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CIDADES, Comunidades e Territórios

versão On-line ISSN 2182-3030

CIDADES  no.au23 Lisboa out. 2023  Epub 09-Out-2023

https://doi.org/10.15847/cct.28721 

ARTIGO ORIGINAL

Será a condição de sem-abrigo uma questão de escolha? Um estudo exploratório realizado nos Açores

Is homelessness a matter of choice? An exploratory study held in Azores

1Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), DINÂMIA’CET-Iscte, Portugal. E-mail: lidia.mc.fernandes@uac.pt

2Universidade dos Açores

3Universidade de Évora, Portugal. E-mail: paulo.v.fontes@uac.pt

4Novo Dia - Associação para a Inclusão Social, Portugal. E-mail: helderfernandes@cipavioleta.org


Resumo

Uma das questões críticas no debate público em torno da condição de sem-abrigo está associada à perceção, amplamente difundida na Europa, que a maior parte das pessoas que permanecem nesta condição o fazem por fatores de natureza comportamental, do domínio da livre escolha. Argumenta-se que este facto, imputando a responsabilidade do problema no indivíduo, condiciona o debate, assim como as respostas sociais e políticas neste campo. Neste artigo são apresentados e discutidos os resultados de um estudo exploratório centrado nos Açores, assente num quadro metodológico de investigação-ação participativa, que incluiu a combinação de metodologias extensivas e intensivas. Em primeiro lugar, destacamos alguns dados relativos à contagem e caraterização sociodemográfica realizada com base num inquérito online, semelhante ao adotado no âmbito da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA), referindo-se a 31 de dezembro de 2020. Em segundo lugar, propondo um aprofundamento da tipologia Europeia sobre a situação de sem abrigo e exclusão habitacional (ETHOS), exploramos o significado de estar em situação de sem-abrigo com base em seis grupos focais envolvendo dois tipos de atores cuja perspetiva é considerada relevante para entender esta problemática - pessoas nesta condição e profissionais a trabalhar com este público-alvo. Estes dados são analisados à luz do problema da livre escolha, identificando alguns dos debates cruciais que poderão estar a condicionar as escolhas societais. Verifica-se uma tendência de crescimento do fenómeno em que fatores de natureza estrutural poderão estar a contribuir para aumentar o número de pessoas envolvidas, assim como a gravidade da situação experienciada em cada um dos domínios abordados. Considera-se ainda que individualização do problema concorre para a normalização da condição de sem-abrigo, sendo essencial reconhecer que recoloca em cima da mesa o debate sobre definições coletivas de cidadania.

Palavras-chave: condição de sem-abrigo; exclusão social e habitacional; Açores; livre-escolha

Abstract

One of the critical issues in the public debate around homelessness is associated with the perception, widely held in Europe, that most people who remain homeless do so due to behavioural factors in the domain of free choice. It is argued that this fact, by imputing responsibility for the problem on the individual, constrains the debate as well social and political responses in this field. This article presents and discusses the results of an exploratory study focused on the Azores, based on the frame of participatory action research, including extensive and intensive methodologies. Firstly, we highlight some data regarding the count and socio-demographic characterization based on an online survey similar to the one adopted under the National Strategy for the Integration of People Experiencing Homelessness, referring to December 31st, 2020. Secondly, proposing a deepening of the European typology on homelessness and housing exclusion (ETHOS), we explore the meaning of being homeless based on six focus groups involving two actors whose perspective is considered relevant to understand this issue - people in this condition and professionals working with this target audience. Data were analysed considering the problem of free choice, identifying some of the crucial debates which may be conditioning societal choices. There is a growing trend in the phenomenon in which structural factors may be contributing to an increase in the number of people involved, as well as the severity of the situation faced in each of the domains discussed. It is also considered that the individualization of the problem contributes to the normalization of homelessness, and it is essential to recognize that it brings back to the spotlight the debate on collective definitions of citizenship.

Keywords: homelessness; social and housing exclusion; Azores; free choice

Introdução

Nos últimos dez anos, o número de pessoas em situação de sem-abrigo aumentou a um ritmo alarmante em quase todos os países da União Europeia. Segundo a oitava edição do relatório da Fondation Abbé Pierre, pelo menos 895 000 pessoas nesta condição dormiam ‘sem teto’ ou em alojamento de emergência em 2022, sendo igualmente preocupante o aumento de 70% na última década (Fondation Abbé Pierre & FEANTSA, 2023). Em Portugal continental, os dados relativos a 31 de dezembro 2021 indicaram a existência de 8209 pessoas em situação de sem-abrigo, estando 3420 em situação de sem teto e 4789 em situação de sem casa. Só a Área Metropolitana de Lisboa concentraria 58% dos casos, seguindo-se a Área Metropolitana do Porto com 15% (ENIPSSA, 2022).

A existência de situações de sem-abrigo é indicadora de violação dos Direitos Humanos, aspeto que a recente pandemia Covid-19 agravou. Este contexto inédito evidenciou a maior exposição das pessoas em situação de sem-abrigo a situações de vulnerabilidade e deu visibilidade a desigualdades habitacionais mais amplas e à falta de habitação acessível (Baptista et al., 2020). Estas preocupações motivaram, aliás, um relatório da Provedoria de Justiça (2021), que analisa a situação recente em Portugal.

As explicações individualistas ainda têm um peso muito importante nas perceções públicas sobre o fenómeno o que, tendendo a imputar a responsabilidade pelo problema no indivíduo, condiciona o debate, assim como as respostas sociais e políticas neste campo. De facto, um estudo comparativo envolvendo oito países europeus apontou a relevância das questões comportamentais e da livre escolha na formação de perceções negativas em relação às pessoas na condição de sem-abrigo. Os resultados relativos a Portugal sublinharam o reconhecimento da necessidade de respostas sociais, mas uma boa parte dos respondentes (67,6%) entendia que quem permanece nessa condição o faz por escolha e os comportamentos aditivos eram apontados como sendo a principal causa explicativa (Petit et al., 2019). Este é um debate de longa data que atravessa análises teóricas e a pesquisa sobre a situação de sem-abrigo, verificando-se alguma polarização de posições: por um lado, aquelas que sublinham os fatores de natureza individual e, por outro, as que enfatizam os fatores de natureza estrutural (Busch-Geertsema et al., 2010).

Nos Açores, o fenómeno também tem sido foco de controvérsia, mas até muito recentemente desconhecia-se a sua real dimensão, o que dificultava o aprofundamento do debate sobre a sua natureza.1 Este artigo pretende contribuir para responder a esta lacuna, através da discussão dos resultados de um estudo exploratório que incide sobre aquela Região. Começamos por olhar a questão da escolha, para depois refletir sobre o significado de estar em situação de sem-abrigo.

Uma questão de escolha?

As explicações mais comuns para a situação de sem-abrigo podem ser agrupadas, grosso modo, em duas categorias - as individualistas e as estruturais. As primeiras dominaram os desenvolvimentos iniciais da pesquisa e colocam o foco sobretudo nas caraterísticas pessoais e nos comportamentos de quem está nessa condição. Estas abordagens sugeririam que estar sem-abrigo resultaria de problemas pessoais como doença mental e comportamentos aditivos. Ora, nos anos 80, à medida que o número de pessoas em situação de sem-abrigo foi aumentando, tornou-se mais difícil sustentar este tipo de argumentos, verificando-se uma viragem para explicações mais estruturais. Foi assim colocado maior ênfase em fatores relacionados com as estruturas sociais e económicas - como a pobreza, caraterísticas do mercado de trabalho (e.g. desemprego e desvalorização salarial), condições de provisão de habitação ou, ainda, mudanças nas caraterísticas dos estados sociais e na cobertura da proteção social (Busch-Geertsema et al., 2010; Baptista & Marlier, 2019).

A par destas evoluções conviviam vários tipos de abordagens metodológicas e tradições teóricas e disciplinares em cada país, pelo que a abordagem individualista nunca foi totalmente abandonada. Na verdade, começou a surgir um largo consenso - académico e político - de que, embora as perspetivas estruturais fossem essenciais para corrigir explicações patologizadoras, falhavam em explicar porque, apenas, algumas pessoas e agregados acabavam por ficar numa situação de sem-abrigo (Busch-Geertsema et al., 2010). Autores como Rossi (op. cit. Bento e Barreto, 2002) sublinham a necessidade de estudos que combinem as caraterísticas pessoais - que ajudem a perceber como se chega à condição de sem-abrigo - e a identificação de fatores estruturais gerais - que permitam conhecer a dimensão do problema, a sua escala. Outros autores propõem uma abordagem biopsicossocial , focada na ecologia desta condição, onde se reconhece um processo de interação, a diferentes níveis, de uma multiplicidade de fatores, desde as condições individuais às circunstâncias ambientais e estruturas socioeconómicas (Nooe & Patterson, 2010).

Manifestando-se num continuum temporal como sendo circunstancial, episódica ou crónica (Nooe & Patterson, 2010), a condição de sem-abrigo é um processo multifatorial de ordem individual e estrutural que se carateriza pela privação, a falta de recursos e a perda de laços com a família e sociedade (Bento & Barreto, 2002). Na perspetiva que aqui se adota, entende-se que é na interface entre fatores de ordem estrutural, política e comportamental que poderemos aprofundar a compreensão deste tipo de problemática e contribuir para processos de transformação social.2 O problema não pode ser abordado, focando apenas fatores causais e ignorando a sua dimensão temporal, assim como o espectro de resultados individuais e societais. Importa ainda sublinhar que episódios de falta de abrigo têm consequências individuais e sociais, habitualmente prejudiciais para o bem-estar individual, afetando negativamente as interações sociais dentro da comunidade (Nooe & Patterson, 2010).

Assinale-se ainda o alerta de Busch-Geertsema et al. (2010), ao apontar que o consenso estabelecido nesta área de pesquisa seria mais ideológico do que empírico visto que se verificam lacunas na pesquisa sobre como podem fatores adversos - individuais e coletivos - confluir para desencadear uma situação de sem-abrigo e como variáveis relevantes podem afetar os padrões, em diferentes países. Além do papel relativo dos vários níveis de mecanismos causais (Fitzpatrick, 2005, op. Cit. Busch-Geertsema et al., 2010), os autores destacam a necessidade de incorporar o papel da agência nas discussões sobre o tema, evitando ora a vitimização, ora a patologização. Nesta linha de ideias, podemos afirmar que os indivíduos farão certamente escolhas que os poderão conduzir a situações de risco de sem-abrigo, porém as escolhas feitas coletivamente constituirão igualmente fatores que se poderão refletir em maiores taxas de sem-abrigo na população em geral, ou entre grupos socialmente excluídos (Shinn, 2010).

A análise baseou-se em três contributos teóricos fundamentais.

Um primeiro, de natureza filosófica, consistiu na exploração das possibilidades de diagnóstico social através da leitura que nos propõe Axel Honneth (2009) sobre a dialética negativa de Theodor Adorno (1975), procurando especificar as particularidades da forma de vida que geram e sustentam o sofrimento (Fontes, 2022). A conceção de crítica, aqui utilizada, fornece uma análise das estruturas de impossibilidade que distinguem a realidade, requerendo uma atenção especial à capacidade de experiência não recortada e ao desenvolvimento das capacidades reflexivas e de relação com o mundo de uns indivíduos, cujas potencialidades correm o risco de ficarem entorpecidas na práxis social em que a falsa consciência é a forma de consciência normal. Face a este perigo propomos a redefinição da relação sujeito-objeto, no sentido de potenciar espaços de experiência e reflexão, capazes de abrir brechas que ultrapassem o sempre-igual e questionem a lógica da reprodução social que penetra até às esferas mais íntimas da vida (Honneth, 2009; Fontes, 2022).

Recuperando o conceito de escolhas trágicas de Nussbaum (2000), enquadra-se uma segunda perspetiva teórica, igualmente importante para a compreensão desta problemática. As escolhas são trágicas quando se referem a situações em que nenhuma das alternativas é moralmente aceitável, e em que todas elas acarretam sérios danos morais na perspetiva do próprio sujeito. As escolhas não constituem apenas uma resposta à questão sobre 'o que fazer'. Para o sujeito da escolha pode não existir pura e simplesmente “uma resposta correcta” (Nussbaum, 2000, p. 1007) e a ação que é exibida pode ser uma ação em conflito onde os valores, entendidos como dimensões fundamentais da identidade ou do caráter do sujeito, são violados (Costa, 2008). A escolha permanece por isso forçosamente em aberto. As condições que subjazem à natureza trágica das escolhas são, quase sempre, de natureza institucional. Remetem para deliberações coletivas, para o modo como nos organizamos coletivamente, como tratamos da provisão de vários aspetos materiais da vida - os cuidados de saúde e a habitação serão aspetos fundamentais a ter em conta.

O terceiro contributo considera o esforço encetado pela European Federation of National Organisations Working with the Homeless (FEANTSA) na operacionalização do conceito de sem abrigo, no sentido da uniformização de procedimentos e da busca de uma linguagem comum aos diferentes países europeus. Para o efeito, foi validada a tipologia ETHOS (Edgar, 2009; Busch-Geertsema et al., 2010), que é aqui explorada. Partindo do reconhecimento desta situação como um dos mais graves exemplos de exclusão social, a proposta dos autores visa estabelecer uma definição operacional para efeitos estatísticos, tendo em conta a variação da extensão e profundidade de diferentes formas de estar sem-abrigo e na relação com vários tipos de exclusão social. A análise que adiante se apresenta visa sobretudo refletir sobre o significado de estar em situação de sem-abrigo tendo por referência a questão da escolha, considerando os domínios da situação de sem abrigo e exclusão habitacional propostos pelo modelo ETHOS (vide adiante), e aprofundando o tipo de relações sociais envolvidas na experiência de estar sem abrigo. Pretende-se, através de operações de abstração concetual (Danermark et al., 2019), avançar no apuramento do tipo de relações sociais que poderão estar envolvidas quando abordamos a condição de sem abrigo, um aspeto essencial para o refinamento teórico que suportar a análise dos fatores e dos mecanismos de causalidade associados ao fenómeno em estudo.3

Estudo exploratório - metodologia

O estudo exploratório, decorrido entre março de 2021 e julho de 2022, assentou num quadro metodológico de investigação-ação participativa, incluindo a combinação de metodologias extensivas e intensivas (videtabela 1). Num primeiro momento foi realizado um inquérito online, idêntico ao utilizado no continente português pela ENIPSSA 2017-2023, visando objetivos de contagem e caraterização sociodemográfica da população do estudo. Foram obtidos 31 inquéritos válidos, referindo-se à data de 31 de dezembro de 2020. A maior parte destes inquéritos (58%), reporta-se ao Instituto da Segurança Social dos Açores (ISSA); 29% a Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) que trabalham com pessoas nesta condição e 13% a autarquias locais - sendo que, destas, metade corresponde a serviços de ação social das mesmas. Foi também realizado um trabalho de caraterização das políticas e dispositivos institucionais existentes na região (públicos e privados), assim como dos atores relevantes a atuar no setor, com base na análise de legislação e outra documentação relevante. Os dados resultantes do inquérito e dos grupos focais (FG) foram triangulados com indicadores estatísticos e demográficos. Complementando a análise com os resultados do inquérito, a par de outros indicadores estatísticos, tentámos ultrapassar o risco de gerar um tipo de conhecimento centrado em biografias individuais (Busch-Geertsema et al., 2010), ignorando fatores estruturais subjacentes.

Tabela 1 O desenho da pesquisa 

Objetivos específicos Metodologia Fontes
Efetuar uma caraterização sociodemográfica Inquérito online Profissionais de entidades a trabalhar com este público
Analisar os contextos institucionais e socioeconómicos Análise documental; Análise de indicadores estatísticos Legislação regional, nacional e internacional; INE; Portal do Governo da RAA
Aprofundar conhecimento e tomada de consciência Focus group (FG) Pessoas em condição de sem-abrigo; Profissionais
Sustentar a elaboração de propostas de política e estratégias de intervenção social Seminário final Pessoas em condição de sem-abrigo; Profissionais e outros atores; Decisores políticos

Num segundo momento, foram realizados seis grupos focais, visando contribuir para reequacionar formas de olhar a condição de sem-abrigo, partindo do envolvimento de atores cuja perspetiva é considerada potencialmente relevante para a compreensão da problemática em estudo (Rabiee, 2004): três grupos focais contaram com a participação de pessoas nesta condição e os restantes três, de profissionais que atuam junto a este grupo-alvo (tabela 2).

Tabela 2 Composição dos grupos focais 

Os guiões de entrevistas incluíram uma série de questões abertas, orientadas para a exploração dos seguintes objetivos: (i) aprofundar a compreensão da natureza da condição de sem-abrigo, nos seus diferentes domínios (físico, legal e social) e, numa perspetiva temporal, (ii) contribuir para compreender os fatores e causas associados a esta condição; (iii) identificar possíveis condições facilitadoras da resolução deste problema social.

Mais do que oferecer um retrato do fenómeno, pela descrição e quantificação, a análise visou olhar esta realidade a partir das perspetivas dos dois tipos de atores entrevistados - foram, assim, elencados temas, questões e debates levantados. Além disso, os grupos focais foram entendidos como fóruns para a geração de discursos públicos, sendo por isso importante observar cenários de desacordo, conflito e contradição, identificando o surgimento de “vozes dissidentes” e “dominantes”, assim como as opiniões que se formam e evoluem ao longo da sessão, e a formação de vozes coletivas (Smithson, 2000).

Foi, assim, estabelecida uma estrutura de análise que conjugou os objetivos enunciados anteriormente com os temas que surgiram ao longo da conversação, definindo três grupos de categorias: (i) condição de sem-abrigo; (ii) contribuir para compreender os fatores e as causas; (iii) propostas de respostas e estratégias.

Um fenómeno em crescimento, sobretudo na ilha maior

Os resultados do inquérito indicam que a 31 de dezembro de 2020 existiriam 493 pessoas em situação de sem-abrigo nos Açores. A maior parte delas, 78,7% (388 pessoas), estariam numa condição de sem casa, ou seja, tinham onde dormir, mas encontravam-se dependentes das respostas institucionais, em Centros de Alojamento Temporários (CAT) ou alojados em quartos, usufruindo de apoio ao pagamento, total ou parcial, da renda, por parte de serviços sociais ou outras entidades. As restantes, 21,3% (105 pessoas) pernoitavam habitualmente na rua ou outros espaços públicos, em locais precários ou em abrigos de emergência.

Embora as comparações com os resultados do ENIPSSA obtidos no continente português, relativos ao mesmo período, devam ser encaradas com reserva (podem existir diferenças nos procedimentos de acesso à informação, por exemplo), não podemos deixar de observar que a proporção registada na Região Autónoma dos Açores (RAA) é superior à média nacional (videFontes et al., 2022b).4 À data (2020), esta região apresentava uma maior proporção de pessoas em situação de sem-abrigo por mil habitantes (2,00‰) do que a estimada no continente (0,84‰) e era superior aos maiores valores registados, nomeadamente na Área Metropolitana de Lisboa (1,67‰) e no Algarve (1,39‰).

Observando os resultados absolutos por ilha (Tabela 3), destaca-se a ilha de São Miguel com maior número de pessoas nestas condições (373), seguida da Terceira (66) e do Faial (21). Comparando com a população de cada uma das ilhas, percebemos que o caso de São Miguel continua a ter maior relevância no cenário regional apresentando uma proporção de 2,71 por mil habitantes, mais do que a Terceira ou o Faial (com 1,17‰ e 1,4‰, respetivamente). Considerando a incidência por concelho (videFontes et al., 2022a e 2022b), a situação de Ponta Delgada é especialmente preocupante: cinco em cada mil residentes neste concelho estariam em condição de sem-abrigo.

Tabela 3 Pessoas em situação de sem-abrigo, por ilha (frequência e proporção por mil habitantes), e em cada uma das categorias - sem teto e sem casa (frequência e %) 

Gráfico 1 Pessoas em situação de sem-abrigo, na RAA, por duração (frequência e %) 

Considerando a duração (Gráfico 1), mais de um terço das pessoas (41%) estavam numa condição de sem-abrigo há mais de um ano e menos de 5 anos e 17% há mais de 5 e menos de 10 anos. Embora 26% estivessem nesta condição há menos de 1 ano - 15% entre 6 meses e 1 ano; 11% menos de 6 meses -, não podemos deixar de sublinhar o forte peso das situações de permanência prolongada nesta condição.

A grande maioria das pessoas sinalizadas no inquérito é do sexo masculino (82%), uma percentagem similar à nacional (79%). Esta proporção é um pouco superior no caso de quem estava em situação de sem teto (84%). (Gráfico 2)

Gráfico 2 Pessoas em situação de sem-abrigo e em cada uma das condições, sem teto e sem casa, na RAA, por sexo (%)  

Gráfico 3 Pessoas em situação de sem-abrigo (sem teto e sem casa), na RAA, por idade (%) 

No que concerne à idade (Gráfico 3), mais de metade tem entre 45 e 64 anos de idade. Verifica-se, no entanto, uma deslocação para categorias etárias mais jovens no caso da condição de sem teto, com destaque para o segmento etário dos 31 aos 44 anos de idade, que engloba 42% das pessoas nesta condição.

No concerne à escolaridade (Gráfico 4), repare-se que a grande maioria (80%) detinha o 3º ciclo do ensino básico ou menos. Dessas, 14% não tinha qualquer qualificação escolar e 36% apenas o 1º ciclo do ensino básico. Estes dados vão ao encontro do que registam outros estudos nacionais e europeus, que apontam os baixos níveis de escolaridade entre as pessoas em situação de sem-abrigo (ENIPSSA, 2022; Baptista & Marlier, 2019).

Gráfico 4 Pessoas em situação de sem-abrigo, por nível de escolaridade (frequência e %) 

A leitura dos resultados do inquérito relativos à fonte de rendimentos (Gráfico 5) aponta a importância de formas de solidariedade ou apoio social em situação de pobreza extrema, na garantia de um mínimo de subsistência para as pessoas que estão em situação de sem-abrigo.

Gráfico 5 Fontes de financiamento de pessoas em situação de sem-abrigo 

Como se pode observar neste gráfico, 66% das pessoas nesta condição beneficiavam do Rendimento Social de Inserção e 17% recorriam a prestações ou dádivas de caráter pontual (monetário ou em género) como forma de subsistência. Considerando a baixa cobertura e a natureza provisória e condicional deste tipo de recursos - renovação anual no caso do RSI, eventual nos restantes casos - estes dados apontam para situações de grande privação e precariedade.5

O que significa estar sem-abrigo?

Face à questão “o que é estar em situação de sem-abrigo?”, muitas das narrativas recolhidas remeteram diretamente para a questão da causalidade, ora sublinhando uma ideia de livre escolha, ora enfatizando constrangimentos. Isto reforçou o entendimento de que a decomposição dos significados atribuídos à condição de sem-abrigo, nos seus diferentes domínios, permite aprofundar a forma como se desenvolvem os discursos de causalidade associados.

O uso do modelo ETHOS (Edgar, 2009; Busch-Geertsema et al., 2010;) para análise das dinâmicas conversacionais geradas nas entrevistas coletivas revelou-se particularmente interessante. Esta tipologia distingue três domínios constituintes de uma casa - físico, legal e social -, cuja ausência deve ser tida em conta para delimitar o fenómeno (figura 1).

Fonte: Adaptado de Edgar (2009, p.16)

Figura 1 Os domínios da condição de sem-abrigo e a exclusão habitacional 

A adaptação da tipologia ETHOS resultou na identificação de três domínios, aprofundados nos três pontos seguintes.

Domínio físico e material

No domínio físico, ter uma casa pode ser entendido como ter um teto e um espaço digno para responder às necessidades de uma pessoa e da sua família (Busch-Geertsema et al., 2010).

Apesar do conceito de sem-abrigo abranger ambas as categorias, sem teto ou sem casa , nos FG’s realizados (em particular aqueles envolvendo pessoas nesta condição) foi a ideia de estar ‘sem teto’ que ganhou especial ressonância afetiva na experiência de quem passa por essa condição - no presente ou no passado, mesmo que por poucos dias:

D1 - Cada caso é um caso. Eu, por exemplo, eu só tive 4 dias “no caminho” (…) Isso foi assim, no primeiro pontapé de saída, eu tive de me organizar, tive que terminar dormir no calhau, ãh? Ratos a passar por cima de mim, na boa. A sério. Mas quem passa é que sabe. […] No meu [caso] foi só quatro dias, não é? Mas naquele dia que eu fiquei mesmo, mesmo pelo caminho, a minha cabeça não deu para o suicídio. Isso então estava longe de pensar nisso. (...) Mas eu digo mesmo a verdade, é preciso, a gente fica vazios. Completamente vazios. A gente não sente nada. Aquela hora, eu não sentia nada.”

“Agente fica vazios” [FGSA1] , “eu sei o que é a escuridão” [FGSA2], foram algumas das expressões mais impactantes associadas ao significado de estar sem-abrigo, parecendo partir de uma leitura estrita assente na condição de sem teto, encarada como a mais gravosa e marcante nos percursos pessoais. Dormir no caminho, na rua, no ‘calhau’, na praia, na mata ou em casas abandonadas, foram as circunstâncias consideradas distintivas da condição, enquanto a exposição ao frio e às condições climatéricas foi referida como sendo o ‘pior’ de estar nesta condição, a primeira necessidade a acautelar: ‘um gajo está abrigado e depois vai-se remediando.’ [FGSA3].

Repare-se que esta situação de exclusão habitacional implica não se ter condições de higiene e de conforto - local para dormir, tomar banho, comer ou suprir outras necessidades humanas fundamentais. Por esta razão estão comprometidas condições fundamentais para a realização de uma vida digna. E é também por esta razão que se tem desenvolvido um conjunto de respostas que, embora tenham um cariz paliativo e não permitam solucionar o problema habitacional, procuram endereçar necessidades que ficam comprometidas - especialmente precarizadas nas situações de sem teto.6

Um aspeto que se destacou da análise das entrevistas é que, para as pessoas na condição de sem-abrigo entrevistadas, mesmo uma definição estrita assente no conceito de sem teto excluiria as situações de acolhimento em CAE.7 Isto sugere que a possibilidade de ter acesso a um espaço para satisfazer estas necessidades contribui para atenuar a perceção de exclusão no domínio físico. Além disso, a alimentação parece ser considerada como sendo contingente à condição, mas não deixa de ser uma preocupação comum (especialmente durante o fim de semana, no caso de Ponta Delgada) e um critério de valoração e decisão importante de diferentes respostas e dispositivos institucionais - por exemplo, entre um acolhimento em dispositivo institucional (de emergência ou temporário) e uma situação que possa configurar uma situação de maior autonomia (como apoio no pagamento de quarto) a escolha pode, muitas vezes, recair sobre a primeira que lhe dá segurança ao nível da alimentação.8

Foram também identificadas outras necessidades como higiene, segurança e garantia da integridade física. É importante, por isso, considerar uma definição lata dos aspetos materiais associados à “casa”. O grupo de Angra de Heroísmo, composto por homens enquadrados num CAT (Centro de Acolhimento Temporário), concretizou de forma bastante clara as componentes de uma casa com condições:

“F6 - Eh pá, uma casa em condições é uma casa que não tem ratos, nem nada. Uma casa limpa. Está a perceber?” F3 - É ter as condições, ter uma mesa para comer, é ter máquina, F1 - Ter água, luz. F3 - Televisão. Ent1 - Portanto, não é só o edifício… F1 - Não é só o edifício em si. F3 - É também... F6 - É ter uma cama. F1 - Os eletrodomésticos F6 - Armários, casa de banho, etc. etc. F1 - Lava-loiça. F3 - Casa de banho, é muito importante.”

A diferença entre situação de sem casa e sem teto foi um dos temas que gerou debate na maior parte das entrevistas. A discussão gerada apontou que explorar o domínio físico e material poderá ser decisivo para apurar essa distinção e que a consideração dos outros dois domínios - e, em particular, com os aspetos relacionados com a insegurança de posse e a ausência de titularidade legal para habitar - é fundamental, aspetos essenciais do significado de estar sem abrigo. Este é um dos temas abordados no tópico seguinte.

Domínio legal, normativo e de cidadania

A artificialidade de uma definição da situação de sem-abrigo, com base estritamente formal ou administrativa e não tanto sociológica, foi levantada no grupo focal envolvendo profissionais deste campo, do grupo central e ocidental:

“Mas, por exemplo, um utente que vá do meu centro para uma clínica de desintoxicação, deixa de estar em condição de sem-abrigo no período em que está na clínica? (...) E definir se é ‘sem teto’ ou ‘sem casa’, isso quer dizer o quê? Distingue um teto de uma casa? A mim, pessoalmente, não faz muito sentido. Mas também não posso dizer que já perdi o tempo todo a pensar nisso.” [FGP3]

Segundo Busch-Geerstema et al. (2010) ter uma casa implica também, num domínio legal, ter posse exclusiva, segurança de ocupação e titularidade legal que permita habitar um determinado espaço. Ora, este é um requisito que distingue a condição de sem-abrigo (sem teto ou sem casa) de outras formas de exclusão habitacional, colocando-se como obstáculo a inexistência de morada legal.

“Em relação ao drop-in, a morada serve para instrumentalizar um apoio (...) que está vinculado a uma morada fiscal (...) É óbvio que não termina a situação de sem-abrigo mas dá um acesso a certos apoios nomeadamente da segurança social (...)9 [FGP2]

A questão da morada legal acaba por ser contornada pela intervenção direta ou indireta dos atores institucionais e permite, por exemplo, o acesso a apoios sociais ou, pelo menos, a abertura de um processo administrativo desse tipo.10 Em qualquer caso, esta prática não permite ultrapassar a componente da insegurança de ocupação e a própria titularidade legal para habitar. Este tema acaba por ser abordado mais adiante na mesma entrevista coletiva. Além disso, em várias entrevistas foi apontada a insegurança de ocupação como sendo estruturante à condição de sem-abrigo, podendo prolongar-se ao longo do tempo.

Apesar desta insegurança poder estar associada a outras formas de exclusão habitacional (vide legenda da Figura 1), argumentamos que é de especial relevância para a compreensão da experiência psicológica e sociológica de estar sem-abrigo. É também importante ter em conta que essa insegurança se coloca, de forma mais ou menos marcada, conforme se está em condição de sem teto ou sem casa, condicionando de forma distinta as possibilidades de intervenção.

“A mim faz sentido distingui-los, apesar da base ser mais ou menos a mesma. Mas temos de diferenciar aquilo que é estar completamente sem teto. E que eles sentem uma necessidade diária, a preocupação diária... é pensar onde é que vão dormir, ou aniquilar a dor e, portanto, fazem consumos para aniquilar aquela dor que têm diariamente de apagar; e, portanto, aqueles que são considerados os ‘sem casa’ já têm aqui algumas das suas necessidades mais básicas asseguradas e já conseguimos trabalhar, com eles, um conjunto de outras coisas que não conseguimos trabalhar em pessoas em situação total de ‘sem casa’, ou mesmo que em acolhimento de emergência. (...) Claro que as vulnerabilidades e a exclusão social se mantêm.” [FGP3]

Assim, é muito mais difícil apoiar a formulação e desenvolvimento de trajetórias de autonomização pessoal quando a insegurança é permanente e constitui uma preocupação diária.

A experiência da situação de sem-abrigo pode ser mais facilmente compreendida quando exploramos este domínio considerando aspetos normativos e de cidadania mais vastos do que uma perspetiva estritamente legal sugerida na modelo ETHOS. Numa entrevista envolvendo profissionais que atuam com pessoas em situação de sem-abrigo, os aspetos normativos surgiram associados à incapacidade de cumprimento de regras societais, em larga medida relacionada com fatores de natureza pessoal - mental e comportamental.

“T1 - Para mim, ser, estar numa situação de sem-abrigo - (...) portanto, é uma pessoa, de facto, que acaba por não ter condições em todos os aspetos para manter aquilo que a sociedade de alguma maneira assim impõe, não é? Para mim, de alguma maneira, acaba por ser uma escolha de vida, apesar de ser muito complicado e de haver muitas condições negativas associadas, acaba por ser assim.… Quando nós vamos lá para tentar ajudar uma pessoa que por diversas vezes diz que não, (...) até que ponto podemos ter aqui de trespassar a liberdade da pessoa, não é? É só uma questão retórica (...) a pessoa não ter condições de facto para viver consoante as regras que a sociedade dita... Condições em todos os aspetos, económicos, emocionais etc…” [FGP1]

Numa primeira posição - que esteve presente na maior parte das entrevistas, abarcando os dois tipos de atores - o cumprimento das regras da sociedade passaria desde logo por ter trabalho, rendimentos, o que seria encarado como parte do “ciclo normal de vida” e um requisito para ter casa. Tratar-se-ia de uma cadeia de acontecimentos que, partindo da perda de emprego, permitiriam situar o problema num domínio pessoal e de natureza mental. Na mesma linha de ideias o acesso à habitação estaria condicionado à resolução destas problemáticas.

“T5 - Eu acho que para um país europeu como Portugal (...), num país como o nosso, que diz ser um país evoluído e tudo, deve ser das formas mais tristes de alguém viver. Porque acho que há aqui ausência daquela estrutura básica, que está na constituição, de ter um teto…. E depois isto, com todas as nuances, as questões das dependências, do desemprego e de tudo mais… [pausa] Isto é quase sempre uma espiral em descendente. A partir do momento em que cai… Ah! eu já estou há algum tempo aqui [a trabalhar nesta área], e é raro ou muito raro, aquele que sai desta espiral... Porque esta falta de teto, eu acho que dá uma sensação de abandono, de solidão total. Eu muitas vezes, principalmente nesta época [meados de Fevereiro], quando falo com utentes, faço um esforço maior ainda para que eles aceitem os acolhimentos.... Lá está, é uma escolha para muitos deles não aceitarem o acolhimento: porque o acolhimento tem horários; tem regras que eles às vezes, eles não querem cumprir, etc., etc. E nesta altura do Inverno, mexe mais com a minha cabeça quando estou num atendimento com eles - ‘mas porque é que não, e porque é que fica’...” [FGP1]

Na perspetiva apresentada anteriormente [T1] foi referida a norma do emprego como condição de integração, sugerindo conceções de cidadania assentes numa lógica de workfare e centradas no indivíduo (Fernandes, 2019; Piven, 1998; Scott, 1994). Esta outra perspetiva [T5] reequaciona os temas da liberdade e da escolha, enquadrando-os num plano societal mais vasto e no princípio constitucional do direito à habitação. Como alerta as Nações Unidas, a própria condição de sem-abrigo representa uma violação de um direito humano fundamental, inscrito em 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O direito à habitação está também salvaguardado desde 1976 pelo artigo 65º da Constituição da República Portuguesa.

“T5 - E depois acho que esta situação do abandono e da solidão, acho que eles passam à invisibilidade. Nós cada vez vemos mais e começamos a relativizar as coisas. Começamos a achar que é normal. Se fosse há 10-15 anos atrás, não se via tanta gente como se vê agora, a dormir na rua, a mexer nos caixotes do lixo.”

A condição de sem-abrigo é invisibilizada, ao mesmo tempo que a exclusão e a desqualificação social são naturalizadas. Estas questões foram emergindo a partir da própria reflexão sobre os conceitos - sem teto e sem casa - para expressar os dilemas que essa circunstância coloca a quem, tendo esta consciência, tem como tarefa procurar respostas individualizadas para pessoas nestas condições.

“T7 - Relativamente ao conceito e esta noção, acho que foi muito importante para nós. Durante alguns anos andávamos aqui (...) um bocadinho perdidas. Sem-abrigo abarcava quarto, não abarcava quarto; abarcava CAT, não abarcava. (...) Porque é como o colega [T5] dizia, a Constituição implica ter o direito à habitação. E quando a pessoa não tem esse direito, não está abrangida no mercado, (...) essa pessoa é considerada uma pessoa sem casa, que pode ou não estar sem teto. (…) Acho que para nós, (...) essa distinção fez todo o sentido e ajudou-nos imenso na qualificação de dados. Até a própria leitura da realidade, da adaptação dos planos a cada um deles, no respeito do tempo de cada pessoa, (...) ajudou-me bastante a clarificar essa realidade.”

Este enquadramento, articulando necessidades e sentimento de pertença na comunidade, obriga-nos a refletir sobre a possibilidade das definições e efeitos legais dependerem não apenas de aspetos normativos e administrativos no sentido estrito, mas também das definições coletivas de cidadania histórica e culturalmente estabelecidas em torno das próprias noções relacionadas com o modo como estruturamos a nossa sociedade e como vivemos juntos.

Domínio social, relacional e afetivo

A terceira dimensão, também importante para a questão da exclusão habitacional, reconhece a necessidade de espaço que nos permita preservar a nossa privacidade e usufruir de relações sociais (Busch-Geertsema et al., 2010). Este é um domínio que fica comprometido na condição de sem-abrigo, e também aqui encontramos um conjunto de significados relacionados com aspetos relacionais e afetivos associados a experiências de exclusão social. Assim sendo nomeamos esta categoria de domínio social, relacional e afetivo.

Este domínio teve bastante peso nas entrevistas com pessoas sem-abrigo - quase tanto quanto o físico e material - em particular pela relevância das significações afetivas e emocionais inerentes à experiência desta condição, em particular nas situações de sem teto. Um primeiro significado está relacionado com privacidade em sentido estrito e ganhou ressonância apenas nas referentes a Ponta Delgada e São Miguel. No FGSA1 a questão da privacidade surgiu associada à questão da insegurança de ocupação, “na luta de conseguir as coisas” e na dificuldade em conseguir o seu próprio espaço, que é disputado todos os dias, o que seria mais acentuado na condição de sem teto:

“D4 - No sem casa a gente consegue-se orientar, ter as nossas coisinhas, não é? A nossa cama que a gente tem todos os dias e pronto, é uma pequena diferença, temos a alimentação. No sem teto é tudo desorganizado, a gente tem que ir primeiro, conseguir o nosso espaço, não é? A nossa cama, a nossa refeição, é tipo uma luta. D2 - A drop in é todos os dias isso.”

De forma distinta de outras condições sociais associadas à pobreza e à exclusão social, como é o caso do desemprego, ficar sem “casa” (home) representa a perda do “local privado onde as pessoas restauram os seus sistemas de segurança” (Fontes, 2012, p. 207), colocando em causa o próprio sentimento ontológico de segurança, essencial para o desenvolvimento da individualidade pessoal. Por exemplo, soluções como as do acolhimento em albergue não garantem o direito à intimidade e à privacidade, pois não é uma casa, é um sítio transitório, com uma lógica de funcionamento correspondente à de um espaço público, em que o sentido de individualidade está comprometido (Fontes, 2012, pp. 207-208)

“A vivência do espaço é fundamentalmente a de um espaço público, sem privacidade, com preocupações constantes sobre o que acontece à nossa volta, o que afeta necessariamente o sentido de individualidade pessoal, como algo único e interior, pela ausência de um espaço de privacidade em que o indivíduo possa habitar o seu mundo próprio, algum tempo.”

Numa outra entrevista a dimensão relacional da privacidade foi um pouco mais explorada, compreendendo-se que esta privacidade tende a estar condicionada ou ameaçada pelo tipo de relações estabelecidas:

“E1 - Eh senhora, às vezes está numa casa ou num quarto e o que estraga, às vezes, é o pessoal que está lá a morar. (...) Fugir dali para fora e arranjar um sítio… nem que seja uma gruta que pelo menos… estar em paz...” [FGSA2]

Foi uma conceção mais lata do social, envolvendo tanto as redes de sociabilidade - em particular a família - como aspetos mais simbólicos, que ocupou uma parte importante da narrativa em torno da dimensão social. Esta condição está associada a experiências de estigmatização social que, sendo interiorizadas e representando uma quebra da norma do alojamento, envolvem processos de desafiliação (Fontes, 2012).

Em vários excertos verifica-se uma associação entre o sentimento de solidão, o isolamento e a própria experiência de estar sem-abrigo. Além disso, perder a ligação social e o sentimento de “não pertencer a lado nenhum” apontam para outras dimensões de exclusão social. A quebra dos laços familiares pode ser encarada quase como uma fatalidade, inerente à própria condição, ora como fator gatilho, ora contribuindo para a sua perpetuação:

“D4 - Não ter família… não ter amigos… Sermos rejeitados, não é?, não ser aceites... pela família, no sentido… pelas pessoas... D1 - A gente tem família, srª, a gente temos família. Mas eles ajudam uma, duas, três vezes… [falando baixinho] Agora... desenmerda-te! Ent1 - Então temos aqui opiniões diferentes. Esta senhora [D4] diz que é não ter família... E a senhora diz D4 - É ser rejeitada... D1 - Porque tu tens família, mas não te dá a mão. Embora precises, queiras mostrar o melhor e p’a te dar a oportunidade melhor. Quem diz a família, diz de muita gente que aluga casas, quartos e tudo. Não te dão oportunidade para isso. Não dão. Não podes mostrar a ninguém que queres mudar de vida…”

Em síntese, sugerimos que a própria condição é socialmente construída a partir da ausência de um espaço onde se possa ter privacidade, recompor-se das exigências do dia-a-dia e desenvolver laços afetivos e familiares saudáveis. A ausência desse espaço deixa estas pessoas particularmente expostas ao olhar do outro, da comunidade mais vasta, e mais vulneráveis a processos de rotulagem e estigmatização social, condicionando as possibilidades e caminhos alternativos.11

Comentários finais

O recente crescimento do número de pessoas na condição de sem-abrigo nos Açores contribuiu para que o tema ganhasse maior visibilidade no espaço público, não apenas na sua dimensão urbana e territorial, mas também na esfera de decisão pública. Em São Miguel, e sobretudo em Ponta Delgada onde os números são significativamente maiores do que no resto do arquipélago, a abertura em 2019 do Centro de Acolhimento de Emergência (CAE) naquela cidade poderá ter acentuado uma lógica de territorialização da contenda, sugerindo, como lembra Aldeia (2013, p.65), que este fenómeno tende a ser definido “não como um problema de pobreza, mas como uma questão de visibilidade”.

A tendência de crescimento sugere uma preponderância de fatores de natureza estrutural que poderão estar a contribuir para aumentar o número de pessoas envolvidas, assim como a gravidade da situação experienciada em cada um dos domínios abordados.

Neste artigo optou-se por não aprofundar dimensões mais substantivas relacionadas com os fatores e os mecanismos causais que poderão estar a operar o agravamento do problema em diferentes esferas da vida, numa perspetiva pessoal ou coletiva, mas os resultados do inquérito, assim como as entrevistas, inspiram reflexões interessantes que poderão vir ser a trabalhadas futuramente.

Uma primeira reflexão permite sublinhar o quanto a condição de sem teto é, reconhecidamente, aquela que é considerada a mais gravosa, em especial para as pessoas em condição de sem abrigo, colocando em evidência a importância do domínio físico e material. “Sair da rua” seria, em tese, a primeira meta para quem está nessa situação, de forma a evitar o pior, desde logo o frio e a chuva. Na falta de oportunidades para fazê-lo de forma autónoma, o acesso a dispositivos institucionais permitiria garantir a resposta a algumas necessidades fundamentais - além do abrigo das intempéries para dormir, a possibilidade de tomar banho, comer ou mesmo salvaguarda da integridade física - e constitui um dos elementos distintivos da condição de sem casa, relativamente à de sem teto. Importa salientar que, apesar de considerada contingente do ponto vista concetual, a questão da alimentação constituirá um importante critério de valoração e decisão na ponderação de escolhas, nomeadamente em relação a diferentes respostas e dispositivos institucionais, mesmo em situações mais episódicas e/ou iniciais.

No domínio legal, normativo e de cidadania, a questão da insegurança de ocupação ganha especial relevância para a compreensão da experiência psicológica e sociológica de estar sem-abrigo. Não sendo exclusiva desta condição, esta questão colocar-se-ia tanto a montante como a jusante do problema, quer pelas experiências de precariedade habitacional, que muitas vezes antecedem um episódio de sem-abrigo, como pelas dificuldades de ação social em situações de maior precariedade, especialmente nas situações de sem teto. Por outro lado, a experiência da situação de sem-abrigo pode ser mais facilmente compreendida quando exploramos este domínio considerando aspetos normativos e de cidadania mais vastos do que uma perspetiva estritamente legal sugerida na modelo ETHOS - por exemplo, pela incapacidade de incumprimento de normas societais dominantes relacionadas com o trabalho, alimentando - ou legitimando - processos de desqualificação social. Por esta razão, renomeamos o segundo domínio como “legal, normativo e de cidadania”, abrindo espaço a uma abordagem mais dinâmica e transformadora da experiência de sem abrigo.

No domínio social, relacional e afetivo, consideramos ser crítico o problema da pertença. A ausência de um espaço que permita preservar a privacidade e usufruir de relações sociais (Busch-Geertsema et al., 2010). Com bastante peso nas conversações analisadas, os aspetos afetivos e relacionais foram considerados críticos por colocarem obstáculos adicionais aos percursos autónomos e contribuírem para a reprodução das dinâmicas de exclusão, assim como uma vulnerabilidade acrescida a processos de estigmatização e marginalização social e ao sentimento de desafiliação. Essa foi a principal razão para entendermos ser pertinente considerar um domínio “social, relacional e afetivo”.

Uma última reflexão aponta para aquilo que se designou como problema normativo. Estar sem-abrigo pode ser visto como resultado de uma incapacidade de cumprimento das regras da sociedade, sobretudo por fatores do foro mental e comportamental - uma espécie de “espiral descendente”. Sob pena de condenarmos uma parte da sociedade ao custo das escolhas trágicas (Nussbaum, 2000), é essencial reconhecer que este problema pode ser visto numa segunda perspetiva que aponta para definições de cidadania assentes na responsabilidade coletiva e indica uma incapacidade societal, em múltiplas dimensões. Veja-se como a resposta à mais gravosa forma de exclusão habitacional, ocorre num contexto de recursos limitados, onde a garantia constitucional do direito à habitação é tantas vezes negada e como esta se relaciona com escolhas políticas e coletivas sobre o modo como se considera a provisão de habitação. Ou, ainda, como a insuficiência de respostas coletivas no que toca à saúde mental, por exemplo, após episódios de institucionalização, pode levar a que estas pessoas fiquem em situação de sem-abrigo, constituindo esta um fator de exacerbamento da doença mental. A individualização que estas políticas muitas vezes promove, veiculada por visões sobre a liberdade de escolha, concorre para a normalização da condição de sem-abrigo. Consideramos, assim, que uma linha essencial de pesquisa futura deverá considerar a análise de indicadores e políticas em domínios fundamentais como emprego, proteção social, saúde e habitação.

Financiamento

A investigação foi apoiada pelo Projeto M1.1C/C.S./025/2019/01 - À MARGEM - Trajetórias de Vida de Rua, promovido pela Novo Dia - Associação para a Inclusão Social e financiado pela SRMCT/DRCT do Governo Regional dos Açores em concurso competitivo. A participação de Joana Pestana Lages neste trabalho é financiada por fundos nacionais através da FCT -Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto 'Care(4)Housing - A care through design approach to address housing precarity in Portugal' [PTDC/ART-DAQ/0181/2021] e do CEECIND/00473/2018.

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1 Ao longo do artigo será referida a “situação de sem-abrigo” para frisar o seu caráter mais circunstancial e relacionado com o domínio físico e material. A “condição de sem-abrigo” será utilizada para sublinhar formas mais cristalizadas e duradouras de exclusão habitacional em que, além da dimensão material e física, têm especial relevância o domínio legal, normativo e de cidadania ou ainda o domínio social, relacional e afetivo.

2Vide, por exemplo, a proposta de Brady (2019), ao fazer a revisão do debate teórico sobre o tema da pobreza.

3No que concerne à compreensão dos fatores e dos mecanismos de causalidade associados ao fenómeno, no estudo que inspirou este artigo (Fontes et al., 2022a), optou-se por apresentar uma análise organizada em função de esferas da vida e não apenas nas situações de vida dos indivíduos, procurando ultrapassar as dualidades individuo vs. estrutura. Repare-se que, ao basear o modelo ETHOS na teoria das trajetórias de vida, Edgar (2009) acaba por privilegiar o foco no individuo (e nas suas situações de vida) como base de análise das condições em que se insere. O olhar sobre as esferas de vida (Fontes et al., 2022a, pp. 49-50) - neste caso saúde, (des)emprego e/ou proteção social e habitação - permite ir além em alguns dos desafios que impulsionaram a tipologia ETHOS: o reconhecimento da situação sem abrigo como uma questão política e da teoria enquanto ferramenta empírica e para a formação de políticas baseadas em evidência (Edgar, 2012), informando tanto o diagnóstico social como a análise do tipo de deliberações coletivas mais vastas que afetam esta problemática.

4Os inquéritos são similares quanto à natureza dos interlocutores envolvidos, aos conceitos, às variáveis e ao período de referência considerado. No entanto, poderão existir nuances quanto à natureza dos interlocutores (maior peso de serviços de ação social) e aos procedimentos de acesso e aferição dos dados - destacando-se o esforço no esclarecimento dos conceitos, que poderia ser mais difícil numa escala nacional. Por esta razão deve-se ter alguma cautela quanto à realização de análises de natureza comparativa em relação ao cenário verificado a nível nacional e em outros concelhos do território de Portugal continental.

5Repare-se que, segundo o Governo Regional dos Açores (GRA) (2021), os Açores tinham a prestação média de RSI, per capita, mais baixa do país em 2020, que era de 85,4 euros, quando a prestação per capita média nacional era de cerca de 120 euros.

6É esse aliás um dos principais objetivos dos CAE (Centro de Acolhimento de Emergência).

7Algumas das regras de funcionamento do CAE de Ponta Delgada podem, comparando com outros dispositivos desta tipologia, atenuar a perceção de precariedade - e.g. possibilidade de manter os seus pertences no CAE; horário 24h por 24h; acompanhamento psicossocial e de enfermagem.

8O termo contingente é utilizado para distinguir entre aquilo que é interno e necessário na definição das caraterísticas relacionais de um determinado objeto, e aquilo que é externo e contingente, para o fenómeno em estudo (Danermark at al., 2019, p.41).

9Drop-in é o termo localmente usado pelos profissionais neste sector para se referir ao CAE.

10Uma possibilidade a explorar é relativa ao facto das diferenças territoriais nas respostas institucionais poderem afetar o significado atribuído à situação e, até, a própria interpretação dos números: por exemplo, na cidade da Ribeira Grande não existiam - à data do estudo - entidades assistenciais que disponibilizassem esse enquadramento administrativo; noutras, como é o caso de Angra e Ponta Delgada, isso já acontecia. Foram relatadas situações de mobilidade interconcelhia que poderão estar associadas a estas diferenças.

11Embora não seja aqui aprofundado, as mulheres são mais fortemente afetadas por sentimentos de insegurança e a experiência de estar sem-abrigo difere entre homens e mulheres (Mayock & Bretherton, 2016; Nobre, 2021).

Recebido: 23 de Novembro de 2022; Aceito: 02 de Outubro de 2023

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