Introdução
Nos últimos anos Portugal tem vindo a atravessar uma crise na habitação impulsionada por processos de financeirização da habitação (Aalbers, 2016) associados a dinâmicas de turistificação e gentrificação (Cruz & Gato, 2023; Mendes, 2017; Pavel, & Romeiro, 2022; Tulumello & Allegretti, 2021). A crise tem sido marcada por um aumento sem precedentes dos preços da habitação, muito acima da evolução salarial, tornando-se inacessível a camadas cada vez mais significativas da população (Santos, 2019; Santos et al., 2022). Neste sentido, a habitação está a tornar-se num mecanismo determinante de reprodução de desigualdades (Ribeiro & Santos, 2018, 2019) com importantes impactos psicossociais como ansiedade e insegurança decorrente da sobrecarga e stress financeiro e/ou perspetivas de saída forçada da habitação, sentimentos de injustiça social e desconfiança nas instituições, desfasamento entre expectativas e realidade (Cocola-Gant & Gago, 2021; França et al., 2021; Ribeiro, 2023; Silva, 2019).
A provisão de alojamento para estudantes que frequentam o Ensino Superior e se encontram deslocados, isto é, estudam num estabelecimento que se encontra a uma distância incompatível com a permanência no local de residência, não é imune a esta crise. O alojamento estudantil tem sido providenciado por residências universitárias (promovidas por via da ação social do Estado e das Instituições de Ensino Superior) e pelo arrendamento de quartos em casas particulares, uma vez que a oferta pública é escassa face à elevada procura.
Na sequência da carência de alojamento para estudantes, em 2018, o Governo socialista à altura propôs o Plano Nacional de Alojamento para o Ensino Superior (PNAES) com vista à requalificação e construção de residências para estudantes deslocados, afirmando que a disponibilização de alojamento condigno e a preços acessíveis é fundamental para o alargamento e democratização do acesso ao Ensino Superior (LUSA, 2022c). Segundo o documento de diagnóstico para a elaboração do plano (Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior e Ministério do Ambiente (MCTES-MA, 2018), em 2017 a oferta pública existente cobria apenas 13% das necessidades, com 15 370 camas disponíveis para 113 813 estudantes deslocados.
No mesmo documento é possível identificar a heterogeneidade regional tanto nas necessidades de alojamento estudantil como na oferta pública. A maior percentagem de estudantes deslocados encontra-se fora das duas principais áreas metropolitanas: 69% no Douro e 68% na Beira Baixa, face a 30% na Área Metropolitana de Lisboa (AML) e 35% na Área Metropolitana do Porto (AMP). Contudo, é nas áreas metropolitanas que o rácio número de camas por estudantes deslocados é menor, 9,2% e 9,7%, respetivamente. Os rácios mais elevados encontram-se no Médio Tejo (35,5%), Alto Alentejo (33,1%) e Algarve (31,2%). Esta distribuição sugere que é nas áreas metropolitanas onde a dificuldade de acesso a alojamento estudantil é maior, não só pela menor oferta pública disponível como pelo facto do preço do arrendamento ser superior.
Em 2022 a execução do PNAES não vinha correspondendo às expectativas criadas, pelo contrário, o arranque do ano letivo 2022/2023 viu agudizar as dificuldades nesse acesso. Diversas notícias foram publicadas nos órgãos de comunicação social dando saliência à importância da questão e à magnitude do problema, forçando uma resposta por parte do Governo. Em face do mediatismo do problema, os diferentes Partidos Políticos e Associações de Estudantes apresentaram também propostas para a sua resolução.
Com o objetivo de identificar as teorias leigas sobre os problemas enfrentados pelos estudantes do Ensino Superior, bem como as opiniões expressas sobre as propostas apresentadas por diferentes atores para a sua resolução veiculadas na opinião pública, foi conduzido um estudo exploratório enquadrado no referencial teórico das representações sociais. O estudo consistiu na identificação de notícias publicadas online sobre a problemática do alojamento estudantil em cinco jornais de âmbito nacional no início do ano letivo, e na análise dos comentários publicados a essas notícias nos sites dos respetivos jornais e nas páginas das redes sociais Facebook e Twitter.
As representações sociais são entendidas como conhecimentos ou teorias do senso comum (Valentim, 2022), um conjunto de conceitos, de declarações e explicações que encontram a sua origem na vida quotidiana, nas comunicações interpessoais (Moscovici, 1981). Estas formam-se através das conversas que as pessoas estabelecem nos seus contextos diários, sob a influência das informações e opiniões de especialistas veiculadas nos media (Poeschl, 2003). Na medida em que as publicações nos meios digitais e nas redes sociais constituem, cada vez mais, a fonte privilegiada de informação das camadas mais jovens da população (Silveira & Amaral, 2018) estas constituem-se também uma fonte de influência na formação de representações sociais cada vez mais importante.
Estudar as representações sociais da crise do alojamento estudantil permite identificar as relações sociais que guiam o pensamento social sobre o assunto, bem como aprofundar a compreensão da relação entre representações sociais, práticas sociais e acordo vs. rejeição de diferentes políticas públicas (ver, por exemplo, Clémence et al., 1994; Griva & Chryssochoou, 2015).
O presente artigo começa por contextualizar a problemática do alojamento estudantil no início do ano letivo 2022/2023 tal como esta foi descrita nos conteúdos noticiosos veiculados nas diferentes fontes de informação incluídas neste estudo. De seguida, apresenta os resultados da análise temática realizada aos comentários a essas notícias publicados nos sites dos respetivos jornais, bem como nas redes sociais. Por fim, discutem-se as limitações e potencialidades da análise realizada, salientando a necessidade de articulação entre as diferentes políticas públicas e a relação entre a crise do alojamento estudantil e a crise habitacional na reprodução de desigualdades sociais.
A Crise do Alojamento Estudantil
O arranque do ano letivo 2022/2023 viu agudizar as dificuldades no acesso ao alojamento por parte dos estudantes do Ensino Superior deslocados. A 11 de setembro de 2022, numa primeira notícia no Jornal Público, é referido que os dados do Observatório do Alojamento Estudantil1 revelaram uma diminuição de 80% do número de anúncios de quartos face ao ano letivo transacto e o aumento em 8% do preço médio de cada unidade (Silva, 2022). As notícias publicadas na imprensa identificavam como fatores explicativos a crise financeira e o aumento da inflação, bem como o facto de a oferta se ter voltado para o turismo e para os nómadas digitais (LUSA, 2022a). Referiam ainda a necessidade de fiador e de cauções, o pagamento de mais de duas rendas, reportando que muitos estudantes continuavam a assegurar o pagamento da renda durante o verão mesmo não usando a casa para não correrem o risco de a perder (Agência Lusa, 2022a). Outras notícias relatavam testemunhos de estudantes que se sentiam enganados pelos/as senhorios/as, pelas parcas condições da oferta disponível a que têm de se sujeitar perante a escassez (Durães, 2022). Aos estudantes bolseiros que não conseguem alojamento na rede pública é atribuído um complemento mediante a apresentação do recibo de renda. Os relatos salientavam que muitos senhorios/as não aceitam passar recibo, impedindo desta forma aos estudantes ter acesso a esse apoio (Neves, 2022).
Para fazer frente ao problema do alojamento estudantil, António Costa, Primeiro-Ministro, assumiu a 15 de setembro de 2022 a meta de chegar às 26 mil camas para estudantes até 2026, um aumento de cerca de 70% face à oferta existente em 2018 identificada no estudo diagnóstico (MCTES-MA, 2018). Mais, reconheceu a questão do alojamento como um dos maiores obstáculos ao acesso ao Ensino Superior.
Para o arranque do ano letivo em causa, as verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) destinadas ao PNAES não foram suficientes para construir novas residências e garantir as 12 mil camas anunciadas em julho, ficando a faltar 2 500 lugares. Deste modo, a 15 de setembro de 2022, o Governo avançou que iria reforçar a verba do PRR para garantir os lugares anunciados. No entanto, para dar resposta à procura seriam necessárias cerca de 20 mil camas adicionais (Relvas, 2022).
Face à crise instalada houve uma mobilização por parte dos partidos e das associações académicas avançando medidas para resolução deste problema. O grupo parlamentar do Partido Social Democrata foi o primeiro a relembrar, a 16 de setembro de 2022, que apesar das promessas por parte do Governo, o número de camas públicas disponíveis, à data de setembro de 2022, era o mesmo de 2018, referindo que se tratava de um falhanço da política do Governo em matéria de alojamento estudantil e questionando a não-execução das metas plurianuais fixadas no PNAES. Neste sentido, a proposta do partido foi que se substituíssem os planos anunciados pela construção de mais residências, assim como a requalificação das existentes. Propôs igualmente a contratualização com o setor social, as autarquias, o Instituto Português do Desporto e Juventude e o setor privado a disponibilização de mais camas (LUSA, 2022c).
A 21 de setembro de 2022, o Bloco de Esquerda solicitou a audição da Ministra da Ciência, Tecnologia e do Ensino Superior para a confrontar com a falta de alojamento para estudantes deslocados. Todas as bancadas votaram a favor à exceção do PS, que chumbou a iniciativa (Inácio, 2022). O Bloco de Esquerda defendeu ainda que o Governo deveria requisitar as habitações em alojamento local para combater a falta de alojamento estudantil, apelando a um esforço por parte dos proprietários. Para Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda à data, não seria precisa mais construção, dadas as casas vazias nas mãos de vistos gold, de residentes não habituais, de fundos imobiliários e de processos de especulação imobiliária ou para alojamento local (Begonha, 2022). Na mesma notícia referiu-se que o Partido Animais e Natureza também apresentou uma proposta para tentar solucionar o problema através da criação de um benefício fiscal para os senhorios, reduzindo de 28% para 10% a taxa de tributação autónoma em sede de IRS, a fim de incentivar os mesmos a celebrarem contratos de arrendamento com estudantes do Ensino Superior a um custo abaixo da média da zona onde a habitação se insere. Propôs ainda tornar obrigatório que todos os projetos de habitação pública destinassem uma percentagem de alojamento a jovens com menos de 35 anos e a estudantes universitários. Defendeu, deste modo, a articulação das políticas de habitação com o PNAES.
As Associações Estudantis demonstraram preocupação com as possíveis consequências negativas quanto ao ingresso e permanência no Ensino Superior, referindo que a falta de alojamento poderia levar ao seu abandono maciço (LUSA, 2022d). Neste sentido, a 3 de outubro de 2022, a Federação Académica do Porto apresentou a defesa de uma intervenção excecional para combater a elevada inflação e propôs o alargamento dos apoios de alojamento a estudantes não bolseiros, de acordo com os escalões de abono das famílias (Agência Lusa, 2022b).
Análise de redes sociais - oportunidades e desafios
A noção de representação social é proposta por Moscovici na sua obra La psychanalyse, son image et son public, em que analisa o conteúdo de artigos sobre a psicanálise publicados na imprensa francesa (Moscovici, 1976).
Na atualidade, a grande maioria da imprensa seguiu a via da digitalização e mesmo os jornais que possuem uma tiragem em papel disponibilizam os seus conteúdos online, seja de forma gratuita - em acesso aberto e livre - seja através de assinatura. A digitalização abriu novas possibilidades de interatividade entre os leitores e os jornalistas e entre diferentes leitores através dos fóruns, chats e caixas de comentário. As gerações mais novas já pouco acompanham as notícias nos meios de comunicação tradicionais (televisão, jornais, rádio), recorrendo antes à informação que circula nas redes sociais (e.g., Silveira & Amaral, 2018).
As redes sociais permitem que os leitores tenham maior envolvimento com os artigos e notícias por meio de comentários e de reações (likes) que, por sua vez, estão disponíveis a outros leitores. Os comentários, como sugere a literatura, podem ser uma forma acessível para discutir artigos de notícias, podendo ocorrer entre um grande grupo de utilizadores que são estranhos e, consequentemente, influenciar a forma como outros leitores compreendem e percebem o artigo (Almoqbel et al., 2019; Houston et al., 2011; Lee & Jang, 2010). Alguns autores (e.g., DiMaggio et al., 2001) salientam que um artigo de notícias com comentários pessoais aumenta a capacidade de discussão, engagement e funciona como antídoto crítico para a comunicação das massas, promovendo a heterogeneidade das redes de discussão (Kim et al., 2013; Yardi & Boyd, 2010). Deste modo, não só as notícias, como também os comentários a estas, podem ter um papel importante na formação das representações sociais da crise do alojamento estudantil, isto é, das teorias leigas veiculadas na opinião pública sobre a magnitude, as causas e as possíveis soluções para o problema.
Não obstante, a comunicação mediada através das plataformas digitais difere da comunicação face-a-face (Almoqbel et al., 2019). A literatura sobre a temática tem procurado escrutinar o modo como estes mecanismos contribuem para a polarização de opiniões e atitudes políticas (Gorodnichenko et al., 2021), ao criarem “câmaras de eco” que isolam as pessoas com opiniões opostas (Bail et al., 2018; Del Vicario et al., 2016). Outros autores referem que a comunicação online facilita a incivilidade entre comentadores com opiniões discordantes (Graf et al., 2017; Hwang et al., 2014; Kim & Kim, 2019) e o envolvimento em comportamentos agressivos - o flaming (Hmielowski et al., 2014). É evidenciada ainda uma preocupação crescente com bots, uma forma de tecnologia algorítmica (Jones & Jones, 2019) que imita a comunicação humana e que é suscetível de manipular a opinião pública nas redes sociais, quer ampliando artificialmente mensagens específicas (Aldayel & Magdy, 2022; Ferrara, 2019; Ferrara et al., 2016; Luceri et al., 2019; Neyazi, 2020; Shao et al., 2018), quer disseminando notícias falsas (Azzimonti & Fernandes, 2023). Com o desenvolvimento da inteligência artificial, estas preocupações têm vindo a ganhar cada vez maior expressão na atualidade (LUSA, 2023).
Método
Para identificar as teorias leigas sobre os problemas enfrentados pelos estudantes do Ensino Superior deslocados, bem como as opiniões sobre as propostas apresentadas pelas diversas entidades para a sua resolução, foi conduzido um estudo exploratório. O estudo consistiu na identificação das notícias publicadas nos sites de cinco jornais nacionais (Público, Observador, Diário de Notícias, Jornal de Notícias e Eco) entre os dias 11 de setembro e 24 de outubro de 2022, por se tratar do período em que decorreu a maior cobertura noticiosa sobre a problemática (na sequência da publicação dos resultados dos estudantes colocados na 1ª fase do Concurso Nacional de Acesso ao Ensino Superior a 10 de setembro de 2022) e na análise temática (Braun & Clarke, 2006) dos comentários a essas notícias publicados nos sites dos respetivos jornais e nas páginas das redes sociais Facebook e Twitter. Para a análise foram considerados apenas os comentários acessíveis ao público em geral (visíveis sem necessidade de autenticação) publicados até ao dia 19 de dezembro de 20222.
Tendo por base a proporção de utilizadores, o grau de confiança na fonte noticiosa (Cardoso, Paisana, & Martinho, 2021) e procurando diversidade em termos de orientação política, cobertura regional e temática, foram selecionados quatro jornais generalistas diários e um jornal económico. O jornal Público e o jornal Observador, foram selecionados por se tratarem de jornais diários online com elevado número de leitores a nível nacional e serem conotados e lidos por pessoas maioritariamente de tendência política de esquerda e direita, respetivamente. O Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, por serem jornais de grande difusão e que procuram cobrir mais de perto as problemáticas que afetam as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, respetivamente. Foi ainda tido em consideração o jornal Eco, por explorar mais especificamente conteúdos relativos ao investimento imobiliário, relevante para analisar a problemática em causa.
No período em análise foram identificadas 23 notícias relacionadas com a temática e efetuado o registo digital (em formato pdf) para permitir a posterior análise de 2312 comentários publicados a essas notícias nos sites dos respetivos jornais e nas páginas das redes sociais Facebook e Twitter. Os 2312 comentários constituem o objeto de estudo deste artigo (ver Anexo 1).
Como as diversas fontes onde foram publicados os comentários têm procedimentos diferenciados quando à informação sociodemográfica disponível sobre as pessoas que publicam os comentários3, optou-se por anonimizar todos os excertos ilustrativos e não efetuar qualquer análise dos dados de identificação disponíveis, de acordo com o protocolo de ética. Importa referir ainda que se optou pela transcrição fidedigna dos comentários, não sendo efetuada qualquer correção às gralhas, erros ortográficos e lexicais.
Para a análise dos comentários foi realizada uma análise temática segundo os princípios de Braun & Clarke (2006). Seguindo este método de análise, primeiramente foi feita uma familiarização com os dados, através de uma leitura preliminar aos comentários às notícias, seguida da formulação de códigos iniciais, de onde se extraíram excertos ilustrativos para a formulação de temas e subtemas. Numa terceira etapa mapearam-se temas, através da reunião dos excertos ilustrativos mais pertinentes e posteriormente foram revisitados os temas e subtemas, que culminou com a elaboração de um mapa temático. Os temas foram depois definidos e nomeados e procedeu-se ao refinamento da codificação em curso. Por fim, procedeu-se à elaboração e documentação dos temas analisados e à articulação com o tema do presente estudo. Passamos a descrever os principais temas e subtemas em torno da categoria principal “alojamento estudantil”.
Resultados e Discussão
Os temas e subtemas identificados e ilustrados no mapa temático da Figura 1 revelam dimensões de diagnóstico do problema do alojamento estudantil, diversas causas e também soluções.
Diagnóstico
Os resultados indicam que o problema da falta de alojamento adequado para estudantes deslocados a frequentar o Ensino Superior é percecionado como um problema que não é de agora, mas recorrente e que se tem vindo a visibilizar. Os comentários fazem referência a momentos históricos anteriores, salientando a escassez de oferta pública, a falta de condições de habitabilidade, os custos elevados do alojamento estudantil e a informalidade (contrato sem emissão de recibo) da oferta privada. São igualmente referidas as constantes promessas feitas por parte dos diferentes Governos e a inação das Associações Académicas na mobilização e resolução deste problema, como ilustram alguns excertos. Neste sentido, é também expressa a perceção de que o problema vai continuar.
Em 1975/76, quando fui para Coimbra, se quis estudar, tive de me sujeitar a preços elevadíssimos de quartos, sem condições nenhumas. A Associação Académica de Coimbra, nessa época, esteve, sempre, preocupada com muitas matérias, mas com o essencial, não, passou-lhe sempre ao lado (Comentário no P3, utilizador 1)
Alugar quartos sem passar recibos é um esquema que já tem barbas! É por conseguinte um negócio de ilegalidade consentida! (Comentário no Facebook, utilizador 2)
Os proprietários ainda vão retirar mais casas do mercado...ao valor da renda há que retirar impostos, IMI, seguros, condomínios. Depois, rezar para que o inquilino pague e nao estrague nada. (Comentário no Facebook, utilizador 3)
Causas do problema
São apontadas diversas causas para o problema, umas de teor sistémico/estrutural e outras de índole contextual. No que refere às causas sistémicas/estruturais, enuncia-se o modo de funcionamento do mercado, assim como o papel do Estado e a organização/estruturação do Ensino Superior. No que se refere às causas contextuais é referido sobretudo o papel da turistificação e da atração de estudantes e residentes estrangeiros.
O Funcionamento do Mercado
Alguns comentadores referem como causa do aumento do custo do alojamento, a liberalização do mercado de arrendamento e a lei da oferta e da procura. Referem ainda a liberdade de escolha, tanto dos senhorios em definir o valor da renda, como dos inquilinos em aceitar pagar esse valor.
Como me diziam há pouco... se vende bem, porque se há de baixar o preço? Claro que, sendo a procura muita, os preços disparam. Infelizmente é este o cenário (Comentário no Facebook, utilizador 4)
O arrendatário é dono do imóvel e portanto coloca o mesmo exatamente ao preço que quiser. 5€ ou 5000€. Quem aluga, aluga se quiser (Comentário no Facebook, utilizador 5)
Outros comentadores justificam o aumento das rendas com os custos e encargos que os senhorios suportam: impostos, custos com a manutenção dos imóveis, riscos de incumprimento do pagamento da renda; dificuldades nos processos de despejo. É também feita a referência à evolução do mercado e os ressentimentos que muitos senhorios têm relativamente ao período em que as rendas foram congeladas (Silva, 2014).
Utilizador 6: Se tivesse uma casa para alugar ia alugar perdendo dinheiro? Devia haver residências universitárias. Não cabe aos privados fazer caridade […].
Utilizador 7: Mas o que espera um senhorio num país de gente pobre? Que as pessoas arranjem 2.os e 3.os empregos para lhes pagar o uso daquilo de que claramente não precisam? […].
Utilizador 6: […].Conheci pessoas que pagavam 500 escudos por casas enormes ao lado da Gulbenkian. E as rendas foram as mesmas durante 60 anos. […] Em Lisboa, Porto e Coimbra as rendas estavam congeladas. […] Agora não caem nesse erro e quem tem casas para alugar pede o que pode. […]. (Diálogo de comentários no Facebook)
A evolução da troca de comentários em torno dos preços praticados revela um tom de crescente crispação, com diversas intervenções a mobilizarem estereótipos negativos sobre senhorios (e.g., gananciosos, ociosos) e inquilinos (e.g., vândalos, incumpridores). Algumas intervenções recorrem inclusive à utilização de linguagem incivilizada em forma de “ataques pessoais” e insultos mais ou menos diretos.
Utilizador 8: Pagassem a horas e não fossem de férias sem pagar o último mês, menos festas a chatear os vizinhos e não estragassem o recheio dos imóveis.... e certamente seria um pouco diferente...
Utilizador 9: Sabe tão bem viver de rendas... (Diálogo de comentários na página online do jornal Público)
Utilizador 10: Desde quando é que são os fala baratos e subsídio dependentes, que dizem o que os proprietários dos imoveis devem ou não fazer com eles?? Como é obvio o imovel é para render dinheiro e não fazer caridade... Poupem me...
Utilizador 11: portanto quem critica as rendas excessivas, agora é subsídio dependente ou "fala barato". Fantástico (Diálogo de comentários no Facebook)
O Papel do Estado
A esmagadora maioria dos comentários às notícias identificadas relaciona-se com o tema do papel do Estado. É apontada a inação do Estado neste domínio, sendo as promessas percecionadas como “retórica” que apenas servem como alavanca para campanhas eleitorais.
E porque não aponta uma meta de 260 mil camas? Quase não faz sentido listar as várias aldrabices e promessas não cumpridas com os quais os portugueses já nem fazem caso. (Comentário na página online do jornal Observador, utilizador 12)
É ainda salientada a necessidade de intervenção do Estado. Por um lado, há quem defenda que a regulação do mercado por parte do Estado é fundamental para corrigir os desequilíbrios e garantir o direito à habitação, direito que não deve estar sujeito às oscilações do mercado. Por seu lado, há quem aponte que a intervenção do Estado tem provocado desequilíbrios e desconfiança nos investidores e que o Estado não deve substituir o investimento privado.
Esse é o papel do Estado, tentar corrigir natural “ganância” das pessoas com medidas que procurem resolver uma escassez ou desequilíbrio com implicações sociais. (Comentário no Facebook, utilizador 13)
As regras são definidas pelo governo e o "mercado", deveria funcionar dentro dessas regras. No entanto, este governo, originou uma enorme desconfiança no "mercado", com uma legislação "trapalhona", que altera constantemente ao sabor das conveniências políticas do momento. (Comentário na página online do jornal Público, utilizador 14)
O que o Estado não pode fazer - pelo menos, em tempo útil - é substituir a oferta privada, sempre que, ao sabor das oscilações do mercado, os critérios de rentabilidade se alteram (Comentário no Facebook, utilizador 15)
A intervenção do Estado, enquanto entidade fiscalizadora, foi um tópico de discussão que mereceu destaque e perante o qual as opiniões foram mais homogéneas. Referiu-se que o dever do Estado e das entidades competentes na fiscalização de alojamentos e licenciamentos de modo a evitar ilegalidades e apontando a falta de fiscalização como o motivo que permite a informalidade no setor. Quanto aos beneficiários, uns apontam a ganância dos senhorios enquanto outros argumentam tratar-se de um conluio que beneficia ambas as partes.
Um 3º andar junto à Almirante Reis, dividido por 7 estudantes/trabalhadores, etc. 1wc 1 cozinha peq. Dois dos 'quartos' fechados, deveriam ter sido dispensas, resultado 350 eur. Sem recibo. Pergunto a ASAE só sabe ir aos restaurantes? […] Pra mim isto tb é crime. (Comentário no Facebook, utilizador 16)
Essa teoria que grande parte dos senhorios recebem o dinheiro da renda sem a declarar dá jeito a muito gente para se vitimizar e criar uma imagem negativa dos senhorios, quando na realidade são muitos os inquilinos que propõe ao senhorio essa ilegalidade com a condição de haver um abatimento ao valor da renda. Assim sendo, que a coima seja aplicada ao senhorio e ao inquilino, dado que ambos tiraram proveito da fuga ao fisco. (Comentário no Facebook, utilizador 17)
Frequentemente os comentários orientam-se em discussões ideológicas - capitalismo vs. socialismo - suportadas pela evocação de casos concretos de atuação de diferentes Governos, em particular o Governo socialista em funções na altura, aludindo a casos mediáticos associados a atores políticos.
Utilizador 18: as residências de estudantes são uma treta! Quem passa pelo processo de ter um filho, ou uma filha, longe a estudar e com ordenados baixos... é complicado!
Utilizador 19: claro, aqui o Estado deve intervir hã? Capitalistas com a carteira dos outros, sempre
Utilizador 20: é mais uma derrota do pseudo-socialismo que nos apregoam
Utilizador 21: bem dito camarada! Era tirar estas Casas aos burgueses e entregalas ao povo! (Diálogo de comentários no Facebook)
Ensino Superior
No que diz respeito ao Ensino Superior, a esmagadora maioria dos comentários foca-se no local das universidades e nos cursos escolhidos pelos estudantes. Há quem argumente que a crise advém de os estudantes não fazerem escolhas de acordo com as possibilidades financeiras ou optarem por estudar longe de casa mesmo tendo Universidades perto da sua zona de residência. Para estes comentadores, a situação é desnecessária e os estudantes devem acomodar-se às suas possibilidades.
O problema é que há pessoas que julgam que aquilo a que têm direito, mesmo estando constituído, lhes cai do céu. [...] Se não têm capacidade para estudar em Lisboa, estudem em Santarém ou Bragança ..... ninguem esta a querer renegar direitos constitucionais, apenas a lembrar que nem sempre aquilo que gostamos e queremos esta ao nosso alcance (Comentário no Facebook, utilizador 22)
[...] Estou a me referir a pessoas que tem universidades a porta de casa e por qualquer razão resolvem ir para outros sítios. Se ficassem perto de casa deixariam quartos livres para os que precisam, ou não acha??? (Comentário no Facebook, utilizador 23)
Perante este discurso outros comentadores refutam, salientando diversos motivos pelos quais os estudantes estão deslocados. São dados como exemplos o facto de o curso que pretendem não existir perto de casa, não terem notas para entrar no curso que pretendem na universidade mais perto, escolherem uma universidade e um curso pela reputação/rankings ou pelas taxas de empregabilidade.
Utilizador 24: Por que raio é Lisboa Lisboa Coimbra […] Existem outras instituições de ensino no interior tão ou mais competentes na formação académica […]
Utilizador 25: fala como se oferta das universidades e politécnicos fossem todas iguais , sem falar na qualidade e nos rankings. Agora vamos tirar um curso ao calhas só para ir para Castelo Branco.
Utilizador 26: não me faça rir! Cada vez é mais importante o local onde se tira o curso, e olhe que há rankings internacionais, não é à toa que se escolhe o Técnico, a Abel Salazar, ou outros, em detrimento do Politécnico da província. (Diálogo de comentários no Facebook)
É referida ainda a estratégia de atração de estudantes estrangeiros por parte das universidades nacionais, sugerindo que os processos de financeirização da habitação se alimentam também das dinâmicas de financiamento e financeirização do Ensino Superior (ver, por exemplo, Amaral & Magalhães, 2007).
O facto das nossas universidades como a Nova Business School ter mais lugares para alemães do que para portugueses... etc. etc. Estamos todos a ser prejudicados por esta atração global por Portugal (já não é só Lisboa). (Comentário no Facebook, utilizador 27).
Turistificação e atração de investimento estrangeiro
No que diz respeito a fatores contextuais, o tema da turistificação salienta a conversão dos alojamentos para estudantes em alojamentos locais e as vantagens financeiras do Airbnb, bem como as políticas de atração de investimento estrangeiro como os vistos gold e os vistos para os nómadas digitais.
Com plataformas como o Airbnb é normal, fui por curiosidade pesquisar, encontrei um quarto para uma semana em Outubro que não é época alta, 340€ uma semana, se alugarem 4 semanas, vais a mais de 1300€ num mês, se alugarem a um estudante nem metade fazem (Comentário no Facebook, utilizador 28)
Meus caros este país é para os estrangeiros. Sabem que cidade foi eleita melhor do mundo para nomadas digitais lisboa (Comentário no Facebook, utilizador 29)
Há quem defenda o setor do turismo salientando os impostos que pagam e a criação de emprego, bem como o trabalho e os gastos envolvidos, colocando antes a tónica nos impostos ao arrendamento de longa duração.
Os apartamentos para turismo já pagam impostos mais que suficientes e para alem disso geram muito emprego e muitas empresas de outras áreas foram criadas para apoiar esta atividade. (Comentário no Facebook, utilizador 30)
Não arrenda as 4 semanas necessariamente […] um senhorio , se não tivesse de pagar 28% de imposto de aluguer longa duração ia pensar duas vezes qual seria realmente o melhor negócio, a sério... (Comentário no Facebook, utilizador 31)
Por fim, há ainda quem alerte para a volatilidade do mercado associado ao turismo.
Quando os nómadas digitais forem para o próximo sítio onde pagam ainda menos impostos e os turistas começarem a ficar tesos na próxima recessão, aí até cantam o efeerrea e pedem a todos os santinhos para que voltem os estudantes (Comentário no Facebook, utilizador 32)
Soluções
As soluções propostas nos comentários encadeiam-se com as causas identificadas. A maioria das propostas refere, direta ou indiretamente, a necessidade de atuação do Estado. De forma direta, o Estado é chamado a investir através da construção de residências, da reabilitação do seu património e da atribuição de subsídios a arrendamentos a curto ou longo prazo.
Será que que já não estará na hora do governo investir nos jovens e criar alojamento para eles? Afinal para que servem os altos impostos que nós pagámos... (Comentário do Facebook, utilizador 33)
Quantos milhares de imóveis tem o Estado ao abandono? […] Porque não os requalificar e arrendam??? (Comentário do Facebook, utilizador 34)
De forma indireta, há quem defenda que a solução passa pelo Estado exercer o seu papel de regulação, impondo regras ao mercado, e de fiscalização. Os que discordam destas medidas salientam, como vimos nas causas do problema, que a intervenção do Estado no mercado terá o resultado contrário ao pretendido. Alguns ainda levantam dúvidas sobre os “verdadeiros” fins das medidas de intervenção do Estado (como a expropriação) ou mesmo da vontade política de resolver os problemas, duvidando da transparência e honestidade dos processos “guardados para os amigos”.
O que se pretende com estas notícias é ir preparando as pessoas para a apropriação com supostos fins "superiores", como sendo alojamento para estudantes, que têm "direito" a estudar, logo têm "direito" a ter onde morar, logo a propriedade privada pode ser apropriada pelo estado com esses "fins". Os meios são apenas a forma para atingir os fins- eles querem lá saber dos estudantes! (Comentário do Facebook, utilizador 35)
O problema poderia ser praticamente resolvido se houvesse vontade política, infelizmente não há, talvez estejam guardados para amigos. (Comentário do Facebook, utilizador 36)
Das medidas propostas pelo Bloco de Esquerda e pelo Partido Animais e Natureza acima referidas, apenas a requisição das casas em alojamento local suscitou comentários. A maioria dos comentários refere discordância com a medida salientando a sua hipocrisia, com referências ao caso mediático de um antigo deputado do Bloco de Esquerda (Sábado, 2018) e ao facto da líder do partido à data da problemática possuir um alojamento local. A medida é comparada às ocupações que ocorreram no pós-25 de Abril, no período que ficou conhecido como PREC - Processo Revolucionário em Curso (e.g., Faria, 2018).
A usurpar o património de terceiros também eu faço um brilharete (Comentário no Facebook, utilizador 37)
Nada melhor que começar por dar o exemplo e ceder os alojamentos locais propriedade de dirigentes, militantes e simpatizantes do BE, que talvez já cheguem para ajudar a resolver o problema. Olha para o que eu digo e não para o que eu faço... (Comentário no Facebook, utilizador 38)
Utilizador 39: Os verdadeiros okupas... Porque não construir em vez de subtrair a quem investiu […]
Utilizador 40: quando habitar é um luxo, ocupar é um direito.
Utilizador 39: desculpe mas não concordo, ocupar o que é dos outros sabe-se lá com que esforço foi conseguido para mim é crime. […]
Utilizador 40: tem o direito de não concordar. Mas também tem de ler a proposta antes de comentar. Ninguém vai ocupar nada. (Diálogo de comentários no Facebook)
Voltámos ao tempo do PREC? Esta gente é muito saudosista! (Comentário no Facebook, utilizador 41)
Os que vêm este tipo de medidas como uma alternativa viável salientam o facto de depender dos interesses para os quais é utilizada, de beneficiar tanto o interesse público como o interesse privado.
A expropriação não é uma solução ideológica. Depende dos interesses para os quais é utilizada. Neste caso, ela é tanto do interesse público como privado (Comentário no Público, utilizador 42).
Discussão e Conclusão
Nos últimos anos, Portugal tem vindo a atravessar uma crise na habitação que se estendeu, com grande ênfase, ao alojamento estudantil no início do ano letivo 2022/23. Neste artigo apresentamos e discutimos os resultados de um estudo exploratório que procurou identificar as representações sociais sobre os problemas enfrentados pelos estudantes deslocados veiculadas online e nas redes sociais, através da análise dos comentários à cobertura noticiosa publicados nos sites de cinco jornais online de cobertura nacional.
Os resultados evidenciam que o diagnóstico, as causas e as soluções para o problema do alojamento estudantil refletem, em larga medida, a oposição entre os argumentos apresentados na defensa pelo direito à habitação e os argumentos que sustentam o direito ao livre uso da propriedade privada bem como a politização neste domínio (ver a este propósito Santos & Ribeiro, 2022). Pelo contrário, parece haver um consenso sobre a provisão de habitação para estudantes deslocados ser uma responsabilidade do Estado e que este não tem sido capaz de construir as residências universitárias prometidas e necessárias, nem tampouco de fiscalizar o arrendamento privado que tem cumprido essa função.
À semelhança da discussão sobre a crise habitacional geral, as opiniões também se dividem entre os que consideram que a solução para o problema na oferta privada (escassa e cara) passa por uma ação de regulação do mercado e os que referem que as tentativas de regulação produzem desconfiança no mercado do arrendamento, tendo por isso o efeito contrário ao pretendido. O tom crítico estende-se dos intervenientes diretos (senhorios vs. estudantes) à classe política, recorrendo com frequência a uma linguagem incivilizada e de desclassificação bem como à mobilização de estereótipos negativos. Este tipo de comentários enquadra-se em dois dos quatro4 modos de comunicação definidos pela teoria das representações sociais, a efusão (Buschini & Guillou, 2022) e a propaganda (Moscovici, 1976). Enquanto a efusão se baseia em relações simétricas que procuram desencadear um comportamento reativo rápido através da pronúncia de julgamentos avaliativos, a propaganda obedece a uma relação hierárquica sendo um modo de comunicação que permanentemente procura orientar os membros do próprio grupo no sentido de produzirem e manterem estereótipos dos grupos adversários. No que se refere à questão do alojamento estudantil, os resultados sugerem que, para algumas pessoas, comentar as notícias é uma forma de partilharem a sua individualidade proferindo comentários avaliativos de simpatia vs. antipatia (efusão), mas para outras é uma forma de comunicação intergrupal (propaganda), que visa reforçar a posição do próprio grupo de pertença através da desclassificação da reputação do grupo com os interesses (senhorios vs. estudantes) ou ideologia contrária (direita vs. esquerda).
O estudo é de caráter exploratório e possui algumas limitações, nomeadamente relativas à possibilidade de generalização, e que decorrem das limitações impostas pelo tipo de estudo e representatividade da amostra. Apesar do tema da discussão pública ser o alojamento estudantil, poucos comentários parecem ter sido publicados por estudantes universitários, pelo recurso frequente a estereótipos negativos sobre a população estudantil e a referência aos estudantes na terceira pessoa do plural “eles”. Este resultado pode estar associado às fontes selecionadas. Os resultados do estudo “Os Portugueses e as Redes Sociais” realizado pela Marktest (2022) revelam que os jovens entre os 15 e os 24 anos utilizam mais o Instagram comparativamente com o Facebook, apesar deste último manter a sua posição dominante a nível da população geral.
Outra das limitações do estudo prende-se com a impossibilidade de verificar se os comentários analisados provêm unicamente de opiniões próprias de pessoas reais, de opiniões falsificadas produzidas por pessoas reais, ou mesmo opiniões produzidas através de automação (bots). Contudo, e apesar das limitações, é possível verificar que muitos utilizadores comentaram várias das notícias e interagiram com outros comentadores estabelecendo relações de comunicação que estão na origem da formação de representações sociais, evidenciando a adequação da metodologia utilizada para captar as teorias leigas acerca da problemática do alojamento estudantil.
Apesar de uma parte dos comentários ter sido efetuada através das contas do Facebook e do Twitter, ao contrário dos limites apontados por Hille & Bakker (2014), a perda do anonimato não parece ter impedido a partilha de vozes divergentes, e mesmo de alguns comentários abusivos e ofensivos. Se há possibilidade de algumas das opiniões mais extremas terem sido proferidas a partir de perfis falsos, alguns estudos revelam que a incivilidade é potenciada pelo simples facto de não se conhecer os interlocutores e a interação ser mediada e não face-a-face (Suler, 2004). É um aspeto que importa aprofundar em futuras investigações. Mais difícil é identificar o uso dos bots nos comentários nos sites dos jornais online, na medida em que não existe um perfil associado e os textos são percebidos como confiáveis e competentes.
Na sequência do que salienta Valentim (2022) a propósito da formação das teorias anti-vacinas nas redes sociais, parece-nos fundamental estudar os impactos dos avanços da digitalização nas relações de comunicação interpessoal e intergrupal e como estas determinam a formação de representações sociais. Com efeito, a digitalização veio facilitar a disseminação de mensagens de comunicação produzidas através de algoritmos e de inteligência artificial e uma vez que a repetição automática de opiniões minoritárias e extremistas faz como que estas ganhem popularidade suficiente para que sejam percecionadas como prevalentes ou mesmo normativas, isso maximiza a sua capacidade de influência (Aiello et al., 2014).
Os resultados sugerem a efusão e a propaganda como sendo os modos de comunicação privilegiados nas discussões nas redes sociais sobre a crise do alojamento estudantil. Estes modos de comunicação, ao contrário da difusão, contribuem para uma maior polarização da opinião pública ou mesmo à estimulação de relações sociais conflituais, fundadas em posições ideológicas opostas e alimentadas por estereótipos negativos. Importa ainda examinar se, e de que forma, estes modos predominantes de comunicação se estão a estender às relações interpessoais face-a-face contribuindo para um agravar do problema da habitação em Portugal, em vez de fomentar a cooperação que levaria à co-construção de soluções que beneficiariam todas as partes.
A democratização do acesso ao Ensino Superior iniciada durante os anos 1970 (Balsa et al., 2001) teve um papel fundamental em Portugal no crescimento de uma classe média e na diminuição das desigualdades sociais. É inquestionável que ter um curso superior, por comparação a não ter, está associado uma menor probabilidade de desemprego. Em 2022 a taxa de desemprego era de 4.4% para as pessoas com um curso superior por comparação a 6.9% para as pessoas com apenas o ensino secundário (Pordata, 2023). Contudo, uma menor taxa de desemprego não significa que o emprego seja qualificado ou com uma remuneração satisfatória. Segundo o Livro Branco "Mais e Melhores Empregos para os Jovens", em 2019, entre os jovens trabalhadores com idades entre os 25 e os 34 anos que completaram o Ensino Superior, 30.1% eram sobrequalificados para a profissão que exerciam (Negócios com Lusa, 2022).
A oferta educativa está desigualmente distribuída no território nacional, com predomínio dos cursos com maior prestígio e saídas profissionais a se concentrarem em Lisboa, Porto e Coimbra, cidades também pressionadas pelo crescimento do turismo. A atual crise do alojamento estudantil pode impedir que os estudantes de classes sociais menos privilegiadas, sobretudo os residentes em zonas rurais ou mais distantes dos grandes polos universitários, frequentem cursos do Ensino Superior que lhes proporcionariam melhores oportunidades profissionais e melhores remunerações, comprometendo assim o papel da formação superior enquanto veículo de mobilidade social ascendente. Neste sentido, é importante que as diferentes políticas públicas, nomeadamente de promoção de desenvolvimento económico, de habitação e de Ensino Superior, sejam desenhadas e implementadas em articulação por forma a que se complementem e não concorram entre si pelos recursos existentes.
A insuficiência de oferta de residências universitárias públicas não só dificulta o acesso dos estudantes ao Ensino Superior, como faz com que a procura de alojamento por parte destes no mercado liberalizado, ao possibilitar uma rentabilidade financeira superior relativamente ao arrendamento de longa duração, constitua um fator de pressão sobre os preços do arrendamento habitacional tradicional contribuindo para agravar a crise habitacional reproduzindo e acentuando as desigualdades sociais.