O livro Mulleres medievais. Textos e imaxes na lírica galego-portuguesa, coordenado por Esther Corral Díaz e Yara Frateschi Vieira é uma obra simultaneamente singela e erudita. Singela, por um lado, porque se apresenta como uma antologia anotada que consegue divulgar um amplo conjunto de poemas da lírica galego-portuguesa a um público amplo, facilitando a respetiva compreensão graças a diferentes estratos explicativos (enquadramentos histórico-sociais e traduções, no caso de textos latinos, ou paráfrases e explicações em galego atual, no caso dos poemas em galego-português). Por outro lado, a erudição da obra transparece na escolha dos temas, nas perspetivas de abordagem e no seu caráter rigoroso e cabal, possível só a quem, depois de muitos anos de estudo de um determinado domínio, consegue transmitir o que é complexo e profundo de forma aparentemente simples. Incidindo sobre um conjunto de aspetos que, na sua confluência, pretendem trazer-nos um retrato poliédrico de mulheres medievais representadas na poesia galego-portuguesa, o livro abre com três breves introduções que destacam múltiplas vertentes do livro, desde a sua atualidade social e científica à sua função social e divulgativa, sem esquecer a vertente pluridisciplinar e a justificação de algumas opções.
O primeiro ponto, sobre “mulheres com poder”, desdobra-se em subpontos sobre rainhas e infantas (como Teresa de Portugal, Berengária de Barcelona ou Beatriz de Suábia), mulheres nobres e abadessas. A secção inclui documentação e textos historiográficos ilustrativos da personalidade e ação das rainhas e infantas selecionadas, acrescendo ainda, quando existentes, textos líricos a elas dedicados e representações iconográficas. No subponto dedicado a mulheres nobres, dada a maior escassez documental, os poemas são enquadrados mediante breves biografias que incluem informações linhagísticas e relativas aos seus percursos de vida, mais ou menos aventurosos, salientando-se as páginas dedicadas a Maria Pais, cuja identificação com Maria Paez da Ribeira, a “Ribeirinha”, amante de Sancho I, é discutida. Considerando a regra do amor cortês que preconiza que o nome da dama a quem a poesia é dedicada seja mantido em segredo1, os poemas transcritos nesta secção são ou menos convencionais, ou cantigas de maldizer. Isto implica que, para além de informações acerca de aristocratas relativamente pouco conhecidas (como Teresa Lopez de Ulhoa, Urraca Goterrez Mocha, Dordia Gil de Soversosa, Guiomar Gil de Riba de Vizela...), o leitor possa também saborear passagens satíricas e vislumbrar algumas dinâmicas sociais da época. Já no caso das representações de abadessas, predomina o silêncio quanto à identificação da visada, cuja vida sexual é frequentemente o objeto da crítica.
O segundo ponto, “Mulheres na sociedade medieval” dá-nos uma perspetiva mais funcional e diversificada, trazendo-nos imagens de peregrinas, religiosas, amas, pastoras, soldadeiras, judias e feiticeiras. Tratando-se de grupos considerados positivamente uns e negativamente outros, as composições acompanham esta diversidade também em termos tipológicos (cantigas de amigo e de amor, de escárnio e maldizer, tenção, cantiga de romaria, pastorela). O capítulo é complementado com imagens ilustrativas, escultóricas e pictóricas, destacando-se aqui, como em outros pontos do livro, diversas representações do “Códice Rico” das Cantigas de Santa Maria, da biblioteca de El Escorial2. A terceira secção, igualmente ilustrada por composições diversificadas, ultrapassa a dimensão das imagens mais hieráticas do ponto anterior. Intitula-se “esfera privada e relações sociais” e incide sobre matérias relacionais, tanto em quadros amorosos (casamento, concubinato e adultério, relações hetero e homoeróticas), como de parentesco (caso dos diálogos entre irmãs) e de amizade, abordando ainda situações mais extremas, como a violência, os maus-tratos e o rapto. Já o ponto quatro traz-nos uma das dimensões mais conhecidas e mais convencionais da lírica trovadoresca, o amor cortês, subdividindo-se de acordo com as diferentes fases retratadas pela poesia: o namoro, a declaração, o encontro, as alegrias do amor correspondido, o amor consumado, a separação, as zangas. A particularidade aqui patente é o destaque dado à perspetiva feminina destes processos, em coerência com o teor do livro e fugindo à linha dominante desta expressão poética, maioritariamente centrada em sujeitos líricos masculinos.
A partir da quinta secção, o livro incide sobre representações mais periféricas. Primeiro, aborda um conjunto reduzido e muito específico de composições, os lais de bretanha, e as mulheres aí retratadas. A inspiração em fontes narrativas francesas implica que os perfis femininos destas composições se articulem com o caráter destas heroínas, registando-se referências a Isolda e à rainha Genebra. Seguidamente, o ponto sexto, detalhadamente ilustrado, debruça-se sobre as informações que as miniaturas do Cancioneiro da Ajuda transmitem, entendidas como elementos comunicacionais adicionais3. No domínio iconográfico são observadas a disposição, os gestos e os movimentos corporais das figuras, destacando-se cenografias recorrentes, posturas que permitem identificar figuras de autoridade e posição social superior, os trovadores, bem como atributos de executantes, músicos e bailarinas. Na iconografia feminina destaca-se a sua associação à possibilidade de canto e dança, bem como a instrumentos de percussão, sendo os de corda associados a figuras masculinas.
O volume encerra com dois apêndices sobre antecedentes e sobrevida da poesia trovadoresca galego-portuguesa. O primeiro, intitulado “Carjas e muachahas andalusís”, consiste num estudo sobre a poesia árabe do Al-Andaluz, ainda tão carente de estudos que a valorizem. O segundo (“A propósito de supervivências e intertextualidades no Cancioneiro Geral”) remete para a permanência de temas e imagens da poesia trovadoresca em composições palacianas posteriores, recolhidas no Cancioneiro geral de Garcia de Resende4, que retomam tópicos, tanto do amor cortês, como de erotismo obsceno, como de sátiras. Sendo este um livro editado no quadro de um projeto de investigação5, compreende-se a opção tomada por uma autoria coletiva6. No entanto, os estudos do capítulo final e dos dois anexos, dada a sua especificidade, ganhariam com a identificação dos respetivos autores, até para facilitar posteriores citações.
Tratando-se de um livro feito a pensar nos leitores, incluindo os menos conhecedores e especializados, o volume encerra com um índice onomástico e úteis notas biográficas de trovadores7. Tal como salientado no texto introdutório “Limiar”, da autoria de Mercedes Brea, este livro é uma antologia enquadrável na missão universitária de “transferência do conhecimento”. Cumpre este desígnio de forma competente e original, dada a sua perspetiva interdisciplinar e multifacetada, que lhe permite, não só chegar a um público amplo, uma vez que eventuais barreiras linguísticas e culturais são ultrapassadas (graças a breves enquadramentos e paráfrases explicativas dos poemas transcritos), mas também entrever uma ampla diversidade de imagens femininas, tal como estas são representadas no corpus poético específico da poesia galego-portuguesa.
Referências bibliográficas
Fontes manuscritas
Cantigas de Santa María, Códice rico - Madrid, Biblioteca de El Escorial, RBMECat T- I-[consultado a 16 de abril de 2024]. Disponível em: https://rbme.patrimonionacional.es/s/rbme/item/11337#?xywh=-4953%2C- 312%2C13649%2C6239.
Fontes impressas
ANDRE LE CHAPELAIN - Traité de l'amour courtois. Trad. de Claude Buridant. Paris: Klincksieck, 1974.
Cancioneiro da Ajuda. Fragmento do Nobiliário do Conde Dom Pedro. Lisboa: Távola Redonda / IPPAA / Biblioteca da Ajuda, 1994.
Cancioneiro Geral de Garcia de Resende. Ed. de Aida Fernanda Dias. Lisboa: IN-CM, 1993-2003 (6 vols.).
Cantigas de Santa María. Edición facsimil del Codice T.I.1 de la Biblioteca de San Lorenzo de El Escorial siglo XIII. Madrid: Edilan, 1979.
Bases de dados
Base de datos da Lírica Profana Galego-Portuguesa [base de dados online]. Santiago de Compostela: Centro Ramón Piñeiro para a Investigación en Humanidades [consultado a 16 de abril de 2024]. Disponível em: http://www.cirp.gal/meddb
LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro, et alii - Cantigas Medievais Galego- Portuguesas [base de dados online], Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA, 2011- [consultado a 16 de abril de 2024]. Disponível em: http://cantigas.fcsh.unl.pt