPOSO, Mário - “Cavaleiro/cavalheiro - a demanda da perfeição”. Anglo-Saxónica. Revista do Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, série II, 10-11 (1999), pp. 257-270).

24O quarto e último capítulo de CLINCHAMPS, Philippe du Puy de - História Breve da Cavalaria. Tradução de Maria Luísa Anahory. Lisboa: Editorial Verbo, Lda., 1965, tem precisamente por título “A Pseudo-Cavalaria Contemporânea” (pp. 113-135). Confrontem-se as vinte virtudes glosadas por Ethan Hawke (supra, n.14) com as seis seleccionadas em GEORGE OF CAPPADOCIA - Chivalry. An Ideal Whose Time Has Come Again. New Asturias: The Chivalry Guild, 2024, a saber: Destreza, Cortesia, Honra, Generosidade, Lealdade/Lisura e Fé.

25Nos planos histórico-militar e literário-cultural, sugerimos, por exemplo, a consulta de BARBER, Richard - The Knight and Chivalry. London: Sphere Books Ltd., “Cardinal”, 1974 (Longman Group Ltd., 1970); FOSS, Michael - Chivalry. London: Book Club Associates, 1975; KEEN, Maurice - Chivalry. New Haven and London: Yale University Press, 1984; e HOPKINS, Andrea - Knights. Hoo, nr. Rochester: Grange Books Ltd., 1998 (1990)

26HAWKE, Ethan - Rules for a Knight, p. 149.

Recebido: 05 de Fevereiro de 2024; Aceito: 19 de Abril de 2024

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