Introdução
Numa época em que a educação se debate, em Portugal, com estratégias, medidas e recursos variados com vista a desenvolver, nas gerações atuais, um conjunto de pressupostos ético-morais, de princípios e valores que dotem o aluno do século XXI com as ferramentas necessárias para que venha a tornar-se num cidadão consciente, (pro)ativo e preparado para os desafios que possa enfrentar, nos mais diversos âmbitos, cremos que faz sentido recordar figuras paradigmáticas que, num passado mais remoto ou até recente, contribuíram, pela sua atuação individual e socioprofissional, para a instituição de uma cidadania consentânea com premissas éticas que em tudo ajudam o Homem a desenvolver-se enquanto ser social. Uma dessas figuras é Alice Moderno, cidadã emancipada, professora dedicada e educadora comprometida com o progresso consciente da comunidade onde cresceu e onde teve voz própria, idiossincrasias que a tornaram numa benemérita, traço com que ainda hoje é relembrada, pelo menos em Ponta Delgada.
Mas, além das características que desenham Alice Moderno como uma mulher do bem, não podemos esquecer o papel que teve enquanto educadora para a cidadania. O seu modus uiuendi em muito contribuiu para o incremento de visões - e o consequente desenvolvimento nos comportamentos dos cidadãos seus contemporâneos - que permitiram, há cerca de século e meio, compreender a importância da cidadania e perceber as dimensões e dinâmicas que lhe estão - à cidadania - associadas. Se tomarmos como premissa a consideração de Gadotti (2006, 134) de que a “cidadania é essencialmente consciência de direitos e deveres e exercícios da democracia”, veremos como Alice Moderno a exemplifica. Na verdade, conhecedora do que se passa fora da ilha de São Miguel, seja pela correspondência que estabelece regularmente com amigos residentes no território continental e no estrangeiro, em particular em França e nos Estados Unidos da América, seja pelas viagens que passou a fazer com maior frequência, depois de ver reestabelecida a sua situação financeira, Alice Moderno propõe-se tornar a pacata cidade mais importante de São Miguel num exemplo civilizacional que ilustre as boas práticas da cidadania europeia.
Assim, arrogando naturalmente para si a imagem de uma cidadã emancipada, Alice Moderno impõe respeito pela forma como age e se comporta no meio social em que vive. Para além disso, sempre o seu nome ficou ligado ao ensino, integrando o conjunto de professores que, naquela época, exercia funções docentes, fosse no ensino público, fosse na modalidade de aulas particulares. (Medeiros, 2017) Alice Moderno ensina a língua portuguesa, a língua francesa e outras disciplinas e é de se considerar o exemplo que terá passado às crianças, aos jovens e aos adultos que a tiveram como mestra de escola e/ou professora particular. Toda a sua dedicação profissional a converte numa educadora comprometida com a sociedade sua contemporânea, dedicando a maior parte dos seus dias à promoção e ao incremento de valores que evidenciam uma aguda consciência daquilo que é ser-se cidadão português - e europeu - no último quartel do século XIX e primeira metade do século XX, período cronológico aliás bastante intenso e conturbado por quedas de regimes políticos e instauração de novos tipos de governação e por conflitos bélicos, dos quais se destaca a Primeira Grande Guerra.
Alice Moderno, cidadã emancipada
Alice Augusta Pereira de Melo Maulaz Moderno nasceu em Paris, a 11 de agosto de 1867. No mês seguinte, parte com os pais para os Açores, mais especificamente para a ilha Terceira, Angra do Heroísmo, onde a família fica cerca de dez meses. Quando Alice tinha apenas 8 anos, morre-lhe o avô materno, Auguste Maulaz, figura que ela muito estimava e que viria a ser o referente masculino e paternal na sua vida futura. Em 1876, os Moderno regressam à Terceira, onde permanecem durante quase 7 anos. O pai de Alice, o Dr. João Rodrigues Moderno, aí exerce as funções de médico. Em 1883, a família troca aquela ilha açoriana pela ilha de São Miguel. Nesse mesmo ano e pela primeira vez, Alice Moderno vê publicada a sua composição poética “Morreu!”, no jornal Açoriano Oriental, do dia 18 de setembro. O pai não apoiava as pretensões literárias da filha, bem pelo contrário: desmerecia-a e forçava-a a fazer trabalho de rapaz, obrigando-a, por exemplo, a tratar dos animais, como se fosse um caseiro. Por ainda estar sob a alçada do domínio patriarcal, Alice cumpria com o que lhe ia sendo imposto. Atingida a maioridade, o cenário mudaria.
Em carta da Joaquim de Araújo, reportando-se à família, em particular à relação da mãe, por quem nutria a maior das admirações, com o pai, a quem Alice raramente se refere como tendo sido uma figura exemplar e preponderante na sua formação enquanto mulher e cidadã, a autora escreve o seguinte:
Eu sou de uma equidade rara para com todos. Tivera em demasia, talvez, mas para todos. Minha mãe, posto que não destituída de inteligência, e havendo para o tempo da sua meninice recebido uma educação esmerada, não tem opiniões suas, tem as que lhe fazer ter, e é de uma credulidade extrema. Eu, quando tenho uma convicção, sustento-a até ao infinito, e não creio senão o que a minha razão admite e compreende. Minha mãe esquece às vezes os benefícios, esquece sempre as ofensas. Eu não esqueço nunca uma ofensa. (apudVilhena 1987, 57)
Do vasto conjunto de missivas trocadas (cerca de 400) com Joaquim de Araújo, namorado por correspondência que se manteve durante cerca de dois anos, “de meados de 1892 a finais de 1894” (Vilhena 1987, 156), o excerto transcrito mostra, de forma clara, o carácter que Alice manifesta desde jovem, enquanto cidadã consciente do seu papel como mulher num contexto social dominado pelo patriarcado. Ter opinião própria, apesar da educação recebida, é para a autora uma condição imprescindível para se fazer valer no meio comandado por homens que submetem às suas visões a mulher - esposa, mãe de família, filha. Alice Moderno assume as suas convicções com fundamento até ao fim, atitude que faz dela uma cidadã emancipada, completamente à frente do seu tempo.
Além da opinião individual de que não abdica, Alice Moderno demonstra ser justa e procura praticar a justiça quando é alvo de uma ofensa. Não cremos tratar-se de uma posição de rancor ou de vingança relativamente a situações ofensivas de que possa ter sido vítima - e foi-o de facto -, mas de uma conduta que se apoia nos princípios proclamados, um século antes, pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Homem, independentemente do sexo, entenda-se, dotado de direitos e de deveres que devem, desde sempre, pautar-se pelo respeito mútuo e pela justiça no comportamento social. Ora será nesse âmbito que nos parece fazer sentido a perentoriedade da afirmação de Alice Moderno, quando diz “Eu não esqueço nunca uma ofensa.” Ademais, o facto de nunca a olvidar, i.e., a ofensa, não implica dar uma resposta à situação que a ofendeu efetivamente. Disso Alice Moderno não nos dá conta.
Será, também, por causa da relação de subserviência da mãe perante a figura do pai que Alice Moderno deixa o lar familiar, na altura localizado na Achada, uma freguesia da costa norte de São Miguel, e se fixa em Ponta Delgada, mal perfaz 18 anos. Ato corajoso, mas consciente. Ela é a primeira mulher a ingressar no Liceu Nacional de Ponta Delgada, outro ato não menos corajoso e não menos consciente do que o de ter abandonado a casa paterna, para mais numa sociedade insular e ainda consideravelmente retrógrada, como a micaelense. O ingresso de Alice Moderno no Liceu Nacional de Ponta Delgada, até ao momento frequentado por alunos do sexo masculino, acompanha, aliás, a o que vai sucedendo em Portugal continental. (Rocha, 1991)
Repare-se que o abandono do domicílio familiar leva Alice Moderno a adotar uma vida que, na sua idade, era estranha a todas - ou, pelo menos, à maior parte - as moças micaelenses, inclusive as jovens aristocratas do meio. Enquanto estas beneficiavam de aulas particulares, aprendiam a tocar algum instrumento musical e a falar o francês, o idioma da moda, Alice Moderno estudava e trabalhava ao mesmo tempo. É, por isso, relevante notar como a consciência apurada de Alice Moderno lhe impôs um modus uiuendi claramente emancipado. Ao contrário dos jovens rapazes e raparigas da sua geração, a maioria dependente do patrocínio familiar (para estudar no liceu, casar, viajar e cursar Coimbra ou Lisboa), a autora desenvolve os mecanismos necessários para garantir a sua subsistência, com mérito e custo. Tanto o liceu como a estadia em Ponta Delgada pagavam-se e Alice, desde cedo, compreendeu o valor do trabalho, empenhando-se para que nada lhe faltasse. De início, ainda contou com uma mesada, mas os descontrolos financeiros do pai fizeram com que acabasse por se ver privada desse auxílio e começasse, de facto, a ganhar o seu dinheiro. Mais tarde será ela quem assumirá as dívidas da família, a qual, tendo partido, em 1893, para os Estados Unidos da América, lhe deixa bastantes encargos por saldar. Essa responsabilidade financeira ter-lhe-ia inviabilizado, em boa parte, a ida para a universidade: “Alice Moderno sempre lamentou não ter tirado um curso superior; e não o tirou por falta de meios materiais.” (Vilhena 1987, 113).
Contudo, o facto de não possuir estudos superiores não a descredibiliza nem como cidadã ativa no meio intelectual micaelense, nem tão-pouco a impossibilita de continuar com as suas produções literárias ou de fundar e dirigir jornais em Ponta Delgada. Do mesmo modo como foi a primeira mulher a ingressar no Liceu Nacional de Ponta Delgada, também Alice Moderno é a primeira mulher, desta vez em todo o Portugal, a desempenhar o cargo de diretora de um jornal quotidiano (Cf. Vilhena 1987, 207). Além da colaboração vária que regista com diversos periódicos, ela funda, aos 22 anos, o seu primeiro jornal, O Recreio das Salas, publicação mensal, que teve apenas 7 números. Em 1902, já mais experiente, sobretudo depois de ter assumido a direção do Diário de Anúncios, Alice Moderno funda o seu segundo jornal, A Folha, o qual vai ser publicado regularmente, por um longo período de 15 anos.
Através do jornalismo e dos periódicos que fundou e/ou dirigiu, Alice Moderno não só mostra como é uma cidadã preocupada com o meio local, como também promove a emancipação - feminina, de ideias, insular -, permitindo a Ponta Delgada, e aos Açores, um desenvolvimento cultural e social capaz de acompanhar as tendências do território continental e da própria Europa. Ao caracterizar o jornal A Folha, Conceição Vilhena (1987, 211) diz que
A variedade temática e a forma como esta é tratada tornam-no um jornal digno de crédito. Tem prioridade tudo o que diz respeito a interesses locais, mesmo os de menor repercussão, como seja a falta de higiene num determinado local, ou o mau cheiro que se evola de algumas cavalariças; a velocidade com que andam os primeiros automóveis pelas ruas, sem respeito pelos peões; certa falta de zelo na distribuição do correio, etc., etc.
Veja-se que o que Vilhena considera serem assuntos “de menor repercussão” são precisamente alguns dos temas que hoje enformam as linhas orientadoras da Educação para a Cidadania. Mais do que uma visionária, Alice Moderno foi, de facto, uma cidadã consciente do seu papel na sociedade micaelense.
Alice Moderno, professora dedicada
O desempenho de funções docentes por mulheres era, no Portugal do século XIX, como também o foi até à instauração da democracia em 1974, uma forma de conceder ao sexo feminino alguma autonomia e um certo estatuto social, o que permitia às mulheres de então fazer valer, de quando em quando, a sua voz em público. No caso de Alice Moderno, a docência revelou-se um meio importante através do qual ela também pôde exercer a cidadania e incutir nos seus alunos - de idade variada - os valores que defendia, em matéria sociopolítica e ético-moral.
No Catálogo que acompanha a exposição que a Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada dedicou a Alice Moderno, aquando da comemoração do 70.º aniversário da sua morte (20.02.1946) e do 150.º aniversário do seu nascimento (11.08.1867), pode ler-se o seguinte:
Muito empenhada na função de professora, a qual lhe serviu de sustento essencial no início da sua vida de trabalho e onde chegou a trabalhar de 8 a 14 horas diárias, é também uma ativista da alfabetização, da igualdade entre homens através da educação, da educação integral e do desenvolvimento de todas as aptidões humanas e da escolarização feminina, nomeadamente acima do nível básico. (Gregório 2016, 2)
O empenho, a disponibilidade e a entrega no desenvolvimento da atividade docente fazem de Alice Moderno uma professora dedicada, que não vê neste ofício apenas a fonte do seu provento, mas que dele se serve para educar para a cidadania. E de que modo? O primeiro aspeto que salientamos é precisamente o incremento da alfabetização, tanto de homens como de mulheres. Pese embora o facto de o masculino dominar o feminino em praticamente todos os âmbitos, desde o social ao familiar ou desde o político ao profissional, não saber ler e escrever era uma situação quase generalizada, que a todos tocava, independentemente do sexo. Antes de se dedicar ao ensino das primeiras letras a rapazes e raparigas, Alice Moderno começa “como simples explicadora de Português e Francês, quando entrou para o liceu, e a família vivia na Achada” (Vilhena 1987, 188). O seu nome, a indicação das disciplinas a que prepara para exame de admissão ao liceu, os horários e o valor da mensalidade eram publicitados no Diário de Anúncios, ao longo de 1890 e 1891.
Habilitada que está para o magistério primário - e que também exerce desde muito cedo -, Alice Moderno não põe de lado outros desejos (ou sonhos), como o de ser professora liceal. Talvez por ter frequentado o meio e o espaço, ela alimenta a hipótese de poder fazer parte do corpo docente de um liceu. E na verdade, “logo que surgiu o projeto de criação de liceus femininos, ela fez diligências no sentido de conseguir uma nomeação como professora de Francês” (Vilhena 1987, 189); contudo, segundo sabemos por meio de uma carta que Teófilo Braga lhe endereça, datada de 4 de junho de 1890, Alice Moderno não conseguiu, na altura, concretizar essa sua pretensão socioprofissional, porque a abertura de liceus femininos em Portugal não era, para o governo de então, um projeto iminente, quanto mais em Ponta Delgada.
O afã manifestado por Alice Moderno - o de não se acomodar na docência ao nível de um ensino básico ou elementar e tentar ir mais além - mostra como a determinação e a vontade são estados de espírito que estimulam o exercício de uma cidadania ativa. Não lhe bastariam as funções de professora do magistério primário? Não lhe era já bom gozar de autonomia financeira por ter um trabalho remunerado? Pelos vistos Alice Moderno não se resigna ao que tem por garantido e entende que o seu contributo, enquanto cidadã e professora dedicada, pode ser maior ou chegar a outros domínios.
Como não se consegue, em finais do século XIX, a abertura de um liceu feminino em Ponta Delgada, a autora não dá por esquecida esta inviabilidade e alerta o governo para a necessidade de se concretizar esse projeto. Serve-se da imprensa para dar voz à sua proposta e publica, no jornal que fundou e do qual é diretora, A Folha, uma carta aberta a António José de Almeida (1866-1929), datada de 18 de dezembro de 1910, tinha a República Portuguesa pouco mais de dois meses, na qual diz:
[…] Entre as reformas, pois, a realizar, no país, não deve ser considerado como assunto de interesse secundário da educação da mulher.
Para o ensino primário existem escolas, e esse ensino, já suficiente, tornar-se-á bom quando se cumprir, quanto ao mesmo, a lei vigente, instituindo em todos os núcleos de população superiores a 10 000 habitantes, escolas centrais, onde a divisão do trabalho garanta aos alunos um mais rápido adiantamento e uma mais perfeita habilitação.
Falta ainda que, nas principais cidades do reino, sejam criados liceus femininos.
Longe de mim a ideia de condenar as escolas ou os liceus mistos. Seria mesmo desligar a teoria da prática, visto que me coube a honra de ser o primeiro indivíduo do sexo feminino que se matriculou no Liceu de Ponta Delgada.
No entanto, conheço pais, muitos pais e muitas mães, que, tendo filhas notavelmente inteligentes, feito o exame de instrução primária do 2.º grau, as deixam ficar em casa, de preferência a matriculá-las no liceu, onde as mães não as podem acompanhar, e pela razão de que uma menina de onze anos não saberá dirigir-se só, entre dezenas de rapazes de todas as idades e dotados, naturalmente, de várias índoles e educações.
Daí logicamente, visto que essas razões são também acatáveis, a necessidade da criação de liceus femininos.[…]
Alice Moderno esperou cerca de duas décadas para reativar o projeto da abertura de um liceu feminino em Ponta Delgada. Como professora dedicada e já detentora de experiência profissional, a naturalizada micaelense não se coíbe de apresentar, por meio de uma carta aberta, a proposta que, no seu entender, muito proveitosa seria para as cidadãs da ilha de São Miguel. Se nos detivermos com maior atenção nas palavras de Alice Moderno, verificamos o modo como a professora não ataca ou censura a atuação governativa daquele tempo. Consciente do seu papel social, exerce a cidadania como qualquer outra pessoa deveria exercer, recorrendo aos meios adequados para o fazer.
Começa por alertar, elegantemente, a quem de direito, para a necessidade de não ser desconsiderada a educação das mulheres a um nível que não apenas o elementar, em termos de escolaridade. Faz uma breve análise do estado do ensino primário na ilha, referindo que se aplica a lei vigente e que, por isso, aí devem ser prestados os apoios para que tudo continue de acordo com o que é imposto e de acordo com o que sucede nas principais cidades do reino. O mesmo é dizer que, apesar de Ponta Delgada se situar num território insular, não deve ser posta de parte ou receber um desmerecimento em relação ao que se promove noutras cidades portuguesas. A partir deste momento Alice Moderno centra-se no tema que lhe é querido, a abertura de um liceu feminino. Esta medida impõe-se, segundo nos diz, não porque os liceus mistos não promovam um ensino de qualidade - ela é, aliás, um exemplo de que essa modalidade de ensino resulta bem -, mas por questões sociais que podem comprometer a moral das cidadãs micaelenses.
Para legitimar as suas ideias e a sua proposta, Alice Moderno alude à relação que, como professora e como cidadã, desenvolve com as famílias das alunas que conhece e cuja aprendizagem certamente acompanha ou acompanhou. Ela não é tão somente a mestra de escola ou a explicadora que se dedica aos alunos e às alunas no horário de trabalho, Alice Moderno imbui-se de responsabilidades que vão para além de uma sala de aula ou de uma secretária de estudo. Esta sua atitude faz dela uma cidadã envolvida e comprometida com os outros, ao mesmo tempo que os alfabetiza, instrui, escolariza e… educa.
Alice Moderno, educadora comprometida
Na verdade, mais do que uma mulher emancipada e mais do que uma professora dedicada, Alice Moderno é uma verdadeira educadora sctricto sensu. O termo português “educar” vem do latim e exprime precisamente “conduzir para fora”, pois tem na sua base de formação morfológica a preposição “ex”, como prefixo, e o verbo “ducere”, que significa “conduzir”, “liderar”, “dirigir”. Ora, a atuação pessoal, profissional e social de Alice Moderno permite-lhe educar para a cidadania. Este parece-nos ser o grande compromisso que assume com a sociedade micaelense da sua época, mesmo que ela pudesse, ironicamente, ser considerada uma extemporânea:
Vista como excêntrica, definitivamente pouco comum, do alto de uma estatura considerável usava cabelo curto, entrava nos cafés, fumava em público e não hesitava em defender veementemente valores, convicções e ideias com os quais muitos de nós se identifica hoje em dia, mas que eram pioneiras, quase revolucionárias na sociedade micaelense de então. (Gregório 2016, 2)
É, portanto, a invulgaridade que a caracteriza o primeiro pilar em que se edifica a sua função de “educadora”, no sentido etimológico da palavra. Mau grado a estranheza que as suas “transgressões” pudessem causar aos olhos encurtados pelo conservadorismo retrógrado da sociedade do seu tempo, não serão estas mesmas “transgressões” o estímulo à mudança e à evolução? Não serão estas mesmas “transgressões” outros alicerces que suportam o exercício de uma cidadania consentânea com os valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade, princípios proclamados pela Revolução Francesa?
Mas, o que para alguns significava transgredir ou chocar, para Alice Moderno significava educar. Deste modo, para além do percurso de vida académica que a demarca do meio masculino que domina a sociedade micaelense; para além do papel de jornalista que assume no contexto que lhe seria, desde logo, hostil por ela ser mulher, Alice Moderno destaca-se, também, como cidadã empreendedora, que coloca em rotas comerciais internacionais um número significativo de produtos açorianos, dos quais se evidencia o ananás. Tal como ensina a ler e a escrever, a educadora também sabe plantar, semear e, acima de tudo, fazer negócios. Isso acrescenta mais prestígio àquela mulher que era sobejamente conhecida pelo seu modus uiuendi diferente, mas que contribuía, com tudo o que fazia, para o fomento de uma cidadania exemplar, nunca desvalorizando o que melhoraria a condição social dos seus contemporâneos.
Se promover a alfabetização da comunidade micaelense, se propor a abertura de um liceu feminino em Ponta Delgada, se aproveitar os recursos naturais da ilha de São Miguel, se conseguir fazer negócios com empreendedorismo, se tudo isso permite o exercício de uma cidadania ativa e estimulante, o que pensar de um projeto que visa proteger os animais? Não é isso demonstração por demais emancipada da cidadania? Alice Moderno cresceu em meios rurais, sobretudo na ilha de São Miguel. Considerando a inexistência de irmãos rapazes - Alice foi, durante dez anos, a única filha do casal Moderno -, o pai nunca se poupou de encarregar a filha adolescente de cuidar dos animais da casa. Talvez daí tenha advindo boa parte do respeito que Alice Moderno nutre pelos animais, pois neles vê não apenas o fiel companheiro doméstico, mas também um ser vivo que precisa de ser estimado para que possa cumprir certos trabalhos, os agrícolas desde logo, em condições devidas. “Em princípios do séc. XX, o animal era ainda o principal auxiliar do camponês, que abusava geralmente dos seus direitos de dono e da sua força de racional. Urgia por isso fazer uma campanha a favor dos direitos dos animais.” (Vilhena 1987, 299).
Além do apreço e do carinho manifestados pelos animais, Alice Moderno tem igualmente conhecimento do que se está a fazer, no território continental e no estrangeiro, relativamente à proteção dos animais. Ponta Delgada, São Miguel e os Açores não podem ficar para trás. Dos turistas a comunidade vai sentindo o desconforto que assinalam em relação aos animais que veem maltratados nas artérias rodoviárias da capital micaelense; e é também da parte daqueles que visitam a ilha, na sua maioria estrangeiros, que os micaelenses são tidos por pouco civilizados, tendo em conta a forma como lidam com os animais. Ora, isso é mais um forte motivo para Alice Moderno desencadear um conjunto de ações com vista a sensibilizar a população e as autoridades locais. É uma questão de cidadania a que se lhe impõe. Para isso, serve-se dos meios ao seu alcance, a imprensa e a edilidade, para educar os seus conterrâneos para a necessidade de cuidar dos animais de forma digna e merecedora de respeito. Por conseguinte, “a necessidade humanitária e social de fundar a Sociedade Protetora dos Animais é, pois, considerada inadiável pelos principais membros da imprensa local.” (Vilhena 1987, 313), da qual Alice Moderno faz parte.
Assim sendo, funda-se, no dia 13 de setembro de 1911, a Sociedade Micaelense Protetora dos Animais e Alice Moderno foi um dos pilares impulsionadores dessa associação, da qual assumiu a presidência durante 32 anos, desde 1914 até ao fim da sua vida, em 1946. Que melhor exemplo de educadora para a cidadania se espera? Envolvida nas mais variadas causas associadas à instrução e ao ensino em São Miguel, comprometida com o avanço civilizacional de uma cidade insular e, por extensão, de todo o arquipélago açoriano, preocupada com questões humanitárias que envolvem a proteção dos animais, Alice Moderno é um paradigma de cidadania. E o legado que nos deixou foi além da sua ação, como o estabelecimento de um Hospital Veterinário post mortem, ainda hoje no ativo, que se deveu ao património que cedeu, em testamento, à autarquia.
Conclusão
Numa época em que as preocupações com o estado da humanidade se multiplicam, como hoje se constata, ora por desrespeitos contínuos para com a própria espécie humana, ora por violações deliberadas dos direitos humanos e dos animais, ora ainda por atuações governamentais duvidosas e que põem em causa a qualidade de vida do Homem, há que incutir nas gerações mais novas exemplos de cidadania para que deles se tirem os elementos em que enforma a consciência de se ser cidadão na atualidade.
As escolas e as academias universitárias bem se esforçam na promoção de medidas que visam o correto exercício da cidadania, mas cremos que olhar para o passado e analisar a atuação de certas figuras, como é o caso de Alice Moderno, são estratégias igualmente válidas, porque se revestem de fiabilidade pedagógica. Cada vez mais faz sentido seguir exemplos, imitar modelos. Deste modo, porque não mostrar e dar a conhecer o modo como, há cerca de século e meio, houve quem se empenhasse e se dedicasse na educação para a cidadania?
Consciência, respeito, entrega, compromisso - e até ousadia -, eis as traves que suportaram a ação de uma mulher que, num mundo em evolução, se impôs como cidadã carismática e inteiramente dedicada às causas em que acreditava, porque nelas via os meios através dos quais podia ser uma educadora para a cidadania.