Introdução
O eHealth e a telessaúde são conceitos diretamente relacionados com a telemedicina e têm tido uma relevância crescente no setor da saúde a nível mundial, contribuindo para um desempenho mais efetivo dos sistemas de saúde e com evidência sobre indicadores como satisfação dos clientes, qualidade dos cuidados prestados e acessibilidade aos cuidados de saúde, colaborando desta forma para o avanço da cobertura universal da saúde (World Health Organizations [WHO], 2019). Desde 2005 que o eHealth é uma prioridade para a WHO em quatro domínios chave de atuação: Saúde móvel (mHealth), Telemedicina, Sistemas de Informação em Saúde e eLearning (WHO, 2016). Neste sentido, o eHealth, também chamado de saúde digital, tem permitido o desenvolvimento de plataformas informáticas de suporte ao ecossistema de informação de saúde, bem como o desenvolvimento de diversos modelos de teleconsulta mais generalistas ou outros mais específicos (European Commission, 2018; Krupinski & Bernard, 2014; Serviços Partilhados do Ministério da Saúde [SPMS], 2021). Embora várias organizações internacionais e nacionais possuam a sua própria visão taxonómica e semântica dos conceitos em saúde digital (American Telemedicine Association, 2021; Direção Geral da Saúde, 2015; WHO, 2019), o presente estudo integra o conceito de teletriagem definido pelos SPMS através do Centro Nacional de Telessaúde (CNS) e pela Direção Geral de Saúde (2015, 2018). Neste contexto, como Triagem à distância (teletriagem) entende-se a avaliação preliminar de sinais e/ou sintomas, possibilitando ao cliente a orientação para o cuidado de saúde adequado (emergente, urgente ou não urgente) (Ministério da Saúde, 2022). No que à saúde mental e psiquiátrica diz respeito, no último relatório publicado pela WHO (2022), pode ler-se que, mundialmente, as necessidades em saúde mental são elevadas e que as respostas são insuficientes e inadequadas. Sabe-se já que doenças psiquiátricas como a depressão e ansiedade, aumentaram 25% durante o primeiro ano da pandemia, somando-se aos quase 1000 milhões de pessoas que já sofrem alguma perturbação mental (WHO, 2022). Similarmente, a WHO (2019, 2022) destaca que em muitos ambientes, as tecnologias digitais podem ser ferramentas promissoras que fortalecem os sistemas de saúde e com impacto, também, sobre a saúde mental, permitindo informar e educar os clientes, treinar e apoiar os profissionais de saúde e garantir atendimento remoto, contribuindo para a acessibilidade e qualidade dos cuidados de saúde. Relativamente à teletriagem em saúde mental realizada por enfermeiros, a literatura existente é escassa. No âmbito da saúde mental e psiquiátrica a evidência, embora de baixa qualidade, aponta para que se possam fornecer serviços de telepsiquiatria a uma ampla gama de clientes, de diversas faixas etárias, em diferentes locais geográficos e com impacto sobre os indicadores em saúde (Dexter, 2020; Ellington & McGuinness, 2011; Finley et al., 2021). Os enfermeiros podem intervir através de estratégias remotas em telepsiquiatria de forma viável e bem-sucedida numa ampla variedade de condições de saúde mental, doença psiquiátrica, uso de substâncias, em diferentes populações, localizações geográficas e ambientes clínicos (Finley et al., 2021). Além disso, a crise da COVID-19 potenciou a necessidade de cuidados de saúde remotos (Uscher-Pines et al., 2021), havendo fortes evidências que os cuidados de saúde prestados remotamente são bem aceites por clientes e prestadores de cuidados (Dexter, 2020; Rutenberg & Greenberg, 2012; Schroeder, 2022), promovendo o reforço dos sistemas de saúde, garantindo maior acesso, equidade, qualidade em saúde e capacitação dos clientes (Ordem dos Enfermeiros, 2021; SPMS, 2021). A tendência para os serviços de saúde recorrerem à teletriagem, no qual a saúde mental se engloba (Instituto Nacional de Emergência Médica, 2022), permite identificar precocemente sinais e sintomas, prescrever intervenções apropriadas e potenciar a prevenção de doença psiquiátrica (Wright et al., 2021). Face à crescente necessidade em cuidados de saúde, o grupo LUZ Saúde desenvolveu um serviço de telessaúde, designado por LUZ24, gratuito, disponível 24 horas e 365 dias por ano, para os seus clientes e potenciais clientes (toda a população). Este serviço abrange a vídeoconsulta e a teletriagem, estando esta última assente em protocolos clínicos. Estes são desenvolvidos com base nas melhores práticas e evidências científicas pela equipa clínica da LUZ24 e representam algoritmos de tomada de decisão, de acordo com a sintomatologia apresentada pelo cliente. São compostos por questões específicas e fornecem orientações para o encaminhamento dos clientes para os serviços apropriados. Estes resultam nos seguintes encaminhamentos: serviços de emergência médica, atendimento urgente, consultas médicas especializadas e autocuidados. A teletriagem na LUZ24 é efetuada exclusivamente por enfermeiros peritos em atendimento clínico telefónico, integrando enfermeiros especialistas em várias áreas, nomeadamente em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica. Assim, com este trabalho pretende-se mapear os resultados da atividade em teletriagem realizada por enfermeiros da LUZ24, no âmbito da saúde mental e psiquiátrica.
Método
O tipo de estudo enquadra-se numa análise documental, que seguiu as diretrizes Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology (STROBE) que abordam os três tipos principais de estudos observacionais: estudos de coorte, caso-controle e transversais (von Elm et al., 2007). Partiu-se da questão: “Quais são os resultados da atividade em teletriagem, realizada por enfermeiros da LUZ24, no âmbito da saúde mental e psiquiátrica?”. O objetivo geral do estudo foi mapear os resultados da atividade em teletriagem realizada por enfermeiros da LUZ24, no âmbito da saúde mental e psiquiátrica, tendo como objetivos específicos: i) identificar as características sociodemográficas da amostra das teletriagens em saúde mental e psiquiátrica; ii) identificar a prevalência da sintomatologia no âmbito da saúde mental e psiquiátrica de acordo com os protocolos utilizados e iii) identificar a prevalência dos encaminhamentos das teletriagens em saúde mental e psiquiátrica (emergência médica, atendimento urgente, consulta e autocuidados). A amostra foi não probabilística por conveniência identificada a partir do serviço de teletriagem da linha LUZ24. Os critérios de inclusão aplicados foram: i) todos os clientes que por sua iniciativa recorreram ao serviço de teletriagem LUZ24; ii) o período entre janeiro de 2020 e dezembro de 2021 e iii) todas as teletriagens com recurso a protocolos com sintomatologia no âmbito da saúde mental e psiquiátrica. Os critérios de exclusão aplicados foram: i) todos os protocolos fora do âmbito da teletriagem em saúde mental e psiquiátrica; ii) teletriagens realizadas fora do intervalo de tempo previamente determinado, iii) recurso a protocolos no âmbito da saúde mental e psiquiátrica com sintomatologia justificada por causa orgânica, iv) registos incompletos (sem identificação da razão do contacto e triagens abandonadas pelos clientes) Não foram aplicados critérios de exclusão de género, idade, etnia ou outras características pessoais. A extração de dados foi efetuada a partir da ferramenta Oracle BI Publisher, solução de software que permite criar, gerir e entregar relatórios. Agrega as fontes de dados e atualiza-as simultaneamente. As fontes de dados neste contexto são diferentes aplicações do universo LUZ Saúde, nomeadamente ferramenta LUZ24 (é uma ferramenta de apoio à triagem e de registo clínico desenvolvido pela LUZ Saúde) e plataforma medico-administrativa das unidades do Grupo LUZ Saúde. A confidencialidade dos dados e o anonimato dos participantes está assegurada, uma vez que esta ferramenta codifica os dados de forma numérica e cronológica. Todos os dados extraídos foram armazenados num banco digital, protegido por uma senha, para garantir que apenas os investigadores tivessem acesso. Esta etapa foi realizada por dois pesquisadores de forma independente que procederam a uma rigorosa análise dos registos de enfermagem por forma a garantir o cumprimento dos critérios de inclusão. Foi consultado um terceiro pesquisador nos casos de falta de concordância. A estratificação e análise seguiu a proposta de diagrama de Bossuyt et al. (2015). O processo de identificação, seleção e inclusão da amostra foi realizado por dois pesquisadores de forma independente, tendo sido consultado um terceiro pesquisador nos casos de falta de concordância. Dos protocolos utilizados na teletriagem, foram identificados 10 passíveis de avaliar sintomatologia no âmbito da saúde mental e psiquiátrica: Aparentemente alcoolizado, Overdose e envenenamento, Anorexia, Abstinência, Auto-agressão, Confusão, Comportamento estranho, Doença mental, Insónia e Ansiedade ou Crise situacional. Foi realizada análise documental dos registos de teletriagem, que permitiu identificar quadros clínicos que, embora apresentassem sintomatologia no âmbito da saúde mental e psiquiátrica, tinham também associada sintomatologia de causa orgânica. A análise e tratamento dos dados foi efetuada com recurso à ferramenta da Microsoft Excel versão 2021, tendo sido utilizadas medidas de estatística descritiva para a caracterização da amostra e para os dados clínicos (protocolos e encaminhamentos). Quanto às considerações éticas, a investigação foi aprovada pela Comissão de Investigação e Comissão de Ética Competente do Hospital da Luz.
Resultados
A análise da figura 1 permite identificar 63396 teletriagens no âmbito geral.
Após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão previamente determinados, excluíram-se 62188 teletriagens, possibilitando assim a seleção de 1208 resultados. Após a análise documental dos seus consequentes registos, identificaram-se que 203 desses resultados seriam passíveis de justificação orgânica (quadros respiratórios, gastrointestinais, urinários e febre) associada à sintomatologia no âmbito da saúde mental, pelo que se procedeu à sua exclusão. Foram identificados 17 casos no protocolo Anorexia, 64 no protocolo Comportamento estranho, 36 no protocolo Confusão e 86 no protocolo Overdose e envenenamento. A amostra incluída no estudo corresponde a 1005 (1,59%) teletriagens com sintomatologia no âmbito da saúde mental. Quanto ao género, a amostra é representada por elementos do género feminino (n= 651, 64,78%) e masculino (n= 354, 35,22%), conforme elucidado na figura 2.
A análise da figura 3 permite consultar a distribuição da amostra por idades, número de casos verificados para cada uma delas, bem como as medidas de tendência central e de dispersão.
Relativamente à idade, a amostra é bimodal (61 e 42 anos), a média é de 50,41 anos, com um Desvio padrão de 20,09, uma Variância de 403,50 e uma Amplitude de 97 anos. Da análise dos resultados e da sua distribuição pelos 10 protocolos previamente identificados, conforme se pode consultar no quadro 1, verifica-se que a maioria dos casos foi triada com recurso aos protocolos com sintomatologia de Ansiedade ou crise situacional (n= 474, 47,16%), seguindo-se Insónia (n= 269, 26,77%) e Doença mental (n= 144, 14,33%). Os protocolos de Comportamento estranho (n= 70, 6,97%), Confusão (n= 16, 1,59%), Auto-agressão (n= 12, 1,19%), Abstinência (n= 8, 0,80%), Anorexia (n= 7, 0,70%), Overdose e envenenamento (n= 4, 0,40%) e aparentemente alcoolizado (n= 1, 0,10%) compõem os restantes protocolos percorridos.
Das teletriagens analisadas, os quatro níveis de encaminhamento, de acordo com o grau de gravidade, foram: Emergência Médica (n= 10; 0,99%), Atendimento Urgente (n= 291, 28,95%), Consulta (n= 643, 63,98%) e Autocuidados (n=61, 6,06%), conforme se pode consultar no quadro 2. A orientação para a consulta foi o encaminhamento mais prevalente (63.98%).
Discussão
Atendendo aos resultados apresentados no âmbito da teletriagem, estes demonstram que, na amostra analisada, há uma prevalência de sintomatologia no âmbito da saúde mental e psiquiátrica, compatível com a prevalência global da mesma (GBD 2019 Mental Disorders Collaborators, 2022). É importante destacar que, globalmente, a ansiedade e a depressão estão entre os quadros mais comuns, impactando negativamente a qualidade de vida dos clientes (Sampaio et al., 2021; Sampaio et al., 2022), bem como os problemas relacionados com o sono, já que 40% da população mundial tem uma perturbação de sono (WHO, 2022). A orientação para a consulta foi o encaminhamento mais prevalente, o que sugere a importância de uma intervenção precoce e de um acompanhamento adequado para clientes com sintomatologia no âmbito da saúde mental e psiquiátrica (Compton & Shim, 2020). Relativamente ao género, este estudo demonstra que as mulheres representam 64,78% da amostra que recorreu ao serviço de teletriagem, o que vai ao encontro dos resultados apresentados no Relatório Epidemiológico Nacional de Saúde Mental (Almeida et al., 2013). Similarmente Frid et al. (2020) referem que, no seu estudo, a idade média da sua amostra era de 50 anos e que 68% dos clientes que recorreram a um serviço de teletriagem eram mulheres. De acordo com Almeida et al. (2013), as mulheres apresentam um risco maior que os homens de sofrer de perturbações depressivas, e perturbações de ansiedade, enquanto os homens têm uma maior probabilidade de sofrer de perturbações do controlo dos impulsos e de perturbações pelo abuso de substâncias. No relatório de Almeida et al. (2013) pode ler-se que, em Portugal, ao escalão etário entre os 18 e os 34 anos associou-se um risco muito elevado de ocorrência de doença mental, particularmente no que se refere ao abuso de substâncias (álcool). Neste sentido, o género e a idade podem influenciar a incidência das perturbações mentais e podem afetar a vida de crianças e adultos, tanto em países desenvolvidos como em desenvolvimento, causando sofrimento, invalidez, incapacidade, e são responsáveis por custos elevados para clientes, famílias e sociedade (Palha & Palha, 2016). Quanto à orientação para o nível de cuidados mais adequado, na amostra em estudo, 63,98% dos casos foram encaminhados para uma consulta. É possível encontrar evidência na literatura que refere que a prevenção e o tratamento precoce têm provado ter influência na evolução positiva das perturbações mentais. Por esta razão, a avaliação do tempo que medeia entre o início das manifestações clínicas destas perturbações e o início do seu tratamento é um dado importante para a avaliação da acessibilidade aos cuidados e para o planeamento da melhoria da sua qualidade (Compton & Shim, 2020). Adicionalmente, Wheeler et al. (2015) referem que, de entre os quatro grupos de profissionais que emergiram da literatura e que realizam teletriagem (médicos, enfermeiros, administrativos e técnicos de emergência medica), os enfermeiros foram os que obtiveram as maiores taxas médias de encaminhamento apropriado (91%). Os mesmos autores referem ainda como componentes essenciais na tomada de decisão, a existência de algoritmos (protocolos), documentação e treino. Por sua vez, Sands et al. (2013) reconhecem que os serviços de teletriagem em Saúde Mental podem fornecer cuidados de saúde mental de emergência de alta qualidade via telefone para clientes em crise e emergência psiquiátrica. Neste sentido, a implementação de estratégias remotas de intervenção que incluam uma cuidadosa avaliação do envolvimento organizacional e dos stakeholders antes do seu lançamento, do ambiente de trabalho físico e psicológico, do treino e suporte contínuo aos profissionais e das métricas para avaliar a eficácia e eficiência da teletriagem podem ser úteis e seguras para a orientação dos clientes para o nível adequado de encaminhamento (Lewinski et al., 2021). Adicionalmente, as estratégias remotas de teletriagem reduzem deslocações desnecessárias aos serviços de urgência (Frid et al., 2020), e ainda, permitem aos enfermeiros recorrerem a estes meios para recolher dados úteis à pesquisa, contribuindo para o conhecimento da disciplina e desenvolvimento da prática (Rosinhas et al., 2021).
Conclusões
O método utilizado nesta investigação permitiu alcançar o objetivo geral de mapear os resultados da atividade em teletriagem efetuada por enfermeiros da LUZ24. A teletriagem realizada por enfermeiros peritos, treinados na avaliação clínica remota, com recurso a protocolos de sintomatologia no âmbito da saúde mental e psiquiátrica, assegurou a triagem de clientes e o seu encaminhamento. Embora esta investigação apresente algumas limitações metodológicas (análise documental, amostra não probabilística e não utilizar estatística inferencial), esta permitiu levantar algumas questões que não foram exploradas e que representam as implicações para a prática clínica: a orientação para os diferentes encaminhamentos revelou-se eficaz na resolução da sintomatologia inicialmente identificada? os encaminhamentos identificados tiveram impacto nos indicadores de qualidade em saúde como satisfação dos clientes, acessibilidade aos cuidados de saúde, tempos de espera? Com este estudo, emerge ainda, como implicações para a investigação: i) a necessidade de realização de estudos primários experimentais, longitudinais e prospetivos de teletriagem realizada por enfermeiros e ii) a realização de estudos que permitam monitorizar a efetividade das intervenções de enfermagem implementadas através de teletriagem.
Agradecimentos
Os autores expressam o seu profundo agradecimento pelo apoio e assistência prestados por toda a equipa da LUZ24, em especial à Doutora Petra Matias, Diretora do Hospital da Luz Digital, ao Doutor Daniel Ferreira, Diretor Clínico do Hospital da Luz Digital, à Doutora Betânia Ferreira, Diretora Clínica da LUZ24, e a todos os enfermeiros do serviço de teletriagem LUZ24.
Informações de autor
Especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, Especialista em Enfermagem Médico-Cirúrgica na área da Pessoa em Situação Crítica, Mestre em Enfermagem da Pessoa em Situação Crítica, Especialista em Tecnologia da Saúde: Especialidade em Enfermagem. Professor Assistente na Escola Superior de Saúde Santa Maria.