Introdução
Como ponto de partida deste artigo, assume-se que a Música na Comunidade (também) se inscreve na Arte Participativa, na medida em que assenta em processos de criação colaborativa. Estes podem incluir imagens, sons, histórias, atividades performativas, possibilitando a comunicação de sentimentos e experiências de vida entre os participantes (Matarasso, 2019). Vários estudos apontam para que a música possa ter um papel importante no desenvolvimento social e pessoal dos indivíduos, contribuindo para o seu bem-estar social, físico e psicológico. Num contexto de pessoas com deficiência, é especialmente premente a necessidade de usar a música como veículo de valorização e inclusão. Nesta intervenção musical, mais do que conhecer as diferenças, são as potencialidades destas pessoas que devem ser o ponto de partida para o desenvolvimento dos processos criativos.
Tendo por base este campo de intervenção, foi desenvolvido o projeto musical “Na AFID eu sou Feliz!” com pessoas com deficiência, realizado no âmbito da Unidade Curricular de Projeto Musical de Intervenção Comunitária II da Licenciatura em Música na Comunidade do Politécnico de Lisboa. O título do projeto surgiu a partir da letra de uma canção criada pelos participantes. Apesar de todos os tipos de público serem desafiantes, a motivação da primeira autora para a realização deste projeto prendeu-se com a curiosidade em torno da investigação das diversas patologias, tais como Trissomia 21, Transtorno do Espectro do Autismo e défices cognitivos, e com as diferentes formas de este público pensar e ver o mundo.
Este artigo encontra-se estruturado em sete pontos. Inicia-se com o enquadramento teórico associado a este projeto, abordando a interseção da Arte Participativa com a Música na Comunidade, bem como da Música na Comunidade com a deficiência. Na terceira parte, expõe-se o enquadramento do projeto no percurso de formação da Licenciatura em Música na Comunidade. De seguida, na quarta parte, apresenta-se a Metodologia, e, na quinta parte, faz-se a descrição do projeto e respetiva caraterização da instituição e público-alvo, e a enumeração dos Objetivos e das estratégias do projeto. Na sexta parte, apresentam-se os Resultados do projeto, e, por fim, breves considerações finais.
Arte Participativa e Música na Comunidade
A Arte Participativa é “um ato de construção e partilha de sentido que define a experiência humana e por isso deve ser acessível a todos” (Matarasso, 2019, pp. 46-47). Permite através de uma experiência coletiva criar um espaço em que todos devem poder falar e ser escutados, em que diversos assuntos podem ser partilhados, “onde a criatividade e empatia podem encontrar melhores formas de viver” (Matarasso, 2019, p. 31). No âmbito da Arte Participativa reconhece-se ainda que “todos têm a mesma capacidade e direito de decidir o que ele (valor artístico) significa para si” (Matarasso, 2019, p. 106), sendo colocados em posição de colaboração igualitária. O “escutar a voz” daqueles que muitas vezes não têm palco para se fazer ouvir torna-se, de facto, muito importante. O autor refere ainda que a Arte Participativa é:
o reconhecimento de que todos os envolvidos no ato artístico são artistas. Esta ideia nem sempre é declarada ou aceite, sendo muito mais comum falar-se de artistas a trabalhar com “pessoas comuns”, “participantes”, “jovens em risco” ou mesmo “não-artistas” (Matarasso, 2019, p. 53).
A cocriação dos trabalhos artísticos pode e deve ser idealizada por artistas profissionais e artistas não-profissionais, isto é, os facilitadores e os participantes, respetivamente. Os artistas profissionais trazem para o processo criativo a sua mestria, talento, conhecimento e experiência, enquanto os artistas não-profissionais trazem a necessidade de se envolver, trazem histórias, sentimentos, ideias que precisam de partilhar. Para os profissionais, a arte é um emprego, uma forma de viver e a sua identidade, e para os não-profissionais é uma atividade exploratória que responde a necessidades. Os participantes “não ambicionam ser artistas - razão pela qual constitui um erro olhar para o seu trabalho como se quisessem sê-lo” (Matarasso, 2019, pp. 98-99).
A criação artística, quando realizada em conjunto, tem como ponto de partida as experiências vividas e beneficia das diferentes competências, conceções e interesses, produzindo algo que não seria possível realizar individualmente (Matarasso, 2019). Arez et al. (2021) mencionam que a Arte Participativa surge de algo a que o grupo adere, “moldando a sua energia criativa, em norma liderado por um facilitador que mobiliza as pessoas a participarem em algo que já existe, ao invés de criar algo totalmente novo” (p. 16). Uma vez que o desenvolvimento do trabalho artístico é partilhado e “faz com que as pessoas aprendam umas com as outras e umas sobre as outras” (Matarasso, 2019, p. 102), não é possível prever ou controlar o produto resultante.
O projeto descrito neste artigo, embora inclua várias áreas artísticas, centra o processo criativo colaborativo na Música. Higgins (2010) e Koopman (2007) referem a dupla dimensão da Música na Comunidade como processo de aprendizagem musical e de intervenção comunitária. Esta última surge com base numa necessidade que é expressa e percebida pelo facilitador em diálogo com o público, resultando em práticas musicais com e para a comunidade. Higgins (2012) defende que as atividades proporcionadas neste tipo de prática contribuem para unir e motivar as pessoas através da performance e da participação. Koopman (2007) menciona que “fazer música colaborativa, desenvolvimento comunitário e crescimento pessoal” (p. 153) são as três características fundamentais de Música na Comunidade. Estas constituem a base dos projetos ao permitir que os participantes se envolvam colaborativamente, através da música, desenvolvendo-se e crescendo pessoalmente e em grupo.
Na intervenção com diferentes grupos torna-se importante “escutar a voz” dos envolvidos, garantindo que participem ativamente na orientação e desenvolvimento do produto final. O facilitador assume uma função fulcral nesta prática e “afirma-se como um agente de mudança social, com a capacidade de realçar o papel das comunidades e dos indivíduos, as suas práticas e energia criativa” (Moreira & Gama, 2020, p. 70). Deste modo, a intervenção em Música na Comunidade deve envolver as comunidades na participação efetiva, trabalhar nas/com/para as comunidades e ser capaz de gerar cultura (Vieira et al., 2016), capacidade esta que está especialmente comprometida no caso das pessoas com deficiência.
Música na Comunidade e deficiência
Rodrigues et al. (2015) referem que a deficiência “engloba alguma incapacidade física ou mental de um indivíduo, dificultando ou limitando a sua capacidade na execução de determinadas tarefas e/ou ações do dia a dia” (p. 38). Já Louro (2013) defende a utilização da terminologia “PESSOA COM DEFICIÊNCIA” por oposição a outras comummente usadas,
justamente por considerar que a pessoa TEM uma deficiência e não É um deficiêncte [sic] ou PORTA uma deficiência, pois, em princípio, só portamos algo que podemos deixar de portar (...). Uma pessoa com deficiência não carrega a deficiência, ela TEM uma deficiência (p. 2).
Por sua vez, Vieira et al. (2015) afirmam que algumas pessoas pensam que as pessoas com deficiência, por terem uma limitação cognitiva ou física, também apresentam limitações emocionais, afetivas, laborais e/ou sociais. Porém, Rodrigues et al. (2015) mostram que, além de a música ser importante no desenvolvimento de competências, existem muitas práticas inclusivas por meio da arte. Estas podem contribuir para a integração da pessoa com deficiência na sociedade, sendo por isso um recurso importante para a promoção da comunicação, integração e autoidentificação, ampliando os limites físicos e mentais que possuem. Os estudos analisados por estes autores discutem as vantagens da utilização da música como estratégia e incentivo à inclusão social das pessoas com deficiência. Por exemplo, num projeto musical com pessoas com deficiência, Wilson e MacDonald (2019) observaram um reconhecimento musical mais alargado dos participantes, o aumento da sua autoestima e confiança, um maior relaxamento e sensação de felicidade e melhor capacidade de interagir em/com situações e/ou pessoas desconhecidas.
O projeto “Na AFID eu sou Feliz!” foi desenvolvido com pessoas com deficiência. Através de criações artísticas colaborativas que partiram das experiências vividas, das diferentes competências existentes, das conceções e interesses dos participantes, geraram-se vários produtos artísticos. Foi “escutada a voz” destes participantes, abordando-se temas urgentes e criando condições para o aumento da sua autoestima, confiança, valorização pessoal e sentimento de pertença na comunidade, conforme se descreve mais adiante. Tratou-se de garantir a participação das pessoas com deficiência, aqui entendida como um processo que origina partilha e expressão de decisões num determinado contexto social. Segundo Cruz (2021), a distribuição de responsabilidades e compromisso nos processos de negociação e reconhecimento do outro, respeitando direitos políticos e cívicos dos cidadãos, apesar das suas diferenças, tem implicações na vida dos cidadãos das comunidades.
Enquadramento do projeto no percurso de formação da Licenciatura em Música na Comunidade
A Licenciatura em Música na Comunidade resulta de uma parceria entre a Escola Superior de Educação e a Escola Superior de Música do Politécnico de Lisboa. Em funcionamento desde 2007/2008, este curso
tem como principal objetivo a formação de músicos aptos a darem respostas artísticas adequadas a vários públicos e contextos de intervenção comunitária. O plano de estudos foi criado em prol da promoção da prática musical individual e de grupo e da vivência de experiências artísticas. Os alunos poderão trabalhar com públicos infantil, juvenil, adulto e/ou idoso, desempenhando cargos como os de músico, animador musical, coordenador de projetos musicais e/ou responsável por serviços na área da música (Politécnico de Lisboa, 2022).
A Unidade Curricular de Projeto Musical de Intervenção Comunitária II faz parte do plano de estudos do 3.º ano da Licenciatura. Visa aprofundar o espectro de conhecimentos que foram adquiridos ao longo do curso e é importante que no final os alunos revelem: a) competências de conceção, implementação e avaliação de projetos, consubstanciadas nos referenciais teóricos da Música na Comunidade e da Arte Comunitária; b) competências de conceção, implementação e avaliação de atividades musicais, adequadas a diferentes públicos e contextos comunitários; c) competências de liderança, motivação e gestão de grupos; d) capacidade de trabalhar colaborativamente e eticamente com os vários atores da comunidade; e) capacidade de mobilizar outros domínios artísticos na sua intervenção; f) comunicação escrita e oral adequada, revelando capacidade para articular e fundamentar teoricamente ideias, argumentos e decisões.
Este estágio decorre ao longo do ano letivo no 3.º ano da Licenciatura, uma vez por semana, e tem a duração de 120 horas. A escolha do local é realizada através da consulta de uma lista de instituições disponibilizada pelo corpo docente, ou de sugestões dos alunos previamente aprovadas pelos docentes. Os estagiários são supervisionados por um docente da área musical,um docente da área social e por um supervisor na instituição que o acolhe.
A intervenção é sustentada pela Metodologia de Projeto (Guerra, 2007), tal como acontece noutras licenciaturas da ESELx. Esta grelha conceptual apresenta as fases de planeamento, implementação e avaliação. A fase de planeamento consiste em diferentes etapas, que vão dialogando entre si, nomeadamente: 1 - Identificação dos problemas e diagnóstico; 2 - Definição dos objetivos; 3 - Definição das estratégias; 4 - Programação das atividades; 5 - Preparação do plano de acompanhamento e de avaliação do trabalho; 6 - Publicitação dos resultados e estudo dos elementos para a prossecução do projeto (Guerra, 2007). O projeto surge, em primeira instância, “a partir das necessidades e das potencialidades da comunidade/contexto/grupo, e no qual a comunidade deve ter uma participação ativa” (Moreira & Gama, 2020, pp. 71-72). A análise dos dados recolhidos no diagnóstico permitirá definir objetivos gerais e específicos da intervenção e respetivas estratégias para a prossecução desses objetivos. As atividades são planificadas no decorrer da implementação do projeto, à qual se seguirá a avaliação do mesmo.
Metodologia
Segundo Guerra (2002), “não existem receitas para a escolha dos métodos e das técnicas a utilizar na fase de diagnóstico” (p. 145), podendo utilizar-se diversas técnicas de recolha de informação, “centradas na procura das causalidades dos fenómenos sociais sobre os quais se pretende intervir” (p. 145). Assim sendo, seguindo uma abordagem qualitativa e descritiva, na realização do diagnóstico deste projeto mobilizaram-se as seguintes técnicas: análise documental e observação participante, na qual se recorreu ao diário de bordo e conversas informais.
A análise documental não envolve recolha direta de informação, mas utiliza a informação existente em documentos já concebidos (Afonso, 2005). Neste trabalho em específico foram consultados e analisados documentos como: o Manual de Acolhimento 2020; o site da instituição; o Regulamento Geral 2020; e o Regulamento CAO 2020, todos disponibilizados pela AFID. Analisaram-se também brochuras e registos audiovisuais, como fotografias e gravações de vídeo e áudio.
Relativamente à observação, considera-se que é uma técnica de recolha de dados confiável e vantajosa, uma vez que a informação obtida não se encontra condicionada pelas opiniões de sujeitos (Afonso, 2005). Recorreu-se, assim, aos diários de bordo, no qual se registaram todas as notas retiradas através da presença no local. Já a observação participante - na qual o observador é o instrumento principal de observação e pode desenvolver atividades com a finalidade de recolher informações sobre a mesma - teve início com a dinamização de atividades musicais a partir do terceiro dia de estágio. Começou-se por observar a dinâmica do grupo, os comportamentos individuais e algumas capacidades musicais.
A comunicação é fundamental em qualquer situação de intervenção social, e por isso “o primeiro procedimento a desenvolver no trabalho com uma comunidade é o estabelecimento de contactos” (Carmo, 2007, p. 198). Por esse motivo, a primeira técnica utilizada foram as conversas informais com os jovens/adultos que frequentam a AFID, no equipamento-sede, e também com alguns monitores e técnicos. Este método serviu para aferir qual a dinâmica da AFID e das pessoas que usufruem do espaço.
O projeto
Caracterização da instituição
A Fundação AFID Diferença é uma Instituição de Solidariedade Social, reconhecida como Pessoa Coletiva de Utilidade Pública, e serve uma população alargada, em diversas respostas sociais. A AFID apresenta três linhas de intervenção - AFID Reab, AFID Sénior e AFID Kids. Este projeto incidiu na resposta social AFID Reab, que intervém na área da deficiência mental, multideficiência e reabilitação, oferecendo vários serviços como o Centro de Atividades Ocupacionais, o Centro de Medicina Física e de Reabilitação, o Centro de Recursos para a Inclusão, a Formação Profissional, o Lar Residencial para Pessoas com Deficiência e o Serviço de Apoio Domiciliário. Oferece também atividades diárias, tais como Pintura, Cerâmica, Oficina do Papel, Tecelagem, entre outros, e projetos e programas bastante ricos para a comunidade. Assim, este projeto foi implementado no Centro de Atividades Ocupacionais, do equipamento-sede da Fundação AFID, situado na Quinta do Paraíso, Bairro do Zambujal, na Amadora (Figura 1).
Caraterização do público-alvo
Neste projeto, o público-alvo foi constituído maioritariamente pelos clientes do Centro de Atividades Ocupacionais do equipamento-sede da AFID. Estiveram envolvidos ativamente 10 participantes, com idades compreendidas entre os 22 e os 49 anos, 6 do género feminino e 4 do género masculino, com diferentes tipos de deficiência motora e/ou cognitiva. No entanto, durante toda a implementação do projeto, a colaboração de monitores, funcionários e outros clientes da AFID foi fulcral para o desenvolvimento e construção do mesmo. Foram formados dois grupos: (i) o grupo da inclusão - composto por jovens e adultos que devido à situação pandémica se encontravam na AFID durante todo o dia, não podendo estagiar ou trabalhar em instituições parceiras(o grupo foi constituído pela C. A, o J, o H, a S e a J. A ); e (ii) o grupo do artístico - composto por jovens e adultos que frequentam diariamente as atividades artísticas de Cerâmica, Oficina do Papel, Pintura e Tecelagem(constituído pela F, a I, o M, a C e o P).
Em ambos os grupos, existiam pessoas com diversas patologias, como, por exemplo, Autismo, Síndrome de Down, Défice Cognitivo, entre outras. No geral, foram indivíduos cooperantes, tornando o grupo também harmonioso. A nível musical, observou-se a existência de capacidades vocais e rítmicas, com diferentes graus de desenvolvimento. No entanto, notou-se que era necessário realizar um trabalho contínuo a nível musical. No total, foram concretizadas 32 sessões de intervenção com os grupos.
Objetivos e estratégias do projeto
O projeto teve como objetivos: (i) interagir, no processo criativo, com utentes do mesmo grupo e de outros grupos; (ii) desenvolver competências musicais, individuais e de grupo; e (iii) mobilizar as suas competências artísticas na criação de um objeto artístico multidisciplinar. Para a concretização destes objetivos foram mobilizadas as seguintes estratégias:
a) Participação em atividades musicais de criação colaborativa;
b) Realização de atividades que contribuíssem para o desenvolvimento das competências dos participantes, fornecendo ferramentas que facilitassem os seus processos criativos;
c) Criação de pequenos momentos musicais, onde os participantes pudessem explorar a voz, o corpo e vários instrumentos musicais;
d) Criação e realização de um CD compilando canções compostas pelos participantes da AFID;
e) Criação de uma música comunitária, em que todos os grupos participassem;
f) Mobilização de outros clientes e monitores da AFID, que não participassem diretamente na parte musical, através dos seus contributos nas diferentes áreas artísticas da instituição, na construção do produto final;
g) Realização de um produto final, com a colaboração das várias áreas artísticas;
h) Participação em pelo menos uma apresentação pública.
Este projeto colaborativo, no qual os participantes estiveram envolvidos na tomada de decisões desde o princípio até ao fim, deu origem a três produtos artísticos: um CD com criações musicais originais, um espetáculo e uma instalação.
Resultados
A partir dos dados recolhidos emergiram três formas de “escutar a voz” dos participantes, nomeadamente através da composição e gravação, da performance e de uma instalação artística.
Escutar a voz através da composição e gravação
Um dos objetos artísticos criados no projeto foi a compilação, em formato CD, das criações musicais originais. Foram realizadas atividades que contribuíram para o desenvolvimento das competências dos participantes, tendo sido fornecidas ferramentas que facilitaram os seus processos criativos.
Através da visualização de vários projetos artísticos que incluíam a pessoa com deficiência nos processos criativos, os participantes puderam debater sobre a construção do seu próprio projeto e a temática a explorar. Assim, os grupos decidiram escrever canções sobre temas atuais que fossem pertinentes para si, tais como a valorização da pessoa com deficiência, a instituição, as artes, a primavera, a COVID-19 e os sentimentos associados à pandemia.
Várias foram as atividades: i) criaram-se pequenos momentos musicais, nos quais os participantes exploraram a voz e o corpo, ganhando consciência do “eu”, do trabalho que estavam a realizar e da forma como eram importantes na construção do projeto; ii) realizaram-se exercícios de imitação e sucessão de sons e exploração vocal livre, desenvolvendo competências e fornecendo ferramentas que facilitaram os seus processos criativos na construção do projeto; iii) as atividades de aquecimento e disponibilização corporal, com acompanhamento musical, e os momentos de movimento livre ao som de escolhas musicais dos próprios foram bastante importantes, não só para desbloquear possíveis tensões corporais, como também para promover momentos de partilha e relaxamento nas sessões; iv) as atividades musicais de criação colaborativa, nas quais os participantes compuseram pequenas frases melódicas, completando as ideias dos colegas, e através das quais os participantes foram preparados para a construção das canções, levando à composição de letras e respetivas frases melódicas, originando assim quatro criações musicais.
Assim, foi criado um CD inteiramente gravado pelos utentes e composto por cinco faixas musicais. A quinta criação musical surge comunitariamente através de contributos de participantes e técnicos, incitados a pensar numa palavra sobre a AFID. As capas dos CDs foram também realizadas pelos próprios participantes (Figura 2).
As letras refletem o “escutar a voz” das pessoas com deficiência e os temas que se torna urgente serem abordados . Na canção Amizadeinclusão - rap escrito pelos participantes e incluído no CD - são evidentes as preocupações sobre a relação com os outros, a paz e o trabalho, tal como evidenciado no seguinte excerto:
Somos todos amigos,
Queremos paz, saúde e amor.
Ser felizes e unidos,
E que ao nosso trabalho deem valor!
A música contribuiu certamente para o desenvolvimento pessoal dos participantes, permitindo que colaborassem no processo criativo musical:
“Aumentou (educando) certamente o seu interesse pela composição musical, o que é uma mais-valia” (Mãe do utente J);
“Chegou a F e o M disse-lhe ‘Olá’, o que mostrou uma maior interação do M, que é um rapaz mais reservado” (DB, 4 de março de 2021);
“A I até comentou ‘então, M?’, puxando pelo colega” (DB, 11 de março de 2021).
Foram abordados temas importantes e os participantes sentiram que o seu trabalho foi valorizado, conforme reportado nos seguintes excertos:
“(…) e acho que abrimos portas à diferença” (Utente J. A);
“Foi conseguir cantar e dar voz à nação, à inclusão” (Utente H).
Neste sentido, e também tendo em atenção a situação pandémica, este projeto obteve resultados positivos ao nível emocional dos participantes:
“Estavam muito animados para a sessão” (DB, 18 de março de 2021);
“O J estava bastante alegre e entusiasmado” (DB, 6 de maio de 2021).
Este facto também pode ser comprovado com testemunhos dos mesmos:
“Podia haver mais vezes, e a música é para ficar mais contente… mais alegria” (Utente S);
“Gostei de participar, de cantar e… estava muito contente” (Utente M).
Escutar a voz através da performance
Foi também criado um espetáculo de apresentação de todo o trabalho concretizado durante o projeto. Além das criações musicais concretizadas, outras vertentes artísticas estiveram envolvidas no produto final, tais como o Teatro e o Movimento. Para isso, deu-se também a mobilização de outros clientes e monitores que, mesmo não participando diretamente na parte musical, contribuíram para a construção do produto final através das diferentes áreas artísticas da AFID, como a Pintura, Cerâmica, Tecelagem e Oficina do Papel.
Quando questionados sobre a importância da performance, alguns participantes afirmaram ser:
“Um desafio muito grande e (…) uma experiência positiva” e que “a AFID deve fazer mais este tipo de eventos com mais pessoas” (Utente H).
Valorizaram também o caráter multidisciplinar do espetáculo:
“Foi dançar, foi dançar. É a minha parte favorita de sempre!” (Utente J);
“Da segunda música (rap)”; “Foi cantar as músicas” (Utente S);
“Dos pássaros (dinâmica do espetáculo)” (Utente M).
No que respeita aos elementos do público, também estes revelaram o seu agrado em relação ao espetáculo apresentado:
“Fiquei muito emocionada!” (Técnica M);
“Gostei, adorei! Vi que os jovens estavam muito empenhados e via-se na forma como eles atuaram” (Monitora A).
O público referiu, ainda, aspetos muito positivos, observados não só durante o espetáculo como também durante todo o processo de criação:
“O à-vontade com que ele estava, soltou-se completamente, porque ele no dia a dia é mais retraído e ali não, ali vi que ele se soltou e tocou” (Monitora A);
“Estava sempre muito entusiasmado (…) A motivação é muito difícil para ele e foi, portanto, um excelente indicador de como este projeto o tocou” (Mãe do utente J);
“Tem contribuído para melhorar a sua capacidade de concentração. Este tipo de atividade acrescentou (…) o fator criativo, em que eles participaram ativamente, e o trabalho em equipa - tão importante e difícil!” (Mãe do utente J).
Escutar a voz através de uma instalação artística
Em conjunto com os participantes foi decidida a criação de um objeto que perpetuasse a memória do projeto. Tal como anteriormente, foram também mobilizados outros clientes e monitores que não participavam diretamente na parte musical. Tirando partido de todo o potencial artístico da AFID, construiu-se uma instalação com o contributo da Tecelagem, Pintura, Cerâmica e Oficina do Papel (Figura 3).
A instalação foi entendida pelo público como símbolo da multidisciplinaridade do projeto e da AFID, conforme espelhado no seguinte excerto:
“Na instalação consegui ver a Tecelagem, consegui ver o Papel, consegui ver… Eu não sei se vi a Cerâmica, para te ser sincera. Mas vi bastante dos ateliês que nós temos cá” (Técnica M).
Os participantes sentiram-se valorizados, uma vez que montaram a maior parte da instalação, e desenvolveram aspetos como a autonomia, autoconfiança e autoestima:
“Estivemos a cortar os fios por medida e depois a colocar algumas peças de barro que existiam no ateliê da Cerâmica” (DB, 20 de maio de 2021);
“Questionei se me queriam ajudar a terminar a instalação. Colocámos mais alguns fios de trapilho, com algumas pregadeiras que a Oficina do Papel disponibilizou.” (DB, 27 de maio de 2021).
Considerações finais
O projeto proporcionou aos participantes a oportunidade de criar arte (Vieira et al., 2016) - sob a forma de três produtos artísticos - e de se tornarem produtores da sua própria cultura (Kelly et al., 1986). Os temas trabalhados nos produtos artísticos emergiram do público, constituindo-se esta uma forma de participação. Também é evidente que o projeto permitiu o envolvimento e valorização de todos os participantes, que mencionaram uma mudança nas suas capacidades e concretizações musicais, tendo sentido o projeto como deles e sentindo-se valorizados pelo seu trabalho. Os participantes revelaram autonomia na performance final e durante o processo colaborativo verificou-se, ainda, uma evolução ao nível da coordenação rítmica e da afinação. É também de referir que outros membros da comunidade (monitores, técnicos) participaram em alguns momentos do processo criativo.
Existem vários projetos realizados a nível nacional e internacional com pessoas com deficiência, tanto no âmbito da Música na Comunidade como no da Arte Participativa, que estão documentados. Em Portugal, é de referir o projeto “Notas de Contacto”, desenvolvido pela Orquestra de Câmara Portuguesa em parceria com a Cercioeiras e centrado na improvisação e exploração musical (Orquestra de Câmara Portuguesa, 2018), bem como o “Instruments for Everyone” (I4E), desenvolvido na Casa da Música, cuja ênfase é colocada no prazer resultante do ato de tocar música em conjunto, através da construção e adaptação de instrumentos musicais (Gehlhaar et al., 2014). A nível internacional, apontam-se como alguns exemplos o “AE2M Project” (Thomann et al., 2008) e o “Performance without Barriers” (PwB) (Samuels & Schroeder, 2019), que partilham o objetivo comum de explorar o potencial das práticas musicais como forma de promover a inclusão social.
No entanto, ainda persistem muitas dificuldades em encontrar fundamentação e estudos empíricos em que participem pessoas com deficiência, principalmente em Portugal. Será essencial, no futuro, aumentar a divulgação e análise destes projetos através de publicações académicas. Só assim será possível uma reflexão mais aprofundada acerca das perspetivas e dialéticas subjacentes a este tipo de intervenções e do seu impacto na sociedade. É neste contexto que surge o presente artigo, como contribuição para a produção de conhecimento nesta temática.