Introdução1
A delimitação do tema foi inspirada num artigo da autoria de Maria Fernanda Palma (1999), publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, subordinado ao tema “Do sentido histórico do ensino do Direito Penal na Universidade Portuguesa à Atual Questão Metodológica”, a partir das Institutiones Juris Criminalis Lusitani. Neste artigo, a autora aborda uma questão conexa, que foi “a de saber o efeito que um certo ensino do Direito poderá produzir na sociedade do seu tempo” (Palma, 1999, p. 353), o que orientou o nosso percurso: compreender o efeito, que um determinado ensino dos Direitos Humanos, através do Direito Penal, na Escola Superior de Polícia em Portugal desde 1984, num contexto policial e multicultural, poderá produzir quando aplicado nas práticas jurídico-penais nas sociedades africanas.
A formação integral de um oficial de polícia privilegia, para além do saber-saber e o saber-fazer, também o saber-ser, ou seja, uma dimensão ético-moral (Almeida & Pinho, 2020; Neves, 2019), o que exige um plano curricular multidisciplinar. No entanto, é fundamental que a dimensão universitária do curso, alicerçada no conhecimento científico, desenvolva uma ligação permanente entre a abstração e a prática, na medida em que os futuros diplomados devem estar munidos do conhecimento que permita o desenvolvimento de um mandato profissional com uma visão holística e aprofundada dos problemas sociais complexos (Poiares, 2021).
No ano de 2018, o Gabinete de Apoio Psicopedagógico do Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna (ISCPSI), promoveu um estudo (Almeida & Pinho, 2020; Gabinete de Apoio Psicopedagógico [GAPP], 2018) junto dos alunos que frequentavam o Instituto naquele ano letivo. De entre as principais preocupações demonstradas, relativamente ao ISCPSI, surgiu o plano curricular do curso com base na necessidade de aproximar o currículo escolar à prática policial, aumentar a componente prática, apostar numa formação mais direcionada para a ação de comando e o pouco tempo para refletir sobre as matérias. Perante estes resultados, reforçamos a ideia da pertinência de aprofundarmos o conhecimento sobre a relação entre os currículos escolares e a sua aplicabilidade à prática policial, designadamente o ensino ministrado, in casu no domínio dos Direitos Humanos, através do Direito Penal, de 1984 a 2021, numa instituição total (Goffman, 1961; Neves, 2019) com as especificidades multiculturais do ISCPSI, onde o Direito Penal deve ser ensinado como a ultima ratio, moldando as futuras lideranças da Polícia Portuguesa e dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), que vão liderar e supervisionar as práticas policiais, em contextos sociais, culturais e jurídicos muito diferenciados.
O Multiculturalismo entre os Direitos Humanos e o Direito Penal
Hodiernamente, o Direito “é percecionado como uma realidade complexa e difícil de se captar. É esta a imagem que os juristas dão do seu objeto de saber” (Guibentif, 2007, p. 40). No entanto, a Sociologia do Direito tem contribuído para a desconstrução do formalismo e a tecnicidade jurídica (Carbonnier, 1979; Ehrlich, 1913/1986; Luhmann, 1972), na perspetiva de aproximar a justiça aos cidadãos, enquanto pilar do Estado de Direito (Carvalho, 2012). Assim, a implementação das melhores práticas no domínio do ensino jurídico tem sido uma preocupação permanente por parte de diversos professores, para corresponder às dificuldades das profissões jurídicas (Katz, 2013). A formação jurídica é, assim, “essencial para moldar profissionais capazes de tornar a sociedade menos injusta e mais humana, ao transfundir o Direito de um saber de erudição em saber de aplicação” (Melo Filho, 1997, p. 71), sendo, por isso, essencial um reforço dos eixos teórico e prático no ensino (Iocohama, 2011).
Existe uma moralidade universal de um Direito que não conhece limites, um Direito vivo face ao Direito estadual, como o respeito pela vida e a dignidade da pessoa humana (Ehrlich, 1913/1986; Guibentif, 2007). Acresce que nem sempre a velocidade do Direito consegue acompanhar as representações sociais, gerando, por esse motivo, disfunções nas práticas, em particular quando os costumes e as tradições não encontram uma sintonia em relação ao espírito do legislador (Poiares, 2014). Bettiol definiu o costume ou norma consuetudinária como “a regra social que decorre de uma prática constante e uniforme (corpus) e que é acompanhada da convicção da sua obrigatoriedade jurídica (animus)” (Bettiol, 1931, citado em Faria, 2020, p. 116). Por outro lado, o conceito de pluralismo normativo evidencia a conflitualidade que caracteriza o Direito como todos os universos sociais, realçando o facto de que o Direito não é a única fonte de normas sociais, representando a diversidade e as tensões que podem existir entre as práticas e as opções normativas (Guibentif, 2007). A noção de pluralismo jurídico:
remete para a coexistência, dentro de uma ordem que não deixa de ter uma unidade e uma estrutura hierárquica, de diferentes práticas ou conceções, que se podem dever a particularidades dos contextos locais, hábitos de funcionamento das diferentes instituições, estilos de raciocínio jurídico ou a divisão territorial de aplicação. (Guibentif, 2007, p. 64)
Boaventura de Sousa Santos explora o conceito de pluralidade jurídica, rejeitando essa designação por poder transmitir erradamente que, o que é pluralista, é algo positivo e emancipatório, por oposição ao que não é pluralista (Santos, 2002, 2009). A ideia de pluralidade jurídica propõe que na sociedade existem outras ordens jurídicas além da projetada pelo sistema jurídico-formal, reconhecendo que a principal fonte de poder e de controlo social nas sociedades não se reduz ao poder estatal e ao Direito formal (Griffiths, 1986; Machado & Santos, 2011; Rouland, 1988).
Em regra, existe uma vinculação, por exemplo, entre a noção de crime dos diversos grupos sociais e a definição legislativa, levando a que “as representações sociais sobre o que é um desvio sejam normalmente reproduzidas pelo legislador. Mas, em diversos contextos culturais, a aceitação das decisões legislativas depende da receção das representações sociais dominantes por aquelas decisões” (Palma, 2020, p. 16), situação que se agudiza quando ocorrem os designados legal transplants, ou seja, “quando determinados textos legais são simplesmente reproduzidos num contexto diferente do seu contexto de origem, apresentando uma forte probabilidade de não terem efetividade ou de terem efeitos muito diferentes dos que ocorreram no contexto de origem” (Guibentif, 2007, p. 23), em particular em contextos multiculturais. Pegando nas palavras de A. S. Dias (2020), o multiculturalismo designa uma conceção ético-política sobre a organização justa de uma sociedade, procurando o reconhecimento do outro como um igual que é diverso, que não é isento a estratégias de dominação e conflitos, mas possibilita um entendimento fundado no reconhecimento recíproco como sujeitos autónomos iguais e diferentes. Por isso, um programa político-criminal deve ser compreendido com base numa não-intervenção moderada, onde o Estado e o seu aparelho formalizado do crime devem intervir o menos possível para um eficaz domínio da criminalidade dentro de cotas socialmente suportáveis (J. F. Dias, 2009; Monte, 2020). O modo como se ensina o Direito, de forma mais ou menos neutra, e.g. um ensino despido de ideologia ou estereótipos de género e discriminatórios ou permitir um determinado grau de tolerância à violação da dignidade da pessoa humana face às especificidades culturais, pode conduzir a práticas jurídicas disfuncionais, maxime quando não são desenvolvidas à luz do respeito pelos Direitos Humanos (Castells & Ipola, 1975).
Assim, como é que os Direitos Humanos, através do Direito Penal, devem ser ensinados numa sociedade de risco e globalizada (Beck, 1998/2013, 2015)? Deve existir, ou não, um ponto fixo, intransponível, que deve nortear o ensino, em particular quando se aborda o crime em contextos multiculturais? O crime pode admitir uma tolerância cultural (Abanades, 2019)?
Esta questão complexa tem sido vivamente debatida no quadro do diálogo entre o multiculturalismo e o cosmopolitismo, ato ou efeito de universalização, de tornar cosmopolita, processo que ocorre quando o homem deixa de ser um cidadão da polis e se torna um cidadão do mundo (Rovisco & Nowicka, 2011). Ulrich Beck entende que, no século XXI, a condição humana não pode ser abordada nacional ou localmente, mas apenas globalmente. No seu entendimento, o conceito de imaginação sociológica, de Wright Mills (Giddens, 2009; Mills, 1959), tem sido a imaginação de um Estado-nação. O problema é como redefinir o quadro de referência sociológico no horizonte de um imaginário cosmopolita.
Em contraponto surge o conceito de multiculturalismo ou a estranha multiplicidade das sociedades contemporâneas que, para A. S. Dias (2020, p. 17), designa uma “conceção ético-política sobre a organização justa de uma sociedade, procurando o reconhecimento do outro como um igual que é diverso, um entendimento fundado no reconhecimento recíproco como sujeitos autónomos simultaneamente iguais e diferentes”, uma estratégia de gestão da diversidade cultural e religiosa. Dias analisou a relevância da motivação cultural como critério de responsabilidade penal e a capacidade de ressonância da motivação cultural ao nível do esquema aplicativo normativamente fundado, apelidado de teoria do crime e utilizado entre nós para atribuir responsabilidade criminal a alguém (A. S. Dias, 2015, 2016; Palma, 2017). Augusto Silva Dias (2016) aponta, como aspetos negativos da globalização a tendência para a uniformização dos modos de vida a partir de um modelo hegemónico, o ocidental e, em particular, o norte-americano; a crise do Estado de Direito e da democracia provocada pelos abusos do poder económico-financeiro, pela acentuação das desigualdades económicas e o aumento da exclusão social e pela destruição do ambiente; e a acentuação dos desequilíbrios económicos internacionais. Os fluxos migratórios:
transformam o tecido social e incrementam a complexidade cultural e religiosa das sociedades de destino, acrescentando ao pluralismo originário dessas sociedades novas manifestações de diversidade que permitem qualificá-las como sociedade multiétnicas, multiculturais e multirreligiosas, cujo aumento da diferenciação põe em crise o Estado-nação. (A. S. Dias, 2016, pp. 12-13)
Como conceção crítica do multiculturalismo, que privilegia a coexistência pacífica e descura a integração social das minorias, surge o interculturalismo, para o qual o multiculturalismo, conduz à fragmentação das sociedades com consequências negativas nos planos da coesão social e da integração social das minorias etnoculturais (Oliveira, 2023). Palma (2017), por outro lado, surge como intolerante ao multiculturalismo e entende que Dias peregrina entre os casos em que o fator cultural é determinante, e outros em que o fator cultural não será determinante da exclusão da responsabilidade, ou seja, Dias, não consegue manter-se nos quadros de um absoluto determinismo cultural. A questão de fundo é saber se o Direito Penal, ao participar no projeto de libertação da pessoa pelo Direito, não terá de confinar criticamente o argumento cultural.
E é neste ponto que reside o eixo da roda, o ponto fixo que não podemos abdicar. No nosso entendimento, independentemente do contexto multicultural, o ensino jurídico deve ter como luz orientadora o respeito pela dignidade da pessoa humana, onde a vida e a integridade física devem ser consideradas bens jurídicos invioláveis, assim como o respeito pela igualdade e a não discriminação. Mas, no domínio do processo de conhecimento jurídico, o crime não pode admitir tolerância multicultural, ainda que esse princípio possa colidir com os costumes, os usos e hábitos de determinadas comunidades onde se encontra inserido o futuro aplicador da lei. Para Rui Pereira, entrevistado em Poiares (2023), a dignidade da pessoa humana é um pressuposto e um limite do próprio poder constituinte, em que a pessoa não pode ser instrumentalizada para a prossecução das finalidades do Estado. Ou seja, tem de ser reconhecida e não consagrada pelo Estado. É o ponto de confluência de todas as correntes humanistas contemporâneas e não é um valor disponível ou transacionável numa perspetiva multicultural, culminando naquilo que Palma refere como “a incomensurabilidade do valor da essencial e igual dignidade da pessoa humana” (Palma, 2016, p. 106).
Metodologia
A presente investigação arrancou a partir de uma reflexão em torno de diversas questões de natureza metodológica: o ensino do Direito, em concreto o ensino dos Direitos Humanos através do Direito Penal, materializa-se por via de um método próprio? Que fatores extracientíficos podem conduzir ao enviesamento do conhecimento e distanciar o investigador da objetividade, por forma a garantir a isenção, a liberdade, a ética e o rigor no ensino jurídico? E que referencial mínimo deve existir para garantir uma vigilância epistemológica no processo de ensino da ciência jurídica, em particular quando esse ensino é dirigido a futuros oficiais de polícia?
Qual é a relevância do ensino do Direito Penal e dos Direitos Humanos nos países africanos? A violência doméstica pode admitir tolerância multicultural? Um país tem legitimidade para poder influenciar outras culturas? Como é que o multiculturalismo se traduz na função policial nos países africanos, maxime a relação entre o ensino policial, o Direito Penal, a Sociologia e as exigências constitucionais? Em síntese: o ensino do Direito Penal, na formação dos futuros Oficiais de Polícia dos PALOP, corresponde às necessidades da prática jurídica nos seus países?
Para percebermos a evolução e a adequação do ensino do Direito na formação universitária dos oficiais de polícia, em contexto multicultural, às necessidades da prática policial, maxime jurídico-penal, numa perspetiva comparada, optou-se pelo estudo de caso da Violência Doméstica (VD), tipo legal complexo que vai permitir aferir a relação e as disrupções entre o ensino jurídico e as práticas profissionais à luz das representações sociais. A opção por este tipo legal de crime não é inocente: na verdade, o fenómeno da violência doméstica é transversal a todas as sociedades, mas apresenta uma evolução e uma visão diferenciada em função de cada contexto histórico, legal e sociocultural, o que permite analisar as eventuais disfunções nas práticas policiais, fruto da dessintonia entre a velocidade do direito constitucional e ordinário e a velocidade das representações sociais assentes nas tradições e nos costumes geracionais.
Em paralelo, foi aplicado um inquérito, com questões de formulação fixa, mas de resposta aberta, onde os informantes puderam responder sem qualquer limitação (Ghiglione & Matalon, 2001). Depois seguiu-se a análise de conteúdo, que “oferece a possibilidade de tratar de forma metódica informações e testemunhos que apresentam um certo grau de profundidade e de complexidade” (Quivy & Campenhoudt, 1998, p. 227). A pesquisa documental apresentou-se como um método de recolha e de verificação de dados (Albarello et al., 1997), a par da análise legal, jurisprudencial e doutrinal no âmbito do objeto de estudo, maxime a análise das fichas da unidade curricular de Direito Penal, de 1984 a 2021, para compreendermos o perfil dos professores, a carga horária e as sucessivas alterações introduzidas nos conteúdos ministrados na unidade curricular de Direito Penal.
O inquérito aplicado aos alunos, após uma reunião de coordenação com os discentes mais antigos de cada País Africano, através da plataforma Microsoft Teams, foi enviado através de correio eletrónico, atendendo ao contexto pandémico que impossibilitou o contacto pessoal, aos 52 alunos naturais de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe que, na altura, frequentavam os cinco anos letivos do curso de mestrado integrado em Ciências Policiais, com uma taxa de retorno de 96%. A amostra é, assim, constituída por 50 informantes privilegiados distribuídos da seguinte forma: 18 naturais de Cabo Verde, 9 naturais da Guiné-Bissau, 8 naturais de São Tomé e Príncipe, 12 naturais de Moçambique e 3 naturais de Angola; sendo 14 alunas do sexo feminino (28%). Por outro lado, foram entrevistados informantes externos, que complementaram a visão dos alunos: 4 informantes do sexo masculino, naturais de Angola (1) e São Tomé e Príncipe (3). Importa ainda referir que foi desenvolvido um esforço no sentido de conseguir mais testemunhos provenientes da Guiné-Bissau, Moçambique e Cabo Verde, mas, por diversos motivos, maxime a pandemia da COVID-19, não recebemos quaisquer respostas. Em paralelo foram ainda convidados alguns docentes. Vejamos a Tabela 1.
Resultados
A aceitação das decisões legislativas depende da receção das representações sociais dominantes por aquelas decisões, i.e., deve existir uma sintonia entre o modo como uma determinada sociedade perceciona a realidade e a sua projeção material na letra da lei (Palma, 2020). Assim, nos contextos analisados, verificamos que o legislador não tem conseguido reproduzir totalmente as representações sociais dominantes. A importância da sintonia dessa reprodução é fundamental, maxime para os operadores do Direito que, quando são confrontados com um desfasamento entre o espírito do legislador e as representações sociais, tendem a exteriorizar disfunções no mandato profissional, sobretudo no rigor, cuidado e displicência como são desenvolvidas as obrigações funcionais previstas para cada área de atividade (Poiares, 2014). Sabemos que “o costume, por si, é jurídico, na medida em que traz ordem à sociedade e que o Estado pode condicionar a medida em que os seus órgãos aplicam o direito costumeiro” (Ascensão, 1993, p. 252). Contudo, como refere Mendes (2020, p. 149), “mais complexa é a questão de saber se as pessoas têm alguma margem para responder diversamente, em função das suas idiossincrasias culturais”. E é neste contexto que surge o mandato policial que, por vezes, tem de encontrar um equilíbrio entre essas visões díspares, aproximando-as, mantendo a harmonia social possível, pois podem surgir reações negativas quando se tenta implementar um quadro legal que nem sempre corresponde aos anseios e às representações sociais dos cidadãos (Elias, 2006).
A formação, no âmbito dos princípios balizadores dos Direitos Humanos é, por isso, considerada essencial na formação das futuras elites administrativas das forças de segurança dos PALOP, apesar de essa transferência e assimilação de conhecimentos mínimos ético-axiológicos, de matriz europeia encontrar dificuldades na aplicação prática nos contextos locais, atendendo às representações sociais que podem tornar o cumprimento da lei inefetivo. A este propósito, Rui Pereira, entrevistado em Poiares (2023), entende que, paradoxalmente, quanto mais difícil se revelar a observância do princípio da essencial dignidade da pessoa humana e a aplicação dos seus corolários de universalidade e igualdade, mais necessária terá sido a sua aprendizagem e assimilação. Tal aprendizagem serve precisamente para contrariar práticas violadoras dos direitos humanos, porque o respeito por esses direitos também se ensina
Assim, 74% da amostra de informantes, sobretudo os alunos provenientes de Cabo Verde, entende que não vai sentir dificuldades em aplicar os princípios e valores assimilados em Portugal, aquando do estudo do Direito, no futuro mandato profissional, atendendo que os ordenamentos jurídicos são semelhantes, ainda que exista a necessidade de uma adaptação ao contexto local e que estejam sinalizadas algumas violações ao respeito pelos Direitos Humanos. Por outro lado, 26% da amostra, entende que vai sentir dificuldades na aplicação dos princípios e valores assimilados em Portugal, no seu futuro mandato profissional. Destacamos o facto de nenhum dos respondentes ser de Cabo Verde, i.e., os alunos cabo-verdianos demonstraram que não vão sentir quaisquer dificuldades, na conciliação entre o seu contexto social, cultural e jurídico de origem e os valores assimilados na Europa. Essas dificuldades, segundo os informantes, vão dever-se ao facto de a realidade portuguesa e africana serem diferentes (e.g., a realidade cultural e religiosa, a interpretação das normas, uma maneira africana de viver a vida), o que não permite uma aplicação pacífica dos princípios assimilados. É ainda destacado que nem sempre é positivo o processo designado por Guibentif (2007) como legal transplants.
Relativamente às limitações à implementação legal por parte da dimensão cultural, no que diz respeito à violência doméstica, os alunos cabo-verdianos estão divididos. Metade da amostra (três mulheres e seis homens) entende que a dimensão cultural limita a dimensão normativa, com base no analfabetismo, o desconhecimento da lei, o machismo e a imagem enraizada de que o homem é superior à mulher, sobretudo no interior das ilhas. Contudo, a outra metade da amostra (cinco mulheres e quatro homens) não revelou o mesmo entendimento, ao defender que a maioria dos cidadãos de Cabo Verde tem um posicionamento de repudiamento do crime de VD, sobretudo desde a entrada em vigor da Lei da Violência Baseada no Género (VBG), em 2011, que as pessoas se encontram bem informadas e conhecedoras dos seus direitos e deveres em relação a esta matéria, e que a cultura não representa um entrave na aplicação da dimensão legal. Por outro lado, os alunos guineenses entendem que a dimensão cultural, no seu país, limita a dimensão normativa, porque ainda se vive numa sociedade onde as mulheres não têm voz; e os alunos santomenses entendem que a dimensão cultural também limita a dimensão normativa, sobretudo nas regiões do interior do país, como um reflexo da cultura e das tradições que se consubstanciam em submissões e dependências económicas e financeiras por parte das mulheres em relação ao homem, o que limita a aplicação estritamente legal da lei em muitos casos. Acresce que a maioria dos alunos moçambicanos (83,3%) também entende que a dimensão cultural limita a dimensão normativa, sobretudo nas regiões mais distantes da capital, em que a cultura é dominante em detrimento da lei, devido à pluralidade de culturas e à extensão do país, que levam a encarar a violência doméstica como algo normal. Por fim, os alunos angolanos entendem que a mulher continua muito dependente do homem e a dimensão cultural é limitadora porque, para se viver com uma mulher, o homem é obrigado a fazer o alembamento, a entrega de um dote ou tributo de honra que o homem presta à família da noiva. Esta prática cultural leva a que muitos homens sintam superioridade perante a mulher, sendo comum ouvir eu dei tudo o que a sua família pediu. Segundo os informantes, a violência na família é tolerada por parte das vítimas, ganhando o rótulo de assuntos de casal, em que a vítima vê como legítima a agressão que sofre dentro de casa. Angola apresenta uma cultura muito conservadora, onde existe o costume de se resolverem estes assuntos no seio familiar, na perspetiva de manter a família unida, uma vez que, no entendimento de muitos cidadãos, a lei existe para destruir a união familiar, culminando na separação dos cônjuges em detrimento do futuro dos filhos. Porém, há quem se recuse a resolver estes litígios através dos mecanismos tradicionais, optando apenas pela separação e/ou pelo recurso à lei.
Em Angola, segundo os informantes, apesar do quadro legal em vigor, verifica-se um distanciamento entre o espírito do legislador e as representações sociais. As pessoas que vivem nos centros urbanos encaram a violência doméstica com maior seriedade por causa das campanhas de sensibilização. Mas para os cidadãos que vivem nas zonas suburbanas e rurais, a violência doméstica é um problema de marido e mulher onde ninguém se deve envolver. Acresce que é defendido que é normal existirem agressões, porque muitas mulheres entram em conflito com os maridos e a violência faz parte da relação, pelo que só devia existir uma intervenção do Estado nos casos em que o agressor chegue a uma situação extrema.
Na Guiné-Bissau, existem cerca de vinte etnias. Esta diferenciação social tem os seus reflexos na ordem jurídica guineense, que se manifestam numa tensão a vários níveis entre o Direito positivo, produzido pelo Estado, e os costumes e usos étnicos. Um dos ramos do Direito em que essa tensão se faz sentir é o Direito Penal e “um dos problemas mais interessantes que se colocam no Direito guineense é o dos conflitos entre o sistema jurídico-positivo e os costumes e práticas tradicionais dos grupos étnicos” (A. S. Dias, 1996, pp. 210-211). Ascensão (1993) considera que, quando se verifica uma contradição entre a lei e o costume (costume contra legem), em regra, este determina a cessação de vigência daquela. Augusto Silva Dias preconizava:
a prevalência da vigência da lei sobre os costumes sociais quando estão em causa lesões graves de bens jurídicos fundamentais, mas percebia que a norma legal vê afetada a sua faticidade pelo costume contrário e padecerá normalmente de um elevado índice de ineficácia. (A. S. Dias, 1996, pp. 214-215)
integrando o âmbito da chamada legislação simbólica. No entanto, apesar das alterações legais na Guiné-Bissau, o homem continua a ser visto como o chefe de família, e as mulheres não têm voz perante a figura masculina, nem se podem opor a ela (Poiares, 2023). Se isso se verificar, existe uma forte probabilidade de ocorrer um caso que se enquadre em VD, o que leva, em muitos casos, à não denúncia. A maioria da população encara a VD como uma prática étnico-cultural e, por isso, quando os cidadãos se inteiram de um episódio de violência, não o denunciam, porque é um problema da família. Os cidadãos, em particular os residentes fora das grandes cidades, encaram a VD como um fato socialmente aceite, ou seja, os homens têm a legitimidade de agredir as esposas e os filhos, realidade potenciada pelos casamentos precoces e forçados, o trabalho infantil, a mendicidade forçada ou a mutilação genital feminina, e muitos destes casos não são denunciados. Há várias mulheres que optam por não denunciar os seus maridos ou namorados, pois a VD é encarada, segundo os informantes, como algo normal: “você cresce vendo a sua mãe a apanhar do seu pai dizendo que é normal, o marido a bater na esposa, e você cresce nesse ambiente, isto torna-se para si uma coisa normal” (Poiares, 2023, pp. 90-91). Na comunidade guineense, as esposas são muito submissas aos seus maridos e optam pelo silêncio. Existem visões diferenciadas por parte dos cidadãos, principalmente no interior do país, onde vivem as pessoas mais analfabetas, menos esclarecidas e mais conservadoras, que consideram o homem como o chefe da família, com a responsabilidade de educar a família, inclusive a esposa, com violência se for necessário. Por outro lado, nas áreas urbanas o fenómeno tem vindo a diminuir devido, eventualmente, ao esclarecimento e progressivo aumento do nível de escolaridade e ao trabalho desenvolvido pela Liga Guineense dos Direitos Humanos. Acresce que, em junho de 2020, foi difundido o Manual de Formação sobre VBG na Guiné-Bissau, desenvolvido no âmbito dos serviços de aconselhamento e análise do Banco Mundial, no que respeita a’ sensibilização para a redução da violência baseada no género, ainda que esteja por realizar uma avaliação dos resultados efetivamente alcançados.
Na República de Moçambique também existem visões diferenciadas dos cidadãos em função de cada região, onde a maior parte das vítimas de VD não denuncia os seus maridos com medo de represálias ou o divórcio, desvalorizando o ato criminal e optando pelo silêncio (Poiares, 2023). As vítimas não podem denunciar para evitar a condenação da sociedade ou, se o agressor for preso, a imagem negativa e a reprovação por parte da família. Acresce que existe uma disparidade entre a visão dos cidadãos que vivem nas zonas urbanas e aqueles que vivem nas zonas mais recônditas do país. Mas diversas instituições públicas e algumas organizações não-governamentais têm promovido debates sobre o fenómeno, procurando soluções que possam contribuir para a minimização do cenário e os seus efeitos, maxime que a violência contra a mulher no âmbito das relações familiares acarreta consequências negativas nas famílias, especialmente às mulheres e crianças. As vítimas do sexo masculino também têm o direito de denunciar, mas a cultura moçambicana desconsidera esses factos e, por isso, os homens não denunciam devido ao preconceito e a vergonha. Por outro lado, os informantes entendem que o Estado deve intervir no âmbito da prevenção e repressão do crime de violência doméstica, porque se trata de um crime que viola os direitos humanos; que a moldura penal deste tipo legal devia aumentar para diminuir a reincidência, e que cabe ao Estado intervir quando há situações que atentem contra a vida e a integridade da pessoa dentro da família. Contudo, algumas vozes entendem que a violência doméstica devia ser um crime de natureza semipública e, dessa forma, depender da vítima o procedimento criminal, pois, atualmente, não se faz nenhum acompanhamento para garantir a segurança da vítima, no caso de o suspeito estar em liberdade e, em muitos casos, as vítimas são dependentes dos maridos e acabam por desmentir os factos quando são inquiridas pela Polícia, por temer a perda da única fonte de sustento familiar.
Em São Tomé e Príncipe existe uma visão diferente por parte dos cidadãos em algumas áreas do país, por motivos diversos, dos quais se destaca a submissão da mulher perante o homem, nomeadamente na região sul do país, onde se verifica a tendência nas famílias em não denunciar os crimes de violência doméstica e, após a detenção dos infratores, as vítimas dirigem-se frequentemente à Polícia a suplicar a libertação dos detidos. Acresce que em São Tomé e Príncipe existe um Centro de Aconselhamento Contra a Violência Doméstica que gera diversas fricções, pois muitas das ocorrências são tratadas nesse Centro, em detrimento dos crimes que têm um tratamento judicial, gerando um sentimento de ódio e vingança entre as famílias, porque a violência doméstica é aceite e encarada como algo normal. Os alunos naturais de São Tomé e Príncipe entendem que o Estado deve ter um papel ativo na prevenção e repressão do crime de VD, uma vez que deve garantir a segurança e o bem-estar dos cidadãos, sobretudo quando estão em causa direitos fundamentais, como é o direito à vida. Os ex-alunos santomenses também entendem que o Estado deve continuar a intervir no âmbito da VD e que ainda há muito trabalho a ser feito no que se refere à sensibilização e criação de condições para a sinalização, atendimento e acolhimento das vítimas, além do quadro legal; e que as vítimas se sentem reféns e submissas aos agressores, levando a que os processos-crime não avancem.
Assim, à luz dos dados recolhidos com base no estudo de caso da violência doméstica, concluímos que a maioria dos alunos cooperantes (80%) sentiu dificuldades de integração, devido à cultura portuguesa, à língua, à alimentação, ao clima, aos novos conteúdos curriculares, ao processo de integração durante o 1.º ano curricular; ao se retomar os estudos após muitos anos de afastamento; à forma de ensino e às matérias lecionadas (e.g., informática, língua e cultura portuguesas); a um contexto totalmente novo, ao regime de internato e ao afastamento da família. Os alunos cooperantes (76%) revelaram que não sentiram dificuldades relativamente à assimilação dos conteúdos de natureza jurídica, atendendo que os quadros legais dos PALOP se inspiraram no ordenamento jurídico português, em particular os alunos de Cabo Verde (100%). As maiores dificuldades sinalizadas, uma vez mais, prendem-se com a língua, a informática e a matemática. Por outro lado, os restantes alunos (24%), sentiram dificuldades na assimilação e no estudo do ordenamento jurídico português, invocando os seguintes argumentos: o facto de o ingresso no ISCPSI representar o primeiro contacto com o Direito; existirem algumas diferenças com o ordenamento jurídico do país de origem; o método de ensino, a tecnicidade da linguagem jurídica e o alcance da lei penal.
Os alunos cabo-verdianos entendem que o modelo europeu de formação jurídica é ajustado à realidade profissional do seu país, devido às semelhanças dos sistemas jurídicos. Contudo, nos restantes PALOP, apesar de os quadros legais terem a mesma inspiração, os alunos entendem que devia existir um ajustamento às realidades sociojurídicas. O ideal, segundo os informantes, será uma abordagem ao ordenamento jurídico de cada país cooperante, na medida em que atualmente não se aborda a realidade e os problemas dos PALOP.
Os alunos naturais da Guiné-Bissau também entendem que o modelo europeu está ajustado, apesar de existirem algumas limitações na aplicação prática nas comunidades mais conservadoras. Defendem que a maioria das leis foi inspirada nas leis portuguesas e que, apesar de representar uma aplicação prática diferente, no futuro, os países africanos podem começar a adotar os modelos europeus de policiamento. Nesse sentido, o mais importante é saber ajustar e adaptar os conhecimentos adquiridos à realidade, respeitando os princípios legais orientadores da atividade policial. Contudo, os alunos guineenses apresentaram uma visão pouco consensual: 56% da amostra entende que não vão existir dificuldades, porque o importante é saber adaptar os procedimentos de acordo com a realidade, pois a legislação guineense é baseada no sistema português, nomeadamente no Direito Penal e nos Direitos Humanos. Por outro lado, 44% da amostra entende que vão existir dificuldades por causa da realidade que é muito diferente, surgindo algumas resistências devido aos usos e costumes.
Os alunos santomenses entendem que o modelo europeu de formação é ajustado e complementar. Ou seja, apesar de a realidade local ser diferente, consideram que a formação jurídica ministrada em Portugal é adequada, sobretudo no âmbito dos princípios universais, como o respeito pela vida. No entanto, entendem que o estudo de algumas matérias não é adequado (como o Direito Europeu), ou seja, importa colocar um maior enfoque na realidade africana. Os alunos santomenses entendem que não vão existir dificuldades na aplicação dos princípios e valores assimilados no âmbito do Direito Penal e dos Direitos Humanos, mais tarde, no seu mandato profissional, uma vez que o conceito de Direitos Humanos é universal e um diplomado oriundo de países africanos não tem muita dificuldade na aplicação dos princípios, desde logo porque o eixo central que move o Direito e a Política não se distancia muito das realidades desses países, porém, diverge em alguns aspetos socioculturais, tais como as representações sobre os papéis sociais da mulher e do homem, a dificuldade em aceitar pessoas LGBTQIA+ ou o facto de se entender que a violência doméstica só afeta as mulheres como vítimas.
Os alunos moçambicanos partilham da mesma visão, mas entendem que devia existir mais espaço para o diálogo na formação, dada a diferença dos contextos sociais e jurídicos, que vão obrigar um esforço de adaptação à realidade local. No entanto, os alunos entendem que não vão sentir dificuldades na aplicação dos princípios assimilados no âmbito do Direito Penal e dos Direitos Humanos, porque as leis vigentes em Portugal também existem em Moçambique e os princípios são idênticos, não se prevendo, por isso, qualquer dificuldade na sua aplicação.
Os alunos angolanos entendem que o ordenamento jurídico europeu é muito desajustado, porque, grande parte do conhecimento adquirido, não é aplicável na realidade de Angola, por se tratar de um povo diferente, com crenças e perspetivas de vida diferentes. No entanto, potencia a capacidade dos alunos para uma visão crítica da realidade. Os alunos demonstraram que vão existir algumas dificuldades e resistências internas na aplicação dos princípios jurídicos assimilados, mas serão casos isolados e que se encontram as mesmas violações em outras realidades no mundo.
Conclusão
Maria Fernanda Palma (1999) defende que os estudantes devem tornar-se membros de uma comunidade científica, com sentido crítico e ético, e com coragem de buscar a verdade, sem cederem, nem mesmo de forma moderada, ao multiculturalismo. Na verdade, na linha de pensamento de Rui Pereira, entrevistado em Poiares (2023), a observância do princípio da dignidade da pessoa humana e a aplicação dos corolários de universalidade e igualdade, impõem a sua aprendizagem, para contrariar práticas violadoras dos direitos humanos.
Pelo exposto, concluímos que o ensino superior policial português cumpre os seus objetivos, no domínio da demarcação da matriz europeia em matéria dos princípios do Direito Penal e dos Direitos Humanos. Esse objetivo, que é definido a priori para os alunos portugueses, também é assimilado pelos alunos cooperantes, com uma evidente maior facilidade por parte dos discentes cabo-verdianos, devido às afinidades socioculturais. Contudo, entendemos que o ensino do Direito Penal, na formação universitária dos futuros oficiais das Polícias dos PALOP, não corresponde totalmente às necessidades da prática jurídico-penal nos seus países, pois urge ter em consideração os diversos quadros legais, assim como um olhar sociológico face às realidades culturais. É verdade que a maioria dos alunos (exceto os informantes naturais de Angola) entende que a formação ministrada no ISCPSI é adequada às necessidades profissionais nos seus países, atendendo que os ordenamentos jurídicos são muito semelhantes. No entanto, quando analisamos os dados recolhidos, verificamos que, excluindo os alunos cabo-verdianos, os outros discentes apresentaram diversos desajustamentos: os alunos guineenses apresentaram uma visão pouco consensual, atendendo que somente 44% da amostra entende que vão existir dificuldades por causa da realidade, que é diferente, surgindo algumas resistências por causa dos usos e costumes. Os alunos santomenses entendem que a formação jurídica ministrada em Portugal é adequada, mas algumas matérias são desajustadas, pois importa colocar um maior foco na realidade africana. Os alunos moçambicanos partilham da mesma visão, mas entendem que devia existir mais espaço para o diálogo na formação, dada a diferença de contextos sociojurídicos, que vão obrigar um esforço de adaptação à realidade local. Por fim, os alunos angolanos surgem com um posicionamento mais radical, pois entendem que o ordenamento jurídico europeu é muito desajustado porque, grande parte do conhecimento adquirido, não é aplicável na realidade de Angola, por se tratar de um povo com crenças e perspetivas de vida muito diferentes.
A nossa conclusão também decorre das propostas de mudança apresentadas pelos informantes, que são elucidativas da necessidade de repensar um curso em contexto multicultural, apesar de reconhecermos que a sua implementação não é fácil. Vimos que os alunos cooperantes propõem um conjunto de alterações que se centram nas seguintes ideias: i) o local de estágio no 5.º ano curricular, que devia ocorrer no país de origem; ii) algumas medidas de mitigação da taxa de reprovação; iii) e a necessidade de adequar os conteúdos do curso às realidades dos países de origem, numa lógica de estudo comparado. Para além disso, importa desenvolver uma política concertada no sentido de apoiar os alunos com mais dificuldades nos primeiros anos do curso para diminuir a taxa de reprovação. Acresce que a metodologia dos docentes devia ter em consideração as dificuldades dos alunos cooperantes e os conteúdos ministrados durante os cinco anos curriculares deviam ser complementados com conteúdos relativos aos PALOP, desafio que obrigaria um esforço acrescido por parte dos docentes que tinham de investir no aperfeiçoamento e estudo dos quadros legais e procedimentos policiais dos países africanos cooperantes.
O presente estudo demonstrou também que, na implementação de cursos superiores desta natureza (multicultural e policial), é fundamental o diálogo integrado entre juristas e sociólogos, para uma melhor compreensão das idiossincrasias (Alves, 2019; Guibentif, 2007). A definição dos objetivos das unidades curriculares e dos princípios norteadores, in casu de Direito Penal, deve ter em consideração a prática policial à luz das diversas culturas. Mas esse diálogo deve ser desenvolvido de forma cuidada, cautelosa e objetiva, para que o ensino não seja perturbado pela sociedade espetáculo, mediática, do consumo, da aparência e do entretenimento (Debord, 1967/1992), à qual se opõe, nas palavras de Maria Fernanda Palma, a Universidade, “garante da crítica, da dúvida e das luzes, na análise e desconstrução do espetáculo, pois é necessário que os estudantes se tornem membros de uma comunidade científica, metodicamente crítica e com coragem de buscar a verdade” (Palma, 1999, p. 602).
Nas escolas em que se ensina Direito é necessário que a hermenêutica intercultural se desenvolva sem cedências ao multiculturalismo, compreendendo que há valores que não são universalizáveis, mas que existe um ponto fixo intransponível, maxime o respeito pela dignidade da pessoa humana, assente num ensino despido de estereótipos, e que não tolera um determinado grau de violação dos direitos humanos face às especificidades culturais. Em suma, não é admissível uma tolerância multicultural perante o crime, o que significa que os critérios de um Estado de Direito democrático não podem ser adaptados a uma realidade multicultural, em questões que ofendem a dignidade humana e o ensino deve representar uma projeção convicta desse ideal.
As especificidades culturais não podem beliscar os princípios jurídico-constitucionais garantísticos dos Direitos Humanos, atualmente em vigor nos PALOP e, por essa via, o Estado de Direito democrático. As exigências constitucionais devem ser respeitadas em todo o território nacional, progressivamente, através da educação e sensibilização, processo de mudança onde os oficiais de polícia desempenham um papel fundamental, pois lideram milhares de pessoas que, diariamente, aplicam a lei. Importa, assim, que sejam respeitadas as especificidades culturais, desde que estas não ponham em causa a Constituição e os Direitos Humanos. É neste ponto que o ensino se deve focar: uma visão consolidada dos princípios que devem nortear toda a conduta policial. Mas não é fácil, por vezes, entender as exigências do Estado de Direito perante os costumes e as tradições que, por vezes, dificilmente se coadunam. Para esse efeito, importa que o programa preveja uma abordagem às dificuldades de aplicação do Direito, em particular o Direito Constitucional Penal, aquando da função policial, i.e., a vinculação das normas penais à axiologia constitucional em contextos cujas culturas põem em causa a dignidade da pessoa humana. Para esse efeito, entendemos que deve ser equacionada a possibilidade de implementação de um regime de co-docência, com um professor proveniente dos PALOP, que possa partilhar os constrangimentos existentes no esforço de conciliar as exigências do Estado de Direito aos usos e costumes das realidades locais. Os oficiais formados em Portugal têm representado um motor de mudança organizacional nas Polícias africanas. Por isso, também neste campo, podem contribuir para o reforço dos direitos, liberdades e garantias pessoais.
Ao fim de 40 anos de existência do ISCPSI, está no momento de o Instituto parar para refletir e pensar nas sugestões de melhoria ao curso, sem esquecer o potencial por concretizar no âmbito do ensino politécnico policial, particularmente direcionado para a carreira intermédia de chefes de polícia, podendo também abrir as portas para os PALOP, reforçando os laços académicos, organizacionais e culturais.