Introdução
Neste estudo, procurarmos contribuir para a compreensão dos impactos da composição social e étnica no desenvolvimento de culturas de escola propícias à diminuição das desigualdades de desempenho escolar, nomeadamente, entre alunos com e sem origens imigrantes.1 Para tal, foram realizadas 13 entrevistas semi-diretivas junto de docentes e lideranças numa escola de 2.º ciclo do ensino básico na Área Metropolitana de Lisboa (AML) caracterizada por i) uma população escolar socialmente desfavorecida e etnicamente heterogénea, ii) resultados escolares acima das escolas semelhantes e iii) descendentes de imigrantes com desempenhos académicos equivalentes aos seus pares sem origens imigrantes.
Começamos por apresentar o enquadramento teórico da pesquisa, que combina teorias sociológicas acerca dos modos de incorporação da diferença com o conhecimento empírico acumulado acerca dos impactos destas abordagens aplicadas à educação, em diferentes contextos sociais. Prosseguimos com uma justificação das opções metodológicas tomadas.
Na apresentação dos resultados da análise das entrevistas, iniciamos com um mapeamento das configurações que tomam as quatro abordagens à diversidade na escola estudada: multiculturalismo, igualitarismo, colorblindness e assimilacionismo. De seguida, analisamos as formas como cada uma se manifesta nos discursos dos atores educativos, aos vários níveis da organização escolar, entre os quais: a visão de escola, as metodologias de trabalho pedagógico, a relação com a comunidade, a dinamização do currículo, a participação dos alunos, a organização dos grupos-turma e os apoios linguísticos.
Concluímos com uma reflexão acerca da importância de considerar a evolução da composição social das escolas, para melhor compreender a adoção de diferentes estratégias pedagógicas e de gestão da diversidade. Discute-se o impacto diferencial destas abordagens nos vários grupos socioculturais que frequentam a escola e caminhos possíveis para futuras pesquisas.
Enquadramento
Nas últimas décadas, a missão social da escola sofreu reformulações consideráveis face à sua função tradicional. Atualmente, o paradigma educativo transnacional postula que todos os alunos, independentemente das suas origens e características, possam aprender e obter um diploma escolar. A gestão da diversidade é, por isso, um dos corolários das organizações escolares contemporâneas, como afirmavam já Stoer e Cortesão (1999).
No entanto, a teoria da reprodução social - i.e., o postulado de que o sistema educativo funciona como instituição eminentemente reprodutora da estrutura de oportunidades vigente no sistema social a que pertence - tem vindo a ser objeto de repetida comprovação empírica (ver Strand, 2016), desde a sua formalização mais célebre na obra de Bourdieu e Passeron (1970). Em Portugal, uma investigação recente verifica que os alunos de nacionalidade estrangeira (sobretudo, dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa - PALOP) ou com mães pouco escolarizadas são consistentemente mais reprovados que os seus pares com nacionalidade portuguesa ou cujas mães têm, pelo menos, o ensino secundário (Albuquerque et al., 2022). O desempenho escolar dos alunos estrangeiros em Portugal parece, também, refletir as fronteiras étnico-nacionais que marcam as relações de poder no espaço-mundo, com as crianças nacionais de países da Europa Central e alguns países da Europa de Leste a obterem resultados dentro ou acima da média dos estudantes de nacionalidade portuguesa, ao contrário dos alunos nacionais de países previamente colonizados por Portugal e alguns países do Sudeste Europeu e Asiático (Seabra & Cândido, 2020). Outro estudo conclui que, para o mesmo estatuto socioeconómico, alunos com background migratório, nomeadamente do Brasil ou dos PALOP continuam a obter classificações significativamente inferiores às dos seus pares sem origens imigrantes (Almeida et al., 2021).
Se o ideal da igualdade de oportunidades educativas parece não encontrar demonstração empírica em qualquer sistema educativo (Seabra, 2009), não se pode, apesar de tudo, afirmar que não existem exceções à regra. De facto, os primeiros estudos sobre escolas inesperadamente eficazes (Edmonds, 1979; Weber, 1971) - i.e., que servem populações socioculturalmente desfavorecidas, mas produzem resultados escolares superiores ao expectável - têm quase tantos anos quanto os trabalhos seminais de Bourdieu e Passeron sobre a reprodução das desigualdades sociais através da escola (Bourdieu & Passeron, 1964, 1970).
Um dos fatores unanimemente reportados para explicar o sucesso inesperado destas escolas é uma cultura assente em expectativas académicas elevadas para os seus alunos (Reynolds et al., 2014). Nesta área, encontra-se em emergência um corpo de literatura promissor, que problematiza as “abordagens à diversidade” predominantes nos estabelecimentos de ensino. Há indícios de que, em escolas onde o corpo docente se encontra mais aberto à adoção de princípios e práticas multiculturais / pluralistas - i.e., que consideram a diversidade cultural e étnica dos alunos como uma mais-valia educativa e o ponto de partida para a aprendizagem -, os descendentes de imigrantes têm classificações superiores, face aos seus pares que estão em escolas onde predomina uma abordagem assimilacionista, i.e., que perspetiva a diferença cultural como um obstáculo à aprendizagem e privilegia a adoção da cultura dominante (Celeste et al., 2019; Hagenaars et al., 2023). Por outro lado, é possível que a adoção de abordagens pluralistas esteja parcialmente dependente do “equilíbrio étnico” verificado na escola: a preferência dos docentes por abordagens monolingues à diversidade migratória é maior em escolas com composições étnicas equilibradas, mas menor em escolas com menos de 40% ou mais de 60% de alunos com origens imigrantes (Pulinx et al., 2017). Na literatura sobre os impactos educativos das várias abordagens à diversidade, a forma de multiculturalismo que aparece associada com a diminuição das desigualdades étnicas no desempenho escolar é aquela que mais se aproxima da definição de “pluralismo interativo”, avançada por Hartmann e Gerteis (2005). Apesar de apresentar algumas semelhanças com a ideia leiga de interculturalidade, ela vai além da promoção do diálogo e da compreensão entre culturas que se reconhecem como distintas. Numa escola multicultural, “(…) a ordem moral substantiva é entendida como sendo emergente - não algo que ‘é’, mas algo num estado de permanente concretização.” (Hartmann & Gerteis, p. 233). Apesar da ênfase grupal desta abordagem, os grupos culturais não são entendidos como fixos e imutáveis, mas antes como parte do tecido vivo da escola, mutuamente alterados. Assim, a eficácia de uma abordagem educativa multicultural assenta, em larga medida, na transformação da “ordem moral” da escola - nomeadamente, do seu “currículo”, no sentido de o tornar culturalmente significativo para todos os alunos. Evita-se, assim, a geração entre os alunos de um “sentido de futilidade” face ao trabalho académico (Agirdag et al., 2012), que emerge do fosso entre a cultura de origem dos alunos e aquela que é valorizada pela escola.
Por oposição, as abordagens colorblind e assimilacionista surgem associadas a piores resultados escolares entre os alunos com origem imigrante, ainda que por motivos ligeiramente diferentes. Uma escola que adote uma política de colorblindess - i.e., que ignore as diferenças entre grupos culturais, enfatizando antes as semelhanças ou atribuindo as diferenças visíveis à individualidade dos alunos -, fá-lo-á como forma de evitar o conflito, delineando fronteiras fracas entre grupos (Hartmann & Gerteis, 2005; Taylor, 2001). Em escolas onde a colorblindness se manifesta numa postura de recusa em prestar qualquer reconhecimento aos elementos culturais significativos para os alunos de origem imigrante, estes tenderão a desenvolver uma postura de afastamento, que resulta de uma falta de sentido de pertença à escola (Celeste et al., 2019). No entanto, caso esta abordagem se manifeste na vertente igualitária, ou seja, passe por enfatizar as semelhanças entre grupos, mais do que as diferenças, tornando explícito o compromisso com a justiça e o igual tratamento de todos na escola, pode ter efeitos positivos no desempenho dos alunos com background imigrante e contribuir para a diminuição do conflito (Guimond et al., 2014).
Por sua vez, o assimilacionismo toma a forma de desvalorização e rejeição da diferença cultural (Alexander, 2001). Assim, forçar os alunos de origem imigrante a deixar os seus marcadores de diferença “à porta”, sob pena de punição ou penalização académica, implica colocar diretamente em confronto a “ordem moral” da escola e a da cultura de origem. Este tipo de abordagem à diversidade manifesta-se, por exemplo, na proibição de falar a língua materna ou de usar símbolos religiosos na escola.
Centrar o problema da “ordem” neste debate, juntamente com a “cultura de expectativas” que prevalece na escola acerca da “ensinabilidade” dos alunos (Van den Broeck et al., 2020), permite-nos compreender a razão pela qual escolas com composições diferentes tenderão a adotar diferentes abordagens à diversidade. No caso do assimilacionismo, este torna-se impraticável onde existe uma elevada proporção de alunos de origem imigrante, já que o equilíbrio étnico pende para o seu lado, proporcionando mais oportunidades para uma postura de rejeição explícita da ordem escolar, permeando a organização de conflito permanente (Pulinx et al., 2017). Thrupp (1999) demonstra como, em escolas com públicos socialmente desfavorecidos, a preferência dos docentes por estratégias de gestão da aula pautadas pela adaptação da ação do professor à cultura dos alunos resulta da maior importância atribuída ao evitamento do conflito nestas escolas, consequência das expectativas globalmente baixas dos docentes acerca dos alunos. Assim, é razoável admitir que, em casos de maioria étnica das culturas socialmente minoritárias, as escolas tenderão a adotar abordagens multiculturais ou colorblind igualitárias.
Se é verdade que, no geral, quanto mais socioculturalmente desfavorecida for a escola, piores serão as expectativas docentes - e vice-versa - (Van den Broeck et al., 2020), a heterogeneidade traz desafios ainda pouco explorados na literatura, salvo raras exceções (Seabra et al., 2014). Uma população estudantil heterogénea pode contribuir para o desenvolvimento de expectativas globais mais positivas acerca dos alunos e do valor pedagógico da diversidade (Seabra et al., 2014). No entanto, pode também promover a adoção de métodos estratificados de gestão da diversidade interna dos seus públicos (Thrupp, 1999), que passam:
i) Pela constituição de “grupos de nível”, i.e., de turmas homogéneas do ponto de vista do desempenho escolar que são, frequentemente, também homogéneas quanto às origens sociais e étnicas dos alunos (McKown & Weinstein, 2008);
ii)Pela “triagem educativa” em salas de aula heterogéneas, onde o docente faz uma distribuição de recursos pedagógicos (ex.: atenção, oportunidades de aprender, etc.) socialmente enviesada, a favor dos alunos que considera terem uma probabilidade mais elevada de beneficiar da sua ação pedagógica (McKown & Weinstein, 2008).
Desta forma, é possível que a abordagem à diversidade dominante em escolas socioculturalmente diversas esteja particularmente dependente da ênfase na “função seletiva ou igualizadora” na missão perfilhada pelas lideranças - que tende a ser altamente permeável às políticas educativas, sobretudo, em contextos de pressão performativa associados a mecanismos de prestação de contas (Melo et al., 2022; Torres, 2018). Em escolas “seletivas”, ao contrário das “igualizadoras”, a ênfase será menos na valorização da diversidade que pauta o multiculturalismo e mais na maximização dos resultados globais, propiciando a adoção de abordagens colorblind ou assimilacionistas.
Por fim, em escolas socialmente favorecidas e com poucos alunos de origem imigrante, espera-se que o conflito entre a cultura de origem dos alunos e a cultura dominante seja mínimo. Isso é sustentado pelas investigações que verificam a continuidade entre os valores escolares e os “projetos de classe” dos alunos das classes médias-altas (Diogo et al., 2023; Melo et al., 2022; Thrupp, 1999; Torres, 2018). Nestes contextos, a abordagem assimilacionista traz poucas vantagens, podendo gerar reações negativas entre os poucos descendentes de imigrantes (Pulinx et al., 2017). Pelo contrário, uma abordagem colorblind, nomeadamente de teor “cosmopolita” - i.e., que considera a tolerância face à diversidade como garante da individualidade sem, no entanto, lhe atribuir centralidade (Hartmann & Gerteis, 2005) -, enquadra-se no projeto educativo internacionalista das elites contemporâneas (Schippling et al., 2020).
Propomos um modelo analítico que convoque as teorias sociológicas para compreender a problemática das abordagens à diversidade e os respetivos impactos nas desigualdades de desempenho escolar, em escolas com composições socioculturais distintas (Figura 1).
Procuramos, com este estudo, contribuir para o conhecimento acerca das estratégias adotadas pelas escolas para a gestão da diversidade interna dos seus públicos - especificamente, das escolas com elevada diversidade étnica e social. De que forma a composição da escola contribui para a escolha de determinadas abordagens, em detrimento de outras? Como podemos entender o impacto destas abordagens nas desigualdades de desempenho escolar entre diferentes grupos socioculturais?
Metodologia
Dada a natureza explicativa e contextual das questões que orientam este estudo, optou-se pela metodologia do estudo de caso. Para selecionar a escola de estudo, analisámos estatísticas oficiais da educação (Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência - DGEEC) relativas a todas as escolas da AML, com particular enfoque no 2.º ciclo - ciclo de transição e de primeira mudança de escola para muitos alunos, cujo impacto negativo no desempenho escolar tem sido documentado (Abrantes, 2005). Olhando para as taxas de retenção e desistência e as classificações finais à disciplina de Matemática durante quatro anos letivos (2014/15 a 2017/18), em bruto e o gap étnico2 e social,3 procurou-se identificar escolas socioculturalmente diversas 4 onde os alunos descendentes de imigrantes tivessem classificações e taxas de retenção consistentemente próximas dos seus colegas sem origens imigrantes e dentro da média das escolas suas semelhantes. Fez-se a mesma análise para o gap de desempenho entre alunos com pais altamente escolarizados e de famílias pouco escolarizadas.
Foram encontrados poucos casos elegíveis, de acordo com estes critérios: a maioria das escolas tende a reproduzir as desigualdades sociais pré-existentes, como outros estudos verificaram (Seabra et al., 2014; Strand, 2016) e poucas conseguem manter-se consistentes ao longo de quatro anos letivos. Adicionalmente, a maioria das escolas tem mais sucesso a diminuir as desigualdades étnicas do que as sociais. Assim, optou-se pela seleção de uma escola socioculturalmente diversa onde os descendentes de imigrantes obtiveram níveis de sucesso escolar próximos dos seus pares sem origens imigrantes, apesar de o mesmo padrão não se verificar entre os alunos de famílias menos escolarizadas.5
De acordo com a tipologia proposta por Seawright (2016), esta escola constitui um “caso de estudo desviante”, ou seja, uma escola com indicadores de sucesso escolar e igualdade de oportunidades étnicas acima da média do seu cluster. O autor defende que este tipo de caso, por oposição ao estudo de casos “típicos”, traz vantagens ao nível da identificação de padrões de relação causal entre fenómenos pouco estudados. É, portanto, particularmente indicado para compreender os fatores por detrás das dinâmicas de reprodução e transformação social, permitindo formular hipóteses acerca das condições para a ocorrência destes fenómenos ao nível sistémico.
Foram realizadas 13 entrevistas semi-diretivas junto a docentes e lideranças da escola (Tabela 1). Alguns dos indivíduos foram selecionados a priori, dada a relevância do seu cargo na organização escolar (ex.: o Diretor). Noutros casos, pediu-se indicação à Direção de pessoas com quem poderíamos ter interesse em falar, pelo seu conhecimento do contexto (ex.: membro do Conselho Pedagógico). No caso dos diretores de turma, foram entrevistados todos aqueles que desempenharam essas funções em turmas de 5.º e 6.º ano entre 2014/15 e 2017/18. O guião de entrevista foi estruturado à volta de cinco dimensões: caracterização do agrupamento; gestão estratégica; corpo docente; organização e estratégias pedagógicas; clima de escola. Em cada uma destas dimensões, foi explorada a dimensão do sucesso escolar e das desigualdades étnicas e sociais.
Nota: as entrevistas foram realizadas entre 10 de setembro e 16 de outubro de 2022. Fonte: produção própria
As entrevistas foram integralmente transcritas e sujeitas a análise de conteúdo. Foram aplicados dois tipos de metodologias na identificação de temas e dimensões de análise nos dados das entrevistas. Relativamente à caracterização das abordagens à diversidade predominante nas entrevistas, foi feita uma análise dedutiva, com base nas definições de multiculturalismo, igualitarismo, colorblindness e assimilacionismo presentes na literatura, para permitir a comparação destes resultados com os obtidos em estudos anteriores. Na identificação de dimensões da organização escolar onde cada abordagem se manifesta, optou-se pela extração indutiva de dimensões emergentes nos discursos dos atores escolares, já que investigações recentes demonstram como os domínios de atuação escolar são distintamente valorizados pelos docentes de acordo com fatores como a idade e as especificidades do contexto histórico-político (Hagenaars et al., 2023).
Resultados
Importa, antes de mais, identificar quais as abordagens à diversidade que prevalecem na escola estudada, no geral e para cada uma das dimensões extraídas durante a análise de conteúdo das entrevistas realizadas.
A abordagem colorblind, na sua vertente “igualitária”, é o modo de gestão da diversidade cultural claramente predominante na escola, seguida do multiculturalismo e da colorblindness na sua vertente mais próxima do liberalismo neutro de Taylor (2001); por fim, com valores residuais, verifica-se ainda a existência de um “assimilacionismo mitigado” nalguns discursos (Figura 2). Estes dados estão em conformidade com os estudos que afirmam coexistir, no seio da mesma organização escolar, abordagens distintas à diversidade (Hagenaars et al., 2023).
Sobressaem, no entanto, algumas diferenças relevantes entre dimensões que importa considerar. O “igualitarismo” prevalece face às restantes abordagens, de forma mais clara, na conceção de metodologias de trabalho pedagógico, na construção do currículo e na missão/visão de escola. Já o multiculturalismo ganha peso nas representações dos agentes escolares acerca das famílias dos alunos e das relações com a comunidade escolar, ao passo que o perde na forma como a escola lida com a diversidade linguística. Ao mesmo tempo (e de forma paradoxal), é também na dimensão da família e comunidade que se regista a maior prevalência de abordagens assimilacionistas. A “colorblindness neutra” ganha peso, competindo diretamente com o igualitarismo e multiculturalismo, nas abordagens adotadas para lidar com o comportamento e participação dos alunos na escola e na construção do currículo. A formação dos grupos-turma é a dimensão que menos parece ter uma abordagem específica associada, coexistindo princípios diversos de organização.
Identificadas estas especificidades, importa agora explorar, em maior detalhe, de que forma cada uma destas abordagens se manifesta nos discursos dos atores escolares. Especificamente, interessa-nos compreender as racionalidades - i.e., os princípios e razões orientadoras - dos agentes escolares no que respeita à gestão da diversidade e à forma como as várias abordagens são por eles entendidas e aplicadas.
Multiculturalismo: um legado histórico
Na sua génese, esta escola começou por servir um segmento muito concreto dos públicos escolares da área: as crianças das famílias residentes na zona mais pobre da freguesia, em idade de frequência do 5.º ou do 6.º ano. Desde então, a freguesia tem assistido a uma diversificação dos residentes, possuindo agora vários bairros habitados por famílias de classe média. A passagem de escola básica não-agrupada para agrupamento vertical implicou uma expansão da sua zona de influência e a consequente diversificação dos públicos escolares.
Uma parte importante do atual corpo docente e, sobretudo, das atuais lideranças da escola estudada, iniciou a sua carreira numa escola que, à época, era vista como problemática - em parte, pelos inúmeros casos de violência e indisciplina registados, em parte, pelo estigma social associado às populações que servia, maioritariamente de origem afrodescendente e cigana.
A escola tinha muito má imagem, no início, quando nós aqui ficámos colocados. Ai não vás para essa escola!, lá está, uma escola dita de “pr*tos e ciganos”. A gente tirava a fotografia dos garotos e [víamos] poucos miúdos… brancos, digamos assim. Depois as fotocópias eram a preto e branco, não ajudavam [risos]. E garotos com ar já mais maduro, mais velhos, estavam no 2.º ciclo com idade para estar no 3.º. (E8)
Várias lideranças entrevistadas - entre as quais o Diretor - estiveram envolvidas na aplicação de projetos de escola desenvolvidos no âmbito de iniciativas promovidas pelo entretanto extinto Secretariado Entreculturas. Resiste, por isso, nesta escola um forte impacto das políticas que, na viragem do milénio, foram impulsionadoras de um paradigma educativo compensatório e intercultural.
Este contexto é importante para perceber, não só a existência de marcas dos princípios da educação multicultural nos discursos dos entrevistados em todas as dimensões escolares, mas também o tipo de multiculturalismo que prevalece. No que diz respeito ao currículo e às metodologias pedagógicas, de acordo com a tipologia de Banks (2009), a escola integra os princípios da valorização e reconhecimento da diferença sobretudo com:
i) A “adição de conteúdos” específicos ao currículo já existente, nomeadamente, aproveitando os Domínios de Articulação Curricular (DAC) e grande parte das atividades de aprendizagem baseada em projetos desenvolvidos pelos alunos, cujo peso nos métodos de avaliação da escola tem vindo a aumentar;
ii) A criação esporádica de momentos pedagógicos centrados na troca intercultural entre alunos, como “estratégia de redução do preconceito” com intencionalidade pedagógica, numa lógica de aprendizagem ativa..
Parece estar ausente uma perspetiva multicultural mais crítica, que interrogue os pressupostos do currículo e convoque os alunos para a sua co-construção. Além disso, esta abordagem aparece sobretudo entre os docentes mais velhos, estando pouco presente nos discursos dos docentes com menos de duas décadas de serviço.
O multiculturalismo é, ainda, mobilizado frequentemente como orientador das estratégias de comunicação entre os agentes escolares, nomeadamente professores e técnicos, e as famílias dos seus alunos, especialmente as de etnia cigana e as imigrantes recém-chegadas. Prevalece um entendimento generalizado acerca do impacto das dinâmicas mais amplas de discriminação étnica e desigualdade social na forma como estas famílias se tendem a relacionar com a organização escolar. É reconhecida a importância de uma abordagem que, partindo da escola, se diferencie das demais instituições sociais no tratamento das famílias, numa lógica construtiva e não punitiva.
(…) a escola tem que ter em conta para não analisar de forma enviesada, ou crítica, ou paternalista, porque é que aquele encarregado de educação não comparece. E isso faz a diferença, não se trata só de empatia, muito mais do que isso, a família é um sistema plural, muito dinâmico e a matriz que eu possa ter do que é uma família ou do que é a minha família não é igual aos meus colegas. E eu não posso usar essa minha matriz familiar, pessoal, para olhar para aquilo que são as famílias dos nossos alunos. (E4)
Tal como no currículo, também na relação com a comunidade sobressaem dúvidas sobre como envolver na vida escolar. Vencida a desconfiança inicial e estando a aumentar a frequência escolar dos alunos de etnia cigana em todos os ciclos de ensino, não se pode dizer que a relação com as famílias é negativa ou conflituosa. No entanto, está ainda longe de ser “transformadora” (Banks, 2009), como ressalvam alguns dos entrevistados.
Igualitarismo: entre compensar a pobreza e fechar o destino social
No centro da visão de escola de todos os entrevistados, sobressai a preocupação com a igualdade de tratamento e de oportunidades. Como adiantam os seguintes testemunhos,
Vermos como é que podemos chegar a todos os alunos é a nossa filosofia, não deixar nenhum para trás. (E9)
A Escola agora é reconhecida pelos projetos que desenvolve, e pela forma como se relaciona com os seus alunos e como atende à diversidade dos alunos que integra, claramente. (…), sempre foi uma escola muito inclusiva, que se preocupou sempre muito com os alunos. (E2)
Nos discursos, este igualitarismo - sobretudo quando se aplica à justificação das estratégias de ensino-aprendizagem - aparece quase sempre associado ao diagnóstico do contexto sociocultural em que a escola opera. Por um lado, porque se reconhece que a privação material em que opera uma boa parte das famílias dos alunos significa que as condições de estudo fora da escola são altamente desiguais entre alunos. Assim, procura-se garantir que a maior parte do trabalho escolar - sobretudo, que exija recursos adicionais, como computador, acesso à internet e espaços apropriados - é realizável na escola e, de preferência, em contexto de sala de aula.
Relativamente a trabalhos mais complexos, de pesquisa, temos que procurar centrar muito em sala de aula, para atenuar as desigualdades sociais que temos em cada grupo-turma. Porque senão temos os trabalhos muito bons, daqueles que têm centro de estudos, pais que podem acompanhar, recursos para os fazer, e depois temos aqueles, os “patinhos feios” que não… e para evitar esse tipo de situações, fazer sempre que possível em contexto de sala de aula. (E2)
Por outro lado, a crescente adoção de estratégias de diferenciação pedagógica em sala de aula, aliada a metodologias de aprendizagem ativas como o projeto, é vista por muitos entrevistados como a única opção para uma escola onde a maioria dos alunos não se revê no projeto de escola tradicional.
Recorremos muito à metodologia de trabalho grupo, de pesquisa, ao lúdico… há muito essa estratégia. Porque isto são alunos de contextos sociais muito desfavorecidos, como também já deve ter ouvido muitos professores a dizer [risos]. E aulas expositivas… a escola não é para muitos destes alunos e então se não houver outra maneira… (E10)
Alguns entrevistados salientam ainda a vantagem que estas metodologias trazem ao nível do fortalecimento do projeto e missão de escola, no domínio da educação para a cidadania.
E percebiam que às vezes o professor, quando os tinha na sala de aula, não podia dar tanta atenção aos outros, porque tinha de focar a sua atenção naquele aluno que fazia um trabalho bastante diferenciado do resto da turma. Mas isso não era um problema para eles, e eles crescem com esta cultura. O que possibilita depois também que na sua vida, sejam cidadãos mais tolerantes e respeitadores da diferença, é um dos objetivos que temos aqui. (E2)
No campo da diversidade cultural, a missão compensatória da escola estende-se também àquele que é visto como o principal obstáculo ao sucesso dos alunos imigrantes na escola: o fraco domínio da língua portuguesa. As origens nacionais mais frequentemente mencionadas como beneficiárias de apoios específicos ao nível da língua são as de diásporas historicamente recentes no país, como as sul-asiáticas e algumas migrações recentes do Leste europeu. No entanto, a fraca proficiência na língua portuguesa é também apontada a alguns alunos oriundos de países de língua oficial portuguesa, como os PALOP e o Brasil.
A orientação igualitarista da escola padece, no entanto, de um paradoxo. Vários entrevistados - sobretudo, aqueles que estão há mais tempo na escola - salientam o trabalho positivo que tem sido desenvolvido, nos últimos anos, no sentido de desconstruir o automatismo de associar as origens sociais dos alunos ao nível de sucesso escolar que podem esperar obter. Como adianta o presidente do Conselho Geral, “O ano passado dizia-se ‘Não temos de ter pensamento vulnerável. Temos que pensar alto’. Porque as nossas crianças gostam que nós pensemos alto. (…) Porque eles precisam de ver outras coisas, para além dos muros da sua freguesia.” (E3).
Apesar disso, muitos dos discursos em prol da igualdade de oportunidades educativas resvalam, em simultâneo, para um fechamento do destino social dos alunos provenientes das franjas mais desfavorecidas da freguesia.
Porque nós temos miúdos com condições muito… claro que há de tudo (…). Não podemos esperar que estes miúdos alcancem médias altíssimas, podemos sim preparar estes miúdos para o dia-a-dia, neste caso. E esta avaliação formativa tem muito esta função, de levá-los a olhar para o seu erro, para o seu pensamento crítico, ver que aquilo não está bem porque… (E10)
Em determinadas instâncias, corre-se o risco de confundir a diferenciação pedagógica - que consiste na adaptação de estratégias e métodos de ensino para garantir que todos os alunos tenham acesso aos conteúdos curriculares - com uma espécie de “adaptação curricular difusa” - i.e., a tentação de “nivelar por baixo” os objetivos de aprendizagem e os critérios de avaliação.
E o aluno às vezes chega no nível 2 profundo e vai até ao 50, e quando chega ao final do ano ele não pode deixar de ter 3 porque ele trabalhou imenso. Que noutra escola, seria nível 2, mas para aquilo que aquele garoto dá… porque aquele garoto é pouco estimulado em casa, o que ele faz é o que faz aqui, o que trabalhou, é o que trabalha aqui. Com muitos garotos nossos, o trabalho é o que trabalha aqui, passa aqui muitas horas na escola… (E8)
Colorblindness: desenvolver o “ofício de aluno”
A colorblindness, na sua dimensão de valorização da individualidade dos alunos, encontra-se presente na visão de escola de alguns dos entrevistados, entre os quais o Diretor, mas não só.
E toda a gente, sim, cada um é como é, cada um tem a sua especificidade, cada espaço é diferente, a dinâmica [de cada escola do agrupamento] é diferente, a rotina é diferente. Sim, é tudo verdade, mas os meninos são o elo de ligação de tudo isto, não é? (…) Este projeto educativo é para todos, é para cada um e para todos, como diz uma outra colega. Sempre a vincar ali o individual. (E1)
Vários discursos salientam a importância de atender às necessidades específicas de cada aluno. Cita-se, neste âmbito, o compromisso da escola com a monitorização contínua das aprendizagens, através de uma metodologia de avaliação formativa, que permite a deteção precoce de alunos passíveis de beneficiar: i) de medidas de diferenciação pedagógica na sala de aula e/ou ii) dos vários projetos para o sucesso escolar concebidos pela escola, dirigidos a alunos que não se qualificam para o apoio ou que já beneficiam de outras medidas. Um exemplo destes projetos é uma iniciativa dirigida a alunos “à beira da positiva” ou com positivas fracas, em necessidade de consolidação. Pretende-se nestes momentos extracurriculares cultivar hábitos e metodologias de estudo nos alunos, numa lógica semelhante à ideologia do “trabalho sobre si próprio” associado por Melo et al. (2022) a escolas socialmente heterogéneas e favorecidas.
Quando os professores sentem que [os alunos] precisam de ajuda na organização do seu material de trabalho, conhecerem-se como estudantes. “Como é que eu aprendo? Como é que eu aprendo melhor?” E de alguma forma, perceberem “Ok, eu não sou de cópias, portanto eu tenho é que olhar, eu tenho que fazer esquemas”, portanto o aprender formas de estudar… e foi assim que começou a atividade. E nunca obrigámos nenhum aluno a participar, eram identificados pelos diretores de turma ou pelos professores do conselho de turma, nós falávamos com eles e convidávamos os alunos, explicávamos que pensávamos que eles podiam gostar e beneficiar, podia ser bom para eles. (E4)
A colorblindness sobressai particularmente na tomada de algumas decisões gestionárias, cujos impactos pedagógicos e determinantes sociais são ignorados. Em particular, a formação de grupos-turma no 5.º ano é feita privilegiando a continuidade com os grupos-turma previamente existentes nas três escolas de 1.º ciclo do agrupamento. Esta é uma solução popular entre os atores escolares entrevistados, salientando-se os seus benefícios ao nível do bem-estar psicológico dos alunos, numa fase de transição de ciclo que traz, por si só, dificuldades na adaptação escolar.
O facto de as escolas de 1.º ciclo do agrupamento terem composições socioculturais notoriamente distintas é destacado por quase todos os entrevistados. No entanto, as consequências desta homogeneidade social interna das turmas de 5.º ano no processo de ensino-aprendizagem não são reconhecidas.
Por norma os grupos são mantidos iguais e eles aqui acabam por reproduzir aquilo que já era o quadro de aproveitamento que tinham no 1.º ciclo. E há grupos-turma que têm melhores desempenhos e grupos de turma que têm desempenhos menos satisfatórios. (E2)
Apesar de não ser uma ocorrência prevalente nos discursos, registam-se instâncias em que os entrevistados se referem aos seus alunos “em bloco” - i.e., atribuindo qualidade académica (ou falta dela) ao grupo-turma. Quando tal acontece, a composição social e étnica não é mencionada ou, a sê-lo, é explicitamente refutada enquanto explicação.
Mas também tenho que reconhecer que estas 2 turmas que eu tenho são… pronto são as turmas que já vinham no 1.º ciclo referenciadas como turmas boas, no sentido de… não só em termos de resultados, gostam de aprender, estão dentro da sala motivados, não estão com aquele ar de enfado, que tudo o que se lhes é apresentado é uma chatice (…). Porque há uns anos havia também a questão, havia aqui um bocadinho do preconceito que as turmas que vinham aqui da freguesia eram sempre mais complicadas (…). E até há uns anos a esta parte era um facto, nos últimos anos já não se tem notado tanto essa diferença. Eu acho que nos últimos anos nem se tem notado de todo. (E12)
O ignorar da composição sociocultural das turmas reflete-se, ainda, no agrupamento dos alunos que frequentam a disciplina de Português Língua Não-Materna (PLNM) na mesma turma, para evitar a fragmentação dos horários desta disciplina entre diversas turmas. Não se trata de um grupo linguisticamente segregado, já que é composto maioritariamente por alunos que frequentam a disciplina de Português. Ainda assim, prevalece nesta decisão um critério de economia de recursos, sem reflexão acerca do impacto que a constituição de grupos de nível pode ter ao nível das expectativas docentes e, consequentemente, do desempenho académico dos alunos.
Assimilacionismo: problematizar a diferença
Sendo o assimilacionismo a estratégia menos prevalente na escola, para a gestão da diversidade cultural, ele está ainda assim ocasionalmente presente nos discursos. Pauta-se por uma desvalorização da diversidade no contexto escolar e, eventualmente, pela instituição de penalizações académicas dos comportamentos e traços culturais visíveis.
Nesta escola, ela aparece sobretudo associada às línguas estrangeiras (assim como a outras variantes nacionais do Português), bem como a dois fenómenos quase exclusivamente atribuídos, pelos entrevistados, à comunidade cigana: o absentismo e as relações de género tradicionais. No que toca à utilização de línguas estrangeiras ou variantes do Português na escola, predomina um assimilacionismo de caráter mais difuso face ao encontrado noutros países europeus, onde a norma é a proibição de falar as línguas maternas na escola (Hagenaars et al., 2023). Tal postura assenta numa crença nas vantagens académicas da imersão dos alunos imigrantes na língua da sociedade de acolhimento.
Apesar de a escola estudada não proibir o uso de línguas estrangeiras, a utilização do Português de Portugal é frequentemente encorajada e valorizada, predominando um paradigma monolingue do ensino-aprendizagem. Quando as lacunas são vistas como muito profundas e comprometedoras do acesso dos alunos ao currículo, é frequente a escola optar por uma integração progressiva do aluno nas várias disciplinas, privilegiando a aprendizagem da língua oficial no âmbito do PLNM e de outros projetos de escola para os alunos consolidarem, num contexto não-formal, a proficiência linguística.
Até podem não ter nenhuma das outras disciplinas e ter uma mancha que está determinada, a percentagem, que é só de Língua Portuguesa, há ali um “banho de língua”, para poderem depois enfrentar os outros desafios subsequentes (…). Nós podemos ter aqui um aluno que seja colocado no primeiro ano em que chega aqui à nossa escola no A, e que no ano seguinte já tenha condições para… e depois temos aqueles que temos de utilizar como estratégia ele não ter positiva a Português para se manter no mesmo nível de proficiência. Porque o aluno entra, é colocado num nível de proficiência, se cumprir todos os requisitos, automaticamente tem de mudar de nível. (…) Às vezes tem de se utilizar aqui uma estratégia, porque reconhecemos que o aluno ainda tem fragilidades e que, até tende a atingir os objetivos definidos, mas atingiu na forma mínima. Se o vamos colocar num nível acima, ele pode não ter as bases para corresponder (E2)
Esta ideia do “banho de língua”, i.e., do interesse da escola em maximizar o contacto dos alunos estrangeiros com a língua oficial como requisito para o seu sucesso escolar, reflete-se em menções ocasionais à língua (estrangeira) falada em casa como obstáculo à aprendizagem do Português: “(…) a par dos meninos que vêm dos países de língua portuguesa, mas que… estou a pensar em termos de Cabo Verde e tudo isso, que eles falam muito o crioulo se calhar em casa e depois é difícil aqui.” (E11).
O paradigma monolingue sobressai ainda, de forma mais subtil, na valorização da aproximação do Português falado pelos alunos à variante nacional, subentendida como “correta”.
E temos outros que por qualidade já têm o português europeu … a gente sabia depois pelos pais, que já fizeram o 1.º ciclo todo cá e, portanto, já estão muito integrados no nosso sistema de ensino e já nem têm sotaque, nem nada. Já temos isso, já temos os filhos da 1.ª geração. (E8)
É, no entanto, nas questões relacionadas com a comunidade cigana que a vertente punitiva do assimilacionismo escolar se manifesta de forma mais evidente. A organização escolar e as famílias de etnia cigana são predominantemente vistas como duas realidades claramente distintas, de difícil compreensão mútua ou interpenetração. Um dos atuais desafios do agrupamento, comummente referido nas entrevistas, é precisamente consolidar a continuação dos alunos ciganos para além do 2.º ciclo do ensino básico - sobretudo, das raparigas. Mesmo no 2.º ciclo, os docentes vêm-se ainda a braços com taxas relevantes de absentismo. Atribui-se como razão a desvalorização da escola por parte das famílias de origem cigana, cuja relação com a organização é, de acordo com os entrevistados, meramente instrumental. Em resposta, a escola mune-se frequentemente do apoio do aparelho de Estado, face ao qual estas populações são particularmente vulneráveis.
Ainda que tenha sido com muita pressão, com muito relatório, com muita ameaça da CPCJ, da supressão dos rendimentos, dessas situações, que ainda é aqui um aliado nosso. É triste ter que dizer isto, mas é um aliado nosso. Por um lado, eles estão dentro da escolaridade obrigatória, têm de estar aqui. Mas estão só por essa razão. (E2)
Conclusões
Os resultados deste estudo contribuem para melhorar a compreensão dos efeitos longitudinais da composição social e étnica da escola ao nível:
i) Da modificação, ao longo do tempo, da cultura de escola, nomeadamente ao nível das abordagens à diversidade e das expectativas docentes;
ii) Dos impactos diferenciais que esta cultura pode ter em alunos de diferentes origens socioculturais.
Selecionou-se como objeto de estudo uma escola de 2.º ciclo do ensino básico de composição historicamente desfavorecida (com uma elevada diversidade étnica e muitos alunos com famílias pouco escolarizadas) em trajetória de progressiva diversificação dos seus públicos (aumento de famílias de classe média com qualificações ao nível do ensino secundário e superior). Demonstrou ter, ao longo de quatro anos letivos, níveis de sucesso escolar dos seus alunos imigrantes equivalentes aos dos pares sem origens imigrantes e acima da média das escolas suas semelhantes. A análise das 13 entrevistas semi-diretivas realizadas junto de docentes e lideranças procurou compreender:
i)Se parte da explicação para o sucesso da escola em promover a igualdade de oportunidades étnicas se prende com as estratégias de gestão da diversidade adotadas;
ii)Se a adoção destas estratégias está relacionada com a composição sociocultural da escola;
iii) De que forma a mudança ocorrida a este nível nos últimos anos contribuiu para a emergência de novas configurações de abordagens à diversidade, nomeadamente, por via da modificação da cultura das expectativas docentes.
Os resultados estão em linha com investigações anteriores, no que toca ao impacto positivo das abordagens “multicultural e igualitária” de gestão da diversidade (Celeste et al., 2019; Hagenaars et al., 2023). Estas foram as estratégias predominantes na escola estudada durante o período analisado, manifestando-se sobretudo ao nível da visão de escola, com a valorização da diversidade cultural, bem como da adoção de métodos de ensino-aprendizagem orientados para a compensação das desigualdades sociais. Os entrevistados salientaram a importância de adaptar as estratégias de acesso ao currículo às características dos alunos, com vista ao seu sucesso escolar. Confirma-se a centralidade do desempenho académico na missão de escola como fator explicativo do “sucesso inesperado” da escola (Reynolds et al., 2014).
A preponderância destas abordagens à diversidade está intrinsecamente relacionada com a envolvente sociocultural em que a escola, historicamente, opera. “Nós sempre trabalhámos assim” foi uma expressão frequentemente usada relativamente a aspetos como a flexibilidade curricular, a avaliação formativa, o multiculturalismo, etc., para explicar que a matriz de atuação da escola se pautou, desde o início, pela atenção ao contexto. São referidos resultados positivos destas estratégias ao nível da gestão disciplinar da sala de aula, da eficácia das aprendizagens dos alunos e da motivação - dos alunos e dos professores. Assim, verifica-se que, em escolas onde as culturas de origem de grande parte do seu público se opõem à da escola, o multiculturalismo, bem como a adoção de estratégias de ensino-aprendizagem mais centrados no aluno, são vistos pelos docentes como facilitadores do papel do professor, evitando o conflito cultural (Thrupp, 1999) e a alienação dos alunos face ao trabalho escolar (Agirdag et al., 2012).
E de facto nós fomos, durante muitos anos, uma escola muito escrutinada. Que tinha de justificar tudo e mais alguma coisa. E a certa altura, efetivamente nós tivemos que… porque ou se arranjavam estratégias para combater e alterar e mudar, ou estávamos sempre a responder pela mesma coisa, o que é desmotivante e cansativo. (E2)
Por outro lado, a chegada à escola, nos últimos anos, de mais alunos com pais altamente escolarizados e das classes médias, tem potenciado a emergência de estratégias colorblind e assimilacionistas de gestão da diversidade.
No que toca à colorblindness, esta manifesta-se sobretudo na criação de projetos de apoio ao estudo, dirigidos a alunos com bom comportamento, mas com positivas fracas, que não se qualificam para o apoio. Este tipo de iniciativas encaixa no desenvolvimento de um ofício de aluno performativo-competitivo, “(…) dado que as suas conceções de bom aluno valorizam o esforço, o empenho, a dedicação, a capacidade de trabalho, a autonomia, a capacidade de autorregulação, autossuperação e autopromoção”, que Melo et al. (2022, p. 141) associa ao habitus escolar típico das crianças da classe média.
No entanto, a recente diversificação da base social de recrutamento da escola coloca desafios ao nível da gestão interna dos públicos. Em linha com a hipótese delineada no modelo analítico, a escola tende a responder à heterogeneidade dos seus alunos com a estratificação interna, constituindo grupos-turma homogéneos (McKown & Weinstein, 2008). Tal decorre da aplicação de critérios colorblind gestionários, ao invés de pedagógicos - nomeadamente, colocando todos os alunos com PLNM na mesma turma, para facilitar a gestão horária, bem como optando por manter os grupos-turma do 4.º para o 5.º ano, reproduzindo, por consequência, o perfil social das escolas de origem. À exceção da concentração dos alunos de PLNM na mesma turma, a homogeneidade dos grupos parece ser predominantemente ao nível das origens sociais. Sobressai, nas entrevistas, uma preocupação em distribuir os alunos descendentes de imigrantes e de etnia cigana entre as várias turmas, de forma a i) diminuir a concentração de problemas disciplinares e ii) potenciar a utilização de metodologias de trabalho em aula como a tutoria interpares, cada vez mais prevalente na escola.
Os docentes referem como principais vantagens da manutenção dos grupos do 4.º para o 5.º ano o conhecimento prévio das turmas, que é dado pelos colegas do 1.º ciclo, bem como uma maior facilidade de adaptação dos alunos à nova escola com a manutenção dos laços do 1.º ciclo. Apesar disso, as entrevistas demonstram que esta opção pode ter efeitos não-intencionais ao nível da “triagem educativa” (McKown & Weinstein, 2008). Os docentes ajustam as suas expectativas ao nível de desempenho esperado da turma que têm e, internamente, canalizam atenção e recursos para os “alunos-bolha” - i.e., aqueles que estão à beira da positiva e que os professores vêm como sendo recuperáveis.
Estas práticas correm o risco de contribuir para o enraizamento de baixas expectativas face aos alunos das classes populares e da etnia cigana, criando-se uma subcultura de escola assimilacionista, que entende a diferença cultural (ex.: a utilização de línguas estrangeiras ou as dinâmicas familiares das classes populares e das comunidades ciganas) como obstáculo ao sucesso educativo. O facto de esta perspetiva entrar em conflito com a matriz identitária da escola demonstra como, numa mesma organização escolar, coexistem racionalidades aparentemente paradoxais (Hagenaars et al., 2023). Espelhando investigações anteriores em contextos escolares marcados pela diversidade dos públicos, também nesta escola se verifica que “O discurso dominante tem sempre um pendor igualitário, mas denota, em simultâneo, fortes marcas diferencialistas de base cultural.” (Mateus, 2019, p. 130). A perda de preponderância numérica destes alunos pode, assim, sinalizar uma viragem iminente nas prioridades da escola, onde os mais vulneráveis deixam de ser a “aposta”. O insucesso e desistência dos alunos ciganos, por exemplo, é muitas vezes referido pelos docentes e lideranças como um caso excecional - pela negativa -, implicando a sua marginalidade no projeto de escola:
Quanto ao absentismo, também temos essa variável controlada. Temos aqui a etnia cigana que é… muito marcante, são bastantes e facilmente entram em… pronto, eles têm os seus padrões de desenvolvimento. (…) Mas é muito difícil eles perceberem que uma aula começa a uma hora. Não cumprem. Porque no conceito cultural deles, não há essa exigência, não é? (…) Pois, isto se calhar vai devagarinho. Mas esta variável que eu agora aqui aflorei, às vezes pode infetar os números… (E3)
Para concluir, ressalvamos que este estudo de caso colocou em evidência empírica um paradoxo que tem vindo a protagonizar os grandes debates educativos - sobretudo, no campo da eficácia e melhoria escolar. Como pode a escola reconhecer a diferença cultural e social, sem permitir que ela determine os destinos académicos e sociais dos alunos? As entrevistas realizadas sugerem que a combinação de uma abordagem igualitária, preocupada com a compensação das desigualdades sociais de partida, e uma abordagem multicultural, que valoriza a diversidade e a integra no projeto educativo, permite colocar no centro do currículo o questionamento dos pressupostos sobre os quais assentam as baixas expectativas docentes face a alunos de origens sociais desfavorecidas e de origem imigrante. Pesquisas futuras devem alargar o âmbito de análise, mobilizando metodologias comparativas e optando pela realização de estudos de caso longitudinais, que permitam a verificação do impacto de diversas composições socioculturais nas culturas de escola e nos desempenhos escolares dos alunos.