No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, encontram-se, no fundo dos Feitos da Coroa, vinte e quatro manuscritos da série Inquirições Gerais1. A sua designação é composta pelo nome de um rei e por uma numeração, havendo três livros atribuídos a D. Afonso II, nove a D. Afonso III, dez a D. Dinis e dois a D. Afonso IV. No entanto, este conjunto de manuscritos nem sempre se encontrou arquivado desta forma. Na realidade, e como veremos ao longo deste estudo, nem sequer é possível afirmar que sempre foram parte da mesma série.
1. As Inquirições Gerais
As Inquirições Gerais consistiram num vasto projeto realizado ao longo de vários reinados. Porém, nem sempre foram executadas mediante os mesmos objetivos. Em 1220, durante o reinado de D. Afonso II, realizaram-se as primeiras inquirições gerais2 num espaço alargado do território (Entre Douro e Minho, Trás-os-Montes e Norte da Beira), tendo como objetivo:
o inventário de terras e de direitos pertencentes ao património régio, inquirindo sobre a sua situação, arrolando em paralelo as terras e os direitos detidos pela nobreza e pelo clero na região, e estabelecendo o mapa dos abusos e das infrações cometidas sobre o património régio.3
Posteriormente, D. Afonso III deu continuidade a esse processo, realizando em 1258 inquirições numa escala mais alargada, organizadas da seguinte forma:
D. Afonso III delegou em cinco alçadas, constituídas por laicos e eclesiásticos, o conhecimento desses bens e direitos através de uma minuciosa inquirição, conduzida povoação a povoação e onde seriam ouvidos o juiz, o pároco e alguns dos fregueses mais idóneos. Os milhares de depoimentos recolhidos foram passados a escrito pelo escrivão que acompanhava cada alçada e organizados de acordo com as cinco regiões envolvidas: Entre Cávado e Minho; Entre Douro e Ave; Entre Cávado e Ave; Entre Douro e Tâmega, terras de Barroso, Chaves e Bragança; e, finalmente, Seia, Gouveia, bispados de Lamego e Viseu.4
D. Dinis deu também continuidade ao processo de Inquirições Gerais. Ao longo do seu reinado, foram realizadas diversas inquirições, com objetivos distintos entre si, que:
para além de traçarem um quadro muito completo da propriedade privilegiada, quer laica quer eclesiástica, e num âmbito geográfico muito mais vasto do que aquele que até à altura fora inquirido, revelam uma diversidade incrível de formas de abuso senhorial. Para além disso, a vontade férrea do soberano levou-o a promover inquirições sucessivas ao longo de mais de 30 anos.5
Quanto às inquirições levadas a cabo durante o reinado de D. Afonso IV, apesar de se considerar que as de 1343 teriam uma estrutura semelhante às de 12586, podem também ser entendidas como não se integrando "verdadeiramente na estrutura diplomática e institucional das anteriores, dado que são um corpus específico relativo às dissensões entre o rei e o senhorio episcopal do burgo portuense"7.
O registo destas inquirições era feito em formato de rolo, tendo a sua passagem para o formato de códice sido iniciada no reinado de D. Dinis, através da cópia - efetuada em 1289 pelo tabelião Pedro Domingues - das atas das inquirições de D. Afonso II, num volume conhecido como Registo de Guimarães ou Livro do Padrom, atualmente com a cota "Livro 5 de Inquirições de D. Dinis"8. Como já foi mencionado, atualmente os manuscritos da série “Livros de Inquirições” no Arquivo Nacional da Torre do Tombo são 24. Contudo, como se pode depreender do exemplo do Livro 5 de Inquirições de D. Dinis, no qual são compiladas inquirições de D. Afonso II, o conteúdo nem sempre corresponde ao rei designado na cota.
2. Os Livros de Inquirições nos Inventários da Torre do Tombo (séculos XVI-XVIII)
O conhecimento que existe acerca do funcionamento da Torre do Tombo na época da sua fundação é limitado. A confirmação documental da sua existência remete para o ano de 1387. Contudo, é possível que a fixação do arquivo tenha ocorrido antes, ainda durante o reinado de D. Dinis9. Dessa época, no entanto, não subsiste até aos nossos dias nenhum inventário ou registo acerca da organização do arquivo.
O mais antigo dos inventários do Arquivo que atualmente se conhece foi redigido em 1526 por Tomé Lopes10, escrivão da Torre do Tombo que atuou como guarda-mor interino na transição entre Rui de Pina e o seu filho, Fernão de Pina11. Tomé Lopes tinha já realizado em 1528 um relatório para o rei D. João III12, no qual descrevia o funcionamento do arquivo, demonstrando particular preocupação com o estado das cópias da Leitura Nova. No ano seguinte, elaborou um inventário a mando de Fernão de Pina, no qual este mandava registar tudo o que tinha recebido do arquivo13. Nesta listagem, seis livros são associados às inquirições, sem que exista consistência na forma como são descritos: um conteria inquirições de D. Afonso II; um seria de inquirições de D. Afonso III na comarca da Beira; um relativo às inquirições de D. Dinis; um de inquirições de D. Afonso IV; um livro de inquirições que começaria no julgado de Fermedo; e um que é apenas referido como Livro de Inquirições com 34 fólios.
Em 1532, o mesmo Tomé Lopes realizou um novo inventário, entregando o arquivo a Fernão de Pina14. Desta vez, redigiu-o de forma consideravelmente mais detalhada, registando 16 livros como sendo de Inquirições. A sua redação demonstra uma maior preocupação com a descrição dos manuscritos, não podendo, no entanto, ser considerado um catálogo, por um lado, porque não é possível afirmar com segurança que apenas estes 16 livros estivessem arquivados enquanto Livros de Inquirições, e, por outro lado, porque as entradas descrevem mais do que inventariam. Os códices são descritos em linhas gerais, tendo em conta os materiais que os compõem, a língua em que se encontram redigidos e o número de fólios que contêm. Os conteúdos são representados de forma ligeiramente desequilibrada, não sendo empregado o mesmo rigor na apresentação de todos os códices. No caso dos 16 livros que são designados como sendo de Inquirições, alguns são especificados através dos textos iniciais e finais, enquanto outros são listados pela área geográfica da inquirição que compilam. O único rei que é associado a estes manuscritos é D. Afonso III, dado que três dos livros são identificados como contendo inquirições do seu reinado. Dos 16 livros, assinala-se que cinco foram escritos em português e oito em latim e que três são em papel.
Ainda no século XVI, foram realizados três relatórios por Cristóvão Benavente, dos quais subsiste apenas o terceiro15. Neste relatório, os Livros de Inquirições não são contabilizados. No entanto, são já descritos em conjunto, sendo acrescentado que a maioria se encontrava redigida em latim e que o conteúdo era relativo maioritariamente aos reinados de D. Afonso III e D. Dinis. Foram apresentados da seguinte forma:
liuros de inquirições que se tirarom antiguamente pellas comarcas do rreino, per editos geraes, açerqua dos beens da coroa, coutos, honrras, iurdições que has ordens e caualeiros trazião usurpados a coroa e se reduzirom a ella, que foi hũa grande luz della16.
Não obstante, a descrição mais curiosa que este relatório oferece dos Livros de Inquirições é a divisão feita entre estes e os Livros de Chancelaria, afirmando que os primeiros diziam respeito à propriedade do rei, enquanto os últimos representavam o registo da propriedade dos vassalos17.
Jorge da Cunha, autor de um novo relatório datado de 163118, descreveu o estado do arquivo, sem, porém, abordar em particular o estado dos Livros de Inquirições. Ainda assim, o seu trabalho como escrivão foi especialmente revelante na recuperação de alguns manuscritos da Torre do Tombo, entre os quais o Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III, como será referido posteriormente.
No final do século XVII foi efetuado um novo inventário19 que, não estando datado, se crê que - sendo o conteúdo nele incluído datável até ao final do reinado de D. João IV - tenha sido elaborado numa data aproximada à da morte deste monarca20. Este inventário consiste numa listagem dos manuscritos que se encontravam, à época, conservados na Torre do Tombo. Estes elementos são enumerados sem descrição do conteúdo, sendo esta a primeira lista que é organizada por armários. Nesta época, a Torre teria um total de vinte livros registados como sendo de inquirições: três de D. Afonso II; sete de D. Afonso III, dos quais seis são listados em conjunto, sendo outro, numerado como sexto, indicado separadamente; oito provavelmente atribuídos às inquirições do reinado de D. Dinis, sendo-lhe definitivamente atribuído o primeiro e a cópia do quinto, estando os subsequentes apenas numerados; e dois de D. Afonso IV. Estes vinte livros dividiam-se em dois armários: os oito atribuídos ao reinado de D. Dinis encontravam-se no Armário 1, enquanto os restantes eram conservados no Armário 9.
O inventário de 1729-1730, designado por Alfabeto místico e redigido por António Dantas Barbosa21, apresenta a mesma organização por armários. É neste inventário do século XVIII que se encontra finalmente a quantidade atual de Livros de Inquirições. De acordo com este registo, que tem como função primária listar a documentação (ainda que, por vezes, contenha algumas indicações sobre o seu conteúdo), os Livros de Inquirições de D. Afonso II são três22, os de D. Afonso III são nove, os de D. Dinis são dez e os de D. Afonso IV são dois, perfazendo os vinte e quatro Livros de Inquirições que atualmente compõem a série no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Há também uma pequena diferença na forma como estes manuscritos eram conservados no Arquivo, ou seja, apesar de todos os de D. Dinis continuarem atribuídos ao Armário 1, os Livros relativos ao reinado de D. Afonso II encontram-se agora no Armário 8, enquanto os restantes se mantêm no Armário 9.
Ainda assim, convém acrescentar que estes vinte e quatro códices não são os únicos descritos como Livros de Inquirições neste inventário: no Armário 13 são enumerados cinco livros de inquirições que não são atribuídos a nenhum rei, apresentando antes as seguintes designações: Livro de inquirição dos bens que El Rey tem no Campo d’Ourique e em Castro Verde e Almodovar; Livro de inquirição do Bispo e Cabido da See de Vizeu sobre a jurdição civel e crime do Couto de S. João de Areas; Livro de inquirição da cidade de Coimbra sobre a jurdição da aldea de Eyras; Livro de inquirição sobre as honrras do Julgado de Monte Alegre, Chaves, Monforte de Rio Livre, Vinhaes e outros; Livro de inquirição que se tirou sobre as honras d’Antre Homem e Cavado e de Boyro e outras.
Em resumo, ao longo dos inventários mencionados, a quantidade de Livros de Inquirições associados ao reinado de D. Afonso III nunca foi constante: dos três que lhe eram atribuídos em 1532 por Tomé Lopes, passaram a sete no inventário do final do século XVII, sendo, finalmente, nove no Alfabeto místico de António Dantas Barbosa, de 1729-1730.
3. O Livro 4 de Inquirições de Afonso III nos Inventários da Torre do Tombo (séculos XVI-XVIII)
Estas divergências quanto à quantidade e designação dos Livros de Inquirições é particularmente interessante no caso do códice atualmente com a cota "Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III". Ainda que não seja listado em conjunto com os restantes livros considerados como de inquirições em 153223, é possível identificar o Livro 4 de D. Afonso III no inventário. Neste, o manuscrito é descrito como "Outro livro de marqua pequena, que falla das colheytas e imquiriçõees, etc., que começa com o foro dos Mouros de Lixboa, cuberto de couro vermelho, com boulhoeẽs; e tem de folhas, setemta"24. É notável que não seja identificado como um "Livro de Inquirições", expressão que é já usada para descrever os manuscritos dedicados à cópia desses materiais, mas antes como um "Outro" que, entre outras matérias, "falla" das "imquiriçõees". Essa descrição, bem como a identificação do texto inicial, o foro dos mouros de Lisboa, juntamente com o número de fólios, não deixa dúvidas quanto a tratar-se do Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III.
A sua adição ao armário das inquirições ocorreria cerca de cem anos mais tarde, pela mão de Jorge da Cunha, escrivão acima mencionado. Numa anotação datada de 1632, inscrita no primeiro fólio, este deixou uma informação preciosa para o entendimento da história do manuscrito: "Este livro achey nas casas debaixo do lixo que pus aqui eu Jorge da Cunha escrivão deste Archivo Real da torre do tombo a 12 de Jan[ei]ro de [1]632"25. Jorge da Cunha redigiu um relatório sobre o funcionamento da Torre, no qual indica o estado de degradação em que o arquivo se encontrava no início do século XVII e no que consistia o lixo no qual encontrou diversos manuscritos e documentos26. Nesse relatório, o lixo é explicado como resultado de anos de acumulação de detritos e falta de limpeza:
As duas primeiras de liuros da casa da India, Armazem, contos, secretaria Vias da India, e liuros da chancelaria del Rej dom João o 3º em pedaços comidos dos ratos e gastados do lixo E outros papeis de importancia, estas duas casas espadanadas delles; e todos soterrados de baixo do lixo, maes de hum palmo de alto, cousa piadoza, que com muitos trabalhos se tirauão, e estauão ainda em cima delles os cauacos de quando fizerão os almarios das casas. Neste mesmo estado estauão as outras duas casas de baixo com muitos papeis impressos27.
Apesar de Jorge da Cunha descrever muitos outros problemas que ocorriam na Torre do Tombo e que afetavam a conservação dos manuscritos, não menciona em particular o Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III. Convém, contudo, notar que o relatório está datado de 29 de maio de 1631, sendo possível que o Livro 4 tenha sido encontrado após a sua redação. No mesmo relatório, Jorge da Cunha enumera também as medidas que tomou para restaurar o funcionamento do arquivo e recuperar os documentos que eram encontrados, processo pelo qual possivelmente passou também o Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III. Terá, provavelmente, sido nessa altura de reabilitação da Torre que esse Livro foi adicionado ao armário dos Livros de Inquirições, pois é da mão de Jorge da Cunha a inscrição que o intitula como "Terceiro Liuro de Ínquiricões sobre colheitas, e igrejas, e outras cousas"28.
Ainda assim, o ajuste deste manuscrito ao armário das inquirições não foi simples. Uma descrição do códice, feita por José de Cristo Bretiandos, talvez pouco depois de este ter sido encontrado debaixo do lixo por Jorge da Cunha, não o mencionava como Livro de Inquirições. No manuscrito atualmente designado Miscelânea referida ao mosteiro de Santa Cruz e com a cota Ms. 86 da Livraria de Mão de Santa Cruz de Coimbra da Biblioteca Pública Municipal do Porto29, José de Cristo copiou o texto da Crónica Breve do Arquivo Nacional, que se encontra nos fólios 6v-7v do Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III30. Na sua introdução à cópia, indica que "O que se segue he tirado de hum livro da Torre do Tombo Real que se intitula Titulo de colheitas dos Mouros, e doutros memoriais. - He de taboa de Couro baio ferrado e muito uelho"31. A cópia de José de Cristo Bretiandos não se encontra datada, sendo impossível assegurar que seja posterior à inscrição de Jorge da Cunha. No entanto, é significativo que não sejam mencionadas as inquirições, mas que o manuscrito seja antes designado por um título que remete para o seu índice e para os primeiros textos que se encontram compilados no Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III32.
Ainda mais representativo da difícil integração do Livro 4 de D. Afonso III no armário dos Livros de Inquirições é a anotação que se encontra no final do f. 1v e que serve de correção à designação registada no mesmo por Jorge da Cunha. Datada de 2 de junho de 1715, diz que "Não achey 4.º Livro de Jnquiriçoens deste Rey, e porque achey dois de numeros treceyros ficou este em lugar de 4.º O Arm[ario] velho não podia mays que seys Livros de Jnquirições. Eu achey nove"33. Através desta anotação, sabe-se que os próprios armários não tinham sido construídos para a quantidade de livros entretanto adicionados ao das Inquirições, dado que tinham vindo a aumentar. A mão que redigiu esta anotação foi a mesma que finalmente deu ao Livro 4 de Inquirições de D. Afonso III essa designação, tendo riscado a inscrição de Jorge da Cunha que intitulava o manuscrito como "Terceiro" e acrescentado acima o numeral "4º"34.
4. O Conteúdo do Livro 4 de Inquirições de Afonso III
Tendo comentado o percurso do Livro 4 de inquirições de D. Afonso III na Torre do Tombo, é igualmente necessário observar o seu conteúdo. Nos fólios 8r-10r encontram-se os primeiros textos copiados no manuscrito. A decoração das iniciais filigranadas destes fólios, realizada de forma cuidada e elaborada, permite identificá-los como os primeiros a serem copiados. Os fólios anteriores apresentam uma decoração que, ainda que semelhante, demonstra uma menor capacidade técnica e uma execução menos precisa no desenho da filigrana, resultado de uma tentativa de cópia das iniciais dos fólios após o 8r.
O conteúdo dos primeiros fólios copiados consiste nos foros dados ao longo de vários reinados às comunas muçulmanas de: Lisboa, Almada, Palmela e Alcácer; Silves, Tavira e Loulé; Évora; Moura; e a carta da quarentena dos mouros da Guarda, documentação estudada por Maria Filomena Barros35.
A cópia destes documentos encontra-se autenticada por Afonso Peres, escrivão da Torre do Tombo pelo menos entre 1428 e 143536. Este assinou cada um dos fólios individualmente, tendo deixado uma verba no final na qual se identifica e valida a cópia: "Conçertado per mim Affonso Perez escripuam das escripturas do tombo delRey estes quatro foraees ssobredictos esta carta susso escripta com os reginaees dos quaes en que som escriptas"37.
Aos foros, seguem-se, nos fólios 10v-14r, a declaração dos direitos dos mouros do reino e, nos fólios 14v-15v, o levantamento dos casos em que a herança dos muçulmanos pertenceria ao rei. O primeiro destes documentos encontra-se publicado por Alexandre Herculano nos Portugaliae Monumenta Historica38, tendo ambos sido também estudados por Maria Filomena Barros39, que chamou a atenção para um segundo treslado dos dois diplomas40. Tal como os fólios 8r-10r, a cópia destes textos apresenta iniciais vermelhas decoradas com uma filigrana delicada e minuciosamente desenhada.
Estes documentos encontram-se assinados por Yūsuf ibn Ibrahīm ibn Yūsuf al-Lahmī, que assinava também como Jufez41 e era notário da comuna muçulmana de Lisboa. A identificação deste notário foi levada a cabo por Maria Filomena Barros, que o identificou como o mesmo Jufez alvo de um processo em 140242.
As assinaturas de Jufez e de Afonso Peres não só são de grande relevância para a identificação da época em que o códice foi compilado, como também sublinham a relevância dos fólios 8r-14r na sua composição. Os textos aí copiados são os únicos para os quais foi necessária a validação das cópias por dois oficiais legais, um em associação ao arquivo que copiou os textos e outro em representação da comunidade afetada pelo seu conteúdo.
De seguida, nos fólios 15v-38r, foram copiadas cartas relativas às colheitas que o rei tinha a receber dos mosteiros e ordens militares, seguidas da listagem dessas colheitas. Estas cartas representam, de certa forma, uma segunda fase de cópia de documentos no códice: a do registo de colheitas. A decoração das primeiras iniciais destes fólios mantém ainda a qualidade dos fólios anteriores, o que indica que provavelmente o início da sua cópia teve lugar na mesma época. Ainda assim, não há nenhuma assinatura que valide estes documentos.
Na parte final do manuscrito, com início no fólio 40r, encontra-se finalmente a matéria das inquirições. Os textos encontram-se separados das cópias anteriores por um fólio em branco e foram copiados por outra mão. Apenas o primeiro parágrafo contém uma inicial filigranada, com uma qualidade inferior à dos primeiros fólios compilados no manuscrito. Após essa inicial, o cuidado prestado à decoração é reduzido, sendo o texto decorado simplesmente com caldeirões vermelhos.
O conteúdo das inquirições que aí foram copiadas consiste nas introduções das inquirições da 1ª alçada de D. Afonso III relativas a coutos e mosteiros, seguindo-se-lhes a lista das colheitas a receber dos mesmos43. Ou seja, as inquirições que aqui se copiaram são parciais e selecionadas, sendo o objetivo dessa inclusão possivelmente consistente com o motivo pelo qual teve início a compilação de cópias documentais neste manuscrito: a reorganização fiscal da coroa no início do século XV.
Por fim, foram adicionados ao manuscrito os fólios que o abrem: um índice (fólios 2r-6r) e o texto da Crónica Breve do Arquivo Nacional (fólios 6v-7v)44. O motivo que leva a pensar que estes foram adicionados posteriormente é não só, e como tem vindo a ser referido, o facto de as iniciais apresentarem uma decoração que imita com alguma inferioridade a filigrana das que se encontram nos fólios que se lhes seguem, mas também porque o índice enuncia todos os textos que se encontram no manuscrito, com exceção da crónica45.
A inclusão de um índice neste manuscrito é especialmente significativa, se tivermos em conta que este é o único Livro de Inquirições que inclui um índice coevo. Todos os restantes índices que atualmente se encontram nos Livros de Inquirições não foram produzidos na mesma época da compilação dos manuscritos, tendo sido adicionados durante o processo de consulta e cópia da Leitura Nova.
5. O Livro 4 de Afonso III: um Livro de Inquirições?
Por fim, chegamos à questão colocada no início: pode o Livro 4 de D. Afonso III ser considerado um Livro de Inquirições?
Em primeiro lugar, este manuscrito foi redigido no século XV, numa época posterior à composição da maior parte dos outros Livros de Inquirições. E, mais importante, foi feito com um propósito distinto. Os textos que levaram à sua produção tinham como objetivo compilar documentos jurídicos relativos às comunidades muçulmanas portuguesas. Estes textos foram os únicos autenticados em todo o manuscrito e a sua decoração é mais elaborada, tendo sido copiados com um cuidado e preocupação legal que não se verifica nos restantes fólios.
Em segundo lugar, os textos relativos às inquirições foram copiados depois de já terem sido compiladas no manuscrito as cartas das ordens e dos mosteiros e as colheitas a receber dessas instituições. Esses textos adicionariam mais informação às colheitas e foram os últimos a serem copiados, já sem o mesmo cuidado na decoração que se verificava nos primeiros fólios.
Em terceiro lugar, os inventários do século XVI não designavam o livro como sendo de Inquirições. Na realidade, foi adicionado a esse armário só depois de ter sido encontrado no lixo no século XVII. Ainda assim, as dificuldades causadas por esse processo fazem-se notar através dos comentários redigidos pelos escrivães da Torre do Tombo no próprio manuscrito, demonstrando que só passou a ser parte do armário depois de ter sido encontrado numa situação de abandono. Mais ainda, a designação inscrita no primeiro fólio foi alterada para que pudesse ser incluído no armário, o que talvez seja a melhor indicação de que não faria parte dos manuscritos originalmente produzidos para copiar as Inquirições Gerais.
Em quarto lugar, a quantidade de Livros de Inquirições só atingiu o número que atualmente possui no século XVIII. Tal pode significar que este manuscrito não é o único a ter sido incluído no armário das Inquirições numa época posterior à da sua produção. No caso do Livro 4 de D. Afonso III, todavia, tanto os inventários anteriores ao século XVIII, como a sua descrição numa cópia do século XVII de um dos textos compilados, demonstram claramente que o manuscrito era identificado através dos documentos relativos às comunidades muçulmanas, sendo as inquirições mencionadas posteriormente, ou não sendo sequer mencionadas nesses registos.
Ora, cada Livro atualmente incluído na série das Inquirições Gerais foi copiado numa época particular e com um objetivo específico. Por esse motivo, é necessário conhecer cada um deles para se poder afirmar com segurança que o Livro 4 de Afonso III se trata de uma situação excecional entre a série. No entanto, talvez seja possível afirmar que, no caso deste manuscrito, nem a época de composição, nem os textos compilados, nem a sua decoração e inclusão de índice coevo, nem o objetivo que levou à inclusão de matéria das inquirições, são compatíveis com a restante série. Por isso, talvez seja possível afirmar que o Livro 4 de D. Afonso III é um livro que inclui textos das inquirições, mas não que seja um Livro de Inquirições.
Referências bibliográficas
Fontes
Fontes manuscritas
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Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Feitos da Coroa, Inquirições de D. Dinis, livro 9. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4182571
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Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas, Gaveta 10, maço 12, nº 17. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4185855
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Gavetas, Gaveta 15, maço. 9, nº 25. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=7764298
Lisboa, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Leis e Ordenações, Núcleo Antigo 1, Livro de Leis e Posturas. Disponível em: https://digitarq.arquivos.pt/details?id=4223265
Porto, Biblioteca Pública Municipal do Porto, Ms. 86, pp. 389-392.
Fontes impressas
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Portugaliae Monumenta Historica. Leges et Consuetudines vol. 2. Ed. Alexandre Herculano. Lisboa: Academia das Ciências de Lisboa, 1868. Disponível em: https://purl.pt/12270/4/res-1795-a/res-1795-a_item4/index.html