Este texto apresenta uma síntese de: LIBERATO, Marco -Entre Tejo e Mondego, nos séculos VI-XIV: povoamento e cultura material num espaço disputado.Faro: Universidade do Algarve, 2024. Tese de Doutoramento. A investigação foi realizada sob orientação dos professores Doutor João Pedro Bernardes e Doutora Susana Goméz Martinez e financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/99597/2014).
Problemáticas, periodização e metodologia analítica
A investigação desenvolvida teve como objetivo principal identificar os processos históricos que determinaram a ocorrência, anteriormente constatada, de dois universos técnico-culturais totalmente distintos no que à produção cerâmica diz respeito, especialmente distinguíveis no registo arqueológico do século X em diante e que revelam a implantação de formações sociais igualmente diversas. Um deles, vulgarmente nomeado como islâmico, caracteriza-se, sinteticamente, pela difusão progressiva de novas morfologias e técnicas ornamentais com origem primeva nas latitudes meridionais da antiga Hispânia, dinâmica que consideramos mais útil do ponto de vista interpretativo que a utilização de designações que remetem para âmbitos religiosos ou étnicos. Enquanto o segundo, por vezes adjetivado como cristão, apresenta igualmente traços distintivos, de onde se destaca uma manifesta impermeabilidade a influxos exógenos à sua área de ocorrência, em geral localizada a norte do Tejo, pelo que preferimos nomeá-lo como fundo autóctone-setentrional.
Na impossibilidade de analisar o problema no âmbito geográfico ideal, que seria a Península Ibérica no seu conjunto, foi necessário definir um espaço mais reduzido. Pelo acima expresso, o rio Tejo constituiu-se como o óbvio limite meridional. Já a Norte, a inclusão da bacia do Mondego também se afirmava como um imperativo, por aí se reconhecerem fenómenos de hibridismo em várias peças já publicadas que apresentam, simultaneamente, caracteres geralmente atribuídos a cada um dos universos técnico-culturais em análise1. Já a opção de traçar o limite Leste pelos enrugamentos da Serra da Gardunha e pelo curso do Zêzere, decorreu essencialmente de informações documentais: ao longo da Idade Média, todas as divisões administrativas, sejam elas kuras, dioceses ou comarcas2, respeitaram uma assim intuída alteridade dos processos históricos ocorridos na atual Beira Baixa face aos âmbitos “litorais”.
No que respeita à periodização, a constatação de que “el 711 no significa demasiado desde un punto de vista material”3, veio a comprovar-se uma realidade válida para todos os âmbitos cronológicos, verificando-se uma escassa reatividade do universo artefactual aos Acontecimentos. Foi assim necessário, de acordo com os dados recolhidos, adaptar a mesma, de forma a que coincidisse mais fielmente com as alterações económico-sociais reveladas pela cultura material. Neste apartado, assinale-se ainda a relevância das discrepâncias entre centros e periferias, que parece ser muitas vezes desconsiderada na abordagem arqueológica ao processo histórico: o que foi verdade na bacia do Guadalquivir em determinado momento, não o seria obrigatoriamente nas margens do rio Nabão, colocando mesmo algumas questões em torno da assertividade da “datação por paralelo” da denominada cerâmica comum. Em síntese, de acordo com os dados recolhidos, podemos assinalar quatro períodos em que o registo arqueológico revelou evoluções partilhadas na generalidade da área estudada: a transição entre os séculos V-VI; o período compreendido entre o século VI e os finais do VIII; as alterações ocorridas entre os séculos IX e XI e um novo realinhamento estrutural que se observou para os séculos XII-XIV.
O outro eixo estruturante da investigação correspondeu à tentativa de articular o universo cerâmico identificado em cada sítio com a classificação tipológica das fórmulas de povoamento. É este exercício que permite elevar o registo arqueológico a uma dimensão histórica, ilustrando as estratégias dos diversos grupos sociais para dominar e/ou explorar os territórios onde decorreu a sua ação, bem como a sua evolução na diacronia. No entanto, foram várias as dificuldades sentidas neste objetivo4 e as expectativas tiverem de ser moderadas, restringindo-se o mesmo à tentativa de identificação de hierarquias relativas, tendo como um dos critérios de análise a posição geográfica e topográfica de cada assentamento, uma vez que estes elementos podem, por exemplo, denunciar intencionalidades castrenses e, consequentemente, proximidade aos poderes.
Foram ainda tidas em conta outras variáveis, como a “qualidade estrutural” do registo arquitetónico ou a intensidade das relações supralocais assinaladas. Assim, a sobreposição de fossas detríticas medievais às estruturas romanas de Conimbriga, torna indiscutível a alteração do lugar-estatuto desta povoação ao longo do tempo. Parece também inegável que a percentagem relativa de cerâmica importada recuperada em cada povoação constituí um indicador fiável da sua dinâmica económica e política em cada conjuntura, bem como da sua estrutura produtiva e aquisitiva revelando, por inerência, a formação social que articulou o seu povoamento em determinado momento.
Séculos V-VI: os momentos finais da formação social tardo-antiga.
O capítulo dedicado à transição entre os séculos V-VI teve um carácter iminentemente introdutório, relacionando-se com o objetivo de sinalizar na diacronia o momento em se que iniciou a afirmação dos universos tecnológicos distintos. Este seria obrigatoriamente posterior à desagregação definitiva da formação social tardo-antiga, tendo-se verificado que esse processo não se apresentava concluído antes do primeiro quartel do século VI. Embora a quebra de volume de cerâmicas importadas tenha sido relevante, continuavam a aportar à região sigillatas foceenses e africanas demonstrando a sobrevivência, embora parcial e decadente, das redes de intercâmbios suprarregionais.
Mas, mais significativa para as perguntas colocadas pela investigação, foi a constatação de que à escassez dessas importações, a estrutura produtiva respondeu prontamente, observando-se uma generalizada distribuição das denominadas Cerâmicas de Imitação de Sigillata5.
As flagrantes semelhanças verificadas nos perfis da denominada cerâmica comum, confirmam a impressão já intuída a partir das produções mencionadas: uma mesma formação social, cujos traços de continuidade com o mundo romano eram amplamente maioritários, ainda se articulava em toda a região estudada.
A atomização do povoamento e a quebra da especialização produtiva durante os séculos VI a VIII
As grandes mutações verificar-se-iam ao longo do século VI. Tornou-se então patente um duplo afunilamento, quer espacial, quer social, da componente artefactual que sinaliza algum nível de integração cultural supralocal, restringindo-se esta à escassa escultura arquitetónica, a cunhagens dos monarcas visigodos ou a objetos em metal, como fechos de cinturão, de incontestável origem forânea6.
No que diz respeito à cerâmica, a produção que ilustra as vivências da esmagadora maioria dos contingentes sociais, afirmou-se o que denominamos por horizonte manual, que constitui uma clara evidência de regressão da especialização produtiva, pela ausência do recurso a modelações com torno alto. Presente tanto em âmbitos rurais, como nos centros urbanos7, verificou-se ainda que fornecia apenas um lote muito reduzido de formas: aquelas que não podiam, devido à sua função, ser substituídas por recipientes em matéria-prima distinta8. Revelando-se assim uma sociedade onde a maioria da população se dedicava a atividades produtivas tendencialmente autárcicas, sem dinamizar consumos mais específicos e requintados.
Consideramos que esta realidade decorreu de profundas alterações nos esquemas de povoamento. A maioria das cidades tinha sido abandonada ou encontrava-se muito desurbanizada, enquanto a generalidade das posições das villae se foram desocupando ao longo do século VI, afirmando-se então como padrão de assentamento pequenas explorações agrícolas que, a julgar pelas dimensões mínimas das estruturas reveladas, acolheriam demografias muito reduzidas.
Cumulativamente, outros indicadores parecem demonstrar que nelas ocorriam etapas ocupacionais muito curtas: o abandono de telhados até à sua derrocada, soterrando sob a mesma instrumentos agrícolas em ferro, pode mesmo significar a extinção geracional dos seus ocupantes9. Também os pequenos núcleos de enterramentos que frequentemente margeavam estes casais em agrupamentos distintos, apontam no mesmo sentido: teriam sido habitados por pouca gente, deixados desmoronar, reocupando-se por vezes a sua posição após um período de abandono. Aparentemente sempre em ciclos de curta duração, testemunhados pelas escassas inumações presentes em cada uma dessas diminutas necrópoles.
Sinteticamente, podemos esquematizar a evolução das produções cerâmicas neste período da seguinte forma: o recuo cada vez mais acentuado dos poderes com ambições centralizadoras na região10 determinou a rarefação de centros ordenadores, encontrando-se estes geralmente em articulação com as vias de comunicação entre cidades episcopais, deixando amplas áreas do território estudado sem mecanismos hierarquizantes. Assim, o povoamento camponês atomizou-se em unidades pouco expressivas demograficamente, desenvolveram-se lógicas de autossubsistência e, consequentemente, as cadeias operatórias especializadas colapsaram por inexistência de procura, originando o surgimento do mencionado horizonte manual, uma resposta localista às necessidades de abastecimento cerâmico. Ter-se-ia estabelecido à época um “high level equilibrium system(s) […] without any pressing need to change their fundamental economic structure(s)”11.
Séculos IX-XI: a afirmação das sociedades de fronteira
De facto, só durante o século IX se verificou uma inversão dessa tendência, assinalada pelo ressurgimento generalizado das modelações com torno alto. Aplica-se a este fenómeno a mesma grelha interpretativa, embora em sentido inverso: um processo de gregarização camponesa teria estabilizado o mercado cerâmico e impelido à especialização da produção. Consideramos altamente provável que a implantação na região de um sistema tributário, coordenado pelas elites islâmicas, tenha sido o catalisador dessa alteração e que a concentração de braços para trabalhar a terra12 tenha tido como objetivo primeiro a obtenção de excedentes para fazer face a essa pressão fiscal. Confere com esta leitura a presença no sítio Quinta da Granja 1, Alcobaça, de novos perfis com origem meridional13 demonstrando conexões indiscutíveis com o universo cultural, mas também certamente administrativo, dos conquistadores. Já a profusão de silos - que não foram identificados em nenhum dos assentamentos cronologicamente anteriores - parece comprovar o aumento da produtividade dessas comunidades aldeãs.
A este propósito assinale-se, como nota analítica e interpretativa, que fizemos corresponder o conceito de islamização das materialidades nesta “periferia da periferia”14 com um processo de alastramento dos contactos entre núcleos de povoamento, em detrimento de uma interpretação que tende a enfatizar a penetração de componentes culturais com origem oriental. As cerâmicas pintadas a vermelho - em vários locais, as primeiras importações verificadas desde a Antiguidade Tardia - constituem um argumento incontornável nesse sentido, uma vez que os seus protótipos já eram produzidos antes de 71115 e o que parece ter mudado foi a escala da sua distribuição, que aumentou exponencialmente.
No entanto, se ao longo do século IX se assinalam alterações significativas no que à exploração do território diz respeito, esse processo não parece ter tido equivalência no apartado do seu domínio e proteção. Detetou-se uma implantação dos poderes restrita a pré-existências à conquista: sem surpresa, em Coimbra, cidade episcopal, surgem das primeiras evidências de introdução de perfis meridionais, como candis. Também Conimbriga, escorada que estava a sua vocação militar na muralha tardorromana, parece ter acolhido uma relativamente pujante ocupação emiral, que determinou alterações na pauta morfológica e ornamental das suas cerâmicas. E mesmo Mont Salut, a fortaleza referida com maior frequência nas crónicas islâmicas, dificilmente corresponderia a um assentamento promovido ex-nihilo por Córdova, tendo como objetivo adaptar a malha defensiva aos seus propósitos, dada a facilidade com que foi ocupado por elementos rebeldes antes e durante a primeira fitna peninsular16. Consideramos bastante mais verosímil que se trate de um castelo de primeira geração17, que continuava a manter um valor estratégico relevante no século IX, sendo disputado entre o poder central e os líderes com aspirações autonómicas.
Apenas o castro de Santa Olaia, Figueira da Foz, se habilita como eventual adição às pré-existências durante o período emiral, a julgar por alguns perfis recuperados no sítio que, no entanto, enfermam de descontextualização estratigráfica. Mesmo que se confirme esta leitura, tratar-se-ia de uma intervenção numa escala muito reduzida, tendo como objetivo reforçar a defesa do imediato de Coimbra, um verdadeiro imperativo estratégico à época, dada a pressão cristã em crescendo de organização. Relacionamos essa incapacidade revelada pelo emirado em dinamizar novos pontos de apoio da sua malha administrativa com a hipótese teorizada por vários autores, que consideraram a escassez de recursos humanos como uma fragilidade estrutural dos poderes islâmicos18, impedindo-os de acionar mecanismos mais coerentes de controlo territorial nesta periferia.
Certo é que Coimbra foi integrada na órbita da monarquia asturiana em 878, tendo sido recolhidas informações que permitem perspetivar um avanço territorial bastante mais extenso do que é costumeiramente admitido, tendo este atingido a encosta norte do Maciço Calcário Estremenho e o vale do Tejo, com a excepção de Balata. Assim sugere a dispersão geográfica de elementos arquitetónicos com iconografia cristã, esculpidos entre os séculos IX-X. No mesmo sentido, parece ser mais coerente admitir que a igreja de S. Gião da Nazaré se trate de uma “célula de colonização” da formação social asturiana19 do que uma edificação moçárabe, no sentido jurídico deste conceito, dada a mimética perfeita com as suas congéneres que estavam a ser construídas no norte peninsular no mesmo âmbito temporal20.
Surgem indícios no registo arqueológico que permitem incluso classificar o âmbito cristão como o verdadeiro fazedor de cidade no espaço em apreço, entre os séculos X e XII. As semelhanças morfológicas, estilísticas e técnicas entre cerâmicas recuperadas em Leiria e Porto de Mós e as suas congéneres de Viseu - esta uma reconhecida plataforma de expansão asturiana durante o século X - revelam que as tentativas de controlo territorial das novas possessões cristãs assentaram na promoção de sítios proto-urbanos, verdadeiros microcosmos socioeconómicos que albergariam gente suficiente para assegurarem, per si, funções defensivas. As escassas fontes documentais reforçam esta linha interpretativa informando, por exemplo, que Montemor-o-Velho nos finais dessa centúria acolhia presumivelmente duas igrejas21 o que, à escala da região, é revelador de contingentes demográficos razoáveis.
Nessa conjuntura de acosso, em que os poderes cristãos se aproximavam das planuras do Sul, onde a velocidade de deslocação aumentava exponencialmente e o assédio às grandes cidades meridionais se afiguraria como eminente, Córdova encetou um programa de defesa do vale do Tejo, como se comprova pela campanha de obras realizadas em Lisboa durante o ano de 98522. No entanto, a ação mais exuberante desse processo parece ter sido a revalorização da vocação militar de Santarém, antiga cidade romana que o registo arqueológico conhecido indicia como amplamente desarticulada em 711. Em escassas dezenas de anos, uma estrutura produtiva dificilmente diferenciável face a um qualquer assentamento rural, alterou-se radicalmente e, para a transição entre o século IX-X, observa-se uma acentuada “islamização” das cerâmicas que circulavam na cidade, pela comparência de novas morfologias e opções ornamentais, que se substituíram totalmente às tradições oleiras anteriores. Outros elementos, como a dimensão das suas necrópoles que acolheram indivíduos depositados em decúbito lateral logo na transição entre os séculos VIII e IX, a identificação de inscrições em árabe sobre material ósseo ou a ausência de porco nas assembleias faunísticas dessa cidade ao longo dos séculos X e XI, demonstram o alcance desse processo de controlo territorial e aculturação 23.
São igualmente recenseáveis esforços progressivos no sentido de apertar a malha defensiva de Balata, sendo exemplo o surgimento do castelo de Povos. A cultura material dos séculos X-XI recuperada neste sítio permite ainda estabelecer um primeiro nível de diferenciação entre o universo cerâmico meridional e o autóctone-setentrional, que se foram distinguindo de forma cada vez mais evidente a partir do século IX: a ocorrência, no âmbito islâmico, de vastas áreas geográficas onde as coerências morfológicas, estilísticas e ornamentais se foram tornando quase absolutas.
Assim, uma estrutura produtiva classificável como “proto-industrial” e uma rede de contactos à escala do Mediterrâneo difundiu na bacia do Tejo uma pauta morfológica que incorporou sucessivamente novas formas cerâmicas, muito adaptadas a funções específicas - daí a sua ampla diversidade morfológica - característica que não colide com uma grande uniformidade estilística e cultural, sempre complementada com a profusa circulação de materiais importados.
Já no âmbito territorial onde a implantação da formação social islâmica foi interrompida pelas presúrias asturianas, sobreviveram lógicas produtivas estruturalmente descentralizadas que continuaram a oferecer evidentes referentes morfológicos para com a cerâmica alto-medieval em cronologias tardias, assinalando-se também uma elevada ocorrência de particularismos estilísticos24 e uma pauta formal muito reduzida, especialmente no que diz respeito às peças abertas. Esta situação seria certamente uma consequência direta da ruralização da economia, da incipiente divisão e especialização do trabalho e do isolamento da sua estrutura produtiva, preposição indiscutivelmente demonstrada pela ausência de importações.
Considerando estas características distintivas, a organização social decorrente da expansão do domínio político islâmico até ao vale do Mondego após as campanhas de Almansor, foi classificada a partir do conceito de sociedades compartimentadas. Na falta de melhor definição, que ilustrasse uma evidente estanquidade técnico-cultural entre os consumos de conquistados e conquistadores, pretendeu-se dar ênfase a uma diferença estrutural entre as realidades vivenciadas nas novas possessões islâmicas, quando o termo de comparação foi o vale do Tejo, muito embora ambas as sub-regiões se encontrassem então unificadas em termos político-administrativos.
Comparecem no registo arqueológico de Coimbra do século XI algumas importações “prestigiantes”, mas que não influenciaram a produção local no seu conjunto, tendo esta, apesar de pontuais incorporações de soluções morfológicas meridionais, continuado a oferecer perfis associáveis ao fundo autóctone-setentrional em percentagens absolutamente dominantes. Cumulativamente, a dispersão espacial dessas importações coincide com os espaços do poder, estando sistematicamente ausentes dos arrabaldes. O que permite perspetivar que a conquista islâmica se saldou por uma adição de grupos dirigentes à sociedade local tendo esta, no essencial, continuado com as suas práticas e técnicas artefactuais, que não foram permeadas por novos influxos culturais. Esta leitura reforça-se com o registo arqueológico daqueles sítios que não interessariam ao controlo direto dos conquistadores como Conimbriga transmutada definitivamente, à época, numa aldeia. Neste caso, toda a produção cerâmica conhecida para os séculos X-XI é filiável nos ambientes autóctone-setentrionais.
Seria esta a realidade na generalidade dos novos territórios islâmicos após as campanhas de finais do século X e, independentemente dos mapas políticos, pensamos que a busca por sinais materiais de islamização na maioria do espaço compreendido entre o Maciço Calcário Estremenho e as fortificações do vale do Mondego não se revelarão frutíferas.
Esses são detetáveis exclusivamente nos sítios diretamente relacionados com o poder, nomeadamente os de cariz castrense. No entanto, quer a posição destes assentamentos, quer as realidades estruturais identificadas, como no caso do Paço da Ega, Condeixa-a-Nova denunciam que o poder califal/taifa pouco mais apetrechado estava para defender esta periferia que o Emirado. Essa tarefa seria essencialmente confiada às cidade-capital, coadjuvadas por pequeníssimas fortificações distribuídas ao longo das principais vias de comunicação, com uma função de vigilância mais que de defesa ativa, num esquema de povoamento que definimos como em “pele de tigre”25. O que explica o colapso do controlo islâmico até ao paralelo de Leiria, pouco tempo passado após a conquista de Coimbra de 1065, com excepção do troço melhor protegido da via Olisipo-Bracara que corria ao longo do rio Nabão.
O irreversível avanço para Sul da formação social senhorial nos séculos XII-XIV: tempos de osmose cultural
A conjuntura acima referida demonstra, incluso retrospetivamente, a diferenciada implantação da formação social islâmica nas bacias do Mondego e do Tejo. No primeiro caso, após a sua desconexão definitiva com o mundo mediterrâneo, o fundo autóctone-setentrional passou a seguir, em poucas décadas e de forma exclusiva, as suas pautas evolutivas próprias. Já na fortaleza de Santarém, mesmo sob acosso do beligerante, as osmoses com o mundo meridional atingiram o auge no século XII, como nos revela a produção local de corda seca. Os poderes almorávidas parecem, inclusive, ter sido capazes de articular uma derradeira tentativa de defender as áreas de contacto com Balata, como nos revelam alguns materiais de Óbidos ou de Sertã, que indiciam a edificação de fortificações de “última hora”.
No entanto, a vantagem demográfica do mundo cristão revelar-se-ia definitivamente e a progressão do mapa político assinalada para o século XII foi sistematicamente acompanhada pelo fomento de unidades de povoamento com vocação urbana, que acolhiam contingentes populacionais suficientes para enfrentar um exército inimigo com recursos próprios, como aconteceu com as incursões almorávidas a Soure ou almóadas a Tomar26.
O registo arqueológico dessas novas vilas-concelho deixa poucas dúvidas: o fundo autóctone-setentrional passou a conhecer uma muito maior dispersão no território considerado, denunciando a formação social responsável pela sua fundação. A precaridade física e estrutural dos ambientes domésticos desses assentamentos que vem sendo registada para os séculos XII-XIII, destacando-se a frequência de sunken featured buildings27, também se afirma pouco consonante com uma vetusta vivência urbana denunciando, novamente, o seu momento genésico.
No entanto, se o fundo autóctone-setentrional revela as suas pautas evolutivas próprias durante largas dezenas de anos no antigo “deserto urbano” que ocorria entre Santarém e Coimbra até à definitiva conquista cristã, no core da área onde a formação islâmica se tinha desenvolvido na plenitude, as realidades continuaram a ser amplamente diferentes. Para esse âmbito territorial observa-se uma evidente resiliência dos protótipos meridionais, sejam eles soluções de continuidade, como as patenteadas nas jarras de colo cilíndrico, seja mesmo pela introdução de perfis que se difundiram primeiramente nas cidades ainda sob domínio almóada.
A unicidade cultural também não sofreu abalos significativos nessa sub-região, verificando-se uma absoluta concordância na evolução formal das cerâmicas de Lisboa e de Santarém, entre os séculos XIII-XIV, ainda que com pontuais divergências cronológicas na divulgação de algumas “inovações”, de que são exemplo as panelas com asas no bojo. Podemos, portanto, falar do triunfo do que ficou definido na tese como capacidade instalada. Ou seja, a estrutura produtiva herdada de período islâmico sobreviveu, ainda que com algumas mutações - sendo a mais exuberante a abrupta queda da produção de cerâmicas com revestimento - e continuou a apresentar uma oferta estandardizada de perfis em toda a área sob influência direta das cidades portuárias do Baixo Tejo.
Resiliência de tal forma estrutural que se observa, a partir dos séculos XIII-XIV, a ocorrência sistemática de pormenores estilísticos genesicamente meridionais, como os fundos anelares ou as tigelas carenadas, cada vez mais a norte. Verifica-se, no entanto, uma divergência cronológica relevante entre a comparência desses novos perfis nos denominados contextos de síntese28 e a sua divulgação primeva no vale do Tejo. Tomemos como exemplo os fundos em bolacha, que só se tornariam comuns em Coimbra ao longo do século XV, constatação que deve servir de alerta para os riscos de propostas de datação baseadas exclusivamente em paralelos morfológicos, desconsiderando a origem estratigráfica das peças.
No fundo, estes contextos de síntese constituem o registo arqueológico de um novo tempo, em que os ritmos agrícolas já não determinavam em absoluto o devir social do reino português no seu conjunto. Aproximando as suas realidades materiais, mesmo em latitudes setentrionais, de algumas características como a estandardização formal em áreas alargadas que, durante séculos, tinham sido exclusivas da formação social islâmica.