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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental

versão impressa ISSN 1647-2160

Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental  no.24 Porto dez. 2020

https://doi.org/10.19131/rpesm.0278 

ARTIGO DE INVESTIGAÇÃO

 

Satisfação por compaixão, burnout e estresse traumático secundário em enfermeiros da área hospitalar

 

Compassion satisfaction, burnout and secondary traumatic stress among hospital nurses

 

Satisfacción por compasión, burnout y stress traumático secundario en enfermeros del área hospitalaria

 

Edenise Batalha*, Marta Melleiro**, Cristina Queirós***, & Elisabete Borges****

*Doutoranda em Enfermagem na Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; Professora Assistente na Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências da Vida, Rua Silveira Martins, 2555, 41195-001 Salvador, Bahia, Brasil. E-mail: emssilva@uneb.br

**Doutora em Enfermagem; Professora Sênior na Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem, 05403-000, São Paulo, Brasil. E-mail: melleiro@usp.br

***Doutora em Psicologia; Professora Associada na Universidade do Porto, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, 4200-135 Porto, Portugal. E-mail: cqueiros@fpce.up.pt

****Doutora em Enfermagem; Professora Adjunta na Escola Superior de Enfermagem do Porto, 4200-072 Porto, Portugal. E-mail: elisabete@esenf.pt

 

RESUMO

CONTEXTO: Os enfermeiros estão expostos a fatores que podem afetar a sua saúde mental, pois lidam com a dor física e emocional, com situações graves e complexas e, muitas vezes, com situações precárias no trabalho. São, portanto, suscetíveis a Satisfação por Compaixão (SC), Burnout (BO) e Estresse Traumático Secundário (ETS), os quais influenciam a sua saúde individual e podem afetar negativamente a assistência prestada. Assim, estudar esta temática torna-se relevante no contexto hospitalar.

OBJETIVO: Identificar o nível de SC, BO e ETS em enfermeiros portugueses do âmbito hospitalar e analisar a sua variação em função das características sociodemográficas e profissionais.

MÉTODOS: Pesquisa quantitativa com 201 enfermeiros que exerciam em contexto hospitalar, selecionados através da amostragem por redes, sendo 82% mulheres, 55% com idade ≤ 36 anos, e 53% com experiência profissional ≤13 anos. Aplicou-se a Professional Quality Scale 5 e um questionário sociodemográfico, tendo sido seguidos os requisitos éticos para pesquisas com seres humanos.

RESULTADOS: Os níveis foram maioritariamente médios para SC (46,8%), BO (51,2%) e ETS (56,2%). Encontrou-se associação negativa entre a SC e BO e positiva entre o BO e o ETS. Apenas foi encontrado resultado significativo do ETS em função da carga horária semanal, com os enfermeiros que trabalhavam menos horas a apresentarem média superior.

CONCLUSÕES: Os resultados elucidam a necessidade de estratégias que fomentem ambientes de trabalho promotores de saúde mental nos enfermeiros, especialmente relacionadas com a gestão do estresse, visando a diminuição do BO e ETS e a elevação da SC.

Palavras-Chave: Enfermeiros; Transtornos de estresse traumático; Esgotamento profissional; Saúde mental

 

ABSTRACT

BACKGROUND: The nurses are exposed to factors that can affect their mental health because they deal with the physical and emotional pain, with serious and complex situations and often with tense situations at work. Thus, nurses are susceptible to Compassion Satisfaction (CS), Burnout (BO) and Secondary Traumatic Stress (STS), which influence their particular health and can negatively affect the care performed. Therefore, investigating this issue becomes relevant in the hospitals.

AIM: Identify the level of CS, BO and STS in the hospital nurses and analyse their variation as a function of socio-demographic and professional characteristics.

METHODS: Quantitative research with 201 hospital nurses, selected by sampling for networks, being 82% women, 55% aged ≤ 36 years, and 53% ≤ 13 years professional experience. The Professional Quality Scale 5 and a demographic questionnaire were used.  The ethical requirements for research with human beings were followed.

RESULTS: The mean level was the most frequent for all nurses (CS: 46.8%; BO: 51.2%; STS: 56.2%). Significant negative association was found between CS and BO, and significant positive association was observed between BO and STS. There was significant result only for STS as function of the weekly workload, of which nurses who worked fewer hours’ exhibit higher level.

CONCLUSIONS: In sum, results reveal the need of strategies that allow work environments with better mental health for nurses, mainly regarded to stress management, aiming reduction of BO and STS, and increase of CS.

Keywords: Nurses; Stress disorders, traumatic; Burnout; Mental health

 

RESUMEN

CONTEXTO: Los enfermeros están expuestos a factores que pueden afectar su salud mental, porque tratan con el dolor físico y emocional, con situaciones graves y complejas y, muchas veces, con situaciones precarias en el trabajo. Por lo tanto, son susceptibles a la satisfacción por compasión (SC), Burnout (BO) y estrés traumático secundario (ETS), que influencia su salud individual y pueden afectar negativamente la asistencia prestada. Así, estudiar esta temática se vuelve relevante en el contexto hospitalario.

OBJETIVO: Identificar el nivel de SC, BO y ETS en los enfermeros portugueses desde el ámbito hospitalario y analizar su variación de acuerdo con las características sociodemográficas y profesionales.

METODOLOGÍA: Investigación cuantitativa con 201 enfermeros que ejercieron en el contexto hospitalario, seleccionado a través de muestreo por redes, siendo 82% mujeres, 55% con edad ≤ 36 años, y 53% con experiencia profesional ≤ 13 años. Se aplicó la Professional Quality Scale 5 y un cuestionario sociodemográfico, y se siguieron los requisitos éticos para la investigación con los seres humanos.

RESULTADOS: Los niveles fueron mayoritariamente medios para SC (46,8%), BO (51,2%) y ETS (56,2%). Se encontró una asociación negativa entre SC y BO y positiva entre BO y ETS. Sólo se encontró un resultado significativo del ETS en función de la carga horaria semanal, con los enfermeros que trabajaban menos horas a presentar media superior. CONCLUSIONES: Los resultados elucidan la necesidad de estrategias que fomenten ambientes de trabajo promotores de la salud mental en los enfermeros, especialmente relacionadas con la gestión del estrés, visando la disminución del BO y el ETS y la elevación de la SC.

Palabras Clave: Enfermeros; Trastornos de estrés traumático; Agotamiento profesional; Salud mental

 

Introdução

Os enfermeiros representam uma grande parcela dos trabalhadores de saúde e desempenham papel essencial nos cuidados prestados à população. Não obstante, esses trabalhadores estão expostos a diversos fatores que podem afetar a sua saúde mental, pois lidam cotidianamente com a dor física e emocional, com situações graves e complexas e, muitas vezes, com a precariedade no trabalho, estando expostos a sofrimentos, medos, conflitos, disputa de poder, ansiedade e estresse (Baldonedo, Mosteiro, Queirós, Borges & Abreu, 2018; Martins, Robazzi & Bobroffi, 2010).

Relativamente à saúde mental de enfermeiros portugueses, Seabra, Lopes, Calado e Capelas (2019) conduziram um estudo com 1264 enfermeiros, tendo verificado que quase dois terços relataram uma perceção negativa da sua própria saúde mental. Dentro deste grupo, mais de um quinto indicou sintomas graves de depressão, quase três quartos referiam sintomas somáticos e ansiedade, e quase todos referiram disfunção social, o que comprova a magnitude de alterações de ordem mental nesses trabalhadores. Os autores relatam que ainda há poucos estudos sobre as consequências que as demandas profissionais associadas às características de seu trabalho podem ter sobre suas vidas e saúde mental.

A influência do trabalho na saúde mental dos trabalhadores é abordada por Areosa (2018) sob a ótica da psicodinâmica do trabalho, revelando que este se configura como algo fundamental para construção de identidades, seja individual ou social. Contudo, é passivo de conflitos e resistências, dependente de emoções e afetos, bem como repleto de formas de poder e emancipação, sendo em si ambivalente e merecedor de reflexão ética. Trata-se, portanto, de algo indiscutivelmente relevante na atualidade frente às implicações que o trabalho pode provocar nos profissionais (Baldonedo, Mosteiro, Queirós, Borges e Abreu, 2018; Queirós, Borges, Teixeira e Maio, 2018).

Outrossim, a saúde mental associada ao trabalho depende de diversos fatores, conformando-se como uma relação subjetiva e complexa, pois uma determinada situação no trabalho pode ser entendida ou sentida como negativa por um indivíduo e pode ser positiva para outro (Areosa, 2018). Dentro dessa complexa relação, o trabalho pode ser um gerador ou potencializador de prazer e felicidade na vida das pessoas, mas também pode ser fonte de sofrimento físico e emocional.

Os enfermeiros, nomeadamente os da área hospitalar, vivenciam com frequência situações de perda e luto envolvidas no seu processo de trabalho, pois ao cuidar do outro, os profissionais de enfermagem estabelecem relações afetivas, sendo que quanto mais próxima essa relação, maior é o grau de sofrimento. Entretanto, mesmo em meio ao sofrimento, o reconhecimento do seu trabalho por parte da família e do doente permeia sentimento de orgulho e de sensação de dever cumprido (Silva, Lage e Macedo, 2018).

Esta dualidade entre o prazer e o sofrimento no cuidado ao outro é abordada por Stamm (2010), através do que essa autora nomeia de Qualidade de Vida Profissional (QVP), que pode ser entendida como a qualidade que o profissional sente em relação ao seu trabalho. A QVP neste modelo incorpora dois aspetos, o positivo: Satisfação por compaixão (SC) e o negativo: Fadiga por compaixão (FC). A SC refere-se ao prazer que o trabalhador sente ao realizar bem o seu trabalho, estando relacionada a poder ajudar os outros, ao sentir-se positivamente em relação aos seus colegas e por sua capacidade de contribuir para o ambiente de trabalho ou até mesmo para o bem maior da sociedade. Em contrapartida, a FC divide-se em duas dimensões: a primeira diz respeito a sentimentos, como exaustão, frustração, raiva e depressão relacionadas ao Burnout (BO) e a segunda relaciona-se a um sentimento negativo, motivado pelo medo e pelo trauma relacionado ao trabalho, nomeadamente o Estresse Traumático Secundário (ETS).

O BO é uma síndrome psicológica que implica uma reposta prolongada aos estressores interpessoais crônicos no trabalho e é composta por três dimensões: exaustão emocional; despersonalização e realização pessoal. A dimensão da exaustão emocional está relacionada ao sentir-se sobrecarregado e sem recursos emocionais e físicos. Por outro lado, a despersonalização é uma resposta negativa que torna o trabalhador insensível e com uma excessiva apatia a diversos aspetos do trabalho. Por fim, a dimensão da realização pessoal refere-se a sentimentos de incompetência e carência de realizações e produtividade no trabalho (Maslach & Leiter, 2017). Recentemente (em Maio de 2019) a Organização Mundial de Saúde reconheceu o BO como doença relacionada com o trabalho, prevendo-se que em 2022 já esteja incluída na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-11) (World Health Organization, 2019).

Ressalta-se, ainda, que o ETS está relacionado à exposição secundária aos eventos estressantes extremos e traumáticos no trabalho, sendo caracterizado pelo medo e pelo trauma relacionado à assistência ao doente. Os efeitos negativos do ETS podem incluir distúrbios no padrão do sono pelo sentimento de medo, pensamentos intrusivos e comportamento de evitação de lembranças das experiências traumáticas do paciente (Stamm, 2010).

Diante de todas essas características da SC, do BO e do ETS e das implicações para o trabalhador e para a assistência prestada, diversos estudos vêm sendo desenvolvidos visando identificar os níveis de SC, BO e ETS e explorar a relação com variáveis pessoais e profissionais (Carvalho, 2011; Cetrano, Tedeschi, Rabbi, Gosetti, Lora, Lamonaca, Manthorpe & Amaddeo, 2017; Cruz, 2014; Hunsaker, Chen, Maughan & Heaston, 2015; Salimi, Pakpour, Rahmani, Wilson & Feizollahzadeh, 2019).

Pela definição de SC, BO e ETS estas dimensões podem ser consideradas como aspetos do domínio da saúde mental, especialmente no que se refere à promoção de ambientes de trabalho saudáveis através da prevenção do BO e do ETS. Nesse enlace, o Programa Nacional para Saúde Mental de Portugal propõe como meta mais realização de promoção da saúde mental e em articulação com as linhas de Ação Estratégica para a Saúde Mental e o Bem-Estar na Europa enfatiza que são importantes os programas de prevenção e intervenção precoce, através da integração da saúde mental em todas as políticas com ênfase na cooperação entre diversos setores (Portugal, 2017).

Pelo exposto, investigar esta temática torna-se relevante, no sentido de identificar os níveis de SC, BO e ETS, bem como para melhorar a QVP dos trabalhadores, prevenindo o adoecimento, especialmente psíquico dos enfermeiros.  Assim, este estudo teve como objetivos identificar o nível de Satisfação por compaixão, BO, e Estresse Traumático Secundário em enfermeiros portugueses do âmbito hospitalar, e analisar a sua variação em função de características sociodemográficas e profissionais.

 

Métodos

Tipo de estudo e participantes

Pesquisa de abordagem quantitativa, descritiva, analítica, de corte transversal, realizada no período de janeiro a fevereiro de 2019. A população do estudo foram enfermeiros da área hospitalar a exercer em Portugal. A amostragem empregada foi não-probabilística, através da amostragem por redes ou snowball. Os critérios de inclusão foram ser enfermeiro e atuar em hospitais da região norte de Portugal. A amostra foi constituída por 201 enfermeiros, a maioria do Distrito do Porto, mulheres, jovens, com parceiro, licenciadas, provenientes de centro hospitalar universitário com vínculo definitivo (Tabela 1).

 

Instrumentos de colheita de dados

Para a coleta dos dados sociodemográficos e profissionais foi construído um breve questionário através do qual se recolheram os dados apresentados na Tabela 1, enquanto para a coleta de dados relacionada com a QVP foi utilizada a Professional Quality Scale 5 (ProQOL 5, de Stamm, 2010), traduzida e adaptada para o contexto português por Carvalho (2011).

A ProQOL 5 é composta por 30 itens que se organizam em três subescalas: SC; BO; e ETS, cada uma com dez itens, os quais permitem avaliar a perceção do participante através de uma escala de Likert de 5 pontos, variando de 1 (Nunca) a 5 (Muito frequentemente).

A fidelidade da ProQOL 5 para este estudo foi testada a partir do coeficiente do Alfa de Cronbach, alcançando valores de 0,87 para a SC, 0,73 para o BO e 0,84 para o ETS, os quais indicam boa consistência interna e confiabilidade da escala para amostra estudada. Salienta-se que estes valores são próximos dos verificados na versão original (Stamm, 2010) e na versão portuguesa do ProQOL 5 (Carvalho, 2011).

 

Procedimentos

A pesquisa foi submetida a Comissão de Ética da Escola Superior de Enfermagem do Porto, sendo aprovada conforme Anexo 4 à ata n.º 26/2018. Seguiram-se todos os critérios éticos para pesquisas com seres humanos, sendo solicitado consentimento informado aos participantes e garantido o anonimato e confidencialidade das informações.

 Após a aprovação do estudo, as pesquisadoras fizeram contato com enfermeiros que atuam em contexto hospitalar, convidando-os a participar da pesquisa e solicitando que indicassem outros colegas, conforme os critérios de inclusão.

Os instrumentos de coleta de dados foram disponibilizados aos participantes de duas formas, impressos em papel ou online através de um formulário criado no Google Forms. Essas duas formas de recolha de dados foram escolhidas pelas pesquisadoras para dar agilidade e maior poder de alcance a pesquisa. Ao final da recolha dos dados, verificou-se que 164 enfermeiros responderam via papel e todos os instrumentos foram considerados elegíveis para seguir para a análise.  Relativamente à recolha online, constou de 45 enfermeiros, entre os quais oito foram excluídos pois tratavam-se de trabalhadores que não exerciam em contexto hospitalar, seguindo, portanto, 37 como elegíveis para análise, perfazendo 201 participantes.

O tratamento dos dados foi efetuado através do Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) versão 24. Para análise descritiva utilizou-se frequência absolutas e relativas, bem como medidas de tendência central, nomeadamente média (M) e desvio padrão (DP). Foram calculados também os percentis das três subescalas. Os Tscores da SC, BO e ETS e os padrões de cortes para classificação dos níveis em baixo, médio e alto das três subescalas da QVP foram analisados de acordo com a autora da versão original recorrendo a transformação dos valores primários em Zscores seguindo a sua conversão em Tscores (Stamm, 2010). Desse modo, a reconversão dos valores primários, forçado para obter uma M de 50 e um DP de 10, possibilitou a comparação entre os valores das três subescalas e com outras investigações que utilizaram o mesmo instrumento. 

Efetuou-se ainda uma análise de correlação entre as subescalas da QVP, através do R de Pearson. Relativamente a comparação de médias da SC, BO e ETS em função de variáveis sociodemográficas e profissionais utilizou-se o teste paramétrico t de Student para amostras independentes e o teste não paramétrico de Mann-Whitney de acordo com os seus critérios de aplicabilidade. Adotou-se o limite de significância de p<0,05 (grau de confiança de 95%).

 

Resultados

A análise da SC, do BO e ETS (Tabela 2) quanto a média, desvio padrão, valor máximo, valor mínimo e percentis revelou que a SC apresenta a média mais elevada em oposição ao ETS com a média mais baixa.

 

Considerando os níveis de cada dimensão (Gráfico 1) através das categorias  Baixo, Médio e Alto para as três subescalas SC, BO e ETS, verifica-se que a maioria da amostra se situou no nível médio, sendo 46,8% para SC, 51,2% para BO e 56,2% para ETS.

A análise através do R de Pearson (Tabela 3) revelou uma correlação significativa e negativa entre SC e o BO, e significativa e positiva entre o BO e o ETS. Não foi evidenciada correlação significativa entre ETS e SC.

Realizaram-se análises comparativas para a SC, BO, ETS em função de variáveis sociodemográficas e profissionais, tendo apenas sido encontrada diferença estatisticamente significativa para o ETS em função das horas de trabalho semanal (Tabela 4). Nota-se que os enfermeiros que trabalhavam ≤ 35 horas semanais apresentaram médias superiores de ETS.

 

Discussão

Na QVP a SC apresenta-se como fundamental, pois reflete o quanto o trabalhador está satisfeito em realizar o seu trabalho.  A média da SC evidenciada neste estudo esteve ligeiramente abaixo da encontrada no estudo com enfermeiros do serviço de emergência dos Estados Unidos (M= 39,8) (Hunsaker, Chen, Maughan Heaston, 2015) e dos achados de Zhang, Han, Qin, Yin, Zhang, Kong e Wang. L Zhang (2018) em sua meta-análise sobre SC na enfermagem, que encontraram uma M= 45,1 com variações de 38,0 a 52,1. Contudo, situou-se acima da média encontrada entre enfermeiros de cuidados intensivos no Irão (M= 36,3) (Salimi, Pakpour, Rahmani, Wilson & Feizollahzadeh, 2019).

Quanto aos níveis de SC, os enfermeiros apresentaram predominantemente SC média, o que também foi evidenciado no estudo de Cruz (2014) com enfermeiros portugueses, com 45,5% da amostra neste nível, e por Carvalho (2011) na sua pesquisa com profissionais de saúde do contexto português com 54,8%. A percentagem do nível baixo de SC foi menor que a encontrada por Cruz (2014) que evidenciou 29,5% dos enfermeiros no nível baixo de SC, porém mais alta que a evidenciada por Carvalho (2011) que obteve 17,8%.

Tais achados sugerem que o fenômeno da SC é experienciado pelos enfermeiros e demais trabalhadores de saúde de maneira diferente, possivelmente sendo influenciada por diversas variáveis, entre as quais o local e as condições de trabalho. Nesse enlace, isto ratifica o que Stamm (2010) exemplifica no modelo teórico da QVP, que fatores como ambiente do trabalho, aspetos dos doentes e características próprias do trabalhador irão influenciar diretamente na SC e na FC. Além disso, os estudos citados decorreram em anos diferentes, o que subentende fases diferentes da relação entre trabalhador e trabalho, bem como das próprias características ou condições de trabalho. Contudo, torna-se difícil comparar estudos, sugerindo-se estudos multicêntricos que recolham os dados no mesmo momento.

Diante da importância da SC (Sacco & Copel, 2018) enfatizam que aumentar os sentimentos de SC dos enfermeiros promove o bem-estar individual do enfermeiro, bem como proporciona benefício positivo para as pessoas que utilizam serviços no sistema de saúde.

A elevação do nível da SC é algo complexo, mas necessário através do fortalecimento dos antecedentes da SC já identificados por Sacco & Copel (2018), como por exemplo: relação empática estabelecida com o doente ou família; apoio dos colegas; desenvolvimento da resiliência e de mecanismos de enfrentamento; prática do autocuidado; e equilíbrio entre trabalho e vida com apoio social conjugado com avanços organizacionais, o que pode ser um caminho para a sua estimulação dentro da equipe. Além disso, deve-se ter em consideração o impacto positivo que os resultados advindos da SC têm de forma sistêmica no sistema de saúde e na sociedade, além de preservar a saúde do trabalhador.

No que se refere ao BO, a média apresentada pelos enfermeiros foi ligeiramente acima da encontrada por Cruz (2014) (M= 24,5) e por Hunsarker et al. (2015) (M=23,7) e mais baixa do que a evidenciada por Salami et al. (2019) (M=26,9). Quanto ao seu nível, classificado mediante os percentis, a maioria situou-se no nível médio, seguido pelo alto, corroborando com os resultados de Cruz (2014). Estando a maioria da amostra no nível médio a alto de BO, pode-se inferir que há uma vulnerabilidade psicológica com impacto na saúde dos enfermeiros e com efeitos nas organizações de saúde e nos cuidados prestados.

Cetrano et al. (2017) evidenciaram que o BO estava associado a mais problemas ergonômicos, baixo comprometimento organizacional, autonomia, confiança e participação, além de maior impacto do trabalho na vida pessoal dos trabalhadores. Além disso, Mercês, Gomes, Else, Santana, Silva, Machado, Couto, França, Figueiredo e D’Oliveira Júnior (2018) identificaram que maiores prevalências do BO estavam associadas a mais cefaléia e tontura.

Ainda, estudos com enfermeiros revelaram a relação do BO com sintomas depressivos. Johnson, Louch, Dunning, Johnson, Grange, Reynolds, Hall e O'Hara (2017) verificaram que o BO mediava sintomas depressivos e a perceção de segurança dos doentes, tendo o melhor ajuste estatístico sido encontrado quando os sintomas depressivos foram considerados como um resultado do BO, em vez de um preditor de BO. Esta relação do BO com a depressão também foi corroborada por Duan-Portera, Hatchc, Pendergastc, Freudef, Rosef, Burrf, Müller, Martus, Pohrt e Potte (2018), os quais encontraram que o maior desengajamento (avaliado neste estudo como forma análoga ao cinismo ou despersonalização) contribuiu para sintomas depressivos mais graves ao longo do tempo, enquanto a exaustão estava significativamente associada com mais sintomas depressivos.

Face aos diversos impactos negativos do BO, especialmente na saúde mental dos trabalhadores, intervenções devem implementadas, conforme Maslach & Leiter (2017) e Queirós et al. (2018), devendo essas medidas serem realizadas a nível organizacional e individual, visando a prevenção e a minimização do BO. De forma individual é essencial o desenvolvimento da autoavaliação e autoconhecimento, visto que são primordiais para o reconhecimento de sinais e sintomas do BO. Outras medidas incluem a gestão adequada do estresse, a adoção de comportamentos saudáveis, a idealização de expectativas realistas no local de trabalho, a partilha com os colegas, e em casos mais graves, a psicoterapia pode até ser recomendada (Queirós et al., 2018). As propostas organizacionais concentram-se no local de trabalho e tentam alterar as condições que estão realmente causando o estresse nos trabalhadores. Neste modelo, pode-se incluir o redesenho das tarefas, a melhoria no reconhecimento das equipes e dos profissionais, e o desenvolvimento de políticas mais justas e equitativas (Maslach & Leiter, 2017).

Silva, Borges, Abreu, Queirós, Baptista e Felli (2016) desenvolveram um estudo com enfermeiros da região metropolitana do Porto-Portugal acerca da relação do BO com a resiliência, evidenciando que a resiliência se correlacionou negativamente com a exaustão emocional e positivamente com a realização pessoal.  Inferiram, então, que trabalhadores com elevado grau de resiliência tinham a tendência de não apresentar BO e enfatizaram que intervenções sobre o ambiente de trabalho devem ser implementadas, a fim de promover comportamento resiliente nos trabalhadores. 

O BO apresentou correlação negativa significativa com a SC, sugerindo que medidas que visem o aumento da SC poderá diminuir o BO nos enfermeiros, e ainda  que o aumento do nível do BO pode levar a diminuição da SC. De facto, o trabalhador em BO apresenta sentimentos de desesperança e dificuldades em lidar com o trabalho ou em fazer o trabalho de forma eficaz (Satmm, 2010). Além disso, no BO pode haver a diminuição da empatia para com o outro, algo essencial para a manutenção da compaixão (Maslach & Leiter, 2017) e fundamental na profissão de enfermagem. Tal achado ratifica o encontrado no modelo conceitual de Sacco & Copel (2018) que explica o impacto positivo da SC para o trabalhador e para o trabalho desenvolvido, nomeadamente o entusiasmo e significado ao trabalho, o engajamento, a proteção contra a FC, a manutenção da empatia, e o ambiente de trabalho positivo. Portanto, e de acordo com esta correlação, BO e SC apresentam-se como opostos dentro do contexto do trabalho.

Relativamente ao ETS, a amostra apresentou uma média superior a pesquisa de Cetrano et al. (2017) (M=14,4) e Hunsarker et al. (2015) (M=21,6), e foi bastante próxima de Cruz (2014) que também estudou enfermeiros portugueses (M= 24,9) e inferior que a encontrada por Salimi et al. (2019) (M=26,9). Quanto ao nível de ETS, os enfermeiros encontram-se em sua maioria no nível médio, seguido do alto, o que diferiu de Cruz (2014) que teve 38,5% situados no nível médio e 32,4% com nível baixo de ETS.

A expressiva percentagem da amostra em ETS médio e alto constitui um sinalizador de que estes trabalhadores possam estar a sofrer dos impactos físicos e emocionais do ETS.

Além dos sintomas relacionados com o medo, dificuldades para dormir, evitação de circunstâncias que relembrem os traumas advindo do trabalho anteriormente apresentados por Stamm (2010), Cetrano et al. (2017) identificaram que ETS estava relacionado com problemas ergonômicos, perceção da qualidade das reuniões no trabalho e com o impacto da vida no trabalho e do trabalho na vida pessoal.

O ETS apresentou correlação positiva com o BO. Enquanto o BO se baseia na exposição prolongada a estressores crônicos no trabalho, o ETS relaciona-se com eventos traumáticos no trabalho. Além disso, o BO tem um desenvolvimento mais prolongado advindo fundamentalmente de uma exaustão emocional e física, enquanto o ETS tem na sua base o medo e o trauma decorrente de eventos no trabalho (Stamm, 2010). São, portanto, fenômenos distintos, mas que apresentam semelhanças do ponto de vista psicológico e perfazem no modelo da QVP a FC. Cruz (2014) evidenciou que maiores níveis tanto do BO como do ETS estavam associados a níveis mais altos de sintomas psicopatológicos, nomeadamente depressão, estresse e ansiedade, o que possivelmente justifica a correlação positiva encontrada.

Stamm (2010) refere que atenção especial deve ser dada ao risco da conjugação do BO com o ETS, uma vez que neste caso há um maior sofrimento do trabalhador na sua vida profissional, com maior risco de desenvolver depressão pelo ambiente de trabalho.

Quanto a análise da variação da QVP em função de características sociodemográficas e profissionais, apenas o ETS apresentou diferença significativa na carga horária semanal.  Este resultado diferiu de outros estudos que encontraram variação da QVP, nomeadamente em função da idade, no qual enfermeiros mais velhos possuíam maior nível de SC (Hunsaker et al., 2015; Salimi et al., 2019) e menos BO (Hunsaker et al., 2015). Em relação a experiência profissional, Salimi et al. (2019) evidenciaram que os mais experientes apresentaram níveis mais baixos de BO, e que o ETS variou significativamente em função do tempo e tipo de unidade de trabalho.

Os enfermeiros no presente estudo que trabalhavam até 35 horas apresentaram média superior aos enfermeiros com mais horas de trabalho. Esse dado sugere que a menor carga horária pode levar a maior dedicação ao trabalho e envolvimento com os doentes, com maior preocupação empática, e, portanto, mais ETS. Essa inferência encontra semelhança no estudo de Cruz (2014), que nos seus resultados apontou para uma relação positiva significativa entre o ETS e a preocupação empática, que permeia a capacidade de experienciar sentimentos de preocupação e compaixão pelo outro. Contudo, Cruz (2014) também evidenciou que a preocupação empática também influenciava a SC, pois os trabalhadores mais empáticos pareciam ter mais satisfação no cuidado aos outros. Sob essa ótica, a busca de equilíbrio entre uma relação empática que promove SC e, consequentemente, todos os seus benefícios e a geração de ETS deve ser buscada no intuito de preservar a saúde do trabalhador e o melhor cuidado aos doentes. Assim, Cruz (2014) revela a necessidade de estratégias que auxiliem os enfermeiros a lidarem com eventos estressantes e a desenvolverem autocompaixão e regulação emocional.

 

Conclusões

Neste estudo foi possível identificar a QVP de enfermeiros portugueses que atuam no âmbito hospitalar, averiguando-se que a maioria apresentou nível médio de SC, BO e ETS. O BO apresentou correlação negativa e significativa com a SC, sugerindo que medidas que visem diminuir o BO poderão levar ao aumento da SC nos enfermeiros. O BO apresentou correlação significativa e positiva com o ETS, indicando que compartilham características, especialmente referentes aos sintomas psicopatológicos. O ETS apresentou, ainda, variação em função da carga horária semanal, sendo os enfermeiros que trabalhavam menos horas aqueles que apresentaram maior índice de ETS.

Por conseguinte, conclui-se que a ambivalência do trabalho na saúde mental e física aplicada a QVP dos enfermeiros remete para a satisfação e prazer no trabalho, mas também para o desgaste, sofrimento, medo e trauma advindos do BO e do ETS. Assim, medidas de cunho individual e organizacional, devem ser implementadas para a estimulação de maior SC e diminuição dos níveis de BO e ETS, visando melhor QVP dos enfermeiros, melhor desempenho das organizações e maior qualidade no cuidado prestado aos doentes.

 

Implicações para a Prática Clínica

A avaliação da QVP dos enfermeiros elucida a necessidade de fomentar estratégias para ambientes de trabalho promotores de saúde mental nestes trabalhadores. Estratégias essas que podem ser realizadas visando a gestão dos riscos e a promoção da saúde, como a gestão do estresse de maneira individual, através de autoconhecimento, autoavaliação, e o desenvolvimento de comportamentos mais resilientes, mas também de forma organizacional, com a equalização da carga laboral, gerenciamento dos conflitos das equipes, apoio social, inclusão e autonomia dos indivíduos no seu exercício profissional.

É relevante ratificar a necessidade de cuidar de quem cuida, pois o ser enfermeiro na sua atuação percebe satisfação, mas também sofrimento. Desta forma, para melhorar a saúde mental destes profissionais devem existir políticas de recursos humanos adequadas e que se concretizem na prática através de programas e serviços acessíveis aos trabalhadores, potenciando a QVP dos enfermeiros, bem como a qualidade dos cuidados prestados.

 

Financiamento

O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 88881.190017/2018-01.

 

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Recebido em 30 de setembro de 2019

Aceite para publicação em 11 de fevereiro de 2020

 

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