Introdução
As sociedades contemporâneas são sociedades envelhecidas, uma vez que a proporção dos adultos mais velhos (65 e mais anos de idade) está a aumentar, a um ritmo particularmente elevado junto dos que têm 85 e mais anos. Esta evidência tem diversas implicações, entre as quais um provável aumento do número de pessoas mais velhas com necessidades de cuidados de saúde e de longa duração (Karlsen et al., 2017; World Health Organization [WHO], 2017). Segundo a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2017), mais de 20% dos adultos com idade igual ou superior a 60 anos sofre de perturbações mentais ou neurológicas, sendo a demência e a depressão as mais comuns, afetando aproximadamente 5% e 7% da população mundial mais velha, respetivamente (WHO, 2017). Em 2019, 38% dos portugueses com 65 ou mais anos consideravam ter um mau estado de saúde (Moreira, 2020). O provável aumento de cuidados de saúde e de longa duração junto dos mais velhos encontra respaldo no acentuar da diferença entre a esperança de vida e a esperança de vida saudável aos 65 anos. Em 2019, uma pessoa com 65 ou mais anos poderia esperar viver 19,61 anos, mas apenas 7,3 anos de vida saudável (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2021).
As necessidades de cuidados/apoios entre os adultos mais velhos poderão ser mais prementes junto daqueles que vivem sozinhos. A residência unipessoal entre os adultos mais velhos, fenómeno que, em 2019, se encontrava junto de 25% dos portugueses com 65 ou mais anos (Moreira, 2020), é reconhecida como um “problema social”, que carece de uma intervenção urgente (Cardoso, 2020; Ralha, 2019). Isto deve-se à associação entre residência unipessoal na velhice e solidão (Dahlberg et al., 2022; Dias et al., 2010; Paúl & Ribeiro, 2009), estando a solidão associada, por sua vez, ao declínio cognitivo (Tilvis et al., 2000; Peek et al., 2014) e a um maior risco de mortalidade (O’Súilleabháin et al., 2019).
Nas sociedades envelhecidas, as políticas de “envelhecimento no lugar” (ageing in place) têm surgido como respostas ao envelhecimento populacional, entendendo-se por “envelhecimento no lugar” a oportunidade oferecida aos mais velhos para permanecerem nas suas residências o máximo de tempo possível, sem terem que se mudar para uma estrutura residencial para pessoas idosas (Grimmer et al., 2015). São vários os temas/dimensões normalmente associadas ao envelhecimento no lugar, incluindo: lugar (place), redes sociais, apoio, tecnologia e características pessoais (ex.: saúde física e mental, adaptabilidade) (Pani-Harreman et al., 2021).
As políticas de envelhecimento no lugar procuram promover a qualidade de vida (QdV) dos adultos mais velhos, dado que vão ao encontro da preferência da maioria destes de continuarem a residir nas suas próprias casas (Bárrios et al., 2020; Bettio & Verashchagina, 2010; DeJonge et al., 2009). Além disso, assume-se que residir num ambiente familiar comporta um impacto positivo no bem-estar e qualidade de vida das pessoas mais velhas (Van Dijk et al., 2015). Refira-se, ainda, que as políticas de envelhecimento no lugar são consideradas mais vantajosas do ponto de vista económico do que as políticas que apostam nos cuidados institucionais (Mostashari, 2010).
De facto, tem-se vindo a assistir a uma desinstitucionalização dos cuidados de saúde e de longa duração dirigidos para a população idosa (Marin et al., 2009; Vassli & Farshchian, 2017). Todavia, os apoios/serviços na comunidade, tanto formais (ex.: apoios prestados por centros de saúde, instituições do chamado terceiro setor ou setor social) como informais (ex.: apoios prestados por familiares, amigos e vizinhos) têm estado sob fortes pressões, comprometendo a implementação bem-sucedida das políticas de envelhecimento no lugar. Os cuidados formais têm estado sob fortes pressões orçamentais, em particular os cuidados de saúde e de longa duração, às quais se juntam as dificuldades de recrutamento e de retenção de profissionais, principalmente no setor dos cuidados de longa duração (Fujisawa & Colombo, 2009). Por seu lado, os cuidados informais também têm enfrentado dificuldades devido a diversas mudanças nas estruturas e dinâmicas familiares, onde se inclui o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho (tradicionais cuidadoras), que em grande parte dos países se dá a tempo inteiro, levantando problemas em termos de conciliação da atividade profissional com os cuidados familiares (Gil, 2022). A este respeito, prevê-se que na maior parte dos países da OCDE o número de cuidadores informais irá diminuir no futuro (Colombo et al., 2011).
Desta forma, existe um desajustamento entre as políticas de envelhecimento no lugar e os apoios que efetivamente existem para possibilitar a concretização desse desígnio. Este desajustamento tem-se traduzido numa oportunidade para o desenvolvimento e comercialização de tecnologias direcionadas para os cuidados da população mais velha. São vários os defensores da ideia de que a solução para este desajustamento passa por uma aposta nas tecnologias de assistência (TA) (Khosravia & Ghapanchi, 2016; Pinto-Bruno et al., 2017; Vassli & Farshchian, 2017), pois acreditam que estas contribuem não só para o envelhecimento no lugar, mas também para o combate ao isolamento social, promovendo a QdV das pessoas mais velhas e reduzindo os custos com os cuidados de saúde e de longa duração (Khosravia & Ghapanchi, 2016; Vassli & Farshchian, 2017).
Ao longo das últimas décadas têm sido desenvolvidas várias TA com o objetivo de apoiar as pessoas mais velhas (Azimi et al., 2016; Khosravia & Ghapanchi, 2016; Padilla-Góngora & Padilla-Clemente, 2008), onde se inclui a teleassistência. As TA inserem-se num conjunto de medidas no âmbito das políticas de envelhecimento no lugar, pois a sua utilização tem o potencial de permitir aos adultos mais velhos viver independentemente na própria residência (Pani-Harreman et al., 2021). O desenvolvimento destas tecnologias não é surpreendente, visto que as sociedades contemporâneas, para além de envelhecidas, são altamente digitalizadas (Musik & Bogner, 2019), querendo isto dizer que a “sociedade em rede”, em que as tecnologias de informação e comunicação (TIC) adquirem um papel de destaque, representa uma nova forma de organização social (Castells, 2007). Por exemplo, os relacionamentos sociais estabelecem-se não só presencialmente, mas também remotamente. Por outras palavras, os relacionamentos e a comunicação são, cada vez mais, tecnologicamente mediados.
Decorrente deste enquadramento, o presente artigo tem como objetivo reportar parte dos resultados de uma investigação1 empírica que procurou compreender o modo como os adultos mais velhos (com 65 ou mais anos de idade) utilizam e avaliam o serviço de teleassistência (STA) de um Município da região do Algarve (designado por Município A na restante parte do artigo), bem como os seus entendimentos sobre o contributo da utilização deste serviço para a qualidade das suas vidas. Mais concretamente, neste artigo pretende-se dar resposta às seguintes questões de investigação: Quais são os padrões de utilização do STA do Município A por parte dos utilizadores mais velhos? Será que a utilização deste serviço contribui para melhorar a QdV dos seus utilizadores? Em caso afirmativo, de que modo é que este contributo se dá? Por outras palavras, quais são os benefícios do STA que são responsáveis pela melhoria da QdV? Como se verá mais adiante, a investigação empírica sobre estes temas é inexistente ou inconclusiva. Este artigo, para além de contribuir para a compreensão do papel das TA na velhice, suscita uma reflexão em torno das políticas públicas direcionadas para a promoção do envelhecimento no lugar e da QdV nas fases mais adiantadas da vida.
Enquadramento teórico
A investigação empírica sobre o tema das TA nas fases mais avançadas da vida pode agrupar-se em três grandes linhas: i) acesso às TA e divisão digital, com um enfoque nas desigualdades de acesso e uso das tecnologias (ex.: Gilleard & Higgs, 2008; Tan & Chan, 2018); ii) aceitação e uso das TA, em que a identificação dos fatores que conduzem à aceitação (ou não) da tecnologia, bem como ao seu uso efetivo, se destaca (ex.: Charness, 2003; McCreadie, 2010; Neves et al., 2013; Vassli & Farshchian, 2017); e iii) eficácia das TA, cujo objetivo é analisar em que medida é que estas tecnologias satisfazem as necessidades dos utilizadores mais velhos e promovem a QdV (ex.: Damant et al., 2017; Greenhalgh et al., 2013; Khosravia & Ghapanchi, 2016). Tendo em conta o objetivo deste artigo, ir-se-á focar apenas na terceira linha de investigação. A pesquisa bibliográfica realizada não encontrou estudos sobre os padrões de utilização das TA por parte dos utilizadores mais velhos, o que vai ao encontro da necessidade, referida por Tan e Chan (2018), de se investigar o modo como estas tecnologias são efetivamente usadas (padrões de utilização).
Um estudo realizado na Inglaterra (Greenhalgh et al., 2013) sobre a eficácia dos serviços de telecuidados, concluiu que estes satisfazem um conjunto limitado de necessidades das pessoas mais velhas, e que algumas destas acabam por deixar de usar estes serviços. Contudo, a informação mais robusta sobre a eficácia das TA é fornecida por diversas revisões da literatura (sendo a grande maioria revisões sistemáticas). Por exemplo, uma revisão da literatura sobre o impacto do uso das tecnologias (convencionais e de assistência) na QdV dos utilizadores mais velhos (Damant et al., 2017) concluiu que alguns estudos apontam no sentido de um impacto positivo nalgumas dimensões da QdV (ex.: sentido de segurança, sentido de controlo sobre a vida), enquanto outros estudos apontam no sentido de um impacto negativo noutras dimensões (ex.: envolvimento e participação social). Isto significa que as tecnologias podem ser “empowering” ou “dis-empowering” (Greenhalgh et al., 2013). Esta revisão também identificou uma lacuna na literatura, nomeadamente a avaliação do impacto da não utilização de TA na QdV dos mais velhos.
Uma outra revisão da literatura, sobre a experiência de uso de telecuidados por parte de pessoas mais velhas (Karlsen et al., 2017), concluiu que estes cuidados também contribuem para reforçar o sentimento de segurança. Alertou, contudo, que “one size does not fit all‘’ (Karlsen et al., 2017, p. 2913), sendo importante considerar as necessidades específicas dos utilizadores.
O impacto das tecnologias no isolamento social dos mais velhos também foi alvo de uma revisão da literatura (Khosravi et al., 2016), tendo esta chegado à conclusão de que algumas tecnologias, como por exemplo os telecuidados, contribuem para diminuir o isolamento social. Contudo, a evidência não é muito consistente a este respeito. Uma inconsistência da evidência empírica sobre a eficácia das TA na satisfação das necessidades dos mais velhos também foi encontrada noutra revisão da literatura (Khosravi & Ghapanchi, 2016).
Existe ainda uma revisão da literatura sobre os efeitos das TA no bem-estar dos adultos mais velhos que vivem sozinhos (Song & Van der Cammen, 2019), tendo esta concluído que estas tecnologias melhoram o bem-estar físico e mental, mas o mesmo não se pode dizer com segurança relativamente ao bem-estar social (que previne a solidão). Os autores desta revisão recomendam que se devem desenvolver tecnologias personalizadas e que, para esse fim, se devem envolver os utilizadores nesse processo.
Como se pode verificar, a literatura revista contraria a ideia muitas vezes veiculada de que a utilização de tecnologias, incluindo as TA, por parte dos adultos mais velhos se associa exclusivamente a benefícios para estes últimos. Existem dimensões do bem-estar/QdV em que existem benefícios, outras dimensões em que os resultados são inconclusivos, e ainda outras em que não existem benefícios, mas antes malefícios.
Importa acrescentar que as teorias e modelos conceptuais existentes sobre o tópico das tecnologias (incluindo as TA) nas fases mais adiantadas da vida focam-se sobre a aceitação e o uso destas tecnologias, e não sobre os impactos/eficácia destas tecnologias na promoção da QdV dos utilizadores mais velhos. Porém, Greenhalgh e colaboradores (2013) propõem um modelo concetual sobre a adoção e uso de TA por parte de pessoas mais velhas, que inclui cinco questões relevantes, tendo a quinta questão uma particular relevância para o estudo aqui reportado:
What happens in particular, real-life situations when the participant contemplates (or might be expected to contemplate) the use of an assistive technology and what are the consequences of this for them and for the people they care about? In such situations, how do they draw on their culturally shaped dispositions and body schemas (“habitus”) and on the materiality of available technologies to achieve what matters to them? If they choose not to use an assistive technology, how is this explained with reference to habitus and materiality? [O que acontece, em particular, em situações da vida real, quando o participante contempla (ou se espera que contemple) o uso de uma tecnologia de assistência e quais são as consequências disso para ele e para as pessoas de quem gosta? Em tais situações, como é que eles recorrem às suas disposições e esquemas corporais culturalmente moldados (“habitus”) e à materialidade das tecnologias disponíveis para alcançar o que é importante para eles? Se optarem por não utilizar tecnologia de assistência, como é que isso se explica em relação ao habitus e à materialidade?] (Greenhalgh et al., 2013, p. 89)
Esta questão salienta as consequências do uso das TA e o papel das disposições e da materialidade das tecnologias no uso (ou não uso) destas tecnologias.
O estudo aqui reportado teve como orientação teórica geral a tese da “sociedade em rede” do Manuel Castells (2007) e como orientação teórica específica o Modelo de Adoção e Uso de Tecnologia de Apoio por parte de Pessoas Mais Velhas proposto por Greenhalgh e colaboradores (2013), em particular a quinta questão anteriormente mencionada. A tese de Castells (2007) sublinha o crescente processo de digitalização das sociedades, e a forma como as TIC permeiam a vida quotidiana dos indivíduos e das organizações. Por sua vez, o modelo do Greenhalgh e colaboradores (2013) orienta a análise para a exploração do papel desempenhado pelas disposições mentais e corporais interiorizadas (habitus), bem como pela materialidade das tecnologias, no padrão de utilização destas últimas e nas consequências da sua utilização.
Do ponto de vista concetual, importa clarificar, em primeiro lugar, os construtos de TA (tecnologias de assistência) e de teleassistência, bem como de QdV (qualidade de vida) na velhice. O desenvolvimento da tecnologia desenvolvida para a população em geral (computadores, telemóveis, etc.), designada por “tecnologia convencional” (McCreadie, 2010), tem sido acompanhado por uma aposta, relativamente mais recente, na tecnologia direcionada para pessoas com necessidades especiais (onde se incluem as pessoas mais velhas), normalmente chamada de “tecnologia de necessidades especiais” (McCreadie, 2010). Esta tecnologia divide-se, por sua vez, em tecnologia de assistência (assistive technology), robótica e telecuidados (telecare) (McCreadie, 2010). A TA consiste em “produtos e serviços concebidos com o objetivo de promover a independência dos adultos mais velhos e das pessoas com deficiência” (McCreadie, 2010, p. 608). De acordo com Lansley e colaboradores (2004), esta tecnologia distribui-se por três grandes tipos: i) portátil (ex.: cadeira de rodas e andarilhos); ii) fixa (dispositivos instalados em alojamentos, como por exemplo elevadores e rampas); iii) eletrónica (dispositivos que requerem energia elétrica ou energia armazenada em baterias, tais como alarmes e aparelhos de abertura de portas).
A teleassistência inclui-se na categoria da tecnologia de assistência eletrónica, consistindo num serviço remoto, que normalmente funciona 24 horas por dia, baseado em alarmes e equipamentos de monitorização (ex.: alarme pendente, almofada de enurese), que permitem uma resposta às necessidades dos utilizadores, incluindo situações de emergência (Cruz Vermelha Portuguesa [CVP], s.d.). De notar que este serviço pode ser utilizado tanto em casa, como na rua. Os dispositivos de teleassistência de primeira geração são a forma mais simples de teleassistência, incluindo um botão de alarme (localizado num dispositivo colocado no pulso ou em torno do pescoço), que pode ser acionado pelo utilizador em situações de emergência (alarmes ativos). Os dispositivos de segunda geração utilizam uma gama de sensores que detetam perigos específicos, não sendo necessário que os utilizadores os acionem (alarmes passivos). Os dispositivos de terceira geração possuem capacidades mais complexas que asseguram a “monitorização do estilo de vida”, em que um conjunto de dados são enviados para um portal de internet, que pode ser supervisionado e avaliado pelos prestadores de cuidados (Stowe & Harding, 2010).
Por último, a QdV na velhice é um conceito complexo e multidimensional, que Walker e Mollenkopf (2007) definem da seguinte forma:
QoL should be regarded as a dynamic, multifaceted, and complex concept, which must reflect the interaction of objective, subjective, macro, micro, positive, and negative influences. (…) QoL in old age is the outcome of the interactive combination of life course factors and immediate situational ones. (…) when it comes to comparisons between young people and older people, health and functional capacity achieve a much higher rating among the latter. (…) the sources of QoL in old age often differ between groups of older people. (…) subjective self-assessments of psychological well-being and health are more powerful than objective economic or sociodemographic factors in explaining variations in QoL ratings (…). [A QdV deve ser considerada um conceito dinâmico, multifacetado e complexo, que deve refletir a interação de influências objetivas, subjetivas, macro, micro, positivas e negativas. (…) A QdV na velhice é o resultado da combinação interactiva de factores do curso de vida e factores situacionais imediatos. (…) quando se trata de comparações entre jovens e idosos, a saúde e a capacidade funcional alcançam uma classificação muito mais elevada entre estes últimos. (…) as fontes de QdV na velhice diferem frequentemente entre grupos de idosos. (…) autoavaliações subjetivas de bem-estar psicológico e saúde são mais poderosas do que fatores económicos ou sociodemográficos objetivos na explicação de variações nas classificações de QdV (…).] (pp. 8-9)
Afigura-se, ainda, como necessário, clarificar os conceitos de solidão e isolamento social. Na literatura especializada, a solidão é conceptualizada como um sentimento, desdobrando-se em dois grandes tipos: a solidão social, que se refere à ausência ou insuficiência de contactos/relacionamentos sociais, e a solidão emocional, que dá conta da ausência ou insuficiência de relacionamentos próximos do ponto de vista emocional (Buecker et al., 2020; Weiss, 1973). Por sua vez, o isolamento social remete para uma situação objetiva de ausência de contactos/relacionamentos sociais (estar só), não implicando, necessariamente, o sentimento de solidão (sentir-se só) (Pais, 2016).
Metodologia
Os resultados reportados neste artigo foram obtidos através de uma investigação qualitativa, mais precisamente através de uma “abordagem qualitativa genérica”, definida por Caelli e colaboradores (2003, p. 2) da seguinte forma: “(…) we define generic qualitative research as that which is not guided by an explicit or established set of philosophic assumptions in the form of one of the known qualitative methodologies” [(…) definimos pesquisa qualitativa genérica como aquela que não é guiada por um conjunto explícito ou estabelecido de pressupostos filosóficos na forma de uma das metodologias qualitativas conhecidas]. Esta abordagem pressupõe a adoção de procedimentos genéricos de recolha e análise de dados sem a adesão a uma das principais metodologias qualitativas, nomeadamente etnografia, investigação narrativa, fenomenologia, teoria fundamentada nos dados (grounded theory), entre outras. Privilegiou-se uma compreensão em profundidade do fenómeno em estudo, prestando-se particular atenção à perspetiva dos atores sociais.
Esta abordagem qualitativa genérica foi enquadrada no Modelo Interativo de Desenho de Investigação desenvolvido por Maxwell (2009), que pressupõe uma articulação entre objetivos de investigação, perguntas de investigação, modelo teórico/concetual, métodos, e critérios de validade. Relativamente à questão da validade, consideraram-se os critérios para uma excelente pesquisa qualitativa propostos por Tracy (2010) (ex.: relevância, rigor e credibilidade).
Os dados foram recolhidos através de entrevistas semiestruturadas (Bryman, 2016), realizadas por telefone, considerando que o período de recolha se deu em plena pandemia de COVID-19. Foram realizadas entrevistas exploratórias com a coordenadora do Gabinete de Apoio ao Idoso (GAI) do Município A, o responsável pela empresa fornecedora do STA a este Município, e com três utilizadores deste serviço. Estas entrevistas destinaram-se a recolher informação geral sobre o STA e a identificar temas relevantes para incluir no guião das entrevistas com os utilizadores do serviço. Em adição a estas entrevistas exploratórias, realizaram-se entrevistas aos utilizadores do STA. O guião destas entrevistas foi previamente testado, tendo a sua versão final ficado estruturada em quatro partes: i) perfil sociodemográfico do entrevistado (idade, n.º de filhos, composição do agregado familiar, condição de saúde, etc.); ii) transição para o STA e padrão de utilização (forma como tomou conhecimento do serviço, facilidade e duração da sua utilização, razões para a sua utilização, circunstâncias da sua utilização); iii) benefícios do serviço e contributos para a melhoria da QdV (benefícios percecionados do uso do serviço, impactos percebidos do uso do serviço na qualidade de vida); iv) aspetos a melhorar (melhorias que poderiam ser introduzidas no serviço).
No respeitante à amostra, estabeleceram-se os seguintes critérios de seleção dos utilizadores mais velhos: ter 65 ou mais anos; ser utilizador do STA do Município A; ter capacidade para prestar o consentimento informado, não estar com sintomas agudos de uma doença, e estar a beneficiar do serviço há pelo menos 6 meses. Procurou-se assegurar um conjunto diversificado de participantes, principalmente em termos etários e de género.
O Município A foi selecionado para este estudo por duas razões principais. Primeiro, por possuir um historial consolidado de oferta de um STA desde há vários anos (desde 2018). Segundo, por ser o município de residência dos investigadores. Os resultados do Censos de 2021 mostram que este Município tem um índice de envelhecimento inferior ao índice para a região do Algarve, 161,4 e 176,7, respetivamente, sendo um dos que tem as proporções mais baixas de população idosa (Teixeira & Coelho, 2023).
O recrutamento dos entrevistados foi realizado com a colaboração da responsável pelo GAI do Município A. Os utilizadores do STA deste Município que satisfaziam os critérios de seleção da amostra foram contactados pela coordenadora do GAI, tendo sido por esta informados do objetivo da investigação e auscultados quanto à disponibilidade para realizar uma entrevista por telefone. A todos os utilizadores que se manifestaram disponíveis, a coordenadora do GAI solicitou autorização para fornecer os respetivos contactos telefónicos à entrevistadora2. A entrevistadora contactou 38 utilizadores, dos quais apenas foram entrevistados 21 (as razões da não realização das entrevistas com os restantes utilizadores contactados prendem-se com problemas inesperados de saúde ou com problemas técnicos). O perfil sociodemográfico dos utilizadores que não realizaram a entrevista é similar ao perfil dos que a realizaram (não foi possível ter acesso aos dados de caracterização de todos os utilizadores do STA).
Antes da realização de cada entrevista, a entrevistadora procedeu à sua apresentação pessoal, esclarecendo os objetivos da investigação, os direitos dos entrevistados, e os procedimentos a adotar durante a entrevista (incluindo o modo de registo das perguntas e das respostas), tendo-lhes solicitado o consentimento informado (concedido oralmente). As entrevistas tiveram uma duração média de 15 minutos e foram gravadas e transcritas ipsis litteris na íntegra.
Os dados recolhidos através das entrevistas (incluindo das entrevistas exploratórias) foram analisados de acordo com os procedimentos da Framework Analysis, que consiste numa técnica de análise temática de conteúdo, particularmente indicada para a análise de texto (Spencer et al. 2014). De acrescentar que esta técnica permite uma análise sistemática e alargada dos dados, uma vez que todos os seus elementos são tratados de igual modo, permite uma análise dentro de cada caso, bem como uma análise entre casos, e garante a clareza de procedimentos (Spencer et al. 2014).
Amostra e caracterização do serviço de teleassistência
Como referido anteriormente, a amostra de utilizadores do STA é composta por 21 pessoas mais velhas, cuja caracterização sociodemográfica se sintetiza na Tabela 1.
O serviço de teleassistência do Município A
Como referido anteriormente, a teleassistência insere-se na categoria da tecnologia de assistência eletrónica. De acordo com a coordenadora do GAI, o STA do Município A destina-se a pessoas com 65 ou mais anos de idade (embora excecionalmente os beneficiários deste serviço possam ter menos de 65 anos), recenseadas no concelho correspondente ao Município há pelo menos 5 anos, que residam sozinhas ou que estejam uma parte do dia sozinhas (pelo menos 4 horas), que possuam algum tipo de incapacidade que comprometa a mobilidade, e que tenham um rendimento per capita igual ou inferior ao indexante do apoio social (nos casos em que os adultos mais velhos exibem um rendimento per capita superior ao indexante do apoio social, estes pagam a mensalidade diretamente à empresa que fornece o serviço ao Município).
O STA fornecido pelo Município A tem duas funcionalidades: emergência e “voz amiga”. A primeira destina-se a solicitar apoio urgente (apoio de natureza instrumental), enquanto a segunda destina-se a solicitar apoio em termos de companhia (apoio de natureza emocional). O equipamento é composto por um dispositivo fixo e dois dispositivos móveis - telemóvel e aparelho com um botão para estabelecer contacto com a central (podendo este último ser usado no pulso ou ao pescoço).
Resultados
Padrões de utilização do serviço de teleassistência
Antes de se avançar para a apresentação dos resultados referentes aos padrões de utilização do STA, importa dar conta do modo como os utilizadores entrevistados transitaram para a utilização deste serviço, bem como da facilidade e duração da utilização. A maioria dos entrevistados começou a receber o STA por iniciativa de terceiros, mais especificamente por iniciativa dos seus filhos ou de profissionais do Município A ou de outras organizações (foram estes que contrataram/prescreveram o serviço). Apenas uma minoria (seis entrevistados) solicitou o serviço por iniciativa própria. Com a exceção de dois casos, os entrevistados referiram ter facilidade na utilização do serviço e respetivo equipamento. Quanto à duração da utilização do serviço, a maior parte utiliza-o entre um e dois anos, sendo que alguns (7 entrevistados) utiliza-o há mais de 2 anos. Apenas um entrevistado utiliza o serviço há menos de um ano, mas há mais de 6 meses.
Olhando para os padrões de utilização do STA, identificaram-se quatro padrões: i) utilização ativa com um propósito instrumental (4 entrevistados); ii) utilização ativa com um propósito emocional (5 entrevistados); iii) utilização ativa com um duplo propósito (4 entrevistados); iv) utilização passiva com um propósito reativo (8 entrevistados).
A utilização ativa com um propósito instrumental consiste numa utilização por iniciativa dos próprios entrevistados (utilização ativa) com um objetivo de natureza instrumental, que na totalidade dos casos se traduz num pedido de ajuda para resolver uma questão de natureza prática (ex.: pedir ajuda em virtude de uma queda em casa ou de uma indisposição). Foi o que aconteceu com a seguinte entrevistada:
(…) Aqui há tempos caí lá em casa, quis-me armar em menina nova, vamos lá, subi para cima de uma cadeira e quando subo em cima de uma cadeira para limpar o armário em cima, caí, precisei de ir para o hospital e como a minha filha não está em condições de nada, de nada… esse aparelhozinho foi a minha sorte. Carreguei no botãozinho e pedi ajuda, disse à menina que me atendeu o que é que me tinha passado, fiquei com uma perna sem poder andar, até pensei que a tivesse partido e ela mandou logo imediatamente a ambulância buscar-me. Já carreguei uma vez por uma aflição no coração, porque eu tenho arritmia e de vez quando o coração dispara e naquela vez vi-me muito aflita, muito aflita. (Cristina Santos3, 84 anos, Divorciada)
O segundo padrão de utilização, a utilização ativa com um propósito emocional, distingue-se do primeiro tipo de padrão, pelo facto de o propósito da utilização ser de natureza emocional e não instrumental. Neste padrão, os entrevistados acionam o serviço “para falar”, ou seja, para conversar com alguém do outro lado da linha ou para desabafar quando se sentem sozinhos, ou apenas para fazerem saber que está tudo bem. Os seguintes depoimentos são bons exemplos deste tipo de padrão de utilização: “(…) carregava no botão para falar com alguém, para desabafar e para não estar sozinha” (Nicole Santos, 76 anos, Divorciada); “Quando me lembro carrego… só para cumprimentar as pessoas que estão lá no Porto, que é para lá que tenho de apitar e depois lá ligam para cá” (João Ramos, 82 anos, Viúvo).
O terceiro padrão de utilização, a utilização ativa com um duplo propósito, reúne os dois propósitos anteriores, o de natureza instrumental e o de natureza emocional, ao passo que o último padrão, utilização passiva com um propósito reativo, se distingue de todos os outros, porque, por um lado, a utilização não se dá por iniciativa dos entrevistados, mas somente por iniciativa dos trabalhadores do STA (utilização passiva) e, por outro lado, a utilização destina-se apenas a reagir à solicitação destes últimos (responder a perguntas e/ou seguir pedidos). Os seguintes depoimentos são ilustrativos deste padrão de utilização: “(…) eles disseram de vez enquanto para tocar [no botão de emergência] para ver se estava a funcionar e eles todos os domingos de manhã, às dez e um quarto/dez e meia, eles telefonam” (Rui Freitas, 73 anos, Divorciado); “(…) de vez enquanto eles querem que eu ligue para saber se o aparelho está a funcionar bem ou não… ligo às vezes, não é muitas, mas ligo às vezes” (Mariana João, 87 anos, Divorciada).
Importa acrescentar que alguns destes entrevistados referem nunca terem tido necessidade de utilizar o serviço (daí nunca o terem acionado por iniciativa própria), enquanto outros dizem que não o utilizam por sua iniciativa, porque não gostam de incomodar: “Eles é que perguntam, eu graças a Deus ainda não tive necessidade de carregar” (Nardi Hussen, 68 anos, Divorciado); “Nunca precisei, nunca carreguei no botão. São sempre eles que ligam? Sim, ainda a outra semana foi o senhor que ligou. Eu não gosto de chatear ninguém e espero até ao último minuto… (Laura Vera, 83 anos, Viúva).
Utilização do serviço de teleassistência e promoção da qualidade de vida
Nesta secção esclarece-se se, e de que modo, a utilização do STA promove a QdV dos utilizadores entrevistados. Dos 21 entrevistados, 19 afirmaram que a utilização deste serviço contribui, efetivamente, para melhorar a qualidade das suas vidas. Eis algumas das respostas à pergunta - “Acha que este serviço contribui para melhorar a sua qualidade de vida?”: “Exato, e devia haver mais… as pessoas idosas deviam ter este aparelho em casa” (Emma Freitas, 79 anos, Viúva); “Acho, acho… acho que me faz falta, faz-me falta, sinto-me apoiado…” (Jaime Costa, 92 anos, Casado); “A mim sim, digo-o de coração, a mim sim” (Cristina Santos, 84 anos, Divorciada); “Sim, ajuda muito a gente, porque tive muito mal e senti-me só, porque não tinha ninguém” (Laura Vera, 83 anos, Viúva).
Apenas dois entrevistados referiram que a utilização do STA não tem contribuído para a melhoria da qualidade das suas vidas. Num caso a entrevistada acabou por desistir da utilização do serviço por inadaptação ao equipamento (não gostava de ter que colocar o equipamento em torno do pescoço) (Dânia Olivais, 92 anos, Divorciada), e noutro caso o entrevistado também cessou a utilização do serviço, porque numa dada situação precisou de uma ajuda que o serviço acabou por não prestar (Rui Freitas, 73 anos, Divorciado).
Relativamente ao modo através do qual a utilização do STA contribui para melhorar a QdV dos utilizadores entrevistados, procurou-se captar as perspetivas dos entrevistados sobre os benefícios do STA que contribuem para melhorar a qualidade das suas vidas. Identificaram-se três tipos de benefícios: i) segurança (17 entrevistados); ii) companhia (3 entrevistados); iii) segurança e companhia (1 entrevistado).
A segurança remete para o sentimento/perceção de que, em caso de necessidade, existe alguém do outro lado da linha que pode ajudar. A maioria dos entrevistados já precisou de uma ajuda e esta foi efetivamente prestada, enquanto alguns ainda não precisaram de acionar o serviço para solicitação de uma ajuda, mas sentem que poderão fazê-lo se vierem a precisar. Este sentimento de segurança está presente nos seguintes depoimentos:
(…) olhe, um dos benefícios, o primeiro por exemplo, é eu cair, dar cabo de uma perna, não poder andar, não poder levantar, não ter ninguém que me acuda, aquilo é o melhor que há, aquilo é só carregar no botão, carregar naquilo no pulso que estão logo a falar com a gente… aí já é uma grande coisa, se não tivesse aquele aparelho, quem é que me acudia?! Ninguém… Assim tenho aquilo e foi a melhor coisa que eu ainda usei. (Gonçalo Miguel, 89 anos, Viúvo).
(…) para mim já foi duas vezes, tava aqui em casa, carreguei no aparelho, porque já não podia me mexer, depois uma rapariga aqui ao lado tem o meu número e lá deles também, e eles quando eu chamo e não respondo, então eles ligam para a rapariga para vir aqui a casa para ver como é que eu estou. Sinto-me mais seguro (…). (Joel Arrais, 82 anos, Viúvo)
A coordenadora do GAI e o responsável pela empresa que fornece o STA ao Município A também referiram a segurança como principal benefício do STA que contribui para a melhoria da QdV dos utilizadores.
Por sua vez, a companhia refere-se à existência de alguém do serviço que está sempre disponível para conversar com os entrevistados. A existência de uma “voz amiga” contribui para combater a solidão que estes por vezes (alguns deles muitas vezes) sentem: “Quando uma pessoa está às vezes assim… sozinha, muitas horas em casa, precisando de uma palavrinha amiga… (…) costumava assim falar… uma palavrinha amiga com eles” (Nicole Santos, 76 anos, Divorciada); “É uma companhia realmente… porque acabando por estar sozinha, uma pessoa se sentir alguma coisa ligo para eles, falo e já fico mais aliviada do stress” (Juliana Dias, 76 anos, Casada).
Como referido anteriormente, um entrevistado referiu a segurança e a companhia como sendo os benefícios através dos quais a utilização do STA promove a qualidade da sua vida.
Como houve oportunidade de constatar aquando da apresentação dos resultados sobre os padrões de utilização do STA, o número de entrevistados que utiliza o serviço para pedir ajuda é sensivelmente o mesmo do número de entrevistados que utiliza o serviço para falar/desabafar. Contudo, quando questionados sobre o benefício do STA que contribui para melhorar a qualidade das suas vidas, a segurança emerge como o principal benefício, distanciando-se bastante da companhia, sendo que metade dos entrevistados que têm um padrão de utilização ativa com um propósito emocional e um padrão de utilização ativa com um duplo propósito (instrumental e emocional) identificam a segurança, e não a companhia, como o benefício do serviço que promove a QdV. À luz destes resultados, o STA promove a QdV sobretudo através da segurança que proporciona, e não tanto através da companhia que presta. Isto é reforçado por alguns testemunhos que expressam a necessidade de ter alguém fisicamente presente para fazer companhia: “(…) gostaria de ter uma pessoa para estar sempre comigo, para estar acompanhada (…)” (Mariana João, 87 anos, Divorciada).
Por último, importa acrescentar que não se detetou a influência inequívoca de estruturas sociais, tais como o género e a idade, nos resultados acabados de apresentar.
Discussão dos resultados
Os resultados acima descritos apontam para uma diversidade de padrões de utilização do STA, indo contra a ideia, porventura ainda existente, e associada aos chamados “alarmes” (dispositivos de teleassistência mais antigos), de que este serviço é usado sobretudo em situações de emergência. A maior parte dos entrevistados utiliza o serviço de uma forma ativa e, entre estes, o propósito da utilização distribui-se mais ou menos equitativamente pelo pedido de ajuda (propósito instrumental) e pela procura de companhia (propósito emocional). Existe, no entanto, um número significativo de entrevistados que usam o serviço apenas quando são por este contatados, limitando-se a reagir às perguntas/solicitações. De entre estes, alguns referem nunca terem precisado usar o serviço, ao passo que outros admitem que não gostam de incomodar, deixando transparecer a ideia de que até já precisaram de o usar, mas não chegaram a fazê-lo por acharem que iriam “chatear” os profissionais do outro lado da linha. Este último padrão de utilização acaba por ser o mais surpreendente, pois indicia que ainda existirão na sociedade portuguesa segmentos da população mais velha, com capitais escassos, nomeadamente escolares e económicos, que não estão suficientemente empoderados para realizarem uma utilização efetiva dos serviços sociais públicos. Estudos realizados sobre os serviços digitais de provisão de bem-estar mostram que as populações com menos recursos (escolares, económicos, etc.) tendem a fazer um uso retraído destes serviços (Breit & Salomon, 2015; Hansen et al., 2018). Isto demonstra a importância das características pessoais, um dos temas/dimensões do “envelhecimento no lugar”. Contudo, algumas destas características pessoais, onde se inclui o insuficiente empoderamento - disposição interiorizada que é relevante no modo como os utilizadores mais velhos interagem com as TA (Greenhalgh et al., 2013) - poderão ser combatidas, em primeira instância, pelos profissionais destes serviços, embora a médio-longo prazo possam também ser combatidas por outras organizações/instituições (ex.: autarquias, ministérios). No fundo, trata-se de trabalhar no sentido do empoderamento destas populações no que respeita à sua relação com os serviços públicos.
No que concerne à questão se a utilização do STA promove a QdV dos seus utilizadores, os resultados apontam, inequivocamente, num sentido afirmativo, o que revela que este tipo de serviços tem, de facto, um papel a desempenhar na promoção da QdV na velhice e do “envelhecimento no lugar”. Não obstante, os resultados também revelam que numa minoria de casos a utilização destes serviços não é percecionada, pelos seus utilizadores, como promotora da QdV. De acordo com os resultados aqui reportados, isto tem a ver com as características do equipamento (aquilo a que usualmente se chama de hardware), às quais os utilizadores não se adaptam, ou com as respostas não satisfatórias dadas por estes serviços às necessidades específicas dos seus utilizadores. O design do equipamento, ou a materialidade da tecnologia (Greenhalgh et al., 2013), é um dos aspetos-chave do uso bem-sucedido das TA por parte de pessoas mais velhas (Charness, 2003; Greenhalgh et al., 2013; Selwyn et al., 2003), sendo importante envolver estas últimas em todo o processo de desenho dos equipamentos, de modo que o resultado final seja um “design inclusivo” (McCreadie, 2010).
Não só é importante saber se os utilizadores do STA percecionam a sua utilização como promotora de QdV, mas também saber o que existe neste serviço que contribui, efetivamente, para a melhoria da qualidade das suas vidas. Os resultados revelam que a esmagadora maioria dos entrevistados identificam a segurança (sentimento e reconhecimento que têm a ajuda do serviço em caso de necessidade) como o benefício do serviço que contribui para melhorar a qualidade das suas vidas. Como foi possível verificar, curiosamente, metade dos entrevistados que utilizam o serviço para solicitar ajuda e companhia, elegem a segurança, e não a companhia, como o benefício do serviço que mais contribui para promover a QdV. Quando se olha para a totalidade dos entrevistados, que, relembre-se, vivem sozinhos ou passam parte do dia sozinhos, apenas uma minoria elege a companhia como o benefício do serviço que promove a QdV. Adicionando a isto, o reporte de alguns entrevistados da necessidade de alguém que lhes fizesse companhia presencialmente, é possível afirmar que o STA promove a QdV (e o “envelhecimento no lugar”) não tanto através da companhia que providencia, mas sobretudo através do sentimento de segurança que proporciona. A segurança como um dos benefícios das TA também é enfatizado por outros estudos (Damant et al., 2017; Karlsen et al., 2017). Por seu lado, outros estudos também colocam reservas quanto ao impacto da utilização das TA na promoção da companhia e no combate ao isolamento social e solidão (Khosravi & Ghapanchi, 2016; Khosravi et al., 2016).
Estes resultados apontam no sentido de que as interações sociais remotas (o STA contacta semanalmente os seus utilizadores e alguns destes tomam a iniciativa de contactar o serviço para falar/desabafar através da funcionalidade “voz amiga”) não substituem as interações sociais presenciais. Um estudo realizado em Portugal sobre a experiência do confinamento domiciliário no contexto do COVID-19 entre adultos mais velhos a residirem sozinhos, também chegou a esta conclusão (São José et al., 2022). Isto é relevante não só do ponto de vista sociológico, sendo que reforça a importância da presença física do outro, e até mesmo do contacto físico em termos literais (São José et al., 2022), mas também do ponto de vista das práticas profissionais e das políticas públicas, dado que alerta para o facto de o STA não ser uma panaceia para todas as necessidades desta população (Karlsen et al., 2017; Song & van der Cammen, 2019) e, acrescente-se, para a concretização do desígnio do “envelhecimento no lugar”, que integra a tecnologia como uma das suas dimensões.
Deste modo, à luz dos resultados aqui reportados, o STA tem um papel a desempenhar na promoção do envelhecimento no lugar e da QdV na velhice, muito por via do sentimento de segurança que proporciona, embora pareça ser insuficiente para combater a solidão. Isto alerta para a necessidade de os serviços sociais apostarem em respostas integradas, assentes na articulação do STA com outros serviços relevantes, entre os quais os serviços/programas que proporcionem a oportunidade para contactos sociais presenciais.
Conclusões
Este artigo contribui para a discussão do tema das TA na velhice de duas formas principais. Por um lado, aborda o tema dos padrões de utilização do STA, tema negligenciado pelos estudos anteriormente realizados, revelando uma diversidade de padrões. No seio desta diversidade, encontra-se um padrão de utilização particularmente relevante do ponto de vista sociológico, pois denota a persistência na sociedade portuguesa de cidadãos que não estarão suficientemente empoderados para usar os serviços sociais de que necessitam e a que têm direito. Este é um aspeto que merece atenção especial por parte das políticas públicas e das práticas profissionais. Por outro lado, este artigo oferece evidência de que o STA ajuda, na ótica dos seus utilizadores, a melhorar a qualidade das suas vidas, muito por via da segurança que proporciona, e não tanto pela companhia que providencia. Nesta ordem de ideias, o STA não é “a solução” para o envelhecimento no lugar e a QdV na velhice, mas sim “uma das soluções” que, em articulação com outras, poderão ser mais eficazes para alcançar tais objetivos. Importa considerar que os STA atualmente disponíveis não estão preparados, tal como reconhecido pela coordenadora do GAI, para serem utilizados por adultos mais velhos com problemas de visão ou de audição.
Reconhecem-se algumas limitações do estudo realizado. Um número significativo de utilizadores que foram contactados para a realização das entrevistas não aceitaram realizá-las. Isto poderá ter resultado numa amostra algo enviesada (os utilizadores que aceitaram realizar aas entrevistas poderão ter características diferentes daqueles que não aceitaram), para além de ter resultado numa amostra, necessariamente, com uma dimensão mais reduzida. Ademais, a entrevistadora apercebeu-se que alguns dos entrevistados estavam acompanhados por familiares durante a realização das entrevistas, o que poderá ter condicionado, de alguma forma, as suas respostas.
No que concerne a recomendações para futuras investigações sobre o tópico, em conformidade com a sugestão de Damant e colaboradores (2017), considera-se crucial que se integrarem em futuros estudos não apenas utilizadores, mas também não utilizadores, pois deste modo poderá examinar-se com mais rigor o impacto da utilização, e da não utilização, do STA na QdV. Seria igualmente importante continuar a explorar os padrões de utilização deste serviço, bem como o seu papel no combate à solidão. Para além disso, em futuros estudos, seria pertinente compreender as prioridades e preocupações dos utilizadores mais velhos, e analisar se, e de que modo, o STA permite ir ao encontro dessas prioridades e preocupações. Estes são aspetos salientados pelo modelo concetual proposto por Greenhalgh e colaboradores (2013). Por último, os autores deste artigo consideram que se justifica continuar a examinar o papel de certas estruturas sociais (ex.: género, idade) na experiência de utilização dos STA e no impacto percebido da utilização destes serviços na QdV.