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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES vol.44  Lisboa jun. 2022  Epub 15-Jun-2022

https://doi.org/10.15847/cct.25700 

ARTIGO ORIGINAL

Das intersecções formais às distensões funcionais: operações urbanas e a financeirização na periferia do capitalismo

Between formal intersections and functional distensions: urban operations and financialization on the periphery of capitalism

Paulo Nascimento Neto1 
http://orcid.org/0000-0002-8518-9978

Tomás Antonio Moreira2 

1Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Brasil. E-mail: paulo.neto@pucpr.br

2Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Brasil. E-mail: tomas.moreira@sc.usp.br


Resumo

A financeirização tem sido intensamente discutida ao longo das últimas décadas, a partir de diversas áreas do conhecimento e desde diferentes prismas epistemológicos. Para o campo de estudos urbanos, as discussões apontam para um conjunto de reflexões sobre a transformação das políticas urbanas, com crescente dominância de atores financeiros, práticas e narrativas de mercado. Neste contexto, instrumentos de financeirização são, por vezes, implementados em contextos não financeirizados, sobretudo em países da periferia do capitalismo. Dentre estes instrumentos, a Operação Urbana Consorciada (OUC) se destaca no caso brasileiro, sobretudo a partir da utilização conjunta de CEPACs, títulos mobiliários que possibilitam a comercialização de direitos adicionais de construção diretamente na Bolsa de Valores. Apesar de um conhecimento mais alargado das OUCs em São Paulo e Rio de Janeiro, pouco se estudou até ao momento sobre a OUC Linha Verde. Tal operação urbana, em implementação há dez anos no município de Curitiba, figura como caso de referência a ser investigado. Em que medida a incorporação de um mecanismo altamente financeirizado de captação de recursos contribuiu para a transformação urbana pretendida? Os resultados obtidos apontam para uma problemática tentativa de incorporação no cenário local de planejamento urbano, apontando para aspectos pouco abordados do truncado processo de financeirização das políticas urbanas no Brasil.

Palavras-chave: financeirização; operação urbana consorciada; Curitiba; CEPAC; grandes projetos urbanos

Abstract

Financialization has been intensely discussed over the last decades, from different areas of knowledge and from different epistemological points of view. For the field of urban studies, the discussions point to a set of reflections on the transformation of urban policies, with increasing dominance of financial actors, market practices and narratives. In this context, financialization instruments are sometimes implemented in non-financialized contexts, especially in countries on the periphery of capitalism. Among these instruments, the Urban Partnership Operations (UPO) stands out in the Brazilian case, especially through the joint use of CEPACs, securities that make it possible to sell additional construction rights directly on the Stock Exchange. Despite a broader knowledge of the UPOs in São Paulo and Rio de Janeiro, little has been studied so far on the UPO Linha Verde, which has been underway for ten years in Curitiba, and appears as a reference case to be investigated. To what extent has the incorporation of a highly financialized fundraising mechanism contributed to the intended urban transformation? The findings point to a failed attempt to appropriate the instrument in the local scenario of urban planning, encouraging less-considered variables of the truncated process of financialization of urban policies in Brazil to be stressed.

Keywords: financialization; urban partnership operations; Curitiba; CEPAC; Large Urban Projects

Introdução

O tema da financeirização tem sido intensamente discutido ao longo das últimas décadas, a partir de diversas áreas do conhecimento e desde diferentes prismas ontológicos e epistemológicos. Ainda que se possa divergir sobre suas acepções conceituais de partida (Lapavitsas, 2009; Christophers, 2015), particularmente para o campo de estudos urbanos, as discussões apontam para um conjunto alargado de reflexões sobre a transformação das políticas urbanas, caracterizada pela crescente dominância de atores financeiros, práticas e narrativas de mercado em várias escalas, fomentando uma transformação estrutural das empresas, instituições financeiras, Estados e da própria política (Nascimento Neto et al, 2012; Rolnik, 2015; Crosby & Henneberry, 2015; Büdenbender & Aalbers, 2019; Aalbers, 2019; Launius & Kear, 2019).

A adoção generalizada de discursos e formulações de políticas de orientação neoliberal se relaciona a um processo mundial mais amplo de transformação diacrônica de políticas e instituições, com reflexos sobre as formas de governança e desenvolvimento urbano (Peck, Theodore & Brenner, 2013; Bryan, Rafferty, 2014) envolvendo também ajustes nas práticas e instrumentos do Estado, com vista a promover a transformação de “produtos urbanos” em ativos financeiros (Weber, 2010; Aalbers, 2020).

Neste contexto, investigar as múltiplas faces da financeirização nas políticas urbanas e de seus desdobramentos no espaço construído constitui fronteira importante de pesquisa (Sanfelici, 2013; Nascimento Neto, Arreortua, 2020), contribuindo para a descodificação da “caixa preta das finanças” (Klink & Stroher, 2017). Os nexos entre contextos locais e circuitos financeiros globais, ainda que matizados por particularidades dos governos locais (Weber, 2010), levam, em última instância, à conversão da terra urbana em “ativos (quasi)financeiros” (Aalbers, 2020), operacionalizados a partir de um arcabouço regulatório e simbólico. A constituição sociotécnica destas modelagens de planejamento urbano financeirizado (Klink, Stroher, 2017), forjada na tensão entre local e global, entre a fluidez do capital financeiro e a materialidade da cidade e de seus instrumentos físico-territoriais nos afasta de leituras generalistas que achatem particularidades (Fernandez & Aalbers, 2020) e desconsiderem que, de facto, assumem-se formas específicas em cada contexto, seja em termos de quadros normativos nacionais, seja em termos de desenhos de políticas e projetos urbanos nas escalas subnacionais.

Ainda que Norte e Sul Global partilhem características comuns do fenômeno, elas não podem ser tratadas em um continuum. Os formatos dos arranjos técnico-legal-burocráticos, as condições de inserção no circuito financeiro global e os diferentes patamares de atratividade produzem experiências também substancialmente diversas. Práticas e instrumentos de financeirização são, por vezes, implementados em contextos não financeirizados (Fernandez & Aalbers, 2020), em um processo de incorporação gradual próprio dos regimes heterogêneos de acumulação que caracterizam a periferia do capitalismo (Pereira, 2017; Karwowski & Stockhammer, 2017; Goldman & Narayan 2021), na qual a financeirização, por vezes, ainda está sendo socialmente constituída (Klink, Stroher, 2017).

Em uma discussão crítica mais alargada sobre as relações Norte - Sul Global, Watson (2009) recorda que há uma tradição histórica a ser enfrentada, envolvendo a incorporação acrítica de modelos, processos e medidas regulatórias advindos dos contextos europeu e norte-americano, gerando um conflito de racionalidades nos planejadores urbanos locais, que se veem entre a lógica tradicional de controle e desenvolvimento (motivada pela noção de modernização) e a lógica da sobrevivência, que dialoga com as carências e desigualdades intrínsecas da trajetória local. Neste cenário, o conceito de financeirização periférica (Lapavitsas, 2009; Becker et al, 2010; Bonizzi & Powell, 2019) constitui chave teórica importante para analisar os fluxos de subordinação do capital financeiro e as narrativas e modelos que se impõe para sua consecução.

No contexto das economias emergentes, o Brasil ocupa posição de relevância pela criação e regulamentação gradual de uma série de instrumentos ao longo das três últimas décadas, o que tem permitido um aprofundamento dos processos de financeirização, com reflexos diretos sobre a política urbana e seus mecanismos fundamentais (Sanfelici, 2013). Entre estes instrumentos, a Operação Urbana Consorciada (OUC) se destaca como um dos instrumentos de maior relevo, possibilitando aos governos locais promover projetos de requalificação urbana num formato de parceria Público-Privada, na qual a aquisição de direitos adicionais de construção pelos promotores imobiliários permite, em tese, financiar as obras públicas planejadas a partir da recuperação de parte da mais-valia fundiária e imobiliária. Em levantamento recente, Hissa e Araujo (2017) identificaram vinte e cinco OUCs em curso no país, com diferentes escopos e abrangências.

Dentro do contexto da OUC, a regulamentação brasileira também criou a figura do Certificado de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), um título financeiro que pode ser livremente comercializado pela Bolsa de Valores até que seja efetivamente convertido em metros quadrados adicionais na área do projeto urbano. Para Aalbers (2020), o CEPAC constitui o elemento por excelência de manifestação da financeirização na política urbana no Brasil, impondo aos gestores urbanos e demais atores de mercado um léxico, uma racionalidade e um modus operandi. Atualmente no país há cinco Operações Urbanas em curso com oferta de CEPACs (B3, 2021), das quais três estão situadas na cidade de São Paulo (OUC Água Espraiada, OUC Faria Lima e OUC Água Branca), uma na cidade do Rio de Janeiro (OUC Porto Maravilha) e uma na cidade de Curitiba (OUC Linha Verde).

Ao analisarmos o quadro urbano brasileiro em termos de hierarquia funcional, tanto órgãos de Estado (IBGE, 2018) quanto de pesquisa (OM, 2009) apontam para um descolamento das metrópoles de São Paulo e Rio de Janeiro das demais metrópoles nacionais, notadamente por sua escala de concentração de pessoas, atividades e serviços. Esse descolamento também se evidencia ao analisarmos a correlação entre população e PIB por município (figura 1).

Fonte: elaboração própria a partir de dados do IBGE (2015).

Figura 1 Gráfico de dispersão entre população e PIB em escala logarítmica dos 5.570 municípios brasileiros 

Assim, em certa medida, podemos compreender as experiências brasileiras de realização de Operações Urbanas com CEPACs desde suas escalas: (i) aquelas realizadas nas metrópoles globais de São Paulo e Rio de Janeiro e (i) aquela realizada em uma metrópole nacional de menor porte (Curitiba). Para o primeiro grupo, já dispomos de um conjunto significativo de estudos, que apontam para questionáveis resultados em termos de maximização da captura de mais-valia fundiária, apesar da ampla absorção dos CEPACs pelo mercado. Os relatos evidenciam projetos controversos e permeados de externalidades, fortalecendo, em última instância, processos de gentrificação e remoção de assentamentos populares informais, com parcas contrapartidas em habitação de interesse social (ver, por exemplo, Pessoa & Bogus, 2008; Nobre, 2009; Alvim et al, 2011; Fix, 2011; Neto & Antonio-Moreira, 2013; Cardoso, 2013; Klink & Stroher, 2017; Barbosa et al, 2019; Santos Jr et al, 2020).

A respeito das pesquisas na primeira escala, verifica-se uma carência de estudos sobre a Operação Urbana da Linha Verde (OUC-LV), em curso na cidade de Curitiba (PR) e que, após dez anos de existência, passa a figurar como um caso importante a ser investigado, contribuindo com a compreensão da capilaridade do modelo brasileiro de financeirização de transformação urbana para outras regiões do país. Em que medida a incorporação de uma alternativa altamente financeirizada de captação de recursos contribuiu para a transformação urbana pretendida? Quais os resultados alcançados após uma década de criação?

A partir destas questões norteadoras, temos como objetivo explorar facetas ainda não abordadas do truncado processo de financeirização das políticas urbanas no Brasil, analisando em profundidade o caso curitibano de assimilação do modelo. Para isto, quatro seções sucedem esta introdução. Inicialmente apresenta-se uma sintética revisão de literatura sobre os CEPACs e sua conexão com a financeirização de políticas urbanas, estabelecendo a base de discussão para a análise do objeto empírico. Na segunda secção descreve-se o desenho metodológico da pesquisa, suas variáveis analíticas e procedimentos de coleta, tratamento e análise de dados. A terceira secção analisa os resultados alcançados pela OUC - Linha Verde em termos de transformação urbana e eficiência na captação de recursos. Por fim, discutem-se os processos contemporâneos da financeirização periférica no Brasil à luz do caso estudado, delineando contribuições para a agenda de pesquisa sobre o tema na periferia do capitalismo.

CEPACs: subsídios de discussão do caso brasileiro

Estabelecer o CEPAC como elemento privilegiado de discussão da financeirização na política urbana no Brasil impõe a necessidade de posicioná-lo em um contexto, tanto em termos do ambiente técnico-legal quanto da discussão teórico-conceitual que a antecede. Em outras palavras, ainda que ele seja o ponto de partida desta seção, constitui, de facto, o ponto de chegada da discussão. Partimos, assim, de um conjunto acumulado de reflexões sobre o ajuste estrutural ocorrido nas décadas de 1980 e 1990 (Arantes, 2000), com reposicionamento1 do poder público na promoção do desenvolvimento urbano (Arantes, 2004; Sanchez, 2004; Sanfelici, 2013), tendo o “empresariamento” e o marketing urbano como características fundamentais (Harvey, 2005) e os Grandes Projetos Urbanos (GPU) como mecanismos tangíveis (Swyngedouw, Moulaert & Rodríguez, 2002). As Parcerias Público-Privadas passam a ser celebradas como a “solução mágica” (Fix, 2004), os arranjos de regulação urbanística são reorientados para propiciar maior atratividade de investimentos privados (Sanfelici, 2013) e o “planejamento por projeto” impõe-se como solução magnânima (Sánchez, 2004).

No centro deste processo, destaca-se no contexto brasileiro a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/2001), marco nacional da política urbana que estabelece os princípios, mecanismos e instrumentos para o cumprimento da função social da propriedade, tendo a gestão democrática como valor fundamental e o Plano Diretor como instrumento básico de planejamento. A lei também regulamenta uma série de instrumentos urbanísticos que compõe o que diversos autores têm denominado, de forma alusiva, como a “caixa de ferramentas” - um conjunto de possibilidades passíveis de serem implementadas localmente de acordo com as diretrizes estabelecidas no respectivo Plano Diretor.

Entre os instrumentos previstos, a Operação Urbana Consorciada (OUC) tem-se destacado desde a sua criação pelas controvérsias envolvidas no próprio modelo de desenvolvimento (Neto & Antonio-Moreira, 2013), sendo qualificada como “o mais polêmico dos instrumentos” (Santoro & Cymbalista, 2008), uma expressão sintomática da “atração da elite brasileira pelo dernier cri do planejamento europeu” (Maricato e Ferreira, 2002), mimetizando soluções de forma acrítica.

De forma sintética, podemos defini-lo como um instrumento de redesenho de determinada parcela do território urbano, envolvendo a mudança de parâmetros e índices urbanísticos, articulando investimentos públicos e privados com vistas à consecução de um plano urbanístico. Os recursos privados advêm da cobrança de contrapartida financeira para a utilização de direitos de construção superiores aos parâmetros básicos que, no Brasil, recebem a denominação de Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC). Busca-se, assim, capturar parte da mais-valia imobiliária e fundiária decorrentes dos investimentos públicos. Estes valores devem ser direcionados para uma conta específica e ser utilizados exclusivamente para as intervenções definidas para o perímetro estabelecido em lei.

Ainda que a utilização de Operações Urbanas remonte à experiência pioneira do município de São Paulo na década de 1990 (Sepe & Pereira, 2011), a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001 garantiu maior segurança jurídica para sua aplicação pelos governos locais. Entre os aspetos normatizados, a lei previu a figura dos Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC). Regulamentados pelos artigos 32 a 34 do Estatuto da Cidade, os CEPACs constituem títulos mobiliários, emitidos pelo município e com uma relação de equivalência por metro quadrado, de acordo com índices estabelecidos pela lei de criação da OUC. Estes títulos são vendidos em leilões públicos na Bolsa de Valores, funcionando como meio de comercialização de contrapartida relativa à outorga onerosa do direito de construir.

Por meio do leilão de títulos no mercado financeiro, o poder público pode arrecadar os valores de forma antecipada2, alavancando investimentos públicos num intervalo de tempo menor. Sua operacionalização é regida pela Instrução Normativa n. 401/2003 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão responsável por normatizar e fiscalizar o mercado de valores mobiliários no Brasil, e a oferta em leilão público é realizada pela B3, Bolsa de Valores do país.

Parte da literatura advoga favoravelmente ao instrumento, interpretando-o como o “mais original e efetivo instrumento” de mobilização do incremento do valor da terra em projetos urbanos (Smolka, 2013), separando temporalmente a compensação econômica da realização dos empreendimentos (Sandroni, 2010), possibilitando que o poder público implemente as obras pretendidas sem a criação de dívida pública ou oneração do orçamento geral, liberando-o para outras finalidades como educação ou saúde (Afonso, 2004; Biderman et al, 2006; Sandroni, 2010).

O modelo beneficiaria da competição alavancada naturalmente pelo formato de leilão. Ademais, haveria uma tendência de formação de um circuito secundário de comercialização dos títulos, envolvendo a negociação entre investidores e entre estes e promotores imobiliários. Em tese, esta dinâmica levaria a um ambiente competitivo, à elevação do valor dos títulos e, consequentemente, à majoração dos valores captados em ofertas futuras.

Contudo, a análise da OUC Água Espraiada (SP) realizada por Klink e Stroher (2017) evidencia a insuficiência do mercado secundário de CEPAC, com pouca atividade e composta essencialmente de usuários com menor volume de títulos requisitados , usualmente relacionados à projetos específicos em aprovação nos períodos entre leilões públicos. Ademais, mesmo que isto se efetivasse, estar-se-ia estimulando um processo especulativo de negociação que extrapolaria o mercado financeiro, com implicações no preço da terra já que, por corolário lógico, um aumento nos custos de Outorga Onerosa levaria à elevação do custo global dos empreendimentos. Com isso, não se pretende desconsiderar as possibilidades de captura de mais-valia pelo Estado, mas evidenciar que este instrumento, per se, é insuficiente para produzir uma transformação urbana alinhada aos princípios fundamentais do Estatuto da Cidade.

Corre-se o risco de conformar um mecanismo de captura de mais-valia pelos detentores dos títulos (Fix, 2009) com pouca ou nenhuma capacidade de reconversão dos recursos. Há, de facto, um entendimento maioritário na literatura sobre as tensões e contradições decorrentes desta mediação global-local e suas repercussões sobre o espaço construído (Sanfelici, 2013), com prevalência de resultados financeiros em comparação aos benefícios para as comunidades locais (Aalbers, 2002), explicitando uma constituição social truncada da financeirização (Klink & Stroher 2017) no Sul Global. Estes fluxos de financeirização subordinada apontam para o aprofundamento das hierarquias econômicas globais (Budenbender & Aalbers, 2019), envolvendo, simultaneamente, a saída dos lucros em direção aos espaços centrais do capital e a exposição dos espaços periféricos aos riscos e normas dos mercados financeiros. Assim, alcançamos novamente o ponto de partida desta secção, posicionando a figura do CEPAC enquanto elemento privilegiado de discussão dos processos de financeirização da política urbana no Brasil, a partir do qual se mostra pertinente a investigação do caso da Operação Urbana Linha Verde, em curso na cidade de Curitiba (PR).

Desenho metodológico

Diante do objetivo estabelecido, a abordagem qualitativa interpretativista mostra-se adequada, tendo em vista que se deseja compreender o fenômeno pesquisado dentro de seu contexto. Adotou-se como estratégia de pesquisa o estudo de caso qualitativo (Stake, 2005), cuja investigação, ainda que profundamente relacionada ao contexto específico em que se insere, também possui o objetivo de contribuir de forma mais ampla para o debate.

A escolha do caso de estudo deu-se de forma não probabilística e intencional. Esta decisão encontra fundamentos em Stake (2005) e Yin (2005), para quem a seleção do caso não exige o estabelecimento de amostras estatísticas, tendo em vista que o que se busca é uma generalização analítica, e não estatística. Neste sentido, a Operação Urbana Consorciada da Linha Verde é emblemática por ser o único caso brasileiro de utilização de CEPACs, já em operação, que ocorre fora do eixo Rio - São Paulo e com temporalidade suficiente para permitir a sua análise (quadro 1).

Quadro 1 OUCs com oferta de CEPACs realizadas 

Fonte: autor, com base em dados da B3 (2021). Nota: ¹Dados até maio de 2021 / ² Considerando a aquisição integral da oferta pública da FII Porto Maravilha em 2011 pela Caixa Econômica Federal / ³ Apenas foram listadas as OUCs que obtiveram aprovação da CVM e, por conseguinte, concretizaram ofertas públicas de CEPACs.

De forma a construir suporte empírico consistente para investigar a questão-problema estabelecida neste trabalho, o protocolo de pesquisa foi estruturado a partir de três categoriais analíticas centrais, que dialogam com a literatura anteriormente abordada e permitem abarcar os principais desdobramentos da adoção de CEPACs em grandes projetos urbanos no Brasil. A pesquisa de campo organiza-se para investigar a (suposta) otimização na captação de recursos privados, o (capacidade de) financiamento de obras urbanas e (o potencial de) transformações do espaço construído. A figura 2 apresenta o diagrama conceptual da pesquisa empírica, articulando categorias, questões norteadoras e respetivas variáveis.

Fonte: elaboração própria.

Figura 2 Diagrama conceptual da pesquisa empírica 

A coleta de dados para o estudo de caso envolveu pesquisa bibliográfica e documental, organizada a partir dos direcionamentos interrogativos e variáveis indicadas na figura 2. Os documentos foram organizados em cinco tipologias, elencadas abaixo (quadro 2) e discriminadas em detalhes no Apêndice 1, a partir dos quais se delimita o corpus de análise desta pesquisa.

Quadro 2 Tipologias de documentos 

Tipo Descritor Sigla
1 Legislação correlata LEG-C
2 Prospectos de Oferta Pública PROSP
3 Relatórios Trimestrais de prestação de contas à CVM REL-T
4 Relatórios Municipais de Licenciamento e Correlatos REL-M
5 Dados espaciais georreferenciadas GEO-R

Fonte: elaboração própria.

Os documentos do tipo LEG-C, PROSP e REL-T foram obtidos a partir dos portais eletrônicos do município de Curitiba e da Bolsa de Valores (B3), possibilitando a compreensão do processo de institucionalização da Operação Urbana, a ocupação projetada, a cronologia e desempenho das ofertas públicas de CEPACs e de suas interfaces com as obras públicas previstas. Os documentos do tipo REL-M englobam os relatórios de alvarás de construção expedidos no município e de Valor da Terra, individualizados por lote e ano. Trata-se de grandes bases de dados (308.638 lotes e 40.495 registros de alvarás), que foram exportadas, filtradas e tratadas de forma a responder às variáveis estabelecidas. Por fim, nos documentos do tipo GEO-R estão reunidos os arquivos digitais georreferenciados em formato shapefile, disponibilizados pelo órgão de planeamento local (IPPUC) e que nos permitiram posicionar os dados no espaço e compreender os resultados de forma espacializada.

O recorte temporal privilegiado para a pesquisa engloba o intervalo entre os anos de 2012, quando se inicia a OUC-LV, e o ano de 2021, no qual se redige este trabalho. Para garantir um patamar mais robusto de comparação com a literatura internacional, os valores monetários analisados foram convertidos para dólares americanos. De forma a evitar distorções em face da desvalorização substancial da moeda brasileira ao longo do período estudado, adotou-se a taxa de câmbio média anual (R$ - US$) conforme dados oficiais do Banco Central do Brasil (quadro 3).

Quadro 3 Taxa de Câmbio média anual entre a moeda brasileira (real) e o dólar americano (US$) 

Ano Fator de câmbio R$ / US$ Ano Fator de câmbio R$ / US$
2012 1,955 2017 3,1925
2013 2,1605 2018 3,6558
2014 2,3547 2019 3,9461
2015 3,3387 2020 5,1578
2016 3,4833 2021 5,3956

Fonte: Banco Central do Brasil (2022).

A partir do Banco de Dados resultante promove-se a discussão do caso estudado, explorando as facetas ainda não abordadas do truncado processo de financeirização das políticas urbanas no Brasil e analisando em profundidade o caso curitibano de assimilação do modelo. Para tanto, a OUC-LV é contextualizada na seção seguinte para, na sequência, serem discutidos os resultados do estudo de caso.

OUC Linha Verde: contexto e trajetória histórica de (con)formação

Com uma população estimada em 1.948.626 de pessoas (IBGE, 2021), o município de Curitiba destaca-se no cenário internacional pelo seu modelo de planeamento urbano concebido, ainda na década de 1960, e pela implantação pioneira do sistema de Bus Rapid Transit (BRT), objetos de uma série de prémios. O município também se destaca por integrar o grupo das doze metrópoles brasileiras (Firkowski, 2013), configurando-se como polo da respetiva região metropolitana, com 29 municípios, 3.693.817 habitantes e grau de urbanização de 82,21% (IBGE, 20213).

No cartograma abaixo (figura 3) o município de Curitiba é contextualizado em sua escala metropolitana, estadual e nacional. Também se pode identificar o Eixo Viário da Linha Verde, nomenclatura dada para o trecho da Rodovia BR 476 que corta a área urbana de Curitiba. Este é um dos principais eixos rodoviários do país, realizando a ligação no sentido Norte - Sul por certa de quatro mil quilômetros de extensão. Seu papel na estrutura urbana de Curitiba adquire maior relevo a partir da década de 1980, com a expansão da mancha urbana para o compartimento leste do município, gerando uma série de conflitos viários entre o tráfego urbano e a intensa circulação rodoviária (Souza, 2001). A primeira intervenção inicia-se com a construção de uma via perimetral (Contorno Leste) a partir de 1997, desviando o fluxo de veículos de carga e, por conseguinte, alterando a função da via no quadro urbano do município.

Fonte: elaboração própria a partir de dados do IBGE (2021).

Figura 3 Cartograma de localização do município de Curitiba e do Eixo Viário da Linha Verde 

Também na década de 1990 o eixo viário se torna objeto de sucessivos projetos públicos, com destaque para o projeto BR-Cidade, desenvolvido em 1996 e que, pela primeira vez, estabelece a meta de transformar a rodovia federal em “uma avenida de integração” (PROSP_3). Estabelece-se, assim, o marco inicial de conversão do eixo rodoviário em via urbana, a partir do qual se propõem também mudanças da ocupação limítrofe, até então caracterizada por grandes barracões, para a qual se pretendia a conversão em um “novo eixo de adensamento, nos mesmos moldes dos Setores Estruturais” (PROSP_3).

O modelo adotado para transformação do uso do solo seguiu a cartilha tradicional de planeamento urbano, organizando-se a partir da alteração dos parâmetros na lei de Zoneamento de Uso e Ocupação do Solo no ano 2000 (LEG-C_03). No mesmo período, é desenvolvido um grande projeto de intervenção na via (STAC), que seria financiado pelo Banco Japonês de Cooperação Internacional (IPPUC, 1999). Problemas nos acordos levaram à revisão do projeto com vista à captação de outras fontes de financiamento, culminando no Projeto Linha Verde, calcado no mesmo modelo de BRT que consagrou a cidade no cenário internacional e que contaria com apoio financeiro do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (PROSP_3).

É interessante observar tanto a habilidade do órgão local de planeamento em dialogar com diferentes agências multilaterais, como a habilidade de ajustar a proposta de forma a garantir aderência às políticas e diretrizes de cada agência. Neste sentido, a própria alteração do nome para Linha Verde revela, em certa medida, o Zeitgeist vigente e o alinhamento à cartilha do BID e AFD.

A partir dos recursos obtidos junto ao BID (R$ 160,9 milhões), o trecho sul da Linha Verde (9,4 km) foi executado entre os anos de 20074 e 2009 e sua continuidade, denominada de Extremo Sul (3 km), foi viabilizada em 2010 a partir de recursos oriundo do PAC da Copa (R$ 61 milhões), programa do Governo Federal destinado a apoiar projetos de infraestrutura vinculados ao megaevento em 2014 (Neto & Antonio-Moreira, 2013). Alterações posteriores do zoneamento, realizadas em 2008 (LEG-C_05), contribuíram para alavancar a dinâmica imobiliária da área limítrofe, que conforme descrito por Rios (2009), registrou uma subida de até 70% no custo do metro quadrado. A partir das fotos abaixo (figura 4) pode-se visualizar a transformação operada no eixo viário, com destaque para o compartimento urbano sul.

Fonte: IPPUC (1999) e Rios (2009), respetivamente.

Figura 4 Vista aérea do Eixo da Linha Verde na década de 1990 e após a conclusão do trecho Sul, em 2009 

Nesta mesma janela temporal, a prefeitura obtém um financiamento de aproximadamente R$ 87 milhões junto à Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) para a execução do trecho norte (8 km), numa obra com custo estimado à época de R$ 198 milhões e para o qual não se tinha expectativa de outra fonte de financiamento (Neto & Antonio-Moreira, 2013).

É este o contexto de partida da criação da Operação Urbana Consorciada da Linha Verde (OUC-LV), que já figurava como alternativa desde sua regulamentação na revisão do Plano Diretor Municipal, em 2004 (LEG-C_04). Não há registros escritos ou pesquisas que explicitem os motivos precisos de sua formulação particularmente no ano de 2011, permitindo-se questionar em que momento e por qual motivo ocorre a viragem do financiamento urbano local em direção a uma alternativa significativamente mais financeirizada. O registro de entrevistas da época sugere uma súbita priorização deste modelo, uma “equipe restrita” e uma forma concertada com o mercado.

O presidente do Ippuc, Cléver de Almeida, afirmou que um grupo de técnicos do Instituto terá dedicação diária à Operação Urbana após a aprovação da lei. “Estamos expandindo o assunto para todos no Instituto. No início, a definição da Operação Urbana foi feita por uma equipe restrita de pessoas” (PMC, 2011, s.p, sublinhado nosso).

O presidente da ACP, Edson José Ramon, disse que “o projeto trará estímulos aos empresários e ajudará a integrar o eixo norte-sul da cidade”. Ramon lembrou que o prefeito Luciano Ducci já havia adiantado que a operação conveniada seria uma das principais obras da cidade, rendendo, inclusive, repercussão nacional e internacional à capital (ACP, 2011, s.p., sublinhado nosso).

Na mesma linha de questionamentos, ao analisarmos o processo de tramitação é possível observar uma agilidade incomum: o projeto de lei é encaminhado à Câmara de Vereadores em 18 outubro de 2011, aprovada por votação simbólica em 16 de dezembro do mesmo ano e sancionada pelo prefeito após três dias, dando origem a Lei nº 13.909/2011. A norma passa por algumas revisões pontuais em 2015 (LEG-C_07), mas mantendo configuração e parâmetros similares.

Formatada a partir da emissão de CEPACs, a OUC Linha Verde tem por objetivo captar recursos para complementação das obras de sistema viário e transporte, requalificação urbanística, oferta de espaços de uso público e regularização fundiária, promovendo a ocupação ordenada da região, o atendimento à população em situação de vulnerabilidade e a diversificação de usos (LEG-C_06, art. 3-4). Para tanto, o perímetro da operação urbana foi dividido em três setores (Norte, Central e Sul), por sua vez subdivididos em três subsetores, a saber: (1) Polos (Zona: Pólo-LV), onde se prevê ocupação de alta densidade, com verticalização e predominância de comércio e serviços; (2) Área Diretamente Beneficiada (Zona: SE-LV), referente ao eixo de adensamento ao longo da Linha Verde, entre os polos, onde se pretende ocupação de média e alta densidade, com predomínio de uso residencial com verticalização; e (3) Área Indiretamente Beneficiada (demais zonas), relacionando-se as demais áreas contempladas pela OU, nas quais se prevê uma amenização do impacto de uso e ocupação do solo, com média densidade, verticalização limitada e predomínio de uso residencial (Figura 5).

Fonte: elaboração própria a partir de dados de IPPUC (2021)

Figura 5 Perímetro da Operação Urbana Consorciada da Linha Verde e setores 

A compreensão do processo histórico de formação e implementação da OUC-LV constitui etapa importante da pesquisa empírica, a partir da qual se passa à discussão dos resultados segundo as três categorias analíticas estabelecidas, a saber: a (suposta) otimização na captação de recursos privados; a capacidade de financiamento de obras urbanas; e o potencial de transformações do espaço construído. Optou-se por discuti-las de forma conjunta na próxima seção, interrelacionando as variáveis de forma a potencializar o debate.

OUC Linha Verde: fluxos financeirizados de transformação urbana de Curitiba - PR

Tomamos como ponto de partida a compreensão dos fluxos de ofertas públicas, sua recetividade pelo mercado e os resultados captados pelo poder público. A OUC-LV previu uma oferta total de 4.475.000 m² de área adicional de construção, que seria convertida em 4.830.000 CEPACs, com valor de venda, em 2012, de US$ 102,30 (R$ 200,00) (LEG-C_06, art. 13 e 14).

Até ao momento foram realizadas nove ofertas públicas (REL-T_35), nas quais é possível perceber uma captação em volume muito inferior ao esperado, com venda média de 30% do ofertado, chegando a menos de 5% em alguns casos (figura 6). Diante desta série histórica é pouco crível acreditar em um mercado secundário de comercialização de CEPACs entre investidores, fragilizando um dos argumentos centrais dos defensores do instrumento, para quem este mercado secundário produziria a elevação do preço do título em um ambiente altamente especulativo. O que se observa, de facto, é o oposto: após alguma variação na 1ª. Distribuição, o valor mantém-se no patamar desde junho de 2016, em $ 96,46 (R$ 336,00) por CEPAC. Na realidade, frente à inflação acumulada no período e à depreciação da moeda no contexto financeiro internacional, a ausência de reajuste ao longo dos anos evidencia a sua desvalorização real (da ordem de -27,9% e -38,8%, respetivamente), conforme ilustrado na figura 6.

Fonte: elaboração própria a partir de REL-T_35.

Figura 6 CEPACs comercializados e valores pagos segundo oferta pública 

Figura 7 Valor do CEPAC entre ofertas (2016 - 2021) segundo variação nominal, corrigida pela inflação (IPCA) e pela taxa de câmbio 

Ora, se considerarmos que estes valores têm correspondência com os recursos financeiros esperados para o financiamento das obras públicas, esperar-se-ia atualização monetária e, idealmente, o reajuste de valores de forma a recompô-los não apenas frente à inflação, mas também considerando a valorização fundiária e imobiliária observada no período. Sem estas medidas, a recuperação de mais-valia é prejudicada e progressivamente reduzida em termos práticos. Ao empreendedor delineia-se o cenário ideal: a elevação do valor venal dos imóveis ao longo dos anos sem qualquer ajuste dos valores de outorga onerosa. Isto significa, em última análise, a ampliação direta de seu lucro.

Um outro aspecto importante envolve os custos envolvidos para a operacionalização da comercialização de CEPACs. A cada oferta pública, desconta-se do valor bruto arrecadado a remuneração do agente financeiro, os emolumentos e a taxa de liquidação que, juntos, totalizam 1,2628%. Ademais, exige-se a contratação de uma instituição intermediária, responsável pela escrituração dos títulos e uma instituição fiscalizadora, que deverá estar integrada ao sistema de distribuição registrada na CVM. Por fim, cada oferta pública exige o pagamento de taxa de fiscalização em favor da CVM com parcela de 0,64% do valor da oferta.

Ainda que haja algumas informações sem a discriminação necessária em alguns balancetes, impedindo uma precisão contábil, é pertinente analisar o patamar de valores absorvidos pela própria estrutura financeira de funcionamento da Operação Urbana. Dito de outra forma, , apenas para que fosse possível captar recursos via CEPAC e mobilizar os agentes financeiros, o município gastou mais de US$ 673 mil (R$ 3,63 milhões).

Quadro 4 Custos envolvidos na operacionalização das ofertas de CEPACs entre 2012 e 2021 

Categoria Valor (USD)
Taxas de Distribuição $ 387.182,87
Remuneração do BB-BI $ 124.955,42
Emolumentos $ 39.466,66
Taxa de Liquidação $ 610,54
CEF Serviços de Fiscalização $ 36.198,93
BB - Serv. De Escrituração $ 85.350,18
Total $ 673.764,61

Fonte: cálculos produzidos a partir dos documentos REL-T.

Ao descontar estes valores chega-se ao montante líquido arrecadado de $ 9,2 milhões entre 2012 e maio de 2021 (REL-T). A dúvida que se impõe é sobre a pertinência do montante despendido com custos operacionais: em que medida se justifica o gasto de quase R$ 4 milhões de reais para operacionalizar ofertas no mercado de bens mobiliários cujos resultados não sustentam a sua existência. Perante estes dados resta-nos compreender em que medida estes valores se convertem em obras públicas e como promovem a transformação projetada. Para tal foram consolidados os valores advindos das prestações de contas trimestrais (REL-T), a partir dos quais se observou a pequena contribuição dos CEPACs na consecução dos contratos firmados que, sublinhe-se, já constavam desde a constituição formal da OUC-LV (quadro 5).

Quadro 5 Obras em desenvolvimento no âmbito da OUC-LV segundo valores pagos até o momento 

Intervenção # Descrição Lote %
Intervenção 1 Extensão da Linha Verde Norte Lote 3.1
Valor proveniente de outras fontes (PMC + PAC Mob. + AFD) $ 8.449.457,90 85,7%
Valor proveniente da OUC-LV $ 1.406.012,65 14,3%
Total pago até o momento $ 9.855.470,55
Intervenção 2 Trincheiras Verdes Lote 3.2
Valor proveniente de outras fontes (PMC + AFD) $ 4.054.378,56 82,4%
Valor proveniente da OUC-LV $ 866.438,28 17,6%
Total pago até o momento $ 4.920.816,84
Intervenção 3 Extensão da Linha Verde Norte Lote 4
Valor proveniente de outras fontes (PMC + PAC Mob. + OGU) $ 2.388.506,47 100,0%
Valor proveniente da OUC-LV $ -------------- 0,0%
Total pago até o momento $ 2.388.506,47
Intervenção 4 Linha Verde Norte - Complexo Av. Victor F. do Amaral Lote 2
> Contrato junto ao MDR aguardando
Intervenção 5 Implantação de medidas mitigadoras - Bosque Portugal
> Inserida no lote 3.2
Intervenção 6 Extensão do Projeto Linha Verde Sul Trecho 4
> Ainda não contratado

Fonte: elaboração própria a partir dos documentos REL-T.

Diante do exposto reitera-se o questionamento: em que medida a adoção do CEPAC colaborou efetivamente para uma captação mais eficiente de recursos na OUC? E, sobretudo, quais são as suas reais contribuições para a alavancagem das transformações urbanas esperadas? Delineia-se uma conjuntura problemática que nos permite indagar quais são, de facto, os benefícios de adoção deste modelo de venda dos direitos adicionais de construção no contexto da periferia do capitalismo e, mesmo no contexto periférico, em uma posição deslocada do eixo gravitacional das metrópoles globais de São Paulo e Rio de Janeiro.

De forma complementar, ao observarmos o conjunto de edificações licenciadas no perímetro da Operação Urbana supor-se-ia identificar uma dinamização da ocupação urbana, um processo de adensamento e utilização máxima dos parâmetros urbanísticos. Contudo, os resultados revelam-se novamente opostos. A despeito dos 17.011 lotes integrantes da área de abrangência da OUC-LV, foram expedidos somente 942 alvarás entre 2012 e 2021, o que equivale a 5,5% dos lotes. Tal situação é agravada pela tendência de significativa desaceleração ao longo dos anos (figura 8). É importante pontuar que em 2019 houve a aprovação de um Shopping Center com 217.058,86 m², configurando um outlier no conjunto de dados e na tendência geral - motivo pelo qual ele foi destacado na representação do gráfico.

Fonte: elaboração própria a partir de REL-M_01.

Figura 8 Licenças de construção (alvarás) expedidos entre os anos de 2012 e 2021 

De forma complementar, verifica-se que mais de metade dos alvarás (55%) correspondiam a habitações unifamiliares e condomínios horizontais (figura 9), usos distantes da ocupação esperada deste eixo de adensamento. Particularmente sobre este ponto, ao calcularmos o grau de consolidação dos compartimentos - confrontação da área construída versus a área potencial, ou seja, o índice máximo de cada zona urbanística - percebe-se a baixíssima adesão ao modelo de uso e ocupação do solo previsto: quatro em cada cinco lotes que foram objeto de licenciamento para construção fizeram uso de menos de 40% do potencial disponível para o lote (figura 9).

Fonte: elaboração própria a partir de REL-M_01.

Figura 9 Histograma do grau de consolidação e número de alvarás por uso (2012 - 2021) 

O descolamento entre as edificações que vêm sendo construídas atualmente e os parâmetros de zoneamento previstos (substancialmente superiores), fragiliza outro pilar de sustentação deste modelo de desenvolvimento urbano, já que não se estabelece uma demanda consistente de consumo de CEPACs, o que, em última análise, implica menor interesse nas ofertas públicas. Particularmente sobre este ponto, ressalta-se que dos 165,7 mil CEPACs vinculados em alvarás dentro da OUC-LV, 63,7% deles foram consumidos unicamente como forma de pagamento de medida compensatória do Shopping Center anteriormente mencionado (REL-M_03). Assim, não há apenas um padrão de baixo consumo de CEPACs, como também ele decorre, em grande medida, de outros fluxos de aquisição que não aqueles relacionados à dinâmica esperada de comercialização dos títulos na Bolsa de Valores. Se desconsiderarmos os CEPACs vinculados ao Shopping, tem-se o consumo de apenas 1,24% do stock total de CEPACs5, após uma década de operação e nove ofertas públicas realizadas.

Fonte: elaboração própria a partir de REL-M_01.

Figura 10 CEPACs vinculados, por uso e zona urbanística 

Frente às questões postas também é interessante observar que a maior parte dos CEPACs foi vinculada em zonas de menor adensamento e, novamente, com menor adesão às expectativas de transformação urbana do Eixo da Linha Verde. Se novamente excluirmos da análise os 105.704 CEPACs relacionados à medida compensatória do Shopping Center, é possível verificar que a maior parte do potencial adicional foi direcionado para a Zona de Transição da Linha Verde (ZT-LV), um compartimento de menor densidade, para o qual se pretende amenizar o impacto do novo eixo de adensamento, com predominância de uso residencial.

Ao espacializarmos estes dados e os organizarmos por número de unidades residenciais e comerciais, é possível perceber a concentração de ambos os usos em porções distantes do Eixo da Linha Verde, em uma instigante externalidade da Operação Urbana Consorciada (figura 11). Ainda que o conjunto de dados coletados para a presente pesquisa não seja capaz de estabelecer relações de causalidade para esta questão, os cartogramas evidenciam uma dinâmica particular que deve ser objeto de futuros estudos. É possível, inclusive, que este processo de ocupação não seja resultante das intervenções e incentivos urbanísticos da Linha Verde per se e esteja, na realidade, em diálogo mais estreito com as áreas limítrofes, nas quais a cidade já se mostra mais consolidada enquanto manifestação física.

Fonte: elaboração própria a partir de REL-M_01.

Figura 11 Distribuição de unidades residenciais e comerciais por lote segundo alvarás expedidos entre 2012 e 2021 

Sintetizando o exposto, a análise empreendida aponta para um processo pouco ativo de transformação urbana, no qual se delineia um cenário de impossibilidade de financiamento das obras previstas e uma tendência de estagnação no preço de face do título mobiliário. Esta realidade parece desvelar características intrínsecas de um processo de financeirização periférica, no qual não se vislumbram ganhos substanciais aptos a uma eventual defesa deste modelo.

Das intersecções formais às distensões funcionais: dialogando com os resultados alcançados

Ao analisar o caso da OUC Linha Verde, partimos de um conjunto estruturado de reflexões forjadas a partir das experiências e escalas das duas maiores metrópoles do país. Ao deslocarmos o eixo analítico para fora dos principais canais de financeirização periférica, lançamos luz sobre um caso particular de incorporação de instrumentos financeirizados para o qual arriscamos afirmar que há um esvaziamento de seu significado. Ainda que, formalmente, se tenha o desenho institucional completo de uma Operação Urbana, pairam dúvidas sobre sua efetividade.

Após quase uma década de implementação, evidencia-se a incapacidade em promover a rápida transformação da área - função, em tese, central na implementação de uma Operação Urbana. Da mesma forma, a esperada otimização na captação de recursos não ocorreu e, por consequência, a capacidade de financiamento de obras urbanas revelou-se pouco significativa. Ainda que a financeirização se mostre pertinente enquanto chave analítica à compreensão do projeto da OUC Linha Verde, os resultados apontam para uma tentativa problemática de incorporação no cenário local de planeamento urbano: a maior parte das transformações urbanas promovidas no Eixo da Linha Verde foi viabilizada apesar da OUC, e não devido à sua criação. Nesse sentido, a financeirização mostra-se pertinente apenas para a compreensão de discursos e ideários, sem possuir, contudo, capacidade explicativa sobre a dinâmica de transformação urbana da cidade.

Quais seriam, pois, os limites da financeirização na periferia do capitalismo, para além dos “produtos urbanos” ofertados em metrópoles globais como Rio de Janeiro e São Paulo? Que resistências enfrenta o capital financeiro ao se capilarizar na realidade concreta de estruturas socioespaciais urbanas de integração truncada aos fluxos financeiros globais? Em sentido oposto à difusão ampliada de instrumentos financeirizados em outras políticas sectoriais, tal como na Política de Habitação brasileira da última década, a utilização de CEPACs parece constituir um caso contraditório de mimetismo léxico e ideacional de experiências do Norte Global, em descompasso aos arranjos sociotécnicos locais.

Devemos recordar que o caso de Curitiba apresenta-se historicamente como uma experiência bem-sucedida de planeamento urbano normativo tradicional. Seu orgão de planejamento urbano (IPPUC), inclusive, mantém um desenho organizacional muito similar desde a sua criação, em 1965. As estratégias de ocupação urbana, as escolhas técnicas e o discurso socialmente legitimado apontam para um modelo diverso daquele de “planeamento por projeto”, no qual se inserem as Operações Urbanas. No mesmo sentido, o município é reconhecido pelo pioneirismo de venda de direitos adicionais de construção via Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), em seu formato tradicional. As relações com o mercado imobiliário local, forjadas há décadas e consubstanciadas por meio da OODC são colocadas sob tensão ao serem delimitados novos moldes pela Operação Urbana Consorciada e seu regramento específico. Contribuindo com o debate, parece-nos ocorrer um eloquente fetiche de desenvolvimento urbano financeirizado, a partir do qual acredita-se que “se destravam as amarras” do desenvolvimento da cidade. Garante-se, pois, “acesso exclusivo” aos circuitos globais de circulação de capitais que, em análise última, apenas reforçam a erosão, desde seu interior, do ideal da reforma urbana.

Agradecimentos

Agradecemos à Fundação Araucária e ao CNPQ pelo apoio financeiro ao projeto Política habitacional e gestão social da valorização da terra: (des)encontros e (rel)ações por meio do Termo de Colaboração 015/2020.

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1 Contribuindo com o exposto, Brenner e Theodore (2002) recordam que este cenário não leva à redução do papel do Estado, mas à sua inflexão, uma vez que os fluxos de capital privado na cidade permanecem dependentes de investimentos públicos e da regulação do Estado. O que se altera então é a forma de atuação, o escopo das (des)regulamentações e os instrumentos de mediação com o capital.

2Sobre esse aspecto, ressalta-se os problemas enfrentados em São Paulo em experiências anteriores ao Estatuto da Cidade. A venda, realizada por meio de OODC em seu formato tradicional, levava à captura de recursos apenas quando da construção dos edifícios, impossibilitando a antecipação de implantação das infraestruturas necessárias.

3Deve-se mencionar aqui os graves prejuízos à sociedade decorrentes dos sucessivos adiamentos da realização do Censo Demográfico no Brasil pelo governo federal. Por meio de uma decisão judicial da Suprema Corte, estabeleceu-se a obrigatoriedade de realização em 2022. Neste contexto, a pesquisa censitária mais recente data de 2010 e se julga mais adequado utilizar os dados disponíveis de projeção populacional.

4O grande intervalo para o início das obras decorre, em grande medida, da morosidade na transferência de domínio do eixo urbano pelo governo federal, que apenas se concretiza em 2004 a partir do Convênio de Delegação 003/2004.

5Ao ser lançada, a OUC Linha Verde estipulou a oferta total de 4.830.000 CEPACs. Ao se desconsidera o volume de títulos adquiridos pelo Shopping em face de medida compensatória, apenas foram vinculados à alvarás de construção 60 mil CEPACs, o equivalente à 1,24% da oferta total prevista.

Recebido: 22 de Outubro de 2021; Aceito: 17 de Fevereiro de 2022

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