Introdução
A abordagem sociológica da família tem permitido a construção de conceitos inovadores, muitos dos quais fazem hoje parte da linguagem comum, como sejam: “monoparentalidade” (Marinho, 2014; Wall, 2003; Wall & Lobo, 1999), “família recomposta” (Lobo, 1995, 2005) ou “recasamento” (Lobo, 1995; Lobo & Conceição, 2003; Guerreiro et al., 2007). Termos como “madrasta” ou “padrasto” ganharam um novo significado (Lobo, 1995; Torres, 1992). Para além dos conceitos, a abordagem sociológica contribuiu para uma nova leitura da realidade familiar, ao desconstruir os laços que constituem a família, não para a destruir, mas para melhor compreender as dinâmicas familiares. Dissociando a conjugalidade da nupcialidade, a fecundidade da nupcialidade ou da natalidade, os estudos sociológicos da família permitiram aprofundar o conhecimento sobre a realidade vivida, cada vez mais aceite na sua diversidade, ou seja, menos colada ao modelo da família nuclear, mas de geometria variável, flexível no tempo e diversa ao longo de um mesmo percurso de vida. Não há uma família, mas famílias, e as formas não institucionais são cada vez mais presentes, como as que resultam de “uniões de facto” que, mais do que “casamentos sem registo”, são opções de vida conjugal, enraizadas, que explicam outro indicador “os nascimentos fora do casamento”, uma designação conservadora, que ainda tem no casamento a referência institucional e “legitimadora” da filiação.
No domínio destas relações de filiação, a investigação sociológica começou por privilegiar a questão feminina, desde logo, tendo em conta as profundas alterações registadas na segunda metade do século XX, nomeadamente a revolução contracetiva, a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, a denúncia das desigualdades no acesso ao poder, seja no mundo do trabalho ou da política, a “conquista” do espaço público, até então reservado ao masculino. Esta tendência continua a evidenciar-se em muitas pesquisas, particularmente quando se aborda o trabalho pago e não pago ou a conciliação trabalho/família.
Numa outra leitura, mais recente, a sociologia centrou o seu olhar para o aprofundamento da vivência familiar, com destaque para o lugar da infância, dos idosos, das pessoas portadoras de deficiência em contexto familiar. São também recentes os olhares sobre a paternidade (Aboim, S., 2020; Aboim, S. & Vasconcelos, P., 2017; Wall et al., 2016), entendida quase sempre como contraponto da maternidade. Para finalizar esta viagem nos conceitos da sociologia da família, chegamos à relevância da parentalidade (Cunha, 2013; Wall et al., 2016), uma dimensão relacional cada vez mais considerada pela investigação sociológica, alterando a abordagem inerente ao conceito jurídico, que a enformou até há poucos anos.
Ao abordar a família, na sua dinâmica relacional, a Sociologia contribui para a compreensão de fenómenos demográficos, como a baixa da nupcialidade, natalidade e fecundidade ou o aumento de outros como o divórcio, o número de uniões de facto e de nascimentos fora do casamento, ou ainda a diversidade de tipologia das famílias, considerando não apenas a sua dimensão, mas, sobretudo, a sua estrutura e dinâmica relacional.
A análise aprofundada das relações familiares, permitiu às ciências sociais e humanas a construção de novos objetos de estudo, até então subsumidos, relegados na sombra dos papéis sociais, como é o caso da violência de género, a violência conjugal, o abuso sexual ou a agressão à pessoa idosa ou portadora de deficiência.
No domínio dos papéis sociais, a visão binária perdurou, baseada numa definição do que se entende por masculino e feminino, assente numa divisão tradicional de tarefas, validada na educação e na sociedade de consumo, transmitida geracionalmente e reificada nas representações sociais.
Pretende-se entrar de novo no universo das relações familiares e, desta feita, ouvir as vozes dos homens, pais, na forma como encaram a sua relação com os filhos, os modelos educativos, a sua participação e o retorno que daí lhes advém. Aos poucos, a figura do homem provedor de recursos vai dando lugar ao homem que se sente parte de uma equipa/família, que fala de afetos e reconhece a sobrecarga que ainda é colocada nos ombros das mulheres, perante um mercado de trabalho nem sempre facilitador da dispensa paternal, por crer que o cuidar é uma competência/obrigação do género feminino.
Estamos ainda longe de ver a parentalidade ganhar uma expressão total, ao nível do código de trabalho, mas há que reconhecer as profundas alterações introduzidas, nos últimos tempos, e o crescente reconhecimento da necessidade de apoiar os pais.
O projeto “PARENT”1 permitiu confirmar o potencial transformador que a relação de parentalidade encerra, na medida em nos mostra uma paternidade distanciada da visão “biologizada”, que afasta o homem do cuidar, por não ser essa a “sua natureza”.
Estado da arte
Parentalidade
A parentalidade, como conceito, surge, em primeiro lugar, no discurso jurídico e visa identificar deveres e direitos dos progenitores de uma criança e contrariar a condição de ilegitimidade, sempre que um homem se furtava às suas responsabilidades de progenitor, como se fosse alheio à conceção (Oliveira, 2016). A revisão do texto da lei, datada de 1977, ditou que “o vínculo jurídico da paternidade passaria a assentar no vínculo prévio da progenitura (logo) a paternidade jurídica coincide com a paternidade biológica - cada um tem o pai que a biologia lhe deu.” (Oliveira, 2016, p. 273). Este critério biológico foi mais tarde substituído, pelo critério do amor, “sob a forma da vontade de cuidar e da assunção voluntária da responsabilidade pelo cuidado” (Oliveira, 2016, p. 278), acomodando desta forma, as situações de procriação medicamente assistida e a vinculação sócio afetiva.
Ao mesmo tempo que a condição biológica foi deixando de ser a única determinante da parentalidade, as relações parentais foram sendo reconhecidas pela partilha de responsabilidades que implicam, quer sejam sobre filhos biológicos ou não. No entanto, há ainda lacunas na legislação portuguesa, por exemplo quanto ao reconhecimento da multiparentalidade, reforçando a ideia dominante de que, no registo civil, o interesse do filho é ter um pai e uma mãe (Oliveira, 2016), o que impede que:
a pretensão de constituir um vínculo baseado na vontade e numa relação afetiva, ou na promessa dela, ou a pretensão de constituir mais do que dois vínculos de maternidade ou de paternidade, ou ainda a pretensão de levar três nomes “parentais” ao registo civil, não têm tido suporte no direito português. (Oliveira, 2016, p. 305)
Na moldura legal portuguesa, subentende-se que o “superior interesse da criança” implica “a preservação dos conceitos básicos e tradicionais de maternidade única e paternidade única, supondo, talvez, que o abandono do entendimento habitual destes conceitos pode gerar um potencial risco social de discriminação para a criança” (Oliveira, 2016, p. 306).
A legislação que prevê a possibilidade de os pais/homens se ausentarem com justa causa do emprego, por causa do nascimento de um filho, foi alterada em 20092, Lei n.º 4/2009 (2009), regulamentada pelo Decreto-Lei n.º 89/2009 (2009), onde se pode ler, no preâmbulo, que “dá-se execução ao III Plano Nacional para a Igualdade, Cidadania e Género (2007-2019), (…) reforçados os direitos do pai, perante as várias situações protegidas, com acentuado incentivo à partilha das responsabilidades familiares nesta eventualidade.” (Decreto-Lei n.º 89/2009, 2009, p. 2181). No seu art.º 12.º, o Decreto-Lei prevê a possibilidade de partilha da licença parental inicial e no art.º 14.º é contemplado um período de 10 dias obrigatórios e de outros 10 dias facultativos, de uso exclusivo do pai.
Posteriormente, através da Lei n.º 120/2015 (2015), procedeu-se à alteração do Código de Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009 (2009), no seu articulado, nomeadamente quanto ao gozo da licença usufruída em simultâneo pelos progenitores entre os 120 e os 150 dias (art.º 40.º) e prevê que a licença parental de uso exclusivo do pai passe de 10 para 15 dias (art.º 43.º).
Analisadas as estatísticas publicadas na Síntese de informação estatística da Segurança Social (Gabinete de Estratégia e Planeamento [GEP], 2022) é possível verificar que, a atribuição do subsídio parental inicial, tem se mantido ao longo do tempo, numa percentagem maioritariamente feminina, na ordem dos 67% (Figura 1). No entanto, considerando os valores mensais, verifica-se que até março 2021 a média foi de 68,6% para as mulheres e 31,4% para os homens e a partir de abril 2021, passou para 65,2% e 34,8% respetivamente. Dados de janeiro 2023, registam uma percentagem ainda mais significativa de homens, que gozaram de subsídio parental inicial (36,5%, contra 63,5% de mulheres).
A esta alteração poderá não estar alheio o impacto da Lei n.º 90/2019 (2019) (em vigor) que reforça a proteção da parentalidade e altera, mais uma vez, o Código de Trabalho (Lei n.º 7/2009, 2009), onde se acresce a licença parental de gozo obrigatório por parte do pai, para 20 dias úteis, seguidos ou interpolados (art.º 43.º do Código de Trabalho), nas seis semanas seguintes ao nascimento da criança, cinco dos quais gozados de modo consecutivo, imediatamente a seguir a este. Prevê ainda que o gozo desta licença seja acrescido de mais cinco dias úteis, desde que gozados em simultâneo com o gozo da licença parental inicial por parte da mãe.
Fonte: GEP, Gabinete de Estratégia e Planeamento do Ministério do trabalho e Solidariedade Social - (julho 2016 a janeiro 2023).
De acordo com os dados publicados pela Comissão para Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE, s.d.) e o Relatório da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG, 2021), a percentagem de homens que partilhou a licença parental de 120/150 dias, em 2020, foi de 43,8%, numa tendência crescente desde 2009 (8,6%), ano em que a legislação em Portugal foi revista.
A nível europeu, data de 20103 a diretiva europeia (Diretiva 2010/18/EU, 2010) que aplica o Acordo-Quadro que revê a licença parental, celebrado entre a BusinessEurope (Confederação das Empresas Europeias), a UEAPME (União Europeia dos Artesãos, Pequenas e Médias Empresas), o CEEP (Centro Europeu de Empregadores e Empresas que prestam serviços públicos) e a CES (Confederação Europeia de Sindicatos) e que revoga a Diretiva 96/34/CE, e define os critérios orientadores da licença parental, nomeadamente a existência de um período mínimo de quatro meses, como direito individual “pelo nascimento ou pela adopção de um filho, para dele poderem cuidar até uma determinada idade, que poderá ir até aos oito anos” (Diretiva 2010/18/EU, 2010, p. 18). Esta diretiva visa promover a igualdade de oportunidades e tratamento entre homens e mulheres e define que a licença parental, deve ser concedida, em princípio, numa base não transferível.
Posteriormente, foram introduzidas alterações em 2019 (Diretiva (EU) 2019/1158, 2019), relativas à conciliação entre a vida profissional e a vida familiar dos progenitores e cuidadores e que revogam a diretiva anterior, Diretiva 2010/18/EU (2010). Nesta diretiva (Diretiva (EU) 2019/1158, 2019) consta como orientação que, dos quatro meses de licença, dois não sejam transferíveis entre progenitores. Para além disso, introduz alterações inovadoras, como o direito anual de prestação de cuidado a familiar durante cinco dias úteis.
No caso de Portugal o conteúdo da diretiva europeia de 2019 (Diretiva (UE) 2019/1158, 2019), foi integrado na revisão do código de trabalho, inscrita na Lei n.º 13/2023 (2023).
Olhando a realidade europeia, segundo notícia publicada na página da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG, 2022), a Finlândia adotou uma licença parental paritária em termos de duração entre homens e mulheres, podendo somar cerca de 14 meses. No caso da Suécia, desde o início do século XXI, “os pais têm dois meses de licença parental, não transferíveis e ainda mais 10 meses para partilhar” (Lima, 2018, p. 13). Segundo a informação da CIG, 9 em cada 10 homens, em Portugal, tiram licença parental.
O conceito de parentalidade, utilizado no quadro jurídico, tem vindo a refletir uma profunda alteração das relações entre os genitores e a criança, incluindo maior protagonismo na dimensão afetiva. Antes, a lei apenas reconhecia a filiação biológica, associada à conjugalidade, com base na qual, até 1977, legitimava a própria fecundidade.
As orientações internacionais de organismos como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), e a própria legislação europeia, tem reafirmado a importância de os governos assegurarem o pagamento dos dias de ausência ao emprego, das mães e dos pais.
Entre as recomendações da UNICEF para as políticas pró-família, podemos ler:
Os pais devem receber licença de paternidade remunerada de duração adequada para apoiar o vínculo com o bebê, estabelecer um papel para o pai no cuidado com a criança e apoiar o desenvolvimento da saúde e a igualdade de gênero das crianças. Há evidências substanciais de que a licença de paternidade aumenta o envolvimento do pai, reduz a desigualdade de gênero e beneficia a saúde infantil e materna. (Earle & Heymann, 2019, pp. 12-13)
Desta análise da legislação em vigor, fica a conclusão do sentido cada vez mais parental dos benefícios que, inicialmente, eram tidos por serem apenas e exclusivos da mãe.
Este descentramento da maternidade e valorização da parentalidade, corresponde à leitura que as ciências sociais têm trazido sobre a problemática da fecundidade, dissociada da relação conjugal e da própria dimensão sexual e procriativa dos casais, ou seja, da relação que dá lugar à maternidade/paternidade. A realidade familiar tem demonstrado a necessidade desta abordagem, dada a “autonomização da parentalidade face à conjugalidade” (Atalaia, 2011, p. 2). Por outro lado, se tivermos em conta a relação entre fecundidade e políticas públicas, podemos verificar que, os países, onde a legislação é mais favorável em termos de licenças parentais e políticas para a família, eram em 2021 aqueles que atingiam melhores índices de fecundidade (Figura 2), confirmando a tese de que esta não depende da inatividade das mulheres (Torres, 2004), mas da promoção da partilha parental dos cuidados às crianças.
De acordo com o relatório editado pela OIT, Soin à autrui au travail (Addati et al., 2022, p. 32), “a licença de paternidade é indispensável para permitir aos homens assumir os seus direitos e responsabilidades em matéria de cuidados”.
No entanto, segundo o mesmo relatório da OIT, cerca de dois terços dos pais potenciais vivem em países onde a licença de paternidade não existe e, por esse facto, não têm a oportunidade inicial de estabelecer laços com os recém-nascidos.
É sobretudo nos países do norte da Europa que se encontram as licenças maiores (Figura 3), permitindo um afastamento dos homens do mundo do trabalho até 14 semanas. Por exemplo, a Islândia oferece 90 dias, a Suécia 70 e a Finlândia 54.
Se tivermos em conta a informação publicada sobre as licenças de paternidade para os países da Europa do Norte, Sul e Oeste (ver Tabela 1), verificamos que, dos 25 países para os quais há informação completa, apenas 13 asseguram a ausência do homem do trabalho, com financiamento da Segurança Social, garantindo o mesmo posto de trabalho ou equivalente, no final da licença.
Como se pode verificar na síntese elaborada, com base nos dados de 2022, publicados pela OIT (Tabela 1), a licença paternal varia entre 10 e 183 dias. Já a licença parental pode ser no mínimo de 26 semanas e atingir um computo de 312 semanas, em países como Alemanha, Espanha ou França.
Fonte: Quadro elaborado pela autora, com base nos dados publicados nos quadros A.2 e A.3 do relatório editado pela OIT, Soin à autrui au travail (Addati et al., 2022, pp. 356-370).
Se considerarmos o modo de financiamento, há várias modalidades, com destaque para os sistemas de Segurança Social ou aqueles que são designados por “Sistema Universal”.
De registar que, nos casos em que a licença de paternidade corre por conta da entidade empregadora, o número de dias é bastante menor e, em muitos desses países, o posto de trabalho não é assegurado no final da licença. Também nos casos em que o financiamento é misto, assegurado pela entidade empregadora e pelo Estado, não existe garantia de manutenção do posto de trabalho.
Optamos por analisar apenas as modalidades existentes nos países europeus. No entanto, a informação publicada no relatório da OIT (Addati et al., 2022) é mais abrangente e mostra um quadro muito mais desfavorável, em países africanos ou da América Latina, onde, salvo raras exceções, as licenças de paternidade, quando existem, não chegam aos 10 dias. Em relação aos países da Europa de Leste ou da Ásia, há apenas a destacar o caso da Eslováquia, onde a licença de paternidade é de 197 dias (28 semanas), assegurada pela Segurança Social, onde se garante o mesmo posto de trabalho ou equivalente no final. (Addati et al., 2022). Os restantes países atribuem, no máximo, duas semanas e na maioria dos casos não garantem o posto de trabalho no final.
Se cruzarmos a informação referente às licenças de paternidade e parentalidade com os dados da fecundidade (Tabela 2), é interessante registar o facto de, em 2021, os países europeus com licenças mais favoráveis, para pai e mãe, são também aqueles onde se registam índices sintéticos de fecundidade mais elevados: França, Islândia, Suécia, Irlanda e Dinamarca. Para além do número de semanas da licença de parentalidade, conjugada com a licença de paternidade, é de notar que, nesses países, a entidade financiadora é pública e o posto de trabalho do pai e/ou da mãe estão assegurados, no final da licença.
Fonte: Quadro elaborado pela autora, com base nos dados publicados nos quadros A.2 e A.3 do relatório editado pela OIT, Soin à autrui au travail (Addati et al., 2022, pp. 356-370), conjugado com o Índice de Fecundidade (Pordata, 2021)
Mais do que uma mera ausência ao trabalho, a licença de parentalidade permite aos pais entrar no mundo dos cuidados às crianças e, por essa via, desenvolver competências parentais e tornarem-se co-parentes ativos, ao longo da vida da criança e, não serem vistos apenas como “auxiliares” das suas companheiras (Rehel, 2014). De acordo com esta autora:
Quando a transição para a parentalidade é estruturada para os pais de forma comparável à das mães, os pais passam a pensar e a exercer a parentalidade de forma semelhante à das mães. A oportunidade de vivenciar a transição para a parentalidade livre das exigências e constrangimentos do trabalho proporciona aos pais o espaço para desenvolverem um sentido de responsabilidade que é muitas vezes posicionado como um elemento central da maternidade. (Rehel, 2014, p. 112)
A grande afirmação que os dados acima permitem fazer é de que a parentalidade no masculino não significa que o pai tem de agir “como uma mãe”, mas é semelhante a esta na lógica do cuidar.
Coparentalidade
Falar de parentalidade, mais do que analisar os laços de maternidade e paternidade, separadamente, implica olhar a relação de compromisso e a corresponsabilidade entre dois seres, em função de uma terceira pessoa, um filho. Nesse sentido, a legislação que favorece a presença do pai junto do recém-nascido tem contemplado, em simultâneo, a partilha desse tempo inicial, contribuindo para o estabelecimento do que podemos designar por coparentalidade.
A parentalidade implica habitualmente coparentalidade. (Hefez, 2016; Mesquita, 2013), enquanto “situação na qual se encontram as pessoas que exercem, conjuntamente, as funções parentais, qualquer que seja o seu sexo e a sua situação na coparentalidade” (Hefez, 2016, p. 56).
Ao mesmo tempo que nasce uma criança, altera-se a relação entre aqueles que a geraram ou a desejaram ou que simplesmente têm responsabilidades parentais. É uma experiência que, como referem os pais e as mães, transforma e reorganiza a vida individual e a própria relação conjugal.
Regressando ao texto do relatório da OIT (Addati et al., 2022), o mesmo conclui, a propósito da relevância da licença de paternidade, que esta faz aumentar a participação masculina nas tarefas não pagas, permitindo às mães uma maior participação na vida profissional/trabalho pago.
As estatísticas mostram que, quando os pais gozam a licença de paternidade, aumentam a sua participação a longo prazo no trabalho de cuidados não remunerado e, ao fazê-lo, incentivam uma maior participação das mães na vida profissional. (Addati et al., 2022, p. 113)
Para além do efeito que provoca na relação entre pai e mãe, a coparentalidade confere uma identidade única à criança, nomeadamente a atribuição do(s) nome(s) de família e, com o passar do tempo, esta relação irá conferir um conteúdo próprio à narrativa de cada pessoa.
Abordar a parentalidade, permite entrar na análise não apenas da relação interparental, mas na experiência que esta implica na construção da maternidade e da paternidade, enquanto funções e figuras, materna e paterna. No dizer de Hefez (2016, p. 57), “a coparentalidade reflete uma procura, incessante, de complementaridade, que deve permitir a cada protagonista encontrar o seu lugar e às crianças de crescerem beneficiando, ao mesmo tempo, da função de cuidar e fusão e de separação e proteção”. Esta dualidade não tem forçosamente de coincidir com os papéis da mãe e do pai, podendo as duas funções, maternal e paternal, serem exercidas por ambos, em circunstâncias variadas e, como referem os entrevistados, adequando ou adaptando-se às necessidades da criança e da relação parental/coparental.
A parentalidade, enquanto dimensão relacional que implica partilha de responsabilidades, corresponde ao modelo que melhor enquadra a vida familiar numa sociedade que advogue a afirmação igualitária dos papéis de homens e mulheres na relação com os filhos. No entanto, fica evidente pelos dados anteriormente apresentados que os modelos culturais de referência subentendidos nas opções, e no desenho da própria legislação, reforçam uma representação social conservadora dos papéis de género, baseada numa divisão binária das responsabilidades parentais.
O lugar do pai na parentalidade
Segundo o último Inquérito à Fecundidade - 2019 (Instituto Nacional de Estatística [INE], 2021), o quadro de referência cultural resiste às mudanças societais e reserva um lugar privilegiado para a mulher, na presença e no cuidar das crianças, ao manter a associação do homem ao papel de provedor, mais ausente do espaço doméstico.
De acordo com os resultados deste Inquérito à Fecundidade, no domínio da conciliação trabalho/família, as respostas dos homens e das mulheres, inquiridos/as, são coincidentes quanto à opção pelo “trabalho a tempo inteiro” vista como ideal para pais, ao invés da opção “tempo parcial” ou até não trabalhar, considerada como mais adequada para as mães. De acordo ainda com o Inquérito à Fecundidade (INE, 2021), as mulheres escolhem em maior percentagem o tempo parcial como estratégia de conciliação e, ao contrário dos homens, são elas quem refere a opção “não trabalhar” (ver Tabela 3).
Em relação à realização das tarefas domésticas (Tabela 4), ficou evidente, neste inquérito, que mulheres e homens têm uma perceção diferente, quanto à realização e responsabilidade em relação a diferentes tarefas domésticas, como seja: preparar as refeições diárias, limpar a casa ou lavar e cuidar da roupa.
Fonte: Elaborado pela autora com dados do Inquérito à Fecundidade - 2019 (INE, 2021) (Cf. Tabelas 7.1 e 7.2).
De acordo com o cruzamento das respostas, verifica-se que as mulheres dizem assumir mais esse papel, do que aquele que os homens lhes atribuem.
Numa outra questão, relacionada com a satisfação em relação à divisão das tarefas domésticas, (Tabela 5), mulheres e homens revelam um elevado grau de satisfação com a forma desigual de repartição das tarefas.
A mesma visão binária ficou registada nas respostas dadas às questões relacionadas com o cuidar dos filhos (Tabela 6 e Figura 4).
A leitura dos resultados do último Inquérito à Fecundidade - 2019 (INE, 2021) revela uma certa coincidência de posições, quanto à atribuição de determinadas tarefas do cuidar à mulher, por parte do homem, que refere ser essa tarefa maioritária desempenhada pela mulher/cônjuge ou companheira, e das próprias mulheres inquiridas que reconhecem serem elas quem, maioritariamente, assume essas responsabilidades, sobretudo quando se trata de ir com os filhos ao médico, vesti-los ou ficar em casa, quando estão doentes (ver Figura 4).
A distribuição-padrão das tarefas domésticas e do cuidar reforça a divisão baseada nas “competências” femininas, que não deveriam ser confundidas com o “ser mulher”.
A leitura destes dados do Inquérito à Fecundidade, permite identificar um desfasamento entre o que é dito pela mulher e pelo homem, revelando, porventura, uma desvalorização por parte das mães das vezes que os homens realizam determinadas tarefas, e uma sobrevalorização por parte destes da sua participação no cuidar das crianças.
Se considerarmos as tarefas que foram referidas como sendo “partilhadas por ambos” (Figura 5), há uma maior coincidência nas respostas dadas pelos inquiridos de ambos os sexos, com destaque para o brincar, atividade avaliada como a mais partilhada.
Da análise do gráfico anterior, fica evidente a sobre representação da resposta masculina, que valoriza a participação do pai em conjunto com a mãe, uma avaliação nem sempre reconhecida por parte da mulher/mãe.
Este parece um dado importante, no que à partilha das tarefas diz respeito. Por um lado, o papel do cuidado não é reconhecido, em parte por ser “feminizado” e, quando acontece no masculino, as próprias mulheres nem sempre o valorizam como algo de concreto, continuado e presente.
Este desfasamento também surge nos resultados do último Inquérito aos Usos do Tempo (Perista et al., 2016), nas respostas à questão sobre “com quem era frequente partilhar as práticas,” de cuidado às crianças, onde 73,4% das mulheres referiram partilhar essas práticas com o cônjuge, enquanto nos homens a resposta atingiu 90,6%. Logo, voltamos a encontrar um número maior de pais que dizem partilhar os cuidados aos filhos, sem que tal seja reconhecido pelas esposas ou companheiras.
O facto de os homens assumirem, mais do que as mulheres, a sua cooperação nas tarefas do cuidar, não significa que considerem que essa participação tem igual valor.
Segundo a análise dos resultados do ISSP (International Social Survey Program) de 2002 e 2014, publicados no Livro Branco. Homens e Igualdade de Género em Portugal (Wall et al., 2016, p. 37), na questão sobre se “o pai é tão capaz como a mãe de tomar conta de um/a bebé, com menos de um ano”, regista-se uma desvalorização da competência masculina, por parte dos homens (33% não concorda), quando comparado com as mulheres (23%). Quem respondeu “concordo” são sobretudo homens entre os 18 e os 29 anos (66%) e mulheres entre os 30 e os 44 anos (77%).
Da análise dos resultados anteriores podemos concluir da existência de uma certa invisibilidade do papel masculino quando o homem participa nas atividades do cuidar. Essa invisibilidade contribui para a desvalorização da participação masculina e resulta do papel hegemónico da mulher no campo doméstico.
Construção da parentalidade - recriar a relação de género
Sem negar a permanência de um quadro de referência cultural, que coloca maior ênfase no projeto profissional, quando se trata de definir e reconhecer a identidade do homem/pai, e remete para segundo plano o projeto de parentalidade (Lobo, 2009), importa encontrar no discurso dos pais linhas de desconstrução desse modelo e sinais da afirmação, mesmo que indireta, da importância atribuída à coparentalidade, como experiência de adaptabilidade e flexibilidade que caracteriza a dinâmica familiar contemporânea.
Com esta proposta de reflexão, gostaríamos de descentrar a reflexão sobre a parentalidade da visão feminina, sem deixar de reconhecer as alterações que marcam o percurso feminino, nomeadamente o aumento da taxa de atividade, a permanente desigualdade salarial ou os tetos de vidro que impedem a progressão nas carreiras, num contexto que continua a “culpabilizar” ou “responsabilizar” as mulheres pelos baixos indicadores da natalidade e da fecundidade.
Como já referia Roussel (1989, citado em Cicchelli-Pugeault & Cicchelli, 1998, p.107) “as mutações familiares observáveis nos últimos anos do séc. XX traduzem algo de mais forte do que as mudanças demográficas. A mutação mais importante é que a família ‘securizante’ ou ‘segura’, se transformou numa família ‘incerta’”. Enquanto, no passado, o casamento assumia um papel central na tradição ocidental, era “a pedra angular” da ordem social, hoje não é o caso, porque o distanciamento entre os costumes familiares e as instituições produz efeitos desestabilizantes. A maioria das escolhas não é feita sem hesitações e os papéis sociais deixaram de ser evidentes para todos e cada um e as expetativas individuais aumentaram.
Nas palavras de Bouvier (2005, p. 256), o indivíduo na sociedade moderna “flutua num entre dois, que já não é enquadrado pelos códigos e adquiridos institucionais no tempo, nem pelas tradições”. Introduzindo o conceito de “aclusão”, o autor aborda o caráter errático das mobilidades e a indecisão estatutária. Este conceito não se confunde com o de aculturação, uma vez que não se trata apenas de substituir um modelo por outro, mas antes, transformar o quadro de referências culturais e sociais. Nesse contexto, e retomando o pensamento de Bouvier (2005) o indivíduo necessita de desenvolver um “eu estratega” que lhe permita sair da “acomodação” protetora das membranas institucionais, do conformismo envolvente e dos ritos de aquiescência do “já está, sempre foi”, e das carapaças que o protegem.
Bouvier reflete sobre o homem pós-moderno como um empreendedor de si mesmo, capaz de explorar as suas potencialidades e, ponderando as contingências, criar novos laços.
A parentalidade surge assim como um desafio para o homem, como um espaço onde é possível distanciar-se do “modelo” e reconstruir um papel paternal que, ao invés de se opor, transforma o papel maternal.
No fundo, emerge desta nova abordagem da parentalidade, a “família afetiva”, como lugar privilegiado de felicidade (Lipovetsky, 2012).
No contexto atual, o objetivo da vida familiar, mais do que a sobrevivência social, reside na felicidade. E, de acordo com a análise dos resultados do European Social Survey (ESS, 2015), existe uma correlação significativa entre parentalidade e felicidade, particularmente para os homens.
Comparando a experiência dos pais com os “não-pais” verifica-se que na Europa, os pais são mais felizes do que os “não-pais”. De acordo com a mesma pesquisa, essa ligação é menos forte no caso das mulheres, mas mesmo assim significativa e depende mais de fatores de contexto, como seja o acesso a estruturas de cuidado e o grau de participação das mulheres no parlamento, o que se verifica sobretudo nos países mais desenvolvidos do norte da Europa. De acordo com estes dados, as mulheres são mais sensíveis às condições ou à falta delas, ao nível das instituições de apoio e à conciliação com o trabalho pago. No quadro desta pesquisa, Portugal é dos países que regista um nível de felicidade mais baixo em sintonia com um também menor índice de desenvolvimento humano.
A realidade da família e da parentalidade no século XXI está fortemente marcada pela incerteza e a variabilidade das circunstâncias.
Essa incerteza pode ser observada, tal como nos propõe Bauman (2016), quando fala de “vida líquida” e refere que a sociedade contemporânea exige que aprendemos a andar em areias movediças, particularmente no domínio da educação. Usando o paradigma da balística e da transformação dos mísseis, inicialmente posicionados para atingir alvos fixos, hoje os alvos são imprevisíveis e, por esse motivo, exigem mísseis inteligentes “capazes de modificar a sua trajetória em pleno voo, segundo as circunstâncias (...) e contrariamente aos seus antepassados, estes mísseis inteligentes aprendem durante o percurso e conseguem esquecer o que até então tinham aprendido” (Bauman, 2016, pp. 186-187).
Esta imagem pode perfeitamente ser aplicada à realidade da parentalidade atual, cada vez mais confrontada com a incerteza do alvo e a variabilidade das situações, o que exige à relação dos pais com os filhos uma permanente adaptação, ao longo do percurso, em função das circunstâncias.
Dificilmente a parentalidade no masculino pode ter espaço, se continuarmos a esperar que os pais e as mães se comportem da mesma forma, apesar da realidade estar alterada.
Só quando saímos do olhar binário da maternidade versus paternidade e entramos na experiência da parentalidade, podemos encontrar eixos de uma possível transformação, dos papéis tradicionais de género, que promova maior cooperação e corresponsabilização, na relação de cuidar e educar, que implica a parentalidade.
Interdependência, cooperação e corresponsabilização são sinónimo de parentalidade.
E, se atendermos ao impacto que estas relações representam, entramos no que alguns definem como o próprio modelo da felicidade, marcado pelos afetos e não apenas pelos deveres estatutários. Segundo refere Lipovetsky (2012), o sentimento de solidão fundamenta-se na individualização dos modos de vida, na desagregação das relações coletivas. É na medida que a família é um lugar de confiança, onde acontece entreajuda e solidariedade que funciona “como uma instância consoladora, um refúgio face a um exterior que magoa e angustia.” (Lipovetsky, 2012, p. 93).
No entanto, como foi evidenciado na análise das entrevistas realizadas aos pais, no âmbito do projeto “PARENT”,4 a experiência masculina, confrontada com as alterações dos papéis de género, particularmente aquelas que evidenciam a sobrecarga do papel da mãe, mais presente no mercado de trabalho, o aumento da escolarização e da qualificação das mulheres, as reivindicações por igualdade de salários e acesso aos lugares de poder, coloca os homens perante a necessidade de reformular os modelos de referência “masculina”, que vivenciaram enquanto filhos.
Quando olhamos à questão da guarda e do cuidar das crianças, as mulheres mais facilmente se enquadram nas expectativas sociais, que colocam na mãe a obrigação de cuidar, como aliás se verificou nos resultados do Inquérito à Fecundidade - 2019 (INE, 2021) e no Inquérito aos Usos do Tempo (Perista et al., 2016).
Do lado masculino, o referencial de paternidade aponta para um papel de “provedor”, “autoridade” e controlo, afastamento do recém-nascido e enquadramento limitado, quanto aos direitos da paternidade, no universo do Código de Trabalho. Apesar das alterações registadas no quadro legal, o certo é que, em 2020 (CIG, 2021), 28% dos homens não concretizaram a licença obrigatória, não transmissível, que a lei lhes confere, como direito.
À semelhança do que estudamos para as mulheres (Lalanda, 2015), a entrada do homem no universo da paternidade, quando aliada à parentalidade, experiência partilhada, é vista por muitos como uma transição, ponto de viragem (turning point), como refere Goffman, (2016).
Metodologia
No âmbito do projeto “PARENT”, foram entrevistados 96 pessoas (48 homens e 48 mulheres de duas coortes, nascidos entre 1970-74 e entre 1980-84 distribuídos por três níveis de escolaridade, baixa/até 9º ano, média/secundário e alta/superior, em quatro regiões portuguesas), com o intuito de abordar a experiência vivida quanto ao projeto de fecundidade, considerando que estes atores, em contexto de vida conjugal, atravessaram um período de crise em Portugal, com claros efeitos na baixa da taxa de fecundidade. Entender as razões e os constrangimentos para ter ou não um segundo ou terceiro filho, foi o eixo estruturante das entrevistas realizadas.
Sendo uma abordagem de natureza qualitativa, releva-se para efeitos de análise, as dimensões identificadas na análise dos discursos, onde se procurou identificar, neste caso, a representação da parentalidade, no masculino, identificando no discurso dos entrevistados as principais linhas de construção dessa representação, bem como os constrangimentos, resultantes do quadro de referência dos papéis de pai e mãe, a legislação laboral em vigor e as espectativas em relação aos deveres do pai.
Foram analisadas as entrevistas realizadas a 48 homens/pais, residentes nas quatro regiões em estudo: Região Autónoma dos Açores (RAA), Área Metropolitana de Lisboa (AML), Região da Beira Baixa (RBB) e Beira Interior (RBI). A identificação dos excertos utilizados, dá nota da região, coorte e nível de escolaridade do entrevistado (ex. RAA, 70, alta). A análise de conteúdo, da informação recolhida nas entrevistas, foi feita com base numa abordagem temática e categorial, com recurso à aplicação MaxQda, considerando os seguintes tópicos: representações da parentalidade, práticas da parentalidade e lugar das políticas de apoio à família, no âmbito das decisões reprodutivas. Centramo-nos em particular nas representações da parentalidade, procurando identificar, como é percecionada e vivida, no quotidiano destes homens.
A leitura dos discursos permitiu registar linhas de construção semelhantes, em entrevistados com idades, origens territoriais e níveis de escolaridade diferentes, que iremos destacar nesta análise.
Análise das entrevistas
Uma primeira conclusão, que podemos retirar da leitura das entrevistas aos pais, prende-se com a relevância dada ao nascimento de um filho, entendido como “turning point”, acontecimento que “reorienta”, sendo que essa reorientação é operada pelo amor e, como refere Goffman (2016, p. 57) “um acontecimento de viragem destaca-se de outros acontecimentos anteriores na medida em que conte, ao mesmo tempo, um futuro completo para cada um dos personagens”.
Enquanto “turning point” a parentalidade corresponde a esse acontecimento transformador que muda o curso do futuro, para os intervenientes, neste caso o pai e a mãe. E, no caso da parentalidade no masculino, implica uma adaptação inovadora, que constrói e afirma o lugar do pai na relação parental que, tradicionalmente é deslocada no tempo, como refere um dos entrevistados, justificando esse “adiamento” com a experiência única da mulher que amamenta: “Todos os miúdos que são amamentados ganham alguma coisa; há ali alguma coisa, cheiro da mãe ou a química... alguma química, eu acho que com o pai aparece depois” (70, RBB, média).
A parentalidade transforma a relação paternal, individual, numa relação plural, que envolve os pais com o bebé, antes mesmo do nascimento. Interessante verificar o quanto os homens entrevistados utilizam a primeira pessoa do plural, na conjugação de verbos como: planear, desejar, querer, estar…
Nós também desejámos e quisemos e era um projeto de vida a três. (AML, 70, alta) Já estava preparado, já estávamos, porque nós queríamos que isso acontecesse. (RAA, 70, média) Um filho era um desejo que… que já existia dentro de nós. (AML, 70, média) Temos ali um pequeno ser que depende de nós e pelo qual nós somos responsáveis. (AML, 70, alta) É sempre uma alegria, é parte de nós. (RAA, 80, baixa) A partir do momento em que temos um filho nós começamos a olhar a vida de outra forma. (AML, 70, média) Festas dos infantários, não é, nós estivemos sempre presentes nessas coisas. portanto nunca… nunca… nunca pusemos o trabalho à frente disso. Nunca. (AML, 70, média)
Uma das palavras chave no discurso dos pais entrevistados é “experiência”, sinónimo de vivência diária e aprendizagem na prática, na relação diária com o próprio filho: “Às vezes não surte o efeito que nós desejaríamos. E com a experiência vamos adquirindo algum traquejo, se assim se pode dizer, alguma experiência.” (AML, 70, baixa); “Nós não tínhamos experiência nenhuma com crianças, com bebés.” (AML, 70, alta).
A adaptabilidade e a flexibilidade como estratégias de construção da experiência parental
Quando não recorrem aos modelos, culturalmente aceites e institucionalizados, que responsabilizam apenas a mulher pela guarda inicial da criança, os pais entrevistados referem a importância da “adaptabilidade” e da “flexibilidade”, para fazer face a uma realidade para a qual os dois, juntos não tinham experiência conjunta:
Há sempre mudanças porque a gente tem que nos adaptar. (RBB, 70, média) Tive que me adaptar e depois tive muitas vezes grandes dificuldades em estar presente (...) mas não me sentia bem se não conseguisse estar presente e então acabava por abdicar de outras situações para estar com o meu filho. (RBB, 70, alta) Hoje em dia é um desafio partilhado, tem de se adaptar a vida em casal para se poder dar educação e acompanhar o filho. (RBB, 70, alta) (...) não há modelos ideais. Tem que haver um equilíbrio e consciencializarmos o que foi o nosso desenvolvimento e o que foi a nossa vida e adaptarmos. (RBB, 70, média) Era um ser novo que estava em casa e que requeria mesmo muita atenção e surgiram e foi necessário termos novos estilos de vida e adaptarmos à nossa vida que tínhamos porque no fundo tínhamos alguém de quem tínhamos de cuidar. (RAA, 70, alta) Foi uma excelente experiência, uma adaptação a um novo estilo de vida porque tivemos de nos adaptar a novas responsabilidades associadas. (RAA, 70, alta) Vamo-nos adaptando e ser pai obviamente tem algumas limitações não é, mas é uma adaptação natural. (AML, 70, média) Foi uma adaptação fácil e sentimos logo à partida que havia ali um… uma relação de muita proximidade (...) Nunca pensei que queria ser pai, nunca pensei quais seriam as regras para ser pai, nunca pensei em nada disso. Fui-me adaptando dia a dia. (AML, 70, média)
A referência ao processo de adaptação, interliga-se com a necessidade de rutura com modelos anteriores de uma paternidade distante, controladora e ausente: “Acho que a minha geração, sem dúvida nenhuma, está mais presente, por exemplo, na escola do que a geração dos meus pais. Não gosto de ver pais ausentes, não.” (AML, 70, alta).
Ao mesmo tempo que a parentalidade representa um processo de adaptação conjunta, também significa um processo de aprendizagem mútua, quer entre pai e mãe, quer com o próprio filho:
Partilhando é que se vai aprendendo as coisas. (RAA, 70, alta) Educar uma criança é… é ensiná-los um bocado do que nós aprendemos. (AML, 70, baixa) Continuei sempre a aprender porque nós estamos sempre a aprender dia após dia, se bem que já sabemos algumas coisas e tentamos não errar novamente àquilo que aconteceu no passado. (AML, 70, média) Inspirei-me um bocado neles, no que eles me ensinaram, no que eu fui aprendendo. A gente também aprende, depois, a partir de uma certa idade, também aprende outras coisas com outras pessoas, no trabalho. No dia-a-dia a gente acaba por aprender outras coisas e… e acabamos por fazer o que a nossa cabeça nos diz que está mais certo e que é melhor. (AML, 70, baixa)
No discurso de quem considera ter estado ausente, a justificação prende-se com maiores facilidades que são dadas à mulher quando se trata de se ausentar da atividade profissional:
Como a minha esposa tinha alguma facilidade e tinha outro tipo de regalias (...) eu tive sempre um pouco mais ausente a determinada idade dele. Mas sempre acompanhando a educação e ao fim-de-semana sempre tive o máximo possível e aproveitar o máximo possível. (AML, 70, baixa)
À não partilha das tarefas do cuidar corresponde um modelo de pai “ausente” que acaba por reforçar o tempo de trabalho fora do lar, reproduzindo o papel de provedor de recursos para a família.
Quando se referem às dificuldades colocadas pelo mundo laboral, os entrevistados dizem por exemplo que:
Em termos de profissão passamos a ter essa responsabilidade e, portanto, já não temos a liberdade de fazer o que queremos e sair às horas que… passamos a ter um horário para cumprir porque temos outras pessoas, um filho, uma filha que depende de nós. (AML,70, alta)
Assim, os homens, despojados de um modelo de paternidade ativa, participante, que usufrui de um tempo para estar em exclusividade com o recém-nascido - conforme previa a Lei n.º 7/2009 (2009) - viam-se obrigados a “fazer um guião dia a dia”, porque não havia nada de preparado (AML, 70, média).
Notas conclusivas
A leitura dos dados estatísticos, publicados, sobre a utilização dos direitos de paternidade e parentalidade, apesar de mais favorável, no texto da lei, à presença e aos direitos dos pais, continua a identificar um forte desequilíbrio nas oportunidades dadas aos pais/homens para estarem com os seus filhos, seja por altura do nascimento ou nos meses que se lhe seguem, seja ainda em relação às ausências ao emprego, quando se trata de acompanhar os filhos, ou em termos dos horários de trabalho, que possam ser compatíveis com a vida familiar.
Como ficou evidente no último relatório da OIT (Addati et al., 2022), em muitos países, incluindo europeus, não é dada garantia do posto de trabalho ao homem que usufrui de licença de paternidade ou parentalidade o que, obviamente, condiciona a decisão de optar por essa “regalia”. Por outro lado, o facto de, em alguns países, a totalidade ou parte da licença de paternidade e/ou parentalidade, ser financiada pelas entidades empregadoras, torna mais discricionária a decisão de ficar em casa com o filho. Registe-se, por exemplo, o caso dos Estados Unidos, onde não há cobertura financeira por parte do Estado para as licenças de paternidade ou parentalidade.
Por isso, não raras vezes, falar de “conciliação entre trabalho e família” é sinónimo de um discurso no feminino, relembrando a sobrecarga do trabalho doméstico e do cuidado às crianças que continuam a pesar na condição da mulher/mãe.
Em termos da legislação que reconhece direitos de acompanhamento ao pai, logo após o nascimento de um filho, 2009 marca a alteração mais significativa nos direitos à parentalidade dos homens, incluindo não apenas o alargamento do período inicial, mas a possibilidade de partilha da licença parental de 120 a 150 dias.
Considerando esta última, pudemos registar a evolução crescente no número de homens que a requereram, bem como o impacto que o progressivo acréscimo da licença parental inicial (2009, 2015 e 2019) teve sobre o número de pais que gozaram deste direito.
O projeto “PARENT” surgiu no interesse de compreender a queda da fecundidade em Portugal, particularmente após a crise de 2008-2014. E, várias foram as conclusões e sugestões de melhoria, inscritas no relatório final do projeto, com especial ênfase para a importância das redes de suporte, a flexibilidade de horários ou o alargamento da licença parental inicial para um período de um ano.
A abordagem que procuramos desenvolver neste texto focou-se na relevância da parentalidade no masculino como fator que favorece a fecundidade.
Se tivermos em conta as políticas familiares, no contexto europeu, os dados revelam uma associação direta entre os países que reconhecem a necessidade de um tempo alargado e, sobretudo, partilhado, dos pais logo após o nascimento de uma criança e um maior nível de fecundidade nesses mesmos países. Esse facto remete-nos para a importância do tempo que o pai passa com o recém-nascido, em termos de implicações de natureza psicoafectiva e reforço da vinculação à criança mas, também, com impactos de natureza social, nomeadamente, na transformação do papel de género masculino, dissociando-o da principal tarefa de provedor, que ainda subsiste; no suporte à mulher, não apenas na divisão de tarefas do cuidar, mas libertando-a, sem culpas, para a continuidade da sua carreira profissional, alterando a relação com as estruturas de apoio à família que, com o aumento da licença parental inicial se tornam mais necessárias a partir do primeiro ano de vida da criança e menos nos primeiros doze meses.
A abordagem da parentalidade no masculino, permitiu-nos concluir que a coparentalidade, enquanto relação de interdependência, com sentido de complementaridade e cooperação, contribui para a construção da própria unidade familiar e, pelo que ficou demonstrado, é o alicerce necessário para o alargamento da fecundidade concretizada, uma questão central, que deve preocupar as políticas públicas em países como Portugal, onde este indicador tem impacto direto, não apenas no envelhecimento da população, mas no próprio desenvolvimento do país.