1. Introdução
A vulnerabilidade urbana, um conceito amplamente trabalhado e aprofundado por diversos autores (e.g. Bruquetas, Walliser e Fuentes, 2005; Burton, Rufat e Tate, 2018), refere-se à condição a partir da qual, no caso dos grupos sociais mais desfavorecidos, o surgimento da adversidade se pode transformar, com mais facilidade e gravidade, na consumação dos riscos que esta acarreta. À luz da teoria urbana crítica, esta situação não constitui o produto de escolhas tomadas pelos grupos desfavorecidos, mas o resultado de uma construção social mais abrangente (Harvey, 1973; Monreal, 1996), para a qual convergem múltiplos fatores de desvantagem, nomeadamente sociodemográficos - como o envelhecimento e a imigração -, socioeconómicos - como a precariedade e instabilidade laboral, o desemprego e as baixas habilitações literárias -, mas também habitacionais - como deficientes condições de habitabilidade e fraca inserção no meio urbano (Alguacil e Camacho, 2013). A lente da vulnerabilidade urbana revela igualmente que, quer nestas populações, quer nos territórios que habitam, não há apenas uma maior exposição ao risco, como também menos recursos disponíveis para o contornar, o que alerta para a importância da dimensão operacional necessária para, a partir de intervenções no meio urbano, mitigar o risco e, assim, evitar a sua consumação (Hernández Aja, 2007).
É precisamente sobre esta dimensão operacional, necessariamente integrada e sistémica, que centramos aqui a nossa atenção, tendo como principal referência a Agenda 20301 das Nações Unidas (2015), especificamente o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) 11, comprometido com a promoção de cidades e comunidades sustentáveis. A habitação, a urbanização e o ordenamento territorial são aí lidos como alavancas à promoção da saúde, ao aumento da qualidade de vida, à redução da pobreza e à mitigação das alterações climáticas. A capacidade instrumental da Agenda 2030 é referida explicitamente por outros organismos, como a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2019), que, após relacionar desinvestimento público, aumento de desigualdades sociais e aumento das iniquidades em saúde, invoca o cumprimento dos ODS, argumentando que as políticas públicas necessárias para promover a saúde são as mesmas que permitem atingir o desenvolvimento sustentável. Entre as cinco condicionantes que moldam a saúde das populações, a OMS atribui maior importância a três - condições de vida, capital social e humano, segurança nos rendimentos e proteção social2 - que convergem com várias das metas e submetas do ODS 11.
Apesar da influência da Agenda 2030 na prossecução de novas abordagens e políticas públicas por parte dos diferentes países que com ela se comprometeram, e apesar das metas assumidas, a nível europeu, no Plano de Ação do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, por exemplo, comprometido com uma Europa social mais forte, justa e inclusiva, não se estão a alcançar na prática os resultados desejados. O desempenho dos ODS na Europa entre 2019 e 2023 (Institute for European Environmental Policy, 2021; Sachs et al, 2021, 2022, 2023) evidencia fortes clivagens entre o Norte e o Sul, este último mais frágil. Portugal, especificamente, apresenta “desafios significativos” no caso do ODS 11 (Institute for European Environmental Policy, 2021, p. 8). As dificuldades ou fragilidades aí sentidas têm tradução nas condições de vida e habitabilidade das populações. No caso português, e no que toca especificamente à habitação, a escalada dos preços da habitação têm gerado fortes dificuldades de acesso (Travasso et al, 2020; Antunes e Seixas, 2022). A percentagem de famílias com encargos excessivos com a habitação ou sem capacidade financeira para manter a casa aquecida aumenta (ICOR, 2022)3, disparando igualmente o número de agregados considerados em situação de indignidade habitacional (Jorge, 2022).4
Este cenário denuncia uma desarticulação entre uma agenda global, as políticas nacionais ou locais que a invocam e as práticas concretas que lhe dão forma. No caso específico do ODS 11, e apesar da existência de uma agência que monitoriza 9 das suas 15 metas - a UN Habitat -, a escala local é a que, segundo Banik (2022), carece de um olhar mais aprofundado, no sentido de munir as administrações dos recursos e cultura de trabalho necessários à concretização das mudanças estruturais preconizadas. A necessidade de consciencializar os municípios para a importância real dos ODS e de encontrar a melhor forma de os alcançar constituem o cerne de iniciativas portuguesas como o ODSlocal - uma plataforma municipal comprometida com a concretização dos ODS5 -, que identifica um problema claro: permanece uma distância excessiva entre a formulação dos ODS e as decisões dos cidadãos e cidadãs, municípios, empresas e organizações no geral (Ferrão, 2020) 6. O trabalho a partir da base e de experiências concretas pode, assim, contribuir para um maior conhecimento da dimensão operacional da promoção de cidades e comunidades sustentáveis, um dos ODS menos analisados na literatura científica (Meschede, 2020).
Tendo este horizonte em mente, o presente artigo pretende, a partir da análise do processo de reabilitação das ilhas do Porto em curso, no qual está envolvido o primeiro autor, mostrar que o ODS 11 não é uma ação concretizável por si só, mas antes o somatório de um conjunto de frentes e escalas de intervenção, que congregam uma infinidade de agentes com diferentes agendas. A escolha do estudo de caso deve-se a vários fatores: converge com o conceito de vulnerabilidade aqui apresentado; a sua intervenção destaca uma abordagem espacializada e uma aposta na redução da distância entre destinatários das medidas e promotores das políticas formais; conta com uma cobertura política e financeira enquadrada numa abordagem sistémica e integrada, designadamente o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) português; e, finalmente, apresenta já resultados parciais de execução. A contextualização e restituição do trabalho realizado permite evidenciar os problemas práticos de implementação de uma mudança sistémica e da adoção dispersa das ferramentas disponíveis a nível local.
Começamos por apresentar o quadro vigente e o compromisso que assume com a redução das desigualdades estruturantes, contextualizando o atual marco financeiro e legislativo, o seu alinhamento com os objetivos de transformação preconizados e a sua suposta adequação à realidade das ilhas. Num segundo ponto, procedemos à leitura da construção e perpetuação das ilhas do Porto à luz do conceito de vulnerabilidade, identificando de seguida os constrangimentos que, até à data, impediram avançar para a sua reabilitação. No terceiro ponto avaliamos os fatores de risco que é necessário ultrapassar, apontando frentes de ação estratégicas. A abordagem adotada para concretizar a sua inserção na formalidade administrativa, distinta de outras abordagens históricas ao problema, é analisada num quarto ponto. Segue-se um balanço das metas atingidas e das operações em curso para perceber quais os bloqueios em causa e as suas implicações. Finalmente, apresentamos algumas conclusões em torno dos desafios associados à promoção de cidades e comunidades sustentáveis, identificando os espaços em branco, ainda por preencher, na implementação das ferramentas.
2. A redução das desigualdades estruturantes: um quadro em vigor aparentemente favorável
Apesar de, como começámos por referir, vários estudos e contributos científicos destacarem desde há muito a vulnerabilidade de alguns grupos específicos, é sobretudo com a recente pandemia de COVID-19 que essa realidade ganha escala e relevo junto da opinião pública. O resultado é conhecido, com diferentes níveis e universos de vulnerabilidade a contribuir para um impacto assimétrico da propagação e ação do vírus, especialmente desfavorável para os grupos com menos recursos (ver, e.g., Carlos, 2020; Lages e Jorge, 2020). Evidenciou também, no caso de Portugal, a dificuldade de acionar respostas acessíveis a todos (Tribunal de Contas, 2021). Nos grupos e territórios mais vulneráveis, a perda do emprego ou a redução das horas de trabalho impediram o pagamento da renda ou da prestação do crédito à habitação, elevando o risco de despejo; a falta de condições mínimas de habitabilidade, como áreas exíguas e sem ventilação natural, aumentou o impacto potencial do vírus, quer por patologias prévias associadas às condições de vida, quer por impossibilidade de cumprimento das orientações sanitárias decretadas, como o isolamento profilático (Lages e Jorge, 2020). Para além de uma questão social, laboral e habitacional, associada ao sistema urbano, tratava-se de uma questão de saúde pública, como mostram os indicadores de contexto e de impacto socioeconómico da pandemia COVID-19 em Portugal7.
Em resposta à crise económica e sanitária decorrente da pandemia, a União Europeia criou em 2021 o Mecanismo de Recuperação e Resiliência, temporário e de âmbito alargado, que visa atenuar o impacto do coronavírus e tornar as economias e sociedades europeias mais sustentáveis, resilientes e melhor preparadas para enfrentarem este e outros desafios futuros. Através deste Mecanismo, cada Estado-Membro tem a possibilidade de aceder a fundos dirigidos à implementação de reformas e investimentos comprometidos com as prioridades estabelecidas à escala da União Europeia, fortemente ancorados nas transições ecológica e digital, com base em Planos de Recuperação e Resiliência (PRR) adaptados a cada contexto nacional. Apoiados em seis pilares (1. transição verde, 2. transformação digital, 3. crescimento inteligente, sustentável e inclusivo, 4. coesão social e territorial, 5. saúde e resiliência económica, social e institucional, 6. políticas para a próxima geração), os PRR traçam as linhas de ação e intervenção estabelecidas por cada Estado-Membro até 2026, mais dirigidas, no cômputo geral, para a transição verde do que para objetivos de cariz social, como atestam Theodoropoulou, Akgüç e Wall (2022).
Entre o leque de países que inclui a componente habitacional, Portugal é o que aloca no seu PRR uma verba superior para a habitação, um total de 2,7 mil milhões de euros (Lakatos, 2021). Portugal compromete-se a relançar e reorientar, até 2026, a política de habitação a nível nacional, através do reforço do parque habitacional público e da reabilitação do parque habitacional privado (Ministério do Planeamento, 2021, p. 88). Mais especificamente, o PRR português visa dar resposta a pelo menos 26.000 agregados em situação de indignidade habitacional - número apontado no Levantamento Nacional das Necessidades de Realojamento Habitacional (2018) 8 - e a promover o arrendamento a preços acessíveis (Ministério do Planeamento, 2021, p. 88-92). A maior fatia deste investimento (44%) é dirigida ao 1º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação (República Portuguesa, 2018), que prevê um alargado leque de entidades promotoras (entidades públicas, determinados promotores privados - como os proprietários de ilhas - e entidades do terceiro setor) que, a partir de comparticipações não reembolsáveis a fundo perdido que abrangem despesas elegíveis específicas (designadamente empreitadas, projetos e realojamentos temporários), podem promover operações de aquisição, reabilitação e construção de imóveis, que têm de estar concluídos e atribuídos até 30 de junho de 2026.
Por qualificar o financiamento disponível, mas também por incluir orientações estratégicas que antes não existiam - como a necessidade de cumprir objetivos de transição verde e de coesão territorial -, a inclusão do 1º Direito no PRR vai além do previsto na Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH), dentro da qual se insere. Lançada em 2018, a NGPH integra 17 programas e representa uma resposta política ao elevado descontentamento social causado pelas crescentes dificuldades de acesso a uma habitação condigna, priorizando a reabilitação, perseguindo o aumento do parque de habitação com apoio público e atribuindo maior peso à intervenção e financiamento do Estado nesta matéria, designadamente a partir do apoio financeiro para a promoção de obras9, da subsidiação das rendas10 ou dos estímulos e incentivos fiscais11, por exemplo12. A NGPH não constitui a única resposta em matéria de habitação: um ano depois foi aprovada a primeira Lei de Bases da Habitação (República Portuguesa, 2019), que densifica o direito à habitação consagrado na constituição da República Portuguesa, atribuindo competências e direitos aos vários intervenientes e referindo a importância de complementar a habitação com um habitat condigno, integrado por uma envolvente qualificada. Do lado institucional, destaca-se a criação da Secretaria de Estado de Habitação em 2017, integrada em 2019 no Ministério das Infraestruturas e da Habitação, entretanto dividido, dando lugar, em 2023, a um Ministério dedicado exclusivamente à habitação.
Todo este avolumar de medidas orientadas para a criação de uma resposta robusta, sistémica e estruturada não se tem traduzido, para já, em resultados alinhados com os objetivos lançados, como revela a consulta aos dados de execução do PRR (ver Figura 1), onde se destaca não só uma baixa execução do financiamento disponível como um forte desequilíbrio entre regiões, sub-regiões e municípios. Segundo dados recolhidos no Portal Transparência a 20 de abril de 2023, 217 dos 308 municípios assinaram acordos de colaboração com o Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana (IHRU), que permitem aceder ao financiamento necessário para materializar as soluções previstas nas Estratégias Locais de Habitação, condição de acesso ao 1º Direito. Se analisamos o número de municípios que conseguiu ter pelo menos uma candidatura aprovada para promover uma solução habitacional, o número desce para 66, apresentando padrões claros: por um lado, uma forte litoralização do investimento, com uma evidente concentração nas áreas metropolitanas; por outro, uma clara desvantagem dos municípios mais pobres. As ilhas do Porto, que desde a primeira formulação do diploma do 1º Direito apresentam um enquadramento específico e particularmente privilegiado, ocupam uma parcela importante do financiamento deste município (cerca de 75% dos 12 milhões alavancados até à referida data, o sexto com maior arrecadação a nível nacional).
3. As ilhas do Porto: construção e perpetuação de um território vulnerável
As ilhas do Porto, aprofundadas em vários trabalhos anteriores na ótica da intervenção (e.g., Varea Oro e Vieira, 2018, 2022; Varea Oro, Almeida e Pinheiro, 2019; Varea Oro, Vieira, Almeida e Travasso, 2019), são uma morfotipologia de habitação originária da revolução industrial, destinada, na sua génese, à classe operária (Figuras 2 e 3). Em termos urbanísticos, caraterizam-se por estarem localizadas no interior do quarteirão, geralmente no logradouro de um edifício de frente de rua, com a qual as ilhas comunicam, apenas a partir de um estreito corredor de acesso (Teixeira, 1996). Este corredor constitui a única frente de iluminação e ventilação das casas de ilha que integram o conjunto. Falamos de pequenas unidades habitacionais com condições muito precárias, cujo módulo original tinha apenas cerca de 16m2 (4 metros de frente por 4 de profundidade) e três espaços: quarto, cozinha e sala (Idem). As condições de habitabilidade eram deficientes, tanto a nível de iluminação e ventilação - a sala, que ocupa toda a frente de fachada, com apenas uma porta e uma janela, era o único espaço de ventilação -, como de salubridade em geral - as casas de banho, comuns, estavam localizadas no exterior e eram utilizadas por todos os moradores. Acontecimentos como o surto de peste bubónica de 1899 contribuíram para a estigmatização destes territórios e, simultaneamente, para a emergência de posicionamentos higienistas que ainda perduram.
A própria génese das ilhas remete para uma evidente correlação de fragilidades entre os promotores e os beneficiários das soluções, mediada pela existência de condições legais e urbanísticas propícias à criação deste cenário de precariedade. Algumas destas condições prendem-se, de acordo com Teixeira (1996), com: a desvalorização dos terrenos e a substituição da burguesia por pequenos proprietários dos imóveis em cujas traseiras se iriam localizar posteriormente as ilhas; a existência de um vazio legal que permitiu a edificação sem controlo por parte da Câmara Municipal no interior dos terrenos; e a existência de um método de construção estandardizado, simples, rápido e barato (cada casa partilhava três paredes com as restantes, dispondo de apenas uma única fachada). As ilhas permitiram absorver uma parte significativa da população sem espaço no extremamente sobrelotado centro histórico (Loureiro de Matos, 1994), dando origem a uma solução popularizada, que constitui cerca de 63% do total de edifícios construídos entre 1864 e 1900. Com o avançar do tempo, as ilhas expandiram por toda a cidade, ocupando espaços para lá da malha almadina, inclusivamente como solução autónoma, isto é, ocupando loteamentos inteiros sem nunca existir o original edifício de frente de rua (Teixeira, 1996).
Segundo o estudo conduzido por Breda e Conceição (2015), persistem ainda 957 ilhas (90% das quais ocupadas), com aproximadamente 8265 casas (60% das quais habitadas), alojando cerca de 10370 pessoas, correspondentes a 4901 agregados, na sua larga maioria famílias nucleares sem filhos e pessoas isoladas que residem nestes territórios há mais de 30 anos. 56% das pessoas que aí residem têm mais de 54 anos de idade. O mesmo estudo aponta para a existência de baixas habilitações literárias (cerca de metade tem até o 4º ano de escolaridade), traduzidas em condições económicas precárias (30% dos agregados recebe no máximo 485€/mês, sendo as duas principais situações face ao emprego reformado e desempregado). A mediana das rendas situa-se num máximo de 50€ (Breda e Conceição, 2015), embora este valor quadruplique no caso de quem chegou nos anos posteriores à Troika e que constitui até 20% dos atuais residentes (Relatos Quotidianos, 2019), evidenciando que as ilhas continuam a ser o refúgio das populações mais vulneráveis. Estima-se que até 40% das casas habitadas continuem a não ter casa de banho e que o estado de conservação seja, em geral, mau (Relatos Quotidianos, 2019). Até 85% dos casos, a manutenção é realizada por residentes, dos quais menos de 20% são proprietários da sua casa (Breda e Conceição, 2015).
Todas estas condições contribuíram para que, ao longo de décadas, a intervenção nas ilhas tenha sido considerada inviável. De entre as várias razões destacamos a precariedade dos conjuntos (que exigem obras profundas para garantir condições mínimas de habitabilidade), a falta de enquadramento urbanístico (que na prática inviabilizava a instrução dos projetos necessários), os escassos recursos financeiros de proprietários e inquilinos (que inviabilizavam o financiamento necessário) e a falta de apoio público (quer para colmatar as falhas económicas de promotores e beneficiários, quer para orientar o labirinto burocrático associado). A consequência foi a criação de uma espécie de tempestade perfeita que contribui para a perpetuação de condições de habitabilidade deficientes em territórios que alojam cerca de 5% da população da segunda cidade do país. Em seguida, serão analisadas as consequências concretas que esta situação traz para a população residente, a partir do ângulo específico dos determinantes sociais da saúde, o que será útil para perceber dois dos argumentos essenciais deste texto: a intervenção física sobre estes territórios em particular pode ser uma ferramenta de promoção de uma vida mais digna e segura e esta intervenção depende da capacidade de ancorar a resposta num vínculo mais robusto entre os problemas sentidos no terreno e o acesso às soluções, existentes ou a criar, no âmbito das políticas públicas.
4. A identificação das barreiras à superação da vulnerabilidade
Desde a sua génese que as ilhas traduzem uma forte correlação entre as desigualdades sociais e as iniquidades em saúde, evidenciando o peso da componente habitacional nesta correlação e os efeitos nocivos da retirada do poder público nestas problemáticas. As consequências concretas deste fenómeno podem ser quantificadas, territorializadas e problematizadas, como se pode verificar na Figura 4, que espacializa as correlações existentes entre dois conjuntos de dados diferentes: por um lado, indicadores de saúde, mais especificamente doenças crónicas como Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC), Hipertensão com complicações, Doença Pulmonar Obstrutiva Crónica e Diabetes13; por outro, indicadores de condições de vida14, relativos aos rendimentos, subsídios e prestações auferidas, à precariedade do edificado e às habilitações literárias da população residente15. Após a integração destes dois conjuntos de dados e a elaboração da correspondente matriz de correlação, com recurso ao IBM SPSS Statistics, procedeu-se à espacialização no QGIS, ponderando com o (ρ) de cada indicador de condições de vida em cada subseção estatística onde o valor ultrapassava a média nacional e retirando-o da espacialização onde era inferior à mesma.
A passagem das matrizes de correlação para a espacialização das variáveis mais significativas vai para além da relação entre as desigualdades sociais e as iniquidades em saúde, permitindo perceber até que ponto ela corresponde a uma construção territorial, expressa em três níveis: municipal, local e do edificado. À escala municipal, a atribuição de uma escala diferente a cada Unidade de Saúde Familiar (USF) e Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados (UCSP), em função da taxa de casos de AVC, revela a existência de assimetrias significativas nos territórios mais empobrecidos, verificando-se uma taxa superior à nacional nas unidades funcionais da zona oriental do Porto, que concentra maior número de ilhas. A um nível local, a desagregação dos dados à escala de subsecção estatística destaca o peso específico de cada uma das áreas nas clivagens globais em saúde. Ao nível do edificado, a sobreposição das ilhas permite perceber o contributo desta morfotipologia para o cenário descrito. Nas várias escalas e níveis de intervenção, é possível identificar onde os fatores de risco podem ser removidos ou minorados, quer no edificado, quer no espaço urbano.
Uma análise mais fina permite perceber até que ponto estas iniquidades são não só injustas como evitáveis. Vários estudos (Magalhães et al., 2019; Oliveira, 2020; Relatos Quotidianos, 2019) permitem identificar algumas das razões do peso da componente habitacional e territorial no aumento das iniquidades em saúde registadas nas ilhas. Destaca-se aqui a exposição contínua a materiais contaminantes, como o amianto, a ausência de isolamento térmico e de instalações sanitárias no interior da habitação, a existência de barreiras à mobilidade, obstáculos às fachadas, dimensão exígua das casas e falta de iluminação e ventilação naturais. Mais recentemente, a população residente passa ainda a conviver com a ameaça de despejo decorrente da inserção das ilhas no circuito de arrendamento de curta e muito curta duração, potencialmente privando os moradores de alguns dos aspetos positivos de habitar nas ilhas. Entre estes evidencia-se a localização muitas vezes central que ocupam: apesar de cerca de 40% das pessoas que aí residem estarem recetivas à mudança, 84% e 87% das inquiridas manifesta sentir-se satisfeita ou muito satisfeita com os transportes e os equipamentos de proximidade, respetivamente (Relatos Quotidianos, 2019).
Face a este cenário, coloca-se a possibilidade de melhorar as condições de habitabilidade a partir das preexistências16 (Yamamoto, 2010; Hasegawa, 2010), apontando sempre para a qualificação da malha urbana em que se inserem, como evidencia a Figura 5, alusiva a uma proposta de melhoria das condições de habitabilidade em curso em seis ilhas da zona da Lomba, à qual regressaremos mais adiante. Esta possibilidade requere duas aproximações em paralelo: a definição de princípios de habitabilidade mínimos, e com presença no quadro regulamentar, a cumprir nas operações; a consciência que, seguindo o recorte da vulnerabilidade social, a frente de ação não se coloca tanto nas condições individuais, culturais ou materiais existentes nestes territórios, mas sim nas forças externas que estão a agir sobre eles. Qualquer tentativa de implementação do ODS 11, a partir das suas várias metas e submetas, terá, portanto, de assumir uma vertente operacional baseada nas relações entre os elementos, e não tanto na intervenção sobre cada um deles. No caso específico das ilhas, esta abordagem apresenta desafios consideráveis, designadamente a criação de: condições para inserir os processos na formalidade administrativa; mecanismos que a tornem acessível a inquilinos e proprietários descapitalizados; e estratégias que permitam inserir a reabilitação de cada fogo numa qualificação urbanística mais abrangente (Varea Oro e Vieira, 2018).
5. A inserção da resposta na formalidade administrativa: frentes de ação
Nesta epígrafe apresentam-se as principais caraterísticas da abordagem municipal à reabilitação em curso, bem como um balanço dos objetivos de mitigação da vulnerabilidade de quem reside nas ilhas. A resolução do problema das ilhas apresenta, como vimos, uma dimensão mais do que centenária (Borges Pereira, 2003), existindo um conjunto de abordagens prévias com as quais a política em curso se relaciona e das quais se diferencia. A posição histórica tem oscilado entre duas grandes abordagens opostas: por um lado, as que assentaram na demonização das ilhas ou de quem aí reside, e que apostaram na construção de novas habitações ou edifícios habitacionais na longínqua periferia; por outro, as que tentaram valorizar o edificado e o tecido social existente nas ilhas, apostando na melhoria das condições de habitabilidade nestes núcleos, na qualificação urbanística dos quarteirões em que se localizam e das zonas adjacentes, ou na reabilitação das próprias ilhas. Em comum, apresentam uma leitura focada apenas nas comunidades em situação de pobreza ou nos territórios que habitam, secundarizando a sua relação com a criação de uma política pública sustentável e replicável, capaz de utilizar a intervenção no meio habitado e construído como ferramenta de inclusão social, diferenciadora do estudo de caso.
Por ter sido abordado em outros lugares (Varea Oro e Vieira, 2018, 2022; Varea Oro, 2022), não se procederá a uma análise exaustiva da génese e dos procedimentos adotados na definição desta política, que viabiliza a superação dos desafios referidos. Opta-se, em vez disso, por apresentar as ferramentas utilizadas para a sua implementação, o que permitirá, na epígrafe seguinte, pôr em diálogo os resultados obtidos e os meios utilizados. Neste sentido, destaca-se que, enquanto definidora de um sistema de reabilitação público que se pretende acessível aos privados e facilitador de intervenções integradas no espaço urbano ou, pelo menos, de reabilitações integrais de ilhas, a política municipal apresenta várias peças em jogo. Cada um destes elementos corresponde a diferentes áreas e escalas de intervenção, mobiliza diferentes intervenientes e é responsável pelo cumprimento de várias das submetas do ODS 11, nomeadamente: a proteção do património natural e cultural, o ordenamento do território e segurança17, os sistemas de transporte acessíveis e sustentáveis, a habitação e urbanização sustentável e inclusiva18. Procede-se à análise destas áreas de intervenção associadas ao ODS 11 a partir do cruzamento com os três condicionantes da saúde perseguidos pela OMS, antes referidos, e da identificação dos recursos mobilizados (Tabela 1).
Em primeiro lugar, destaca-se o recurso aos instrumentos de gestão territorial, como os que constam no Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU) - Áreas e Operações de Reabilitação Urbana - ou no Regime Jurídico de Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT) - como o Plano Diretor Municipal (PDM) do Porto. No caso da reabilitação das ilhas, a inserção do edificado em Operações de Reabilitação Urbana de tipo sistemático permite acionar um conjunto de ferramentas capazes de apoiar, obrigar ou mesmo substituir os proprietários, bem como articular com um programa de investimento público dirigido aos espaços públicos e equipamentos. Em relação ao PDM, a sua alteração, no âmbito do trabalho aqui descrito, viabilizou a realização de obras de ampliação em ilhas, mas condicionou-as a um conjunto de critérios estratégicos, nomeadamente: à obrigação de proceder à reabilitação integral, à melhoria das condições de habitabilidade, ao aumento da permeabilidade do solo e à inserção dos fogos no mercado de arrendamento a custos controlados.
Em segundo lugar, refere-se a mobilização e articulação das ferramentas de apoio financeiro infraestrutural a nível nacional, designadamente os articulados com fundos comunitários, não apenas por financiar as intervenções - o caso do 1º Direito -, como por constituírem âncoras na definição do sistema urbano mais abrangente e na escolha de territórios estratégicos de intervenção para catalisar a reabilitação urbana e criar condições favoráveis a um habitat19 capaz de complementar as condições da habitação - o caso dos Planos Estratégicos de Desenvolvimento Urbano (PEDU). O peso das orientações comunitárias está patente em qualquer um dos dois casos, mas é especialmente relevante no 1º Direito, uma vez que a sua inclusão no PRR não apenas criou condições ímpares de financiamento, como as vinculou ao cumprimento de objetivos comprometidos com a redução de desigualdades estruturantes e a transição verde. Convém referir que, ao contrário do que acontece em outros países (Tobías et al, 2022), estas duas dimensões estão vinculadas no PRR português, uma vez que o 1º Direito se dirige aos grupos mais desfavorecidos.
Finalmente, a mobilização de estruturas de apoio é feita, quer a partir de recursos municipais (Juntas de Freguesia, Rede Social Concelhia, quadros técnicos especializados na Direção Municipal de Desenvolvimento Urbano ou da Porto Vivo - Sociedade de Reabilitação Urbana), quer de recursos externos (colaboração com o terceiro setor ou com as Instituições de Ensino Superior, ou recurso a programas de apoio financeiro comunitário de natureza imaterial), como o programa AIIA -Abordagens Integradas para a Inclusão Ativa. Este último programa, financiado com recurso ao Fundo Social Europeu, integrado no Programa Operacional da Região Norte - Norte 2020, e articulado com as ações do PEDU, alinhado com as metas da sustentabilidade, mas sem programação específica para as ilhas, visava envolver um alargado leque de atores capaz de convergir para a diminuição da pobreza e do desemprego nos territórios mais vulneráveis do Porto. Dentro deste programa, a atividade “Estratégias Específicas para as ilhas do Porto” foi liderada pela Porto Vivo - SRU e, colocando o foco na reabilitação espacial, permitiu aglutinar todas as anteriores dimensões. O resultado foi a definição de uma estrutura de apoio aos proprietários e residentes destes núcleos, orientada para a obtenção de apoio financeiro dirigido à população vulnerável, condicionado a objetivos de qualificação territorial.
6. A difícil prossecução da redução da vulnerabilidade: balanço das operações em curso
Apresentamos de seguida os resultados provisórios da implementação da política municipal para a reabilitação das ilhas no quadro do PRR, por forma a medir a distância entre o planeado e o materializado, aferir as potencialidades de uma abordagem integrada e inserida nas políticas formais, e identificar as fragilidades que põem em causa a viabilidade e replicação do sistema criado. O presente balanço considera três dimensões: quantitativa (número de ilhas trabalhadas e resultados atingidos, contextualizando os dados nos prazos estabelecidos); operativa (potencialidade da mobilização das ferramentas de intervenção corrente no planeamento e gestão urbanística, relevantes se admitimos que serão essas as vias a seguir após o término do PRR) e organizativa (articulação dos intervenientes necessários à implementação das ferramentas disponíveis). Estes elementos reforçam o argumento defendido neste trabalho: a existência de narrativas favoráveis à mudança e, inclusivamente, a disponibilidade de apoio financeiro dirigido a estes mesmos fins não são, por si só, suficientes para reduzir a vulnerabilidade, sendo necessário colocar o foco na teia de relações entre os vários intervenientes envolvidos.
Do ponto de vista quantitativo, foram tidas em conta apenas as operações realizadas desde a institucionalização do gabinete de atendimento, em junho de 2022, sob coordenação da Porto Vivo SRU. A data de início de funções deste gabinete ilustra a derrapagem de prazos em que se traduz a nebulosa de intervenientes e processos apresentados e a dificuldade de passar do anúncio das medidas à sua implementação. Com efeito, após o lançamento do 1º Direito, em maio de 2018, e com vista à submissão de candidaturas a financiamento, foi necessário aprovar uma Estratégia Local de Habitação (dezembro de 2019) e assinar um acordo de colaboração com o IHRU (abril de 2022). Entre estes dois momentos definiu-se uma metodologia de trabalho capaz de se adaptar às constantes alterações ao 1º Direito (entre as quais destaca-se a já referida inclusão dentro do PRR, em novembro de 2021). Por sua vez, a formalização do PRR traz consigo a determinação de um prazo limite de submissão de candidaturas (março de 2024, conforme estipulado pelo IHRU em julho de 2023). Estas circunstâncias fazem com que, dos seis anos legalmente previstos para a execução da Estratégia Local de Habitação, apenas seja possível contar com dois para a submissão de candidaturas ao abrigo do PRR, o que condiciona a concretização da programação estabelecida.
Os resultados preliminares apresentados na figura 6, relativos a agosto de 2023, dizem respeito a 245 fogos, um número muito superior às casas de ilha reabilitadas integralmente até à data - praticamente limitadas às 35 habitações intervencionadas na ilha da Belavista (Rodrigues, Neves e Coelho, 2014) - também acima do programado na Estratégia Local de Habitação para as ilhas, em 2023 (130 privadas e 17 públicas). Mas, em qualquer caso, o número total que se irá atingir estará muito longe das 730 casas de ilha privadas e das 85 casas de ilha públicas definidas nesse documento - números já por si reduzidos, tendo em conta o universo de ilhas existente na cidade. Para além dos constrangimentos de natureza temporal, antes referidos, contribuem para este cenário outros fatores, como: a natureza e motivações dos promotores, destacando-se a dificuldade em chegar a acordo na presença de vários proprietários ou a perceção de pouco rendimento face a outras opções disponíveis no mercado; a viabilidade económica, decorrente dos tetos impostos às despesas elegíveis em sede de 1º Direito, mas também do elevado custo da construção na atual conjuntura; e o enquadramento urbanístico, sendo que apenas em cinco dos casos não era possível conciliar a reabilitação com uma melhoria substancial das condições de vida.
Os números apresentados levam-nos à segunda dimensão em análise - operativa -, face à dificuldade em ativar uma rede de procedimentos ancorados no quadro financeiro, legislativo e regulamentar em vigor, cuja articulação depende da concretização das operações e, acima de tudo, do cumprimento dos objetivos determinados pelas grandes agendas da mudança. Para ilustrar tanto a necessidade de recorrer ao apoio do poder público - imprescindível quando consideradas as limitações do público alvo em aceder às ferramentas antes referidas - como o impacto que este apoio pode ter, recorremos ao projeto mais ambicioso e transformador traçado: a operação de aquisição para reabilitação, por parte do município, de 6 ilhas localizadas na zona da Lomba (Figura 7), com um total de 63 fogos. Esta operação, delineada no âmbito do programa AIIA e aprovada no âmbito do PRR, apresenta-se como o culminar de um conjunto de planos para o território da zona oriental da cidade, alguns mais dirigidos para princípios estratégicos do que para públicos-alvo - como o PEDU -, outros direcionados especificamente para populações vulneráveis - como o já referido programa AIIA.
Com efeito, uma análise deste projeto permite perceber a adequação às múltiplas dimensões de vulnerabilidade e a diversidade de frentes e intervenientes que é necessário mobilizar. A partir de uma reabilitação integrada, que abrange grande parte do quarteirão, a operação pretende: disponibilizar 47 fogos de dimensões adequadas para a população aí residente; adotar soluções que permitam um desempenho 20% superior ao Nearly Zero Emissions Buildings (NZEB); concretizar uma reestruturação da propriedade que, além da reconfiguração do edificado e do cadastro, permita a construção de uma rede de espaços públicos no interior do quarteirão e articulada com a rede pública circundante; atingir, por esta via, objetivos de combate à segregação espacial (pela criação de novas fachadas principais viradas para espaços qualificados) ou de mitigação das alterações climáticas (pelo aumento do solo permeável e a introdução de zonas verdes); finalmente, viabilizar a permanência da população residente numa localização central, bem servida de transportes e equipamentos, mas alvo de recentes investimentos e, portanto, em processo de valorização para outros públicos.
No que respeita à dimensão organizativa, a materialização destes objetivos exige travar ou iniciar dinâmicas com uma inércia significativa, nomeadamente a fragmentação da propriedade pela progressiva ação de investidores e fundos imobiliários neste terreno, e a concretização de obras profundas que devem ser precedidas de complexos processos de realojamento temporário de quem aí mora. Neste contexto, a introdução de energia exógena, sob a forma de recursos materiais e financeiros, mas também de apoio técnico público e especializado, é imprescindível para garantir a resposta às populações em situação de vulnerabilidade, exigindo um equilíbrio entre a criação de unidades orgânicas antes inexistentes, o recurso a parceiros especializados e a inserção destes objetivos na intervenção corrente e estável dos restantes serviços envolvidos. Esta circunstância permite, por um lado, canalizar as condições criadas pelo PEDU para públicos vulneráveis e, por outro, dar sentido ao investimento alavancado no âmbito do PRR, colmatando inclusivamente algumas lacunas do financiador na garantia da solução integrada. As atuais perspetivas de financiamento facilitaram uma convergência entre a Porto Vivo - SRU, a Direção Municipal de Desenvolvimento Urbano e a Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, institucionalizando a abordagem gradualmente desenvolvida desde 2015 (Varea e Vieira, 2022).
Facilita-se desta forma o acesso ao financiamento, condicionando-o a propostas dirigidas a quem se enquadra nos critérios de vulnerabilidade definidos pelas entidades financiadoras e não tem capacidade para aceder aos recursos que as grandes agendas e programas prometem disponibilizar. À espera da conclusão das primeiras obras, tudo aponta para que as reabilitações propostas contribuam para a superação de alguns dos fatores de risco que condicionam a saúde e o bem-estar das populações. Em simultâneo, o forte investimento na concretização de obras tão profundas não se traduzirá na expulsão de moradores. Mais do que a simples qualificação do edificado, está em causa a pertença a um sistema urbano qualificado enquanto alavanca para a redução da vulnerabilidade ou, se quisermos, para a viabilização de acesso às ferramentas que favorecem o desenvolvimento. O trabalho representa uma mudança de paradigma, mas a sua sustentabilidade está vinculada a dois fatores indissociáveis: a inserção das novas práticas no quotidiano das instituições e a disponibilização de recursos financeiros adequados. Por sua vez, sem uma articulação com os restantes ODS e uma promoção e caraterização de mais práticas locais comprometidas com a grande agenda para a mudança, podemos estar em presença de um processo ainda insuficiente face à magnitude da vulnerabilidade existente.
7. Conclusões
A existência de condições de habitabilidade precária não reflete apenas as situações de vulnerabilidade em que vive uma parte significativa da população: constitui um fator de agravamento das mesmas. Neste sentido, a intervenção sobre o espaço habitado e construído pode constituir uma ferramenta eficaz para a redução das vulnerabilidades em presença, constituindo, inclusivamente, um dos 17 ODS preconizados na Agenda 2030 das Nações Unidas. Como começámos por referir, o aparente alinhamento entre o diagnóstico e as propostas de intervenção não se está a traduzir numa redução significativa das desigualdades estruturais existentes, apesar da inexistência de marcos teóricos que orientam a ação do poder público no sentido de uma abordagem integrada e sistémica. A dificuldade em operacionalizar intervenções integradas, que façam do espaço habitado e construído uma ferramenta capaz de combater ou mitigar a vulnerabilidade, reside no facto de, embora conceptualmente integradas, o roteiro para as concretizar ser altamente fragmentado, quer do ponto de vista dos objetivos, quer das ferramentas, dos prazos e dos intervenientes, como ficou aqui expresso. Apesar de existirem objetivos concertados - como os da Agenda 2030, as diretrizes da OMS ou do PRR -, falta um plano que incorpore os procedimentos necessários ao seu cumprimento.
O caso das ilhas do Porto ilustra a viabilidade e pertinência deste tipo de abordagem. Em simultâneo, apresenta a diversidade de frentes que é preciso abranger para garantir a concretização integrada dos princípios preconizados, revelando que o ODS 11 não é um objetivo por si só, mas o resultado da convergência de uma nebulosa de intervenientes e vias de intervenção, cuja dispersão põe em causa o cumprimento do próprio objetivo para o qual todos teoricamente concorrem. O enquadramento da política municipal de reabilitação das ilhas dentro de um contexto mais abrangente, designadamente do financiamento atribuído pelo 1º Direito no quadro do PRR e dos recursos municipais alocados para a prossecução da maior e melhor taxa de execução possível, evidencia a existência de condições privilegiadas para a intervenção, quando comparadas com outros beneficiários e promotores no âmbito deste programa. As condições asseguradas não assentam apenas na capacidade de executar as ferramentas ao dispor, mas também de planificar quando estas não existem ou ainda não estão disponíveis, aumentando as probabilidades de sucesso, quer no acesso ao financiamento, quer na sua execução. Este poderá ser um dos fatores que explica o maior sucesso dos municípios mais ricos na corrida ao financiamento do PRR até ao momento, o que não significa, contudo, que o processo seguido e as ferramentas existentes não possam ser otimizados, tanto a nível local, como nacional.
Uma vez que os municípios não partem todos do mesmo lugar nesta corrida ao financiamento - a capacidade financeira e os recursos ao dispor de cada um evidenciam uma forte disparidade entre eles -, e atendendo à importância que este assume na planificação e concretização de intervenções capazes de reduzir a vulnerabilidade, emerge a possibilidade de harmonizar estratégias e procedimentos a nível nacional e comunitário. Por um lado, o recurso ao financiamento que irá ser disponibilizado no quadro do Portugal 2030, ou mesmo no âmbito do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, podem constituir incentivos para a adoção dos princípios preconizados. Por outro lado, a espacialização destes investimentos pode servir para aumentar a sua eficácia e garantir uma distribuição territorial mais equitativa, capaz de abranger de forma mais flexível as várias formas de vulnerabilidade patentes no território. Neste processo, a Lei de Bases da Habitação fornece ferramentas pertinentes, como o Programa Nacional de Habitação (particularmente útil para, a partir da submeta “Forte planeamento para o desenvolvimento nacional e regional” do ODS 11, incluída na meta “Ordenamento do território e segurança”, contribuir para a redução dos desequilíbrios territoriais) e as Cartas Municipais de Habitação (úteis para aumentar a permeabilidade entre o objeto casa e o sistema urbano).
Finalmente, no centro das nossas preocupações estão os agregados em situação de vulnerabilidade urbana, com dificuldade em aceder aos recursos disponíveis - sociais, técnicos, financeiros e burocráticos - que permitiriam mitigar as adversidades e riscos a que estão sujeitos. A integração de técnicos especializados nas tentativas de melhoria do habitat é incontornável, mas a sua participação esbarra no universo de regras e práticas instituídas e institucionalizadas dominantes. A possibilidade de usar o território como ferramenta de coesão social, capaz de contribuir para a redução da vulnerabilidade, é não só uma das apostas estratégicas de documentos como a Agenda 2030, como também uma realidade que, apesar de tudo, tem pouca expressão. Os resultados parciais atingidos nas ilhas são importantes do ponto de vista da qualificação do território e do combate à exclusão sócio-espacial mas, em termos quantitativos, ficam manifestamente aquém do universo de beneficiários que deveria, ou poderia, abranger. Impõe-se criar uma agenda para os procedimentos essenciais ao cumprimento dos objetivos, sob pena desta abordagem de intervenção acontecer em pequena escala, apenas nos municípios mais capacitados ou mais voluntaristas.