Introdução e problema
A reflexão sobre a Sociologia em Portugal implica o estudo da sua génese e desenvolvimento como ciência e o seu contributo para um melhor e mais sistematizado conhecimento da sociedade portuguesa. Embora tolerada sob forma algo encriptada na parte final do Estado Novo em círculos restritos como o Grupo de Investigações Sociais (GIS) e respectiva revista Análise Social, a Sociologia era entendida pelos ideólogos do regime como “perigosa” e “subversiva”, em parte como preconceito e em parte como resultante da atração e adesão à Sociologia como instrumento de análise crítica e contestação social, designadamente por parte do movimento estudantil durante a ditadura. O seu crescente prestígio no pós-25 de Abril de 1974 na sociedade dita civil, nomeadamente na esfera laboral-sindical, na cultura de resistência e contestação e em diversas instituições, nomeadamente académicas, deve-se, em primeiro lugar, ao elevado nível de produção sociológica sobretudo no pós-25 de Abril de 1974 graças não só ao investimento público em ciência, incluindo as Ciências Sociais, como ao notável desempenho socio-profissional dos/as sociólogos/as, quer nos meios académicos e centros de investigação, quer em diversos setores de âmbito público ou privado, ao longo de quase cinco décadas: convocação para interpretar e explicar diversos fenómenos sociais, para pequenos cursos e conferências, análise e comentários nos media, embora ultimamente em menor grau. Todavia, ainda que de modo menos visível e frequente, persistem estratégias de utilização instrumental da Sociologia para legitimar determinados poderes e posicionamentos ideológicos.
Felizmente e por mérito da sua produção científica, os/as sociólogos/as portugueses/as e outros/as cientistas sociais nos departamentos e centros de investigação, nas suas associações profissionais, mormente a Associação Portuguesa de Sociologia (APS), dentro e fora da academia, têm refletido e investigado sobre os mais diversos temas e problemas da sociedade portuguesa. Ao contribuírem para ultrapassar os referidos preconceitos e visões do senso comum, têm aprofundado o conhecimento sobre a sociedade portuguesa e propiciado que o panorama e o prestígio da Sociologia, designadamente pelo seu contributo no campo do ensino superior e na formação de profissionais, se tenham elevado exponencialmente.
Apesar dos avanços obtidos pela Sociologia enquanto ciência, profissão e área disciplinar de ensino, é, porém, comum ouvir-se declarações menos confortáveis e até injustas para com os/as sociólogos/as. Assim, a Sociologia, vista nomeadamente por parte de alguns colegas de ciências naturais, não teria consistência científica ou “estatuto de ciência” ou, segundo o senso comum, “não serviria para nada”, para além de outros entendimentos levianos e/ou infundados, por vezes respaldados por alguns fazedores de opinião acríticos de que a formação em Sociologia “só encaminha para o desemprego”. Certos patrões e gestores de empresas até há bem pouco tempo consideravam - e alguns ainda hoje - que os/as sociólogos/as seriam politicamente incómodos ou mesmo agentes “subversivos”. Por fim, o Ministério da Ciência e do Ensino Superior (MCES), nomeadamente quando gerido nos governos PSD/CDS (Partido Social-Democrata e Centro Democrático e Social), têm secundarizado e desvalorizado a investigação no campo das Ciências Sociais e, por sua vez, num outro registo, responsáveis do Ministério da Educação de sucessivos governos, na onda do “choque tecnológico” e de dominante tecnocrática, têm recusado incorporar a Sociologia - assim como a Antropologia e a Ciência Política - como disciplina no ensino básico e sobretudo secundário.
Sendo a Sociologia, enquanto ciência e profissão, obviamente relevante, neste texto o foco situa-se no ensino da Sociologia e na institucionalização deste em diversas regiões do país. Estreitamente ligada a esta matéria, importará questionar: de que modo e até que ponto a área de ensino da Sociologia se tem consolidado nas Universidades e nos Politécnicos em Portugal? E qual o seu papel no ensino secundário?
De facto, se é extremamente rico o percurso da Sociologia em Portugal e seu enraizamento como área científica e como profissão, surge também como notável a sua reputação como área disciplinar de ensino superior, sobretudo desde a revolução de Abril de 19741 embora a sua expressão no ensino básico e secundário tenha sido pouco expressiva ou até insignificante.
A Sociologia e o ensino da Sociologia em Portugal: génese e evolução
A Sociologia portuguesa nasce num clima de registos semiocultos ou quase clandestinos a partir da criação, em 1962, do Gabinete de Investigações Sociais (GIS) animado e coordenado por Adérito Sedas Nune2 qual, inicialmente situado nas margens toleradas do corporativismo do Estado Novo, conseguiu, com a sua equipa da primeira leva e, depois, da segunda, a partir de 1966, produzir, reunir e divulgar os primeiros estudos sobre a sociedade portuguesa da época e trazer à luz do dia alguns resultados concretos setoriais sobre a mesma. Considerando os primeiros trabalhos dos/as investigadores/as do GIS, são de realçar a habitação e a emigração, a estrutura e composição social, as relações de trabalho, o ensino superior, o estado de (sub)desenvolvimento social e as relações entre rural e urbano e, em particular, as questões epistemológicas e metodológicas.
Estes primeiros contributos sociológicos representavam um passo em frente em relação aos anteriores projetos criados à sombra do corporativismo em crise e à procura de maior conhecimento da realidade nacional, a saber, o Gabinete de Estudos Corporativos (GEC) criado em 1949 e coordenado por José Pires Cardoso e, posteriormente, entre 1957 e 1959, com uma designação de compromisso, o Centro de Estudos Sociais e Corporativos (CESC), a que se contrapôs, em 1962, Sedas Nunes que avançou a proposta de Gabinete de Investigações Sociais e, em 1963, a revista Análise Social, uma e outra aceites pelo ministro das Corporações e Previdência Social José Gonçalves Proença por mediação de José Pires Cardoso (cf. Nunes, 1988).
Nuno Ferreira (2006), num trabalho de pesquisa meritório em torno da génese da Sociologia portuguesa, sem subestimar o papel pioneiro de Sedas Nunes, procura, todavia acoplá-lo e articulá-lo com o papel da Igreja Católica que, com a criação, em 1959, de um Boletim de Informação Pastoral (BIP) pelo Secretariado de Informação Religiosa (SIR), dirigido por Manuel Franco Falcão, membro do clero da Diocese de Lisboa, teria também dado o primeiro impulso à disciplina, prolongando-se até 1970. São por certo conhecidas algumas ligações de pessoas católicas progressistas ao GIS, como refere o próprio Nunes (1988), mas parece-me forçada esta pretensa ligação quase umbilical entre a Igreja e o GIS, quando na realidade se tratou, por parte de Sedas Nunes e colaboradores/as, justamente duma ruptura controlada, ainda que dolorosa com a própria matriz católica tradicional e sobretudo a doutrina corporativa em falência perante as práticas sociais, como ele próprio refere: “o descrédito do corporativismo era total” (Nunes, 1988, p. 14).
A perspetiva de Nuno Ferreira comporta, de facto, o relativo apagamento do dominante papel ideológico da Igreja Católica institucional em favor do regime ditatorial e uma reabilitação dessa mesma Igreja3 cujo posicionamento, salvo algumas poucas vozes contestatárias por parte do bispo do Porto, de padres e leigos críticos sobretudo na fase final do salazarismo, foi de reforço para-ideológico do regime ditatorial. Os objetivos da Igreja declaravam-se mais no campo religioso, de modo a que, por um certo conhecimento protosociológico em questões religiosas, fosse prevenida e contida alguma influência laicizante no quadro do emergente processo de secularização. Porém, estas preocupações da Igreja não podem ser desligadas das mudanças de ordem socio-económica e política em curso nos anos cinquenta e sessenta, designadamente após o movimento socio-político de apoio a Humberto Delgado nas eleições presidenciais de 1958 - um dado referido por Sedas Nunes mas não valorizado por Nuno Ferreira -, a desafeição, para além do operariado urbano, da própria fracção da burguesia industrial e da emergente ala tecnocrática, dalgumas camadas intelectuais, as quais faziam mexer também a própria Igreja necessitada de um aggiornamento no contexto pré-Concílio Vaticano II.
Nuno Ferreira coloca o problema da génese da Sociologia a partir do processo de secularização, explicando os processos de conservação e mudança a partir do religioso, quando os principais motores dessa mudança estão fora da religião, por muito que alguns promotores (ex)corporativos e eclesiásticos se centrem tematicamente nas questões da religião. Mais, o autor, ao sustentar que a emergência de novos campos e legitimidades como a científica, a laboral, a política ou artística desafiam e confrontam a esfera religiosa, está a obnubilar que a própria religião católica, no caso, é também (para)política, podendo, a este propósito, ser trazida à colação a interligação do religioso com o económico e o político, expressa quer por Marx e Engels (1846/1976) quer por Weber (1920/1978) e por inúmeros sociólogos, historiadores e antropólogos não só marxistas como weberianos, sintetizando para o efeito a tese de Maurice Bloch: “convém reparar primeiramente na política e depois na religião, vendo esta como o exercício duma forma particular de poder, do que fixar-se na religião fora do contexto político e considerá-la como a forma de explicação” (1974, p. 79). Com efeito, a Igreja oficial portuguesa estava então a pressentir a ameaça da perda de influência tradicional da hierarquia católica, cujos posicionamentos doutrinários e pastorais, além de exprimirem os receios das mudanças duma sociedade agrário-camponesa para uma sociedade (proto)industrial, traduziam o início duma gradual erosão do regime ditatorial e da hierocrática autoridade tradicional, em termos weberianos (cf. Weber, 1920/1978).
Sendo o regime salazarista não só umbilicalmente contrário às Ciências Sociais, designadamente à Sociologia, conotada com correntes “subversivas” à ordem estabelecida, como igualmente adverso à produção e à difusão das ideias iluministas, liberais e republicanas, porque “contaminadoras” dos bons costumes e das mentalidades de dominante rural, passadista e colonialista, apenas foram toleradas algumas escolas no ensino da Etnografia e/ou Antropologia Cultural e da “Política Ultramarina” que, no continente e nas ilhas, desse conta da cultura, designadamente material, nos meios rurai4 e, nas colónias, proporcionasse os necessários conhecimentos dos povos e culturas indígenas para manter o domínio colonial. É neste quadro que, na sequência do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU) criado em 1961, este é substituído em 1972 pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU) no quadro da Universidade Técnica de Lisboa, dando lugar à criação de bacharelatos e licenciaturas em Economia, Ciências Sociais, Organização e Gestão de Empresas e Ciências do Trabalho, além de outros sobre Etnografia Portuguesa e Política Ultramarina, cursos esses política e ideologicamente marcados pela doutrina corporativa e orientados para a legitimação do regime colonial. No pós-25 de Abril de 1974, o ISCSPU dá lugar ao Instituto de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), modificando a sua estrutura e, desde os anos 1980, ainda sob influência de Adriano Moreira, recompondo-se num quadro menos monolítico e, recentemente, cada vez mais plural5 proporcionando formação em vários cursos, designadamente de Ciência Política, Antropologia, Relações Internacionais e Sociologia, este recriado em 1988. Porém, a ala de cientistas sociais, designadamente sociólogos, mais críticos e progressistas, viria a desenvolver mais tarde a Sociologia no seio do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), quer investigando no reputado Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações (SOCIUS), criado em 1991 e liderado por José Carvalho Ferreira e, depois, João Peixoto, quer lecionando Sociologia nos cursos de Economia e Gestão, quer, mais tarde, criando e sustentando mestrados e doutoramentos num fecundo cruzamento entre a Economia e a Sociologia.
Porém, importa referir que já em 1964 tivera lugar a criação do primeiro curso de Sociologia em Portugal, assim designado, mas amiúde não referenciado ou então desvalorizado (cf. Machado, 2020). Este curso, a par da Economia e Engenharia Agrícola, foi criado no quadro de uma instituição privada designada Instituto Superior Económico e Social (ISESE) em Évora sob a tutela de Lúcio Craveiro da Silva, Provincial dos Jesuítas, tendo como principal mentor e diretor o sociólogo jesuíta Augusto da Silva. Este curso de Sociologia, embora integrando bastantes outras disciplinas na estrutura curricular e tendo que enfrentar algumas reservas do regime salazarista, acabou por ter o beneplácito e a autorização do Ministério da Educação graças à garantia da supervisão da Companhia de Jesus e, do ponto de vista económico, ao patrocínio da Fundação Eugénio de Almeida criada pelo Conde de Villalva, engenheiro agrónomo Vasco Eugénio de Almeida. São de referir neste contexto, para além da administração do Curso de Sociologia, a publicação de diversos estudos sociais, adjacentes ao Direito e/ou centrados na temática da religião, além de outros temas sociais que acabaram por ter desde 1968 como pólo agregador a revista Economia e Sociologia sob a direção de Augusto da Silva6 O Curso de Sociologia, integrado em 1973 no Instituto Universitário de Évora, viria a constituir a base, com as devidas adaptações, de um novo curso de Sociologia em 1979 já no quadro da Universidade de Évora integrado no ensino superior público, tendo-se criado o Centro de Investigação e Desenvolvimento em Ciências Humanas e Sociais (CIDEHUS) e, posteriormente, em 2002, o Centro de Investigação em Sociologia e Antropologia (CISA), dirigido por Francisco Ramos.
Para além de alguns contributos de reflexão e diagnóstico antes da década de 1960 do século XX, nem todos necessariamente sob a alçada da disciplina científica da Sociologia, mas antes no quadro de estudos corporativos e da doutrina social da Igreja, a sociedade portuguesa tem sido escrutinada e analisada desde então por diversos cientistas sociais, entre os quais pontificam os/as sociólogos/as. Assim, considerando os contributos científicos desde o ocaso do regime ditatorial, a disciplina da Sociologia era todavia ainda uma matéria praticamente interdita. À excepção de uma ou outra voz, de modo algum foi a Igreja propulsora das Ciências Sociais e, muito menos, da consolidação da Sociologia, como pretende Ferreira (2006). O novo projeto arrancaria dialeticamente no seio da velha estrutura e, num jogo tático e de cumplicidades, desenvolver-se-ia, como referido, com Sedas Nunes e a sua equipa no GIS, composta por docentes e investigadores/as no âmbito do Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF) e, mais tarde, já enquadrada no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), criado em 1972, a partir da reforma do antigo Instituto de Estudos Sociais (IES), mas como complementar do então saturado ISCEF, convertido em Instituto Superior de Economia (ISE) da Universidade Técnica de Lisboa. Ali, a par do referido GIS, iniciaram-se no Curso de Economia algumas disciplinas das Ciências Sociais tais como Epistemologia e Metodologia em Ciências Sociais em bacharelatos e licenciaturas em Organização e Gestão de Empresas e em Ciências do Trabalho, sendo esta uma das razões da designação do ISCTE. Porém, convém sublinhar que, após o 25 de Abril de 1974, o GIS, sediado em parte no ISE e, em parte, no mesmo edifício físico que o ISCTE, mantinham-se instituições próximas mas diferenciadas. O ISCTE combinaria o ensino na Licenciatura em Sociologia7 entre outras áreas e cursos (Antropologia, História, Economia, Gestão e Ciência Política, estes últimos criados bastante mais tarde) com a investigação, nomeadamente com a criação de um Centro de Investigação em Estudos de Sociologia (CIES) em 1985 e a revista Sociologia, Problemas e Prática8em 1986. Por sua vez, o GIS, transformado em 1982 em Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa, sem deixar de proporcionar cursos de pós-graduação nas várias áreas das Ciências Sociais, designadamente na Sociologia, focalizava os seus recursos humanos e capacidades investigativas no desenvolvimento de um Centro de Investigação de elevada qualidade, obtendo em 2002 o estatuto de primeiro Laboratório Associado em Ciências Sociais, com projeção (inter)nacional.
Com efeito, será sobretudo no pós-25 de Abril que a licenciatura em Sociologia será consolidada no ISCTE, instituição que terá em 1983-84 como primeiros sociólogos doutorados no país José Madureira Pinto e João Ferreira de Almeida no próprio ISCTE. Esta instituição, como aliás outras no país, puderam beneficiar não só destes e, posteriormente, doutros/as sociólogos/as, entretanto doutorados/as no país, como do retorno de vários/as doutorados/as no estrangeiro, quer em Sociologia, quer noutras Ciências Sociais afins tais como a Antropologia e a História, os quais foram integrando não só o ISCTE-IUL como várias Universidades do país.
Com um novo modelo criado de raiz mas em estreita conexão com outras áreas científicas como História, Antropologia, Demografia e Literaturas, há a referir o Curso de Sociologia na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH-UNL), criado em 1979, com forte inspiração na figura e obra de Vitorino Magalhães Godinho9 tendo sido igualmente criada a revista Forum Sociológico em 1992 dirigida por Moisés Espírito Santo, após a formação do centro de investigação SOCINOVA em 1987, o qual, juntamente com o Instituto de Investigações Sociológicas (CEOS), criado em 1995, e o Instituto de Sociologia Histórica, deu lugar em 2007 ao Centro de Estudos de Sociologia (CESNOVA)10
Ainda na década de 1980, várias foram as Universidades que, por iniciativa de grupos institucionais ou figuras prestigiadas no campo, foram projetando cursos de Sociologia no pós-25 de Abril de 1974 no seio de Faculdades ou Institutos já consolidados, dos quais o primeiro em 1985 teve lugar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto (UP) sob a direção de António Teixeira Fernandes e a relevante colaboração de José Madureira Pinto, também da mesma Universidade mas integrado na Faculdade de Economia, tendo surgido, a par do Curso de Licenciatura, dois núcleos de estudos e, com eles, duas novas revistas também prestigiadas no panorama nacional: Cadernos de Ciências Sociais em 1984 sob a direção de José Madureira Pinto e Sociologia sob a direção de António Teixeira Fernandes, tendo-se formado em 1989 como centro de investigação o Instituto de Sociologia11
Em 1987 é iniciado o Curso de Licenciatura em Sociologia na Universidade da Beira Interior (UBI) sob o impulso de vários cientistas sociais de várias proveniências, nomeadamente do estrangeiro, tendo como principais coordenadores e protagonistas Alice Fontinha, Francisco Videira Pires, José Carlos Venâncio, Moisés Martins e Maria Johanna Schouten, tendo sido criado pouco depois o Centro de Estudos Sociais (CES-UBI, redinamizado, desde 2005, como UBI_CES) e a revista intitulada Anais Universitários, em articulação com outros cursos de Ciências Sociais, nomeadamente as Ciências da Comunicação e enquadrada no âmbito da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas12 Porém, desde 2012, salvo uma minoria integrada no CICS-UMinho e, posteriormente, no CICS.NOVA, a maioria dos/as sociólogos/as investigadores/as formou um pólo do CIES do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (IUL).
Criando primeiramente as condições de investigação e publicação de trabalhos em revista própria, surgiu uma outra licenciatura em Sociologia que viria a ser aprovada e homologada em 1988, funcionando no quadro da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra a partir de um Núcleo de Investigadores, fundadores em 1978 do Centro de Estudos Sociais (CES) e da Revista Crítica de Ciências Sociais sob direção de Boaventura de Sousa Santos e colaboração estreita de Pedro Hespanha, Carlos Fortuna, Fernando Ruivo, Augusto Rogério Leitão, Marianne Lacomblez, Jacques Houart e Carlos Lencastre13 projeto este que viria a consolidar-se não só do ponto de vista do ensino da Sociologia desde 1988 como da investigação em Ciências Sociais, ganhando em 2002 o estatuto de Laboratório Associado. O CES, além de afirmar-se como um centro de excelência a nível (inter)nacional, granjeou uma notável projeção internacional como espaço institucional de formação pós-graduada em diversos doutoramentos em Ciências Sociais, incluindo a Sociologia.
Por sua vez, na Universidade do Minho, a partir do Instituto de Ciências Sociais, sob o impulso de Abílio Lima de Carvalho e colaboradores/as, é criado em 1979 um curso misto de História e Ciências Sociais e, posteriormente, sob a coordenação de Manuel Silva e Costa e a colaboração de Albertino Gonçalves, Maria Engrácia Leandro, Alice Geraldes, Luís Polanah, Ernesto Figueiredo e Manuel Carlos Silva, um novo curso de Sociologia em 1989, o qual, por constrangimentos institucionais, se designou Sociologia das Organizações, com forte cunho nesta especialização, mas sem descurar a vertente básica em termos teóricos e metodológicos. O curso de Sociologia das Organizações viria contudo, em 1996, a ser reestruturado para Curso de Sociologia, embora com duas vertentes de especialização na parte final do Curso: Organizações e Políticas Sociais. Em termos de investigação, foi criado o Centro de Ciências Históricas e Sociais, uma unidade de investigação interdisciplinar dirigido por Manuela Martins com a revista Cadernos do Noroeste e, mais tarde, especificamente em Sociologia, o Núcleo de Estudos em Sociologia em 2002, dirigido por Albertino Gonçalves, e substituído em 2005 pelo Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS) que editaria a revista Configurações sob direção de Manuel Carlos Silva14
Na década de 1990, para além de diversas universidades privadas15 duas outras Universidades públicas viram posteriormente aprovado e homologado o Curso de Licenciatura em Sociologia: a Universidade dos Açores e a Universidade do Algarve. Em 1996, a Universidade dos Açores, na esteira do antigo Instituto Universitário dos Açores criado em 1976, cria o Curso de Sociologia a partir da Secção Autónoma de Ciências Sociais no âmbito do Departamento de História, Filosofia e Ciências Sociais, curso esse que teve como principais promotores Francisco Carmo e Gilberta Rocha com a colaboração de Otávio Medeiros, Licínio Tomás, Álvaro Borralho, Fernando Diogo e Rolando Lalanda16 tendo sido criado antes o Centro de Estudos Sociais (CES_UAc) em 1983 e a edição da revista Arquipélago: Ciências Sociais em 1986.
Por fim, em 2002, a Universidade do Algarve inaugura o Curso de Sociologia aprovado em 1999, sob a coordenação de Ana Romão com a colaboração de João Filipe Marques, Mercês Covas e Teresa Carreira17 enquadrando-se a investigação no Centro de Investigação em Desenvolvimento e Economia Regional (CIDER), substituído depois pelo Centro de Investigação sobre Espaço e Organizações (CIEO), dirigido por Teresa Noronha, de cariz interdisciplinar, sendo criado, numa fase posterior, o Centro de Investigação Turismo, Sustentabilidade e Bem-Estar (CinTurs).
Esta multiplicação de Cursos de Sociologia no país - que foi vista com alguma reserva por alguns dos pioneiros como o próprio Sedas Nunes (1988) - comportou notáveis vantagens na medida em que a sua implementação a nível regional constituiu um processo de alargamento e diversificação do saber sociológico e estabilização da oferta, também a partir das chamadas (semi)periferias regionais18 Nos anos 1980 e sobretudo 1990, particularmente após um tempo de acelerada apresentação do novo figurino do Curso de Sociologia em dois ciclos à luz da designada Convenção de Bolonha, as várias Universidades foram reestruturando os respetivos cursos de Sociologia, umas tendo obtido a aprovação de dois e outras de três ciclos. Deste modo, entrecruzando-se em várias unidades curriculares de cariz obrigatório e opcional, concretizaram-se projetos com vários percursos no primeiro, segundo e terceiro ciclos.
Um dos instrumentos decisivos de institucionalização da Sociologia e o local mais relevante de consagração periódica, primeiro cada quadriénio e, desde 2012, de dois em dois anos, do trabalho científico dos/as sociólogos/as têm sido os sucessivos Congressos Portugueses de Sociologia organizados pela Associação Portuguesa de Sociologia (APS19 desde o primeiro em 1988 até ao último em 2021. Nestes congressos e nas mais diversas iniciativas nomeadamente em torno do ciclo “Sociologia: ciência e profissão” e outras sobre ensino, investigação e profissionalização, a APS tem dado importantes passos na institucionalização da Sociologia. As sucessivas direções da APS têm tido a preocupação de, ouvindo os diversos Departamentos de Sociologia no país, conjugar esforços no sentido de valorizar a Sociologia, enquanto ciência, profissão e área disciplinar no ensino, não só na sociedade portuguesa como face à tutela, destacando inclusive o que Burawoy (2005) designou de sociologia pública. A APS, tendo-se batido, num primeiro momento, pela manutenção do figurino de quatro anos de licenciatura, uma vez aprovado em lei o novo modelo de Bolonha de 3+2+3, acabou por não ter a necessária força política para contrariar a estratégia governamental (e europeia), cabendo-lhe pugnar pela prossecução dos estudos de Sociologia do primeiro para um segundo ciclo, entendido como necessário ao exercício pleno da profissão em termos de competências sociológicas de conceptualização, problematização e diagnóstico.
A estrutura e a dinâmica das modernas sociedades capitalistas colocam hoje desafios e, certamente, questionamentos sobre os objetivos nos diversos campos do saber sociológico, o que acaba também por repercutir-se, quer nos projetos e centros de investigação, quer nas estruturas dos Cursos de Ciências Sociais, nomeadamente no de Sociologia, a começar pela necessidade de um debate público e aberto sobre o ensino e a investigação. Seria mesmo saudável que fossem assumidos explicitamente os enfoques teóricos e metodológicos em confronto, de modo que o princípio do contraditório - um conceito decalcado e recorrente nos meios judiciais - seja também efetivo na polaridade de posicionamentos nas Ciências Sociais e, em particular, na Sociologia. Há ainda um défice de debate público nas Ciências Sociais, designadamente na Sociologia, e as subterrâneas divergências ficam-se amiúde num terreno subliminar, porque a sua manifestação em público é não raro assumida como afronta pessoal, sendo, neste contexto, privilegiadas relações com colegas e centros de investigação estrangeiros. Por outro lado, é imprescindível contrariar o acantonamento em pretensas torres de marfim académicas e superar o velho preconceito positivista de que as tomadas de posição públicas e políticas, inclusive as militantes, não condizem com o estatuto de sociólogo, o que implicaria que os diferentes olhares sociológicos ganhassem maior visibilidade social e pública, na esteira do pensamento de Burawoy (2005).
Apesar da satisfação com que vemos determinados desenvolvimentos positivos na Sociologia, há razões para partilhar algumas inquietações - que Cabral (1997) equacionava como tempo de crise na Sociologia. Porém, as inquietações prendem-se sobretudo com a perda de autonomia científica e os riscos relacionados com a utilização instrumental da Sociologia, de acordo com as conveniências políticas dos detentores de poder a nível nacional e regional-local, sobretudo no quadro de lógicas clientelares e/ou projetos de elevada “rentabilidade” mercantil, nomeadamente eleitoral (Bourdieu, 1997; Pinto, 2007; Machado, 2020). Por outro lado, como referem Martins (2004), Santos e Almeida Filho (2008), alguns riscos estão relacionados com a tendência de empresarialização, mercantilização e gestão privada de universidades, colocando cientistas sociais ao serviço das lógicas de lucro privado, dificultando ou até impedindo um desejável desenvolvimento de responsabilidade social alargada em benefício das comunidades e dos/as cidadãos/cidadãs. Na referida onda do “choque tecnológico” e na era da hegemonia tecnocrática, a tecnologia é vista como a solução milagrosa e é intrigante ver como liberais e neoliberais - que acusavam o marxismo de economicismo e determinismo mecanicista - acabem por glorificar a tecnologia como o segredo da superação de obstáculos ao desenvolvimento. Neste campo tornam-se bem atuais quer o cepticismo weberiano sobre os efeitos perversos da burocracia e da tecnocracia sobre a democracia (Weber, 1920/1978), quer as descontruções do ‘homem unidimensional’ realizadas por Marcuse (1964/2002), quer ainda a desmontagem habbermasiana sobre a técnica e a ciência como ideologia (Habermas, 1968/1973).
A Sociologia desvalorizada no ensino secundário em Portugal ou o desprezo de um imperativo de formação em Ciências Sociais e cidadania
Sob pretexto de algumas deficiências no programa “Novas Oportunidades para Adultos” e com a revisão da Estrutura Curricular no ensino básico e secundário, o Governo do PSD/CDS (Partido Social Democrata/Centro Democrático e Social) em 2011 tomou medidas lesivas para os profissionais de Ciências Sociais. Mesmo admitindo que o programa pudesse ser objeto de fiscalização, correção e melhoria, é necessário lembrar e reconhecer o trabalho dedicado e competente de milhares de profissionais, entre os quais sociólogos/as, na formação e no reconhecimento, na validação e certificação de competências na educação de adultos/as que, por falta de recursos económicos ou culturais, não tiveram oportunidade de se qualificar ao tempo da sua adolescência ou juventude. Este ataque político elitista à formação de adultos/as viria a ser mitigado no governo do PS (Partido Socialista) a partir de 2015, mas a sua eficácia manteve-se limitada, para além de não atender à velha reivindicação da APS de atribuir à Sociologia e aos/às sociólogos/as e outros/as cientistas sociais (antropólogos/as, cientistas políticos) o lugar necessário na formação dos/as jovens no ensino secundário (cf. A. N. Almeida, 1999).
Não obstante as sucessivas posições das diversas direções da APS terem reivindicado um lugar digno dos Estudos Sociais e/ou da Sociologia respetivamente no ensino básico e secundário, as Ciências Sociais, nomeadamente a Sociologia, continuaram praticamente ausentes no ensino secundário e, com a contra-reforma de Nuno Crato em 2012, de modo mais notório. As propostas de Nuno Crato vertidas na referida revisão curricular intercalar, alegadamente no sentido de “simplificação” da estrutura curricular, consubstanciaram-se num corte de 102 milhões de euros, inscrevendo-se no programa de austeridade imposto pela Troika e reforçado pelo Governo PSD-CDS no quadro de uma estratégia de redução global de custos em Educação. Para além dos efeitos gravosos desta estratégia economicista no campo educativo e, em última instância, para a soberania e o desenvolvimento do país, importa ter presente os danos na formação cívica e sociopolítica causados com a referida revisão da estrutura curricular de 2012, em que as Ciências Sociais são menorizadas ou mesmo menosprezadas. A Sociologia tem sido subalternizada no grupo em que estava inserida (7.º grupo) prioritariamente lecionável por diplomados/as em Economia, Gestão, Administração, Filosofia, Direito ou relegada para disciplina opcional e como oferta facultativa, dispensável e/ou dependente de eventual projeto de escola20 A esta limitação acresceu, por um lado, a eliminação da disciplina de Formação Cívica nos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico e no 10.º ano e, por outro, a redução do número de disciplinas de opção anual no final do secundário. Ora, sendo neste conjunto de disciplinas opcionais que se tem enquadrado a oferta da Sociologia, a redução a uma escolha monodisciplinar significou a diminuição do número de turmas ou até o desaparecimento da disciplina em muitas escolas. Tal redução do número de opções não só afetou docentes, como implicou um maior estreitamento do espectro dos saberes, prejudicial aos alunos, tanto mais que estes sentem ainda alguma dificuldade em escolher o curso que pretendem frequentar por desconhecimento dos seus conteúdos e/ou saídas profissionais.
Não obstante ter sido avançado, ao tempo do ministro Júlio Pedrosa em 2001 (mas não concretizado por queda do governo em 2002), um projeto de portaria que previa a formação de um grupo disciplinar de Sociologia (eventualmente com a Antropologia e a Ciência Política), este problema tem-se arrastado há décadas e, neste sentido, os governos anteriores tão-pouco se prestaram a resolver esta questão. Porém, não obstante a Sociologia não ter alcançado até hoje no ensino secundário o lugar que deveria ter - é disciplina obrigatória em vários países europeus e da América Latina -, a contra-reforma de Nuno Crato teve a particularidade não só de ignorar praticamente a Sociologia21 como representar uma afronta, por omissão, à formação cívico-política dos jovens. Mais, contrariou reformas anteriores, inclusive de ministros da área político-partidária do PSD, como a proposta em 2004 pelo então ministro David Justino, que previa como obrigatórias, além da Área Projeto, disciplinas de formação sociocultural em áreas consideradas fundamentais como cidadania e sociedade, a par e com mesmas horas que formações científico-naturais ou técnicas.
À justificação de que os conteúdos desta e de qualquer uma destas disciplinas poderão ser dados transversalmente, presidiu, para além de uma atitude política do PSD-CDS no sentido de “fabricar” mentalmente jovens acríticos e despolitizados, a ignorância por parte de responsáveis de orientação tecnocrática em torno da relevância científica e social das Ciências Sociais, designadamente da Sociologia. É este posicionamento “cientificista” e tecnocrático que, não debatendo a sério as áreas disciplinares com os respetivos profissionais e suas associações, se arroga o direito, em termos epistemológicos, de saber quais as disciplinas fundamentais, classificando as demais como secundárias ou dispensáveis (v.g., a Sociologia).
A alegada cultura de exigência e a glorificação imperativa da meritocracia e da excelência22 além de promoverem a diferenciação elitista entre vias e trajetos ora para a prossecução de estudos superiores ora para saídas profissionalizantes, têm subjacente um posicionamento positivista, segundo o qual a formação cívico-política, não sendo da esfera científica, seria irrelevante, porque retórica, ideológica ou “utópica” e, como tal, cientificamente inútil na formação dos/as jovens. Porém, este propósito “cientificista” pela excelência e em torno do que é fundamental no ensino não deixa de traduzir, na dita “sociedade do conhecimento”, o último achado ideológico, considerado preferível ao das competências, para legitimar a política educativa do último governo PSD-CDS que, numa perspetiva neoliberal, embora não explicitada, veiculava o princípio da liberdade de cada escola na distribuição da carga horária ao longo dos ciclos e anos de escolaridade.
O subsequente Ministério da Educação sob o governo do PS, considerando a necessidade de revisão dos programas e conteúdos das áreas disciplinares, colocou em debate público esta matéria, repondo a disciplina de cidadania. Por sua vez e mais uma vez, a direção da Associação Portuguesa de Sociologia colocou na ordem do dia a reivindicação legítima da docência da Sociologia como disciplina obrigatória no ensino secundário. Pelo menos, perante o recorrente posicionamento, ora de modo declarado, ora de modo mais subtil, de desvalorização das Ciências Sociais no ensino básico e secundário, seria curial a introdução de uma disciplina de Estudos Sociais no ensino básico e de uma outra no secundário, que, eventualmente articulada com a Filosofia, fosse construída em torno de tópicos como sociedade, cultura e política, a qual, para além de filósofos, possa ser lecionada por sociólogos/as, antropólogos/as e politólogos/as. Tendo em vista uma formação integral dos/as alunos/as, esta proposta reverteria a benefício de cidadãos/ãs mais qualificados/as e participativos/as e em prol de uma sociedade menos desigual, mais desenvolvida e culturalmente esclarecida.
O processo de Bolonha: a alegada obsessão pela excelência e o ensino da Sociologia
Estamos hoje a assistir, nomeadamente em países com forte influência do mercado, à internacionalização do ensino superior em certas Universidades produtoras de elites para gerir instituições como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), a Organização Mundial do Comércio (OMC), a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), altos quadros de entidades supraestatais e multinacionais, de departamentos ministeriais, de estruturas de poder regional e local e inclusive algumas Organizações não Governamentais (ONG´s). Com esta tendência, a formação pós-graduada no ensino superior hoje exige, para além de mestrados, doutoramentos e pós-doutoramentos no setor ora privado, ora sobretudo público. Mesmo que não seja explicitamente assumido, poderemos estar perante lógicas e normas de gestão paraprivada de Universidades e Politécnicos pela via de Fundações, ou inclusive, nalguns países, perante a antecâmara de processos de formação de multinacionais de educação no ensino superior, pelo menos na forja. Se tais projetos não têm avançado mais, tal se deve à tradicional resistência por parte das Universidades públicas, nomeadamente na Europa. As alegadas reformas representam a implementação da fase pós-fordista como uma época de novo obscurantismo ideológico em que, se a Universidade era altamente hierárquica, os novos métodos e procedimentos que, por exemplo, o atual Regime das Instituições do Ensino Superior (RJIES) em Portugal prevê, alimentam, sob a capa e a retórica da qualidade e da avaliação de desempenho, processos gestionários e nem sempre democráticos.
No quadro da globalização capitalista as pressões neoliberais sobre os Estados Nacionais, também na União Europeia, são enormes. Tendo como pano de fundo a competitividade geoestratégica entre potências e blocos, nomeadamente entre os Estados Unidos e a Europa, sabe-se que à ideia de competição subjaz a estratégia de ser o melhor, constituir a instituição de referência, a Universidade de topo, de elite. Porém, este objetivo implica óbvia e necessariamente que só algumas poderão ser de topo, de elite. As restantes situar-se-ão no meio - razoável ou suficiente - ou então resvalarão para o “medíocre” e, no fundo da tabela, poderemos ter, no futuro, a maioria - aqueles Institutos Politécnicos e Universidades que providenciam basicamente graus de licenciatura de Bolonha e, eventualmente alguns cursos de 2º ciclo.
Portugal não pôde escapar a essa pressão que se traduz e traduzirá cada vez mais em mecanismos tecnocráticos de controlo de outputs (agências de avaliação, harmonização de graus e sistemas de acreditação) e em restrições ao financiamento, de modo não só a possibilitar a mobilidade como a provar a excelência, a qualidade, o novo embuste ideológico - todos clamam pela batalha da qualidade. Num tempo de consolidação do novo modelo de Bolonha, importa acautelar, face à proclamada retórica de abertura, harmonização e aprendizagem centrada no aluno, efeitos laterais e perversos, alheios aos objetivos proclamados. Sem ignorar algumas virtualidades da chamada convenção de Bolonha (melhora possível de desempenhos nos conteúdos e na pedagogia, harmonização de graus, mobilidade de docentes e estudantes, designadamente no espaço europeu), não são confessadas nem explicitadas as razões da implementação do modelo originário da Convenção de Bolonha, as quais, mais uma vez, são de ordem económica e política.
É recorrente constatar, nos programas de investigação e de ensino, um acrítico discurso em torno da excelência, assumido não só por parte do Governo e do MCES, de centros de investigação e círculos académicos, como por diversos setores da sociedade e diversas instâncias nacionais e internacionais. Este discurso exige ser problematizado, o que obriga a questionar a velha ideia de académicos e investigadores puros, ocupados com o saber qual torre de marfim acima das “coisas materiais”, sem qualquer relação com o “mundo da vida” e os diversos interesses em presença.
Considerando a evolução do ensino euperior à luz das lógicas e fases do desenvolvimento do capitalismo nas últimas décadas, na esteira de outros sociólogos críticos desde Mills (1956), Gouldner (1975) e Bourdieu e Passeron (1975) a outros mais recentes como Morrow e Torres (1995/1997), partilho como fecunda a hipótese de trabalho de que os modelos e as dinâmicas do ensino superior estão estreitamente ligadas ao desenvolvimento desigual do capitalismo mundial. A este respeito é possível distinguir, na sequência de Castells (2002), duas grandes fases e/ou tipos-ideais: a fase industrial fordista presente até aos anos 1980-90 e a fase da dita sociedade do conhecimento, mas, contrariamente à tese de Castells (2002), não se trataria de dois modos de produção mas de duas fases do mesmo modo de produção capitalista (M. C. Silva, 2005).
O sistema de ensino, designadamente superior, se, por um lado, pode reduzir diversas formas de desigualdade social, por outro, tende a reproduzi-las, para cuja análise importa contrastar teorias da mobilidade social com teorias críticas designadamente marxistas, articuláveis com relevantes contributos weberianos e interacionistas e sobretudo feministas. Imbricado com velhas formas de desigualdade de classe, ter-se-á de ter em conta o tema das elites, o qual, tratado por sociólogos clássicos como Pareto (1989), pressupõe um distanciamento insanável entre elites e massas como uma espécie de eterno retorno circular, alegadamente fatal, quando não cínico. Esta separação entre elites e massas, do mesmo modo que outras como economia versus política ou sociedade versus Estado, pressupõe a sobredeterminância de fatores organizativos e políticos, vendo o político separado do económico e dos interesses subjacentes das classes dominantes. Ou seja, tomando o caso português como ilustrativo, dir-se-á que o papel do ensino superior na formação de quadros superiores e, em especial, das elites deve ser articulado com a lógica e a fase de desenvolvimento do capitalismo em Portugal. Nesta óptica, na sequência dos críticos acima referidos, creio ser de questionar a velha tese da meritocracia e procurar demonstrar que as reformas do ensino superior em torno do Processo de Bolonha, implementado no espaço europeu como um imperativo nacional e europeu, visam a reprodução das classes economicamente dominantes e a legitimação de elites políticas, “científicas” e culturais, através de mecanismos tecnocráticos de hierarquização e competitividade de universidades e centros de investigação, de desregulação do sistema e de restrições ao financiamento no ensino superior público, um processo bem patente no caso português. Para além das diretrizes de harmonização e sob a razão ou pretexto de alteração de métodos pedagógicos centrados no aluno, há um tácito rolo compressor no atual Processo de Bolonha que é o de um ensino superior a dois ou mais tempos, velocidades e patamares: o ensino superior para as massas traduzido na obtenção das licenciaturas de três anos, desvalorizando-as, e uma pós-graduação em mestrados e sobretudo doutoramentos e pós-doutoramentos para quadros superiores e sobretudo elites. Para além das classes mais providas com recursos económicos, poderão aceder, pelo filtro do mérito, e ser cooptados e incorporados alguns membros provindos de classes economicamente mais destituídas, mas excecionalmente bem-sucedidos no seu percurso académico, profissional ou empresarial.
Entretanto, em maior ou menor grau, foi possível constatar, nas práticas das diversas instituições universitárias, processos de afunilamento, fechamento ou enconchamento por escolas e centros de investigação, reforçando os já existentes no meio académico e profissional, gerando e multiplicando as situações de mal-estar particularmente por parte de departamentos e centros situados na periferia ou no interior. Por outro lado, o novo modelo de Bolonha, ao comprimir aprendizagens da licenciatura em menor tempo e sem espaço-tempo para aprofundamentos teóricos, desqualifica o grau de licenciatura e reproduz formações de 1º ciclo com alunos/as, em grande parte orientados/as numa perspetiva pragmática e com menor sentido crítico da sociedade envolvente.
Não obstante os notáveis avanços da Sociologia como ciência, área disciplinar, de ensino e processo de internacionalização ao ponto de estarmos perante o que Machado (2020, p. 97) designa de “institucionalização avançada”, há, porém, certamente um caminho a percorrer, quer na investigação e nos diagnósticos, quer sobretudo nas práticas e intervenções nos vários setores, onde se exerce a profissão de sociólogo23 Tal como refere Fortuna (2008, p. 87) sobre a “divisão global do trabalho em Ciências Sociais” em países centrais (estudos teóricos, comparativos) e países periféricos (estudos de caso, empíricos), também no campo da Sociologia, pelo menos até recente data, tal teria ocorrido. Com efeito, em diversos países centrais, universidades, centros de investigação e outras instituições de ensino superior captam a maior parte dos recursos a nível europeu e levam a cabo programas de ciência fundamental a nível teórico e com estudos comparativos e aplicados nos seus próprios territórios ou em países (semi)periféricos, com resultados assinaláveis do ponto de vista dos benefícios (cf. Harris, 1995; Alatas, 2003; Fortuna, 2008; Dores, 2021). Porém, em países (semi)periféricos como Portugal, a situação é diferente na medida em que, não obstante avanços consideráveis com alguns centros de investigação de referência, verifica-se, para além de processos de mercantilização, uma desigualdade no acesso a infraestrutruras e outros recursos públicos e uma dependência por parte de instituições universitárias em regiões do interior e sobretudo Politécnicos, em que tem sido secundarizada a investigação fundamental, além da ausência de projetos de maior fôlego. Por outro lado, importa, também no que concerne o ensino superior, colocar algumas reservas e, inclusive, requestionar o modelo e planos em torno dos objetivos da Convenção de Bolonha. Assumindo uma posição seguidista e “adesiva” em relação à UE sem ter em conta a situação (semi)periférica de Portugal na investigação, no número de doutorados e licenciados e, por fim, mas não menos importante, na insuficiência de afetação de recursos no ensino superior público, os sucessivos governos, obcecados pela redução do défice, têm agravado a situação do ensino superior com cortes orçamentais às universidades e aos politécnicos.
Enquanto o problema do financiamento dos dois primeiros ciclos não se coloca nos vários países europeus, em Portugal ele envenena a própria estruturação dos cursos e, mais ainda, o terceiro ciclo quando fortemente dependente da classificação do respetivo centro de investigação e da Agência de Acreditação. Além disso, é indubitável que, a manter-se esta situação ou a transferir para os alunos e suas famílias os custos de formação nomeadamente no desenhado segundo ciclo e sobretudo no terceiro ciclo, tal representa não só uma injustiça social para os/as filhos/as de famílias mais carenciadas como, certamente, o desperdício de talentos latentes na sociedade mas sem capacidade de desenvolvimento por razões financeiras. Por isso, contrariamente a outros países centrais nomeadamente europeus, que financiam a educação nos dois ciclos e investem fortemente na investigação fundamental e aplicada, em Portugal, não obstante os avanços consideráveis a partir dos anos 1990 e sobretudo no início do século, faltam meios que potenciem a tão proclamada igualdade de oportunidades e respondam às necessidades do país, incluindo obviamente o papel da Sociologia e dos/as seus/suas sociólogos/as, presentes e futuros.
Conclusão
Neste texto comecei por evidenciar a evolução da implantação da Sociologia como área disciplinar no ensino superior, embora de modo ténue e condicionado sob o Estado Novo, nomeadamente numa instituição privada em Évora, mas de maneira bem mais marcante e livre no pós-25 de Abril de 1974, primeiro nas Universidades de Lisboa e, seguidamente, noutras Universidades do país.
A Sociologia em Portugal conheceu, sobretudo nos últimos 40 anos, uma extraordinária produção e difusão dos seus resultados que torna o panorama dos anos 1960-70 irreconhecível. Para tal contribuíram fatores de ordem institucional, sobretudo na sequência da viragem política com 25 de Abril de 1974, a política de investimento público em cursos de Sociologia e centros de investigação e projetos em Ciências Sociais, a vinda de sociólogos, refugiados ou não, formados no estrangeiro e, por fim, mas não menos importante, a criação de escolas e cursos de Sociologia no país no pós-25 de Abril e durante as décadas subsequentes. Porém, os antecedentes deste processo e primeiros protagonistas, nomeadamente no ISESE e no GIS, saem dos próprios grupos seminais em regeneração doutrinária e/ou dissidência política no interior do país e do próprio regime corporativo salazarista. Se este movimento converge com outras iniciativas vindas da Igreja, estas são pouco expressivas em relação à implantação da Sociologia como ciência e disciplina a ser ministrada na formação no ensino superior e, de modo marginal, a partir das estruturas oficiais da Igreja, apenas interessadas em contrariar o que designavam por uma crescente descristianização da sociedade portuguesa. A este propósito foi contestada a tese de que a Sociologia teria como primeira instituição de acolhimento e desenvolvimento a Igreja Católica, além de ser problemática a tese de a génese e a explicação da emergência da Sociologia em Portugal ter como pano de fundo o debate sobre o religioso-secular e a partir do religioso. Na verdade, se os temas da religião e da religiosidade ocuparam parte da atenção dalguns primeiros trabalhos, o ponto de viragem centrou-se, a partir das preocupações de Sedas Nunes e demais investigadores do GIS, nos temas do desenvolvimento e das relações entre rural e urbano, no ensino superior e, muito em particular, nas questões epistemológicas e metodológicas nas Ciências Sociais e, em particular, na Sociologia.
Se o processo de implantação da Sociologia no ensino superior nos Institutos Politécnicos e Universidades, quer em particular na institucionalização bastante equilibrada dos Cursos de Sociologia em licenciaturas, mestrados e doutoramentos em diversas Universidades Portuguesas sediadas nas diversas regiões do país, no que concerne o ensino da Sociologia (ou Ciências Sociais) nas escolas secundárias e inclusive sob a forma iniciática de Estudos Sociais no ensino básico, tal situação tem refletido o desprezo dos diversos e sucessivos governos pela formação científica dos jovens no campo das Ciências Sociais, hoje e cada vez mais capturados pela ideias mainstream de recorte neoliberal, o que para alguns responsáveis políticos esta recusa não é inocente.
Mercê do desenvolvimento e da institucionalização tardia em Portugal, a Sociologia e, em menor medida, a Antropologia têm vindo gradualmente a ocupar um lugar cada vez mais relevante no ensino superior e um crescente reconhecimento social, com reflexos positivos para a sua legitimidade, quer no quadro da instituição universitária, quer, embora em menor medida, no âmbito mais alargado dos profissionais sociólogos nos mais diversos setores e no designado “mundo da vida”, em termos habbermasianos.
No processo de Bolonha, sob o pretexto e/ou razão duma alteração dos métodos pedagógicos e outros objetivos de harmonização e mobilidade de discentes e docentes, esconde-se uma outra agenda que, para além de objetivos economicistas na poupança na despesa pública para a educação, tem em vista fortalecer o bloco europeu no processo de competitividade face aos Estados Unidos e outras potências emergentes. Além disso, tal reordenamento das instituições em busca da excelência vai ter como efeito a reprodução das formas de desigualdade que o sistema hierárquico de instituições no ensino e na investigação irá proporcionar e intensificar.
Os programas de desenvolvimento no ensino superior e na investigação nas Ciências Sociais, não obstante constituírem uma parte bem reduzida no bolo do orçamento, não atingirão os seus objectivos, se não houver uma mudança substancial no sentido de contrariar a desvalorização dos graus. Pressentindo, com o actual choque tecnológico, a primazia no quadro dum desenvolvimento macroeconómico de matriz neo-liberal, obcecada pela concorrência face aos Estados Unidos e uma mais acentuada orientação em função das exigências do tecido empresarial, impõe-se que a tutela - que quer nos governos do PS, quer sobretudo do PSD/CDS tem primado pela omissão e, portanto, pela não audição das associações profissionais como a APS e pela ausência de regulação mínima com directrizes gerais, - não menorize nem secundarize a importância das Ciências Sociais, nomeadamente da Sociologia, não só no ensino superior como sobretudo no ensino secundário. Sem pretender que ela seja elevada à condição de uma espécie de “rainha” das Ciências Sociais, importa que seja tratada como ciência fundamental e aplicada na sociedade contemporânea e, em especial, na portuguesa. Poder-se-ão assim abrir novos territórios de reflexão e intervenção para a Sociologia como ciência e profissão que, não obstante persistirem alguns nichos de mercado que continuam ainda vedados ou sem a suficiente confiança a certos agentes do poder económico e político, têm vindo paulatinamente a firmar-se nas empresas, nas instituições dos ministérios, nas autarquias e noutros setores.