Introdução
Nos últimos anos, o mundo se viu envolto em uma situação de calamidade pública gerada pela pandemia do novo Coronavírus (COVID-19 ). Essa situação contribuiu para um cenário desafiador em diversas áreas, seja na saúde, economia, educação, entre outras. As incertezas e inseguranças surgidas no dia a dia tornaram aparentes e importantes questões sobre a qualidade de vida do ser humano, tal como, a situação financeira e econômica das famílias brasileiras afetadas por este cenário.
A redução dos postos de trabalho, a falta de controle dos gastos e o planejamento orçamentário produzem uma espécie de cegueira que atrapalha a identificação do modo como os recursos financeiros estão sendo distribuídos, provocando graves situações de endividamento. Tal fato remete à necessidade de analisar estratégias para que as famílias brasileiras possam superar as adversidades financeiras potencializadas pelo cenário vivido nos últimos anos.
Pensando assim, esta pesquisa tem como objetivo central refletir a relação do sujeito com o mundo, no que diz respeito ao entendimento sobre o planejamento financeiro e suas nuances, bem como a identificação da importância do trabalho transversal da Educação Financeira no ensino da Geografia, em escolas de ensino médio.
A Educação Financeira foi estabelecida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) como tema contemporâneo transversal, ou seja, na intenção de promover aos estudantes da educação básica noções sobre o comportamento sócio emocional, buscando contribuir para a formação pessoal e comportamental sobre as relações de consumo sustentável, consciência financeira, desenvolvimento socioeconômico e planejamento financeiro familiar.
Percebe-se, então, a latente necessidade de mudança no comportamento das pessoas, especialmente no que tange às relações consumeristas, propondo desenvolvimento da prática do consumo sustentável, que contribui para o equilíbrio ambiental e financeiro, potencializando a consciência ecológica, econômica e social do estudante. Todavia, o consumo sustentável possibilitará que as pessoas produzam um movimento analítico e crítico sobre as possíveis necessidades ao adquirir um produto.
Este trabalho assume uma abordagem qualitativa exploratória, que “considera que há uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, isto é, um vínculo indissociável entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em números” (Prodanov & de Freitas, 2013, p. 70). Para Gil (2002), a pesquisa exploratória, “exige bastante traquejo no manuseio de publicações científicas. Para isso, é necessário que o pesquisador seja capaz de identificar imediatamente a organização interna das obras consultadas” (p. 78), logo, o estudo teórico das práticas de transversalidade da Educação Financeira no ensino da Geografia proporciona essa relação dinâmica proposta pelos autores.
Como base teórica, este estudo se ancora nas constatações de autores que contribuem para a discussão do ensino da Educação financeira para a qualidade de vida das pessoas e a importância da sua inclusão no processo de ensino e aprendizagem. Ademais, a pesquisa tem base documental por examinar as ponderações da BNCC, ao que tange ao trabalho com os temas transversais e o ensino da Geografia, bem como as legislações que abordam o estudo das diretrizes curriculares do ensino médio e o conceito da Educação Financeira.
Metodologicamente, para Gil (2002), “os documentos constituem fonte rica e estável de dados” (p. 47), já Prodanov e de Freitas (2013) compreendem que “a utilização da pesquisa documental é destacada no momento em que podemos organizar informações que se encontram dispersas, conferindo-lhe uma nova importância como fonte de consulta” (pp. 55-56). Dessa forma, essa pesquisa se apropria das legislações brasileiras para traçar os caminhos percorridos pela educação financeira.
Este artigo está dividido em três seções, a primeira, “A Educação Financeira na transversalidade”, trata da base legal dos componentes curriculares e da transdisciplinaridade, dispostas na BNCC. Reforça o valor social da instituição escolar perante a comunidade escolar e o caráter formador do professor. A segunda seção, “Os caminhos e conceitos da educação financeira”, dispõe sobre o percurso legal da Educação Financeira no Brasil, em comparação a outros países e a definição dada por órgãos governamentais e por estudiosos. A terceira e última seção, “A Educação Financeira e o ensino da Geografia”, discorre sobre a relação da Educação Financeira com o ensino da Geografia, no trabalho docente. As considerações finais retomam o objetivo da pesquisa e apresentam os resultados gerais encontrados.
Sem pretender esgotar a discussão que versa sobre o ensino transdisciplinar da Educação Financeira, o trabalho contribuirá para o acesso ao conhecimento sobre o planejamento coletivo e a educação financeira das famílias, bem como proporcionará aos educadores uma oportunidade para refletir quanto às práticas pedagógicas e suas possibilidades em sala de aula.
A Educação Financeira na transversalidade
A BNCC (2018) integrou o “estudo de conceitos básicos de economia e finanças, visando à educação financeira dos alunos”. Propôs o estudo de conceitos básicos de Economia e Finanças. Assim, sugere a discussão de tema como “taxas de juros, inflação, aplicações financeiras (rentabilidade e liquidez de um investimento) e impostos” (p. 265).
Os Temas Contemporâneos Transversais - TCT (2019), que compõem a proposta da BNCC, mantêm a abordagem transversal, “atravessam as experiências dos estudantes em seus contextos, contemplam aspectos que contribuem para uma formação cidadã, política, social e ética” (p. 11). Conforme a BNCC (2018), o estudo interdisciplinar da educação financeira perpassa as “dimensões culturais, sociais, políticas e psicológicas, além da econômica, sobre as questões do consumo, trabalho e dinheiro” (p. 265). Assim, a transversalidade pode ser compreendida como um prelúdio que norteia metodologias transformadoras do processo de ensino, aglutinando vários conhecimentos que buscam proporcionar uma convicção de ensino fragmentado, na concepção de uma visão sistemática.
Os Temas Contemporâneos Transversais na BNCC (2019) estabelecem que “educar e aprender são fenômenos que envolvem todas as dimensões do ser humano e, quando isso deixa de acontecer, produz alienação e perda do sentido social e individual no viver” (p. 6). Portanto, o processo pedagógico deve prever a correlação entre os temas e componentes curriculares, a fim de não fragmentar o conhecimento para o estudante.
Nesse sentido, os Temas Contemporâneos Transversais (TCTs) têm a condição de explicitar a ligação entre os diferentes componentes curriculares de forma integrada, bem como de fazer sua conexão com situações vivenciadas pelos estudantes em suas realidades, contribuindo para trazer contexto e contemporaneidade aos objetos do conhecimento descritos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). (Temas Contemporâneos Transversais na BNCC, 2019, p. 6)
Considerando que “a educação financeira deve ser vista como um processo contínuo, permanente e vitalício” (OCDE, 2005, p. 6, tradução nossa), o currículo a ser trabalhado com os estudantes do ensino médio estabelece por suas diretrizes o TCT da Educação Financeira, cujo papel social é propagar conhecimento sobre consumo consciente, planejamento financeiro familiar, sustentabilidade financeira e fatores econômicos que diminuem o poder de compra da população.
Assim, criando relações entre a escola e a vida cotidiana dos estudantes, a proposta de trabalho com os TCTs sugere a transdisciplinaridade. Sobre a transdisciplinaridade na educação financeira, Hartmann e Maltempi (2021) dispõem que:
a Educação Financeira está relacionada a aspectos não-matemáticos, proporcionando relações com outras áreas como História, Geografia, Economia e Psicologia, por meio de discussões de questões de inflação, PIB, consumo consciente, balança comercial, salário mínimo e planejamento, e assim é importante que seja abordada de modo transversal e integrador; a Educação Financeira corrobora a formação de cidadãos. (p. 18-19)
Ao pensar a Educação Financeira por um prisma socioeconômico, é possível criar um olhar social capaz de proporcionar um elo entre as áreas do conhecimento e os componentes curriculares a serem trabalhados. Esse mecanismo de fusão entre diferentes saberes pode ampliar o campo de interpretação do discente.
A transversalidade da Educação Financeira não é estática como uma fórmula matemática, mas sim, um comportamento do sujeito na sociedade capitalista, comportamento socioeconômico este que é caracterizado pelo movimento sócio-histórico, contudo, bastante influenciado pelo (des)conhecimento da população sobre os elementos que compreendem a relação de produção e consumo, o planejamento financeiro familiar e a consciência econômica.
A fim de ampliar o conhecimento, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE (2005) prevê que:
A educação financeira deve começar na escola. As pessoas devem ser educadas sobre questões financeiras o mais cedo possível em suas vidas.
Deve-se considerar incluir a educação financeira em programas estatais de bem-estar social. Devem ser promovidas estruturas especializadas apropriadas (possivelmente incorporadas às autoridades existentes) responsáveis pela promoção e coordenação da educação financeira em nível nacional e regional, além de iniciativas locais, públicas e privadas, o mais próximo possível da população. (p. 5, tradução nossa)
Tomar decisões não é uma tarefa fácil, o conhecimento e o comportamento dos estudantes podem ser construídos por meio de informações sobre Educação Financeira, “nessa articulação, temas e atividades devem dialogar com os anseios e contextos das juventudes, contribuindo para o desenvolvimento da criatividade dos estudantes, o trabalho em equipe, a interação e a construção do conhecimento” (Governo de Minas Gerais, 2018, p. 56).
Compreender e praticar os ensinamentos da Educação Financeira na escola, por meio da transversalidade, reforça o valor social da instituição escolar perante a comunidade, que também será beneficiada pelo fator multiplicador de conhecimento. Soma-se a isso o caráter formador do professor, que busca oferecer à sociedade um cidadão crítico, consciente e questionador das informações que lhe são oferecidas.
Do ponto de vista prático, a transversalidade deve ser vista pelos docentes como uma forma interativa de abordar em sala de aula os componentes curriculares junto aos temas conterrâneos propostos pela BNCC, visando a formação geral do estudante. Essa formação deve prever o uso das habilidades adquiridas na escola, em seu meio social, a fim de interagir e modificar o ambiente em que vive.
Como exemplo ao trabalho do professor na transversalidade com a Educação Financeira, é possível destacar os professores da Geografia na sua abordagem didática ao ensino de Sistemas Agrários , que podem se unir a professores dos componentes curriculares de Língua Portuguesa, Matemática, História e Arte e elaborar um trabalho coletivo com os estudantes, de forma a comparar os preços da agricultura familiar, comercializados nos mercados municipais, com os preços dos sacolões e supermercados, que adquirem seus produtos no Ceasa. Nessa perspectiva, poderia ser realizado, ainda, um mapeamento histórico e social dos agricultores da região, com a emissão de relatório circunstanciado da realidade local.
Dessa forma, a relação entre a transversalidade e a Educação Financeira possibilitaria ao estudante o desenvolvimento de importantes habilidades para a sua formação, como por exemplo: a compreensão da realidade local e o contexto de produção do agricultor; a análise do custo-benefício na aquisição de alimentos; a compreensão e interpretação da realidade local na produção textual, produtiva e autônoma.
Na próxima seção, será tratado acerca do significado e percurso legal da educação financeira no Brasil, em comparação a outros países.
Os caminhos e conceitos da Educação Financeira
A Educação Financeira no Brasil, apesar de ter se desenvolvido consideravelmente nos últimos anos, ainda carece de maior atenção, o trabalho precisa ser constante para se tornar compreensível e significativo à população. Ao comparar o trabalho da Educação Financeira nas escolas brasileiras com outros países, da Silva e Gandara (2021), baseando em dados da OCDE, concluíram que no Brasil esse trabalho está apenas no início, com um longo caminho a percorrer.
Desde 2000, na Inglaterra as escolas oferecem a disciplina. Em dezembro de 2007, uma Comissão da União Europeia apresentou argumentos considerando a Educação Financeira fundamental na educação das pessoas. Nos Estados Unidos, as políticas públicas estão aprimorando a Educação Financeira, tornando as aulas de finanças pessoais uma exigência para todos os estudantes. (p. 34)
Em 2005, a OCDE estabeleceu recomendações sobre os princípios e as boas práticas de educação e conscientização financeira, a qual considerou a importância da implementação da educação financeira para o desenvolvimento da sociedade, assim, previu que os governos, instituições públicas e privadas promovessem as melhores práticas para a educação e conscientização financeira da população.
Em 22 de dezembro de 2010, o governo federal brasileiro instituiu a Estratégia Nacional de Educação Financeira (ENEF), por meio do Decreto nº 7.397/2010, com o objetivo de “promover a educação financeira e previdenciária e contribuir para o fortalecimento da cidadania, a eficiência e solidez do sistema financeiro nacional e a tomada de decisões conscientes por parte dos consumidores” (2010, np).
A Estratégia foi implementada visando a atuação permanente e em âmbito nacional, a gratuidade das ações de Educação Financeira, a prevalência do interesse público, a atuação por meio de informação, formação e orientação, a centralização da gestão e descentralização da execução das atividades, a formação de parcerias com órgãos e entidades públicas e instituições privadas e a avaliação e revisão periódicas e permanentes (Decreto 7.397, 2010). O Decreto nº 7.397 também instituiu o Comitê Nacional de Educação Financeira - (CONEF) para definir planos, programas e ações da ENEF.
Em 09 de junho de 2020, o referido decreto foi revogado pelo Decreto nº 10393 (2020), o qual vigora atualmente. O documento atual instituiu uma nova ENEF, “com a finalidade de promover a educação financeira, securitária, previdenciária e fiscal no País” (np) e criou o Fórum Brasileiro de Educação Financeira (FBEF), que substituiu o CONEF e ficou responsável por implementar a ENEF, divulgar as ações de educação financeira e compartilhar informações.
Diante do exposto, constata-se que as diretrizes definidas para a ENEF estão em conformidade com o conceito da educação financeira, definido pela OCDE, a qual entendeu que a educação financeira é:
o processo pelo qual consumidores/investidores financeiros aprimoram sua compreensão sobre produtos, conceitos e riscos financeiros e, por meio de informação, instrução e/ou aconselhamento objetivo, desenvolvem as habilidades e a confiança para se tornarem mais conscientes de riscos e oportunidades financeiras, a fazer escolhas informadas, a saber onde buscar ajuda, e a tomar outras medidas efetivas para melhorar seu bem estar financeiro (OCDE, 2005, p. 4, tradução nossa).
Corroborando com a definição da OCDE, Mendes (2015) estabelece que “a educação financeira é, portanto, um instrumento que auxilia na qualidade das decisões financeiras e que está diretamente ligada aos níveis de endividamento, inadimplência e investimento” (p. 16). Contudo, tal definição gera divergências de opiniões entre pesquisadores da área, haja vista que o conceito definido pela OCDE restringe “a aspectos econômicos, sem grandes apontamentos para uma abordagem crítica e reflexiva” (Hartmann & Maltempi, 2021, p. 4).
Reis (2016) amplia a definição de Educação Financeira e compreende que ela seja “um processo que permite que as pessoas tenham melhor entendimento dos conceitos e dos produtos financeiros para tomar decisões sobre as oportunidades e os riscos envolvidos e tenham melhor bem-estar” (p. 460).
Ainda na perspectiva de “melhor bem-estar”, Ferreira (2017) dispõe que a educação financeira está relacionada com a qualidade de vida das pessoas, para ela “se trata de conhecimentos e competências que te ajudam fazer escolhas inteligentes relacionadas a dinheiro, transações financeiras e consumo, o que te fazem adquirir certo bem-estar e tranquilidade na vida” (p. 3). Sobre isso, as autoras Buss e Amorim (2020) complementam que:
A Educação Financeira não é apenas aprender a economizar, cortar gastos, poupar e acumular dinheiro, é buscar uma melhor qualidade de vida, tanto hoje quanto no futuro, proporcionando a segurança necessária para aproveitar a vida e ao mesmo tempo obter uma garantia para eventuais imprevistos. É o processo em que o indivíduo busca conhecimentos para lidar com o dinheiro de forma mais consciente e inteligente. (p. 22)
Tratar sobre o uso do dinheiro na conjuntura cultural brasileira não é uma tarefa fácil, haja vista o alto índice de endividamento das famílias. Por assim compreender que a escola pode ser provedora de conhecimentos essenciais para a vida do estudante, faz-se necessário que a comunidade escolar esteja engajada nesse contexto, bem como, que todos os mecanismos escriturais da escola, como Projeto Político-Pedagógico - PPP, Regimento Escolar - RE e projetos pedagógicos a serem desenvolvidos pela unidade educacional, favoreçam o ensino da Educação Financeira.
Nessa vertente, este trabalho reflete acerca da educação financeira e as atitudes comportamentais relacionadas ao uso do dinheiro com a forma que o indivíduo interage no espaço geográfico, seja para atender suas necessidades ou impulsionado pelo incentivo ao consumo. Assim, a relação da Educação Financeira com o ensino da Geografia revela sentido e torna inevitável para propor estratégias que visem melhorar a qualidade de vida da sociedade, tema a ser tratado na próxima secção.
A Educação Financeira e o ensino da Geografia
O artigo 22 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 9394/1996 dispõe que “a educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores” (np).
Para Mendes (2015), o ensino da Educação Financeira pode ser entendido como “um instrumento que auxilia na qualidade das decisões financeiras e que está diretamente ligada aos níveis de endividamento, inadimplência e investimento” (p. 16). Assim, torna-se necessário para os estudantes se apropriarem do conhecimento acerca do controle de gastos e os impactos do consumo no meio ambiente, a fim de pretender uma prática cidadã consciente. Tomando como base essa ideia, o ensino da Geografia conta com a Educação Financeira, como tema transversal, para trabalhar com as estudantes questões ambientais e sociais que impactam a vida em sociedade.
O estudo da Geografia ultrapassa as questões físicas e biológicas, ela trata de questões sociais, inclusive as que se relacionam com a Demografia, que visa investigar as populações humanas. A Geografia é uma ciência capaz de dialogar como vários problemas da sociedade contemporânea, tendo como uma de suas ramificações a Geografia Econômica, responsável por compreender as transformações ocorridas no espaço geográfico sobre o viés econômico ao longo do tempo.
Nesse contexto, cabe a Geografia interpretar o fenômeno da globalização que dinamizou o fluxo de redes de transportes de mercadorias, pessoas e o financeiro. As fronteiras foram reduzidas a um clique, o qual potencializou a abertura de novos mercados consumidores, ampliando a cultura consumista e exploratória dos recursos naturais.
O consumo exagerado atende o funcionamento capitalista, contudo, potencializa os problemas ambientais e a exploração dos recursos naturais, bem como gera o comprometimento da renda familiar, por meio do endividamento, o que compromete a qualidade de vida.
O superendividamento dos consumidores constitui um fenômeno social de extrema relevância na atualidade. Todavia, esta questão não faz correlação somente a um campo de conhecimento, posto que se configura como um grave e crescente problema social que necessita, para seu entendimento e enfrentamento, da articulação de diferentes disciplinas. (Hennigen, 2012 como citado em Reis, 2016, p. 459)
Além das assimetrias socioeconômicas, o endividamento da população é gerado pela falta de Educação Financeira. Grande parte da população possui dificuldades em estabelecer metas de gastos e acabam assumindo responsabilidades financeiras sem que possam cobri-las posteriormente.
Segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC), feita em junho de 2020, o total de famílias endividadas bateu um novo recorde, chegando a 67,10%, sendo dívidas com cheques, cartão de crédito, carne, empréstimo pessoal, prestação de carro e seguro. (Cnc, 2020 como citado em Buss & Amorim, 2020, p. 17)
Com a hiper propagação midiática ao aumento e uma pseudo-facilidade para o consumo, o descontrole e a falta de planejamento tornam os índices de endividamento cada vez mais elevados. Para Mendes (2015), as pessoas têm dificuldade de controlar suas finanças pessoais, “desconhecem o quanto gastam, como gastam e principalmente o fator que os motivaram a gastar” (p. 17). É necessário compreender criticamente a necessidade do consumo, bem como realizar um planejamento voltado para o equilíbrio dos gastos.
Nessa vertente, os eixos temáticos a serem trabalhados no componente curricular de geografia possibilitam a associação dos conceitos que discutem abordagens relativas às modificações no meio ambiente, impulsionadas pelo consumo exacerbado, aos possíveis reflexos da falta de conhecimento acerca da Educação Financeira na vida do cidadão.
Como exemplos de eixos temáticos previsto na BNCC do componente curricular da Geografia, que podem ser trabalhados transversalmente à Educação Financeira, podem ser citados: Políticas econômicas: relações de poder em escalas local/nacional e internacional; Sociedade de consumo e uso dos recursos naturais: das discussões locais as intervenções na política internacional; Os lugares vividos e o processo de globalização: do sujeito do lugar a cidadania mundial e planetária; Linguagem da tecnologia e as interpretações do mundo (BNCC, 2018).
O eixo temático “Políticas econômicas: relações de poder em escalas local/nacional e internacional” oferece aos estudantes a possibilidade de compreender os indicadores econômicos e as diferentes narrativas que provocam possíveis alterações na economia em diferentes escalas. Em sala de aula o professor poderá abordar assuntos relacionados ao Capitalismo e à sociedade de consumo, a relação da sociedade com a natureza, a agricultura familiar, e outros que contemplem indicadores de qualidade de vida nas cidades e em diferentes territórios.
O eixo temático “Sociedade de consumo e uso dos recursos naturais: das discussões locais as intervenções na política internacional” relaciona-se à Educação Financeira ao compreender a relação de consumismo e o aumento na geração de resíduos da sociedade e impacto sobre o ambiente do ponto de vista da sustentabilidade numa abordagem pluriescalar. Nessa toada, o uso de um questionário a ser aplicado no ambiente familiar dos estudantes ou no local onde vivem poderia levá-los a refletir acerca de possíveis aquisições supérfluas e o quanto isso afeta a organização financeira familiar e o meio ambiente, com impacto a uma escala global.
O eixo temático “Os lugares vividos e o processo de globalização: do sujeito do lugar a cidadania mundial e planetária” pode levar o estudante a compreender que a globalização impulsiona o crescimento econômico e permite a produção em massa de bens e a sua circulação a uma escala global, o que leva a um aumento na oferta e na variedade de produtos disponíveis para os consumidores. Com isso, o professor deve conduzir o estudante na interpretação de como os lugares vividos têm experimentado mudanças significativas em diversos aspectos e como as atividades econômicas em um lugar podem ser afetadas por eventos que ocorrem em outros lugares distantes. Como é o caso de uma crise financeira em um país, que pode ter repercussões em escala global.
Em “Linguagem da tecnologia e as interpretações do mundo”, o estudante perceberá como as redes sociais têm influenciado no aumento do consumo de produtos supérfluos e identificará os mecanismos utilizados pelas redes sociais que aumentam a venda de produtos. Analisar e avaliar os impactos das tecnologias no cotidiano da sociedade atual, bem como as intervenções nas decisões econômicas e ambientais, contribuirá para o desenvolvimento do pensamento crítico com liberdade de reflexão, na busca da tomada das melhores decisões para gerar mudanças na sociedade.
Tais eixos temáticos representam a estrutura dos conceitos geográficos e as habilidades a serem trabalhadas em sala de aula. É importante destacar que o documento oficial da BNCC não contempla os eixos temáticos da Educação Financeira. Por se tratar de um tema transversal, a temática deve ser contemplada “em habilidades dos componentes curriculares, cabendo aos sistemas de ensino e escolas, de acordo com suas especificidades, tratá-las de forma contextualizada” (BNCC, 2018, p. 20).
As estratégias pedagógicas, que visam associar as diretrizes da Educação Financeira de forma transversal, proporcionam maior conhecimento e experiência aos estudantes, entretanto, este processo não deve comprometer as habilidades sobre o ensino da Geografia, pelo contrário, deve agregar conhecimento sobre os temas que também fazem parte do cotidiano do discente. Alro e Skovsmose (2007), professores da Universidade de Aalborg, na Dinamarca, pesquisam os processos dialógicos de aprendizagem matemática. Sobre a educação financeira nas escolas os autores dispõem:
[...] vejo que são áreas que a gente pode partir, que a gente pode propor uma reflexão, mas realmente a gente precisa de outras pessoas, de outros profissionais pra conseguir fazer um diálogo mais profundo, porque a gente não tem essa bagagem toda. Então, eu acho que a escola é um lugar disso, é um lugar de fazer parcerias, talvez com o professor de História e Geografia que tem essa formação nas humanas, eles podem nos dar esse subsídio de falar de PIB [Produto Interno Bruto], de falar de inflação, que às vezes a gente não tem essa base. Então eu acho que pra Educação Básica, pra realmente essa Educação Financeira ser um pouco mais, é, acho que completa, digamos assim, um pouco mais ampla, mais aprofundada, acho que precisa ser interdisciplinar, precisa ter parcerias, e de projetos talvez mais longos, não em aulas isoladas, mas em projetos que movimentem salas de aulas diferentes. (p. 2)
Para os autores, a parceria com os professores do componente curricular de Geografia pode tornar a aprendizagem mais ampla. Tal afirmativa se justifica por ser a Geografia uma ciência capaz de interpretar e compreender as relações socioeconômicas que influenciam na qualidade de vida da sociedade.
Ao destacar a importância dos fundamentos que fazem parte na formação cidadã do estudante no campo da Educação Financeira, faz-se necessário introduzir reflexões sobre fatores decorrentes do cotidiano (Alro & Skovsmose, 2007). Os fatores de formação humana, como: senso crítico, socialização, consciência de classe, economicidade, dentre outros, podem possibilitar aos estudantes condições que ensejam a criticidade sobre os temas sensíveis à sociedade contemporânea. Para Hartmann e Maltempi (2021):
Discutir Educação Financeira relacionada à distribuição de riquezas e suas consequências, com olhar ao contexto social e democrático, torna-se mais necessário no contexto atual, com as desigualdades expostas pela pandemia Covid-19, como no aumento do número de desempregados, endividados e de pessoas na condição de pobreza no Brasil, além da alta taxa inflacionária de produtos da cesta básica. (p. 6)
Assim, o professor também pode assumir o papel de agente transformador, participando ativamente na edificação da unidade educacional, e do desenvolvimento social, por meio dos temas contemporâneos transversais propostos na BNCC. O conhecimento e a experiência vivida e compartilhada acerca do assunto a ser abordado, se torna fator relevante, que contribui para a promoção da formação crítica do estudante. O compartilhamento de vivências pode ser interpretado como a funcionalidade do trabalho proposto pela BNCC.
Sobre a formação do professor para atuar com as questões relacionadas à Educação Financeira, a OCDE (2005) dispõe que “para os programas que demandam o uso de salas de aula, deve-se promover treinamento e capacitação dos educadores ” (p. 7, tradução nossa). Assim, a elaboração de políticas públicas com programas que possibilitem a aprendizagem dos educadores por meio de materiais, ferramentas e/ou informações específicas se tornam necessárias para a garantia da qualidade no processo de ensino e aprendizagem da educação financeira.
De forma multidisciplinar, a Geografia pode ser capaz de organizar ações pedagógicas que envolvam vários componentes curriculares. O docente da Geografia poderia, por exemplo, desenvolver um trabalho com o tema contemporâneo transversal da educação financeira com os componentes de Matemática, História e Física e Língua Portuguesa, sendo escolhido para o trabalho o eixo temático Mutações do Mundo Natural, pertencente ao tópico Fontes de Energias, da BNCC.
A Geografia seria responsável por explorar as fontes de energias renováveis e não renováveis, bem como os seus custos operacionais que impactam no valor da conta mensal do consumidor final. A Matemática contribuiria com a tabulação e análise dos dados coletados. A Física explicaria sobre a forma de geração de energia, das mais variadas formas, o que reforçaria o custo operacional da geração. Já a disciplina de Língua Portuguesa seria responsável pela elaboração do relatório final e apresentação.
No exemplo, por meio da transversalidade, cinco componentes curriculares podem contribuir com o tema contemporâneo transversal da educação financeira. Cada docente, com sua consciência econômica e a teoria proposta no componente curricular que ministra, pode produzir diretrizes para o consumo sustentável do estudante. Este, por sua vez, propagaria em seu meio familiar e social os conhecimentos construídos na escola.
O ensino da Geografia propõe uma reflexão sobre a relação do indivíduo com o seu espaço, ao longo do tempo. Quando voltado para a formação consciente, crítica e sustentável do estudante, pode ampliar sua contribuição na formação cidadã, agregando valor e sentido nas habilidades a serem consolidadas.
Considerações finais
Com o objetivo de refletir acerca da relação do indivíduo com o seu espaço, com as relações de consumo e com o planejamento financeiro, por meio do trabalho transversal da educação financeira no ensino da geografia, em escolas de ensino médio, esta pesquisa apresentou uma discussão teórica sobre a prática da educação financeira no ensino da Geografia e as reverberações que podem gerar à sociedade. Para tal, abordou a educação financeira como Tema Contemporâneo Transversal, os caminhos que o referido tema percorreu até se tornar realidade nas escolas brasileiras, bem como os conceitos adotados por instituições e pelos teóricos.
Nesse contexto, vislumbramos as mudanças ocorridas na sociedade, nos últimos anos, sendo possível destacar que, com a chegada da pandemia da COVID-19, a partir de 2020, ficou evidente a importância do planejamento financeiro familiar e como sua falta cria um cenário obscuro sobre a projeção de gastos e receitas das famílias, impedindo um panorama detalhado da situação econômica no lar. Segundo o relatório de inflação brasileira, apresentado pelo Banco Central, “a inflação ao consumidor continua persistente e elevada. A alta dos preços surpreendeu mais uma vez no trimestre encerrado em novembro 2021” (Banco Central do Brasil, 2021, p. 7).
Ao trabalhar nas aulas de Geografia com conteúdos, tais como: o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a Renda Per Capita e o Produto Interno Bruto (PIB), é possível construir uma reflexão sobre estes elementos e como eles impactam na qualidade de vida dos estudantes. Nesse sentido, a compreensão dos indicadores socioeconômicos serve como uma ferramenta adicional para o desenvolvimento das habilidades da educação financeira, propondo uma reflexão da teoria e da prática em um contexto pedagógico viável, favorecendo debates construtivos sobre a sociedade e o espaço em que o discente está inserido.
O conhecimento e o controle acerca dos gastos possibilita o equilíbrio das contas e a visão crítica para que o indivíduo priorize a aquisição do que é necessário para o bem-estar familiar. Assim sendo, a BNCC (2018) dispõe que cabe aos sistemas, bem como às instituições de ensino, dentro do que lhe compete, “incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora” (p. 17), sendo que a educação financeira compõe a relação dos temas previstos.
Nesta abordagem, o papel do professor mediador se destaca, pois, somado a políticas públicas que visem contribuir para a prática da educação financeira na sala de aula, poderiam surgir novas possibilidades de resolução dos problemas em uma sociedade que está em constante movimento e sob o estímulo de diferentes fatores.
É preciso entender que existem engodos que vão além da possibilidade de conhecer sobre Educação Financeira para resolver os problemas, afinal, existem questões sociais estruturantes, que de uma forma ou outra reproduzem a não consciência econômica e financeira. Não podemos ser ingênuos, imaginando que, ao trabalhar a Educação Financeira na escola, resolveremos os problemas econômicos, mas podemos dizer que muitos serão atenuados (vivemos sob um sistema cruel).
Assim, não temos a pretensão de apresentar soluções concretas ou minimizar o trabalho já realizado pelos docentes na formação dos estudantes, mas sim de contribuir para a reflexão e discussão sobre a prática da educação financeira no ensino da geografia e as reverberações que podem gerar à sociedade, no intuito de compreender os impasses e considerar a educação na formação geral do estudante.