Introdução
As cidades vieram para ficar e o futuro da humanidade é sem dúvida urbano, mas não exclusivamente nas grandes metrópoles (Genari et al., 2018; UN-Habitat, 2022; Zubizarreta et al., 2016). Atualmente, são cerca de 4,4 bilhões de pessoas morando em cidades e isso representa 56% da população mundial. O World Cities Report 2022 enfatiza que o mundo continuará se urbanizando nas próximas três décadas, podendo chegar a 6,6 bilhões de pessoas vivendo em cidades no mundo todo (UN-Habitat, 2022). Isso significa que em 2050 a estimativa é de que 68% da população mundial seja urbana.
Devido a esse aumento populacional, as cidades estão se tornando cada vez mais complexas e questões como escassez de recursos, mobilidade, infraestrutura habitacional, empregabilidade, meio ambiente, inclusão social, passam a ser assuntos debatidos entre as autoridades para a promoção da qualidade de vida dos cidadãos (ONU, 2015). Simultaneamente, visando esta melhora na qualidade de vida e vislumbrando um desenvolvimento sustentável, as cidades estão passando por uma onda de digitalização que está remodelando a forma como os moradores urbanos vivem, trabalham, aprendem e se divertem.
O surgimento de novas tecnologias de informação e comunicação tem permitido uma maior democratização da capacidade produtiva das pessoas e tem as habilitado a participar da dinâmica de inovação das cidades (Capdevila & Zarlenga, 2015). As inovações tecnológicas são a grande promessa para melhorar os estilos de vida urbanos e tornar as cidades mais inteligentes.
O conceito de cidades inteligentes, ou do inglês smart cities (SC), surgiu a fim de responder aos desafios vinculados ao crescimento populacional urbano. Smart cities são, geralmente, caracterizadas pela ampla utilização de tecnologias de informação e comunicação para aumentar a qualidade de vida de seus habitantes, contribuindo para um desenvolvimento sustentável (Genari et al., 2018). As SC são também instrumentos para melhorar a competitividade de tal forma que a comunidade e a qualidade de vida sejam reforçadas (Batty et al., 2012).
Neste contexto, visando uma transformação urbana sustentável, tecnológica e equitativa as SC fornecem uma ampla gama de serviços inovadores em vários setores da cidade, por exemplo, em transporte, saúde, segurança pública, controle de tráfego, poluição, gestão de resíduos, entre outros (Genari et al., 2018). Assim, têm-se presenciado um aumento de iniciativas voltadas para a modernização da infraestrutura dos serviços urbanos e para a criação de melhores condições ambientais, sociais e econômicas (Liang et al., 2022).
Contudo, nem todas as iniciativas foram positivas pois, a competição entre as cidades tornou-se cada vez mais acirrada, tornando-as mais complexas e imprevisíveis e com isso, a crescente disparidade de riqueza e renda tornou mais aparente as diferenças sociais e econômicas (Liang et al., 2022). Para Sengupta e Sengupta (2022), os principais riscos sociais advindos de projetos de cidades inteligentes baseados em tecnologias da informação e comunicação são a distribuição desigual e os impactos econômicos em comunidades que já são socioeconomicamente desfavorecidas.
Cidades inteligentes inclusivas têm como objetivo construir ambientes mais acessíveis e melhorar a oferta de espaços públicos por meio da tecnologia digital e, desse modo, podem atender às necessidades dos residentes e incentivar uma participação mais diversificada das partes interessadas no crescimento urbano (Liang et al., 2022), pois as cidades inteligentes aspiram usar a tecnologia para colocar as pessoas em primeiro lugar (Korngold et al., 2017).
Segundo Korngold et al. (2017) é importante colocar as necessidades das pessoas em primeiro lugar ao desenvolver soluções de cidades inteligentes, pois as tecnologias só podem ser consideradas inteligentes se forem acessíveis e utilizáveis por todas as pessoas, incluindo aquelas com deficiência e outras condições atípicas. Para Liang et al. (2022), a cidade inclusiva não é apenas uma pré-condição para a criação de espaço justo, bem-estar e responsabilidade ambiental, mas também uma oportunidade para avaliar os interesses das partes interessadas nas cidades e oferecer respostas efetivas às necessidades coletivas, cujos resultados modifiquem aspectos da sociedade.
Deste modo, os indivíduos devem ser capazes de se integrarem à cidade, se deslocarem pelo ambiente e serem capazes de entender as informações fornecidas, pois isto está atrelado a saúde, ao bem-estar, à capacidade de trabalho e, finalmente, à qualidade de vida dos indivíduos (Rebernik et al., 2017). Ainda conforme os autores, é razoável dizer que os cidadãos devem ser os condutores da cidade, e os governos municipais devem colocar a dimensão humana a frente de seus esforços.
Rebernik et al. (2017, 2020) destacam que, apesar dos conceitos de SC serem centrados no cidadão e na inclusão, na prática, os governos municipais estão enfrentando desafios para lidar com a complexidade das próprias cidades e com a ampla variedade de necessidades dos cidadãos. Neste sentido, as principais organizações internacionais, ao perceberem a importância da inclusão urbana, propuseram a implementação de medidas políticas para as cidades, como o documento elaborado pelo Banco Mundial que visa identificar e elaborar políticas e programas mais eficazes para promover o desenvolvimento inclusivo das cidades (World Bank, 2015). Além disso, a Organização das Nações Unidas lançou em 2015 um plano de ação denominado Agenda 2030, que reúne 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e 169 metas, criados com o objetivo de erradicar a pobreza, promover melhores condições de vida e de trabalho no mundo todo (ONU, 2015).
Dessa forma, um dos maiores desafios das cidades é como se tornar totalmente acessível e inclusiva para atender às necessidades de todos os seus cidadãos. Segundo Anttiroiko e Jong (2020), a construção de uma cidade inclusiva é um exercício complexo, intelectual e político. Intelectual, porque abrange uma multiplicidade de dimensões que por vezes conduzem a exigências e situações contraditórias, político porque a formulação de políticas, governança e gestão de processos de desenvolvimento urbano orientados para a inclusão devem levar em consideração os interesses das partes interessadas que nem sempre são fáceis de acomodar e a reunião disso as torna complexas.
Diante disso, os estudos estão avançando em torno das cidades inclusivas e tem perseguido diferentes caminhos, entre os quais pode-se citar alguns envolvendo a diversidade cultural, justiça social e espacial nas cidades (De Vita & Oppido, 2016), bem como a integração social e econômica de imigrantes (Romanelli, 2020), outros envolvendo a empregabilidade, o crescimento e o desenvolvimento urbano inclusivo (Sissons et al., 2019; Raissa et al., 2021) e a equidade social nas cidades (Lee et al., 2020), além de estudos envolvendo design, mobilidade, inclusão tecnológica e acessibilidade para pessoas com deficiência no contexto das cidades (Oliveira Neto & Kofuji, 2016; Siu et al., 2017; Rebernik et al. 2017; Oliveira Neto, 2018; Moiseev et al., 2019; Repeva & Adjidé, 2020; Wang et al., 2021).
No entanto, de acordo com Kenna (2022), muitos estudos sobre o contexto urbano de grupos marginalizados (deficientes físicos, imigrantes, pobres, etc.) têm considerável atenção da pesquisa no meio acadêmico, no entanto existem outras diversidades, como as pessoas neurodivergentes, que possuem barreiras sensoriais e cognitivas, que recebem menor atenção de estudos acadêmicos e de práticas inclusivas nas cidades. O indivíduo neurodivergente é aquele que possui um desenvolvimento ou um funcionamento neurológico diferente do padrão esperado pela sociedade em geral (Ortega, 2008). A neurodiversidade é o conceito dado aqueles seres humanos que têm variações em termos de habilidades neurocognitivas em relação à atenção, aprendizado, humor, sociabilidade e outras funções mentais, tanto aquelas condições patológicas, bem como as não patológicas (Singer, 2016).
A neurodiversidade está relacionada com as diferenças em como o cérebro responde e gerencia a vida cotidiana, incluindo tarefas diárias como cumprir prazos, frequentar escola ou universidade, trabalhar, manter o foco, acessar o transporte público, socializar e assim por diante (Kenna, 2023). A neurodiversidade geralmente se refere a uma variedade de condições, incluindo, mas não se limitando a: condições do espectro do autismo ou transtorno do espectro autista (TEA); transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH); altas habilidades ou superdotação (AHSD); entre outras. O TEA é considerado um transtorno do desenvolvimento e caracteriza-se por dificuldades de interação social que podem manifestar-se como isolamento, comportamento social impróprio, entre outros sintomas (DSM-5, 2014). O TDAH, é também considerado um transtorno do neurodesenvolvimento e caracteriza-se por sintomas que envolvem desatenção, hiperatividade e impulsividade, cujos indivíduos acometidos apresentam falhas significativas nas funções executivas (DSM-5, 2014; Pereira, 2021). Já a AHSD é uma condição dada a pessoas que mostram elevado desempenho e potencial, em comparação a seus pares, em uma ou mais áreas do conhecimento (Oliveira, et al., 2020; Costa et al., 2022).
Sendo assim, a qualidade de vida dos indivíduos, em especial os neurodivergentes, está ligada à sua capacidade de integração com a cidade, locomoção no ambiente urbano e compreensão das informações disponíveis, pois esses fatores são fundamentais para a saúde, bem-estar e desempenho profissional dos indivíduos (Rebernik et al., 2017). E, portanto, é legítimo afirmar que os residentes urbanos devem desempenhar um papel ativo no progresso da cidade, ao passo que as autoridades municipais devem priorizar a perspectiva humana (Rebernik et al., 2017).
Diante disso, o movimento da neurodiversidade tem buscado o reconhecimento e o respeito das diversidades neurológicas, assim como se tem feito a respeito de outras diferenças como as de gênero ou raciais (Ortega, 2008; Singer, 2016; Kenna, 2022), pois ao contrário do que se pensa, o indivíduo neurodivergente não necessariamente possui uma capacidade cognitiva reduzida (Miyazaki et al., 2020). E, embora existam estudos que abordam sobre ambientes amigáveis ao autismo, por exemplo, como aqueles envolvendo projetos de habitação e adaptação para adultos com autismo, escolas inclusivas e design de sala de aula para crianças autistas, espaços domésticos para famílias de crianças com autismo, design de ambiente externos dedicados para crianças ou adultos com autismo, os estudos focam, quase exclusivamente, em espaços fechados, com exceção daqueles sobre habitação ou espaços residenciais para autistas (Kenna, 2023).
À face do exposto, este ensaio teórico se propõe a discutir a necessidade da inclusão da neurodiversidade nas cidades inteligentes. Isto possibilitará uma reflexão sobre os projetos de cidades inteligentes incluírem questões da cidade inclusiva, como alega Rachmawati (2016). Além disso, uma cidade inteligente inclusiva é aquela que responde prioritariamente às necessidades dos cidadãos mais vulneráveis da sociedade, além de ser um lugar onde todos devem estar capacitados a participar das oportunidades sociais, econômicas e políticas que as cidades têm a oferecer (Rebernik et al., 2017, 2020).
Essa temática está em consonância com os ODS, que integram a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, especificamente no que trata o ‘ODS 11 - Cidades e comunidades sustentáveis’, que propõe tornar as cidades e comunidades mais inclusivas, seguras, resilientes e sustentáveis, visando proporcionar o acesso universal a espaços públicos seguros, inclusivos, acessíveis e verdes, implementando políticas e planos integrados para a inclusão (ONU, 2015).
Os conceitos de cidades inclusivas e cidades inteligentes são inter-relacionados, pois uma cidade inclusiva pode se beneficiar de uma cidade inteligente para melhorar a qualidade de vida de seus cidadãos através do uso de tecnologias que melhorem a acessibilidade e a autonomia de todas as pessoas, inclusive as neurodivergentes (Kenna, 2022). Da mesma forma que a cidade inteligente pode se esforçar para garantir que essas tecnologias estejam disponíveis para todos, pois o uso de tecnologias pode mudar a forma como o espaço urbano é percebido, compreendido e como os cidadãos interagem com os lugares (Oliveira Neto, 2018). Assim, ambas abordagens podem trabalhar em conjunto para criar cidades mais integrativas, acessíveis e acolhedoras para todos, inclusive para a neurodiversidade.
Este artigo está segmentado em quatro seções. Além desta parte introdutória, apresentam-se, na seção dois os aspectos teóricos que envolvem as definições de neurodiversidade, em seguida aborda-se a neurodiversidade e suas demandas urbanas e os modelos conceituais de cidades inteligentes e cidades inclusivas. Na quarta e última seção é apresentada a conclusão por parte dos autores.
Neurodiversidade: definições e condições
O crédito pelo termo neurodiversidade é dado, algumas vezes ao jornalista Harvey Blume e, outras, à socióloga australiana e portadora da síndrome de Asperger, Judy Singer (Abreu, 2022). Harvey Blume teria utilizado o termo neurodiversidade pela primeira vez, em 1997, em um texto publicado no jornal The New York Times (Abreu, 2022). Mas foi Judy Singer quem cunhou o termo neurodiversidade em seu capítulo denominado “Por que você não pode ser normal uma vez na sua vida? Dê um ‘problema sem nome’ para a emergência de uma nova categoria de diferença” publicado no livro Disability discourse, da UK Open University Press, em 1999 (Abreu, 2022; Ortega, 2008). O capítulo do livro foi baseado na tese da socióloga apresentada na University of Technology Sydney, na qual a autora defendeu que uma conexão neurológica atípica (ou neurodivergente), como é o caso do autismo, não é uma doença a ser tratada, mas sim uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças, tais como: sexuais, raciais, entre outras (Ortega, 2008).
Neurodiversidade é o conceito de que todos os seres humanos têm variações em termos de habilidades neurocognitivas em relação à atenção, aprendizado, humor, sociabilidade e outras funções mentais (Singer, 2016). Refere-se, especificamente, à variabilidade ilimitada da cognição humana e à singularidade de cada mente humana (Singer, 2020).
Também, a neurodiversidade não é uma característica que qualquer indivíduo possua ou possa possuir, pois quando um indivíduo ou grupo de indivíduos diverge dos padrões sociais dominantes do funcionamento neurocognitivo tido como normal, dá-se a eles a denominação de neurodivergentes (Walker, 2014). Ainda, conforme Walker (2014), o termo neurodivergente é o oposto do termo neurotípico, que significa ter um estilo de funcionamento neurocognitivo que se enquadra nos padrões sociais “normais” dominantes. Neste sentido, Ortega (2008) argumenta que se a neurodiversidade ou a “neuroatipicidade” for considerada uma doença, então a “neurotipicidade” (termo utilizado para indivíduos com condições neurocognitivas dentro do “padrão”), também deveria ser assim considerada.
A neurodiversidade seria a expressão da biodiversidade humana, assim como a orientação sexual e a etnia, e não algo patológico que precisa ser adequado ao modelo comum ou usual de neurocognição (Singer, 2016). Singer, com seu neologismo, ecoou a importância da existência de infinitas diversidades neurocognitivas para a humanidade (Abreu, 2022). E, assim como a biodiversidade, a neurodiversidade passou a ser utilizada com diferentes propósitos, mas seu uso mais comum é para se referir a uma variação supostamente natural nos “tipos” de cérebros em termos de desenvolvimento semelhantes a diversidade biológica (Stenning & Rosqvist, 2021).
O movimento da neurodiversidade começou dentro do movimento dos direitos do autismo, mas buscou incluir todas as ‘neurominorias’ e não apenas os autistas (Walker, 2014; Singer, 2016). Desse modo, o movimento da neurodiversidade desempenhou papel fundamental na conscientização da neurodiversidade, principalmente em relação ao autismo, com o objetivo de redefinir o autismo como uma especificidade humana que não deve ser tratada, mas respeitada da mesma forma que outras diferenças (gênero, raça, sexualidade) (Ortega, 2008; Singer, 2016). Este movimento mudou o foco do discurso sobre formas atípicas de pensar e aprender, chamando a atenção para o fato de que muitas formas da fiação cerebral também transmitem habilidades e aptidões incomuns (Singer, 2016).
O movimento da neurodiversidade é, principalmente, um movimento de justiça social com o objetivo de acabar com o que os proponentes veem como a patologização padrão da neurodivergência, que significa divergência do funcionamento mental normal e, em vez disso, promover a aceitação e acomodação da neurodiversidade humana (Chapman, 2021). Logo, o movimento da neurodiversidade tem em sua estrutura uma abordagem integrativa, rompendo a categorização de modalidades neurológicas e cognitivas consideradas distúrbios (Brito et al., 2021).
O conceito de neurodiversidade nem sempre é claramente definido e, às vezes, as definições são de natureza contraditória, uma vez que o paradigma da neurodiversidade rejeita o modelo médico por sua patologização da diferença neurológica de ocorrência natural, mas também pode contar com diagnóstico médico para acesso a suporte e inclusão na comunidade da neurosiversidade (Chrysochoou et al., 2022). O paradigma da neurodiversidade, em sua maior parte, se dá em torno do subconjunto de pessoas do espectro autista, como já mencionado. No entanto, existe uma variedade de outras condições que estão dentro do escopo da neurodiversidade, incluindo, mas não se limitando a, TDAH, dislexia, discalculia, AHSD, entre outras (Singer, 2016; Doyle, 2020; Silva-Schröeder, 2020; Shields & Beversdorf, 2021; Stenning & Rosqvist, 2021; Chapman, 2021; Alencar et al., 2021; Chrysochoou et al., 2022; Koifman, 2022). Aqui neste artigo serão conceituadas apenas três condições: TEA, TDAH e AHSD, pois as demandas urbanas são comuns para essa população neurodiversa e, também, porque alguns indivíduos podem apresentar essas condições concomitantemente, bem como porque a condição AHSD pode ser confundida com TEA ou TDAH devido à falta de conhecimento do profissional que avalia, conforme Silva-Schröeder (2020).
Conforme a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, do inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), o autismo ou TEA é considerado um transtorno do neurodesenvolvimento e “caracteriza-se por déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, incluindo déficits na reciprocidade social, em comportamentos não verbais de comunicação usados para interação social e em habilidades para desenvolver, manter e compreender relacionamentos” (American Psychiatric Association, 2014, p. 31). As pessoas com TEA não possuem uma característica visual capaz de identificá-las com essa condição, no entanto, ao se observar atitudes comportamentais desses indivíduos é possível identificar gestos repetitivos ou certa dificuldade na fluidez para diálogos corriqueiros de socialização (Troncoso, 2022).
Conforme dados do CDC (Center of Deseases Control and Prevention), uma em cada quarenta e quatro crianças aos 8 anos de idade é diagnosticada autista, de acordo com relatório divulgado em 2021 referente a uma pesquisa realizada em onze estados norte-americanos no ano de 2018 (Maenner et al., 2021). O Brasil não tem estudos oficiais de prevalência de autismo, mas de acordo com informações da assessoria de comunicação social do Ministério da Educação, estima-se que 2 milhões de pessoas tenham essa condição (Brasil, 2018).
O TDAH, por sua vez, também considerado transtorno do neurodesenvolvimento, é definido por uma tríade de sintomas envolvendo desatenção, hiperatividade e impulsividade em um nível acentuado e disfuncional de acordo com a idade ou fase de desenvolvimento (American Psychiatric Association, 2014). Ainda de acordo com o manual, os sintomas iniciam-se na infância, persistindo na vida adulta. Segundo levantamento do Ministério da Saúde em conjunto com a Associação Brasileira do Déficit de Atenção, de 5% a 8% da população mundial tem TDAH, podendo afetar até 2 milhões de brasileiros (Brasil, 2022).
Já a AHSD é uma condição que denota ampla potencialidade de aptidões, talentos e habilidades, em que as pessoas com essa condição evidenciam alto desempenho em comparação a seus pares, em uma ou mais áreas do conhecimento (Oliveira et al., 2020; Costa et al., 2022). Pessoas superdotadas têm inter-relação de capacidades acima da média, alta motivação para usar essa capacidade e devem expressar isso de forma criativa ou incomum (Renzulli, 1999).
De acordo com Costa et al. (2022), crianças com AHSD têm desenvolvimento atípico, pois elas apresentam domínios cognitivos em idade anterior à média, progredindo rapidamente na aprendizagem. Todavia, a maturidade emocional, por vezes, não acompanha o acelerado progresso cognitivo, gerando uma dissincronia no desenvolvimento (Costa et al., 2022). Na fase adulta, alguns superdotados podem apresentar intensidade emocional negativa como frustração, angústia e ansiedade e tais emoções podem impactar a vida familiar, social e profissional (Abad & Abad, 2016).
Neste sentido, embora não se classifiquem como um transtorno e não estejam no DSM-5 e nem na classificação internacional de doenças, no Brasil as AHSD são abrangidas pela Política Nacional de Educação Especial, fazendo parte do público da Educação Especial por apresentar necessidades educacionais especiais (Brasil, 2008, 2011). São também, respaldadas por uma legislação que dispõe sobre a identificação, o cadastramento e o atendimento, na educação básica e na educação superior, de alunos com altas habilidades ou superdotação (Brasil, 2015). Contudo, apesar da existência de políticas públicas educacionais para as AHSD, estas ainda são pouco difundidas e conhecidas (Faveri & Heinzle, 2019).
Segundo Silva-Schröeder (2020), há pessoas com AHSD que levam muito tempo para saber sua condição e outras têm a sua condição confundida com TDAH, autismo ou transtorno de ansiedade generalizada, inclusive na idade adulta, por profissionais que desconhecem ou que pouco sabem sobre as AHSD. Deste modo, a identificação ainda na infância pode promover suporte positivo para os indivíduos com AHSD quando adultos, pois suas experiências escolares podem servir de suporte para um desenvolvimento emocional saudável, que muito ajudariam os superdotados durante os períodos de profunda reflexão e introspecção característicos de quando entram em conflito com valores, opiniões e costumes externos inculcados em suas rotinas (Abad & Abad, 2016).
A neurodiversidade e as demandas urbanas
A cidade desempenha um papel considerável na vida das pessoas, pois é o lugar onde elas vivem, trabalham, estudam, se divertem e socializam. Assim, as cidades têm um impacto significativo na saúde e bem-estar das pessoas, incluindo o acesso a saúde, transporte, educação e espaços verdes. Portanto, é importante que os ambientes urbanos sejam inclusivos e acessíveis para todas as pessoas, incluindo aquelas que são neurodivergentes, pois para estes as cidades podem ser um aglomerado de estímulos sensoriais (Vanolo, 2023). Além disso, segundo Miyazaki et al. (2020), é importante reconhecer que as pessoas neurodivergentes podem ser produtivas e valiosas para a sociedade. Estudos realizados sugerem que indivíduos neurodivergentes possuem recursos como pensamento divergente, fortes habilidades visuoespacial, pensamento sistêmico, intuição e perspicácia e reconhecimento de padrões que são características altamente desejáveis para a inovação e produtividade, características requeridas em muitas profissões como a engenharia, por exemplo (Chrysochoou et al., 2022).
Deste modo, a neurodiversidade é uma realidade presente em todas as sociedades e o reconhecimento desta multiplicidade no contexto das cidades requer atenção por parte dos governantes e do meio acadêmico (Kenna, 2022). Kenna (2023) destaca que, atualmente, o enfoque de estudos acadêmicos exploram apenas a condição do transtorno do espectro autista e, por isso, a autora defende a necessidade de considerar a multiplicidade de diferenças neurológicas e suas inserções no contexto urbano.
Kenna (2022) traz em seu artigo a importância da inclusão de pessoas neurodivergentes nas cidades e sugere várias estratégias para tornar as cidades mais acessíveis e inclusivas para as pessoas. Dentre as sugestões da autora estão: criar espaços públicos que sejam acessíveis e inclusivos para pessoas com diferentes necessidades sensoriais, cognitivas e emocionais; promover oportunidades de emprego inclusivas para pessoas neurodivergentes e; incluir as pessoas neurodivergentes nas cidades com o auxílio de tecnologias que melhorem a acessibilidade e a autonomia dessas pessoas. Vanolo (2023) sugere que as cidades, para tornarem-se inclusivas para a neurodiverisidade, devem limitar estímulos sensoriais em alguns espaços públicos e que devem oferecer soluções justas e sustentáveis para o acesso a saúde, bem como proporcionar oportunidades de vida para todos, incluindo os neurodivergentes. As sugestões dadas por estes autores beneficiariam não somente as pessoas neurodivergentes como também outros grupos de pessoas com outras condições atípicas, tais como pessoas com deficiências e outras neurodivergências não abarcadas no escopo deste estudo, além da sociedade em geral, conforme sugerem Rebernik et al. (2017, 2020)
Em um estudo mais recente, Kenna (2023) examina as formas como as pessoas neurodivergentes experimentam a cidade e como enfrentam as barreiras da vida urbana. A autora argumenta que a neurodiversidade é frequentemente negligenciada nas discussões sobre inclusão e acessibilidade nas cidades e alega que a falta de compreensão e aceitação da neurodiversidade pode levar à exclusão social e à marginalização.
Neste sentido, as cidades inteligentes, embora tenham no centro de sua conceituação a tecnologia e a inovação para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes (Rebernik et al., 2017), nem sempre conseguem ser acessíveis a todos os cidadãos (Capdevila & Zarlenga, 2015). Pois, o uso de tecnologias de informação e comunicação, muitas vezes, pode impactar negativamente comunidades urbanas desfavorecidas do ponto de vista social e econômico, desencadeando desigualdades sociais principalmente para comunidades urbanas já em risco social (Sengupta & Sengupta, 2022).
Desse modo, a inclusão é um elemento fundamental em cidades inteligentes, que devem ser desenvolvidas de forma a garantir que todos os habitantes, incluindo os neurodivergentes, possam se beneficiar das soluções tecnológicas implementadas (Korngold et al., 2017). Neste sentido, é importante que as pessoas com deficiências e outras condições atípicas, como a neurodiversidade, participem do processo de desenvolvimento de soluções de cidades inteligentes, seja por meio de consultas públicas, grupos de interesses e outras iniciativas de engajamento comunitários para que estas cidades se tornem mais inclusivas (Korngold et al., 2017).
Pessoas com TEA possuem sensibilidade sensorial e dificuldades no funcionamento executivo e nas interações sociais (Kenna, 2022). O ambiente construído, por exemplo, pode afetar a capacidade destes indivíduos de se orientar e se comunicar, bem como interferir no seu conforto e bem-estar geral (Tola et al., 2021). Devido a isso, indivíduos com TEA podem enfrentar dificuldades para serem incluídos na sociedade e conseguirem emprego, por exemplo (Troncoso, 2022).
Além disso, os estímulos sensoriais gerados pelo cotidiano nas cidades e comuns no dia a dia das pessoas, podem ser obstáculos na vida dos autistas, como o excesso de barulho, a poluição visual em ambientes com excesso de informações, presenças de multidões, luzes em demasiado, bem como a presença de odores fortes (Troncoso, 2022).
Pessoas com TDAH podem sofrer interferência na vida social, acadêmica e profissional, pois o sujeito apresenta dificuldades para sustentar o foco, para se organizar, se motivar, memorizar e para regular o emocional e outras funções do sistema de gerenciamento do cérebro (Oliveros-Chacana & Kreither, 2021; Pereira, 2021). O indivíduo com TDAH pode ter dificuldade no convívio urbano, como: manter-se no emprego, pois as dificuldades em manter o foco podem prejudicar suas atividades laborais e a atenção dispendida nos seus afazeres pode ficar comprometida; permanecer por longos períodos em uma mesma posição ou lugar e, portanto, enfrentar fila em bancos, supermercados ou cinema, por exemplo, podem não ser tarefas fáceis para alguém com essa condição; assim como podem apresentar dificuldades no desenvolvimento do autocontrole do comportamento, podendo afetar suas relações interpessoais, devido a característica de impulsividade.
Neste sentido, a cidade pode colaborar por meio da tecnologia promovendo programas de inclusão digital e treinamento específico para pessoas com dificuldades de concentração, fornecendo ferramentas e tecnologias adaptadas para ajudá-las a manter o foco e desempenhar suas atividades laborais de forma eficiente. Isso pode incluir softwares de organização pessoal, assistentes virtuais e ambientes de trabalho flexíveis. Além disso, o uso de tecnologias pode possibilitar que as cidades implementem sistemas de gestão de filas em locais públicos como bancos, supermercados e cinemas. Alves et al. (2019) destacam alguns projetos realizados em cidades brasileiras para tornar as cidades “mais inteligentes” como a implementação de GPS em ônibus para maior previsibilidade nos itinerários, sensores de estacionamento para informar, por meio de aplicativo, a disponibilidade de vagas nas principais vias da cidade, solicitação online de consultas médicas, implantação de sensores climáticos e de detecção de disparos e ruídos, rede Wi-Fi pública, entre outras medidas que beneficiam não somente indivíduos neurodivergentes, como a sociedade em geral.
As pessoas com AHSD sofrem com o precário conhecimento sobre suas necessidades por parte dos profissionais de saúde, tornando o processo de identificação e atendimento insuficientes ou inexistentes, o que interfere no desenvolvimento psíquico, emocional, social e laboral desses indivíduos ao longo dos anos (Abad & Abad, 2016). Basso et al. (2020) relatam que muitos indivíduos com essa condição chegam à universidade sem saber do seu diagnóstico, ou mesmo sem ter recebido um acompanhamento qualificado que atendesse as suas necessidades educacionais especiais durante sua trajetória escolar. A falta de conhecimento sobre AHSD leva profissionais da saúde diagnosticarem pacientes com outras condições como TEA, TDAH e outros transtornos (Silva-Schröeder, 2020). Portanto, assim como os indivíduos com TEA ou TDAH, as pessoas com AHSD também podem sofrer alterações no convívio urbano, tanto no âmbito social como profissional.
Destaca-se, ainda, que no conjunto da neurodiversidade existem diversos grupos demográficos e realidades específicas, sejam crianças, jovens, adultos ou idosos, por exemplo. Evans et al. (2023) analisaram diferenças significativas entre gênero e o uso de serviços de apoio, a revelação do diagnóstico, o envolvimento social e as dificuldades de interação com pessoas neurotípicas, em um ambiente que muitas vezes é percebido como mal equipado para oferecer apoio adequado a eles.
À vista disso, o movimento da neurodiversidade busca o reconhecimento e o respeito pela diversidade neurológica, assim como tem sido feito em relação a outras diferenças, como as de gênero ou raça (Ortega, 2008; Singer, 2016; Kenna, 2022). Assim, surge a possibilidade de relacionar as demandas da população neurodiversa para o desenvolvimento de cidades inteligentes e inclusivas, pois a cidade desempenha um papel crucial na vida cotidiana daqueles que fazem parte da neurodiversidade (Kenna, 2023). Neste sentido, a próxima subseção aborda o contexto das cidades inteligentes e inclusivas.
Cidades inteligentes e inclusivas
As cidades inteligentes são definidas, basicamente, como cidades que usam tecnologias de informação e comunicação para aumentar a qualidade de vida de seus habitantes, contribuindo para um desenvolvimento sustentável (Capdevila & Zarlenga, 2015). Por serem ecossistemas complexos, os diferentes atores, com diferentes interesses, são obrigados a colaborar para garantir um ambiente sustentável, garantindo uma boa qualidade de vida (Capdevila & Zarlenga, 2015).
Devido a isso, a cidade inteligente está em constante evolução e, deste modo, requer constante comunicação e disseminação de informações e, neste caso, comunicação significa incluir intercomunicação de energia, recursos, sistemas de informação e entre equipamentos de monitoramento e controle de serviços e participação (Zubizarreta et al., 2016).
Giffinger et al. (2007), elaboraram um ranking com setenta cidades inteligentes europeias de médio porte com base em uma estrutura analítica composta por seis dimensões: economia inteligente; pessoas inteligentes; governança inteligente; mobilidade inteligente; meio ambiente inteligente e; vida inteligente (Giffinger et al., 2007). A dimensão “vida inteligente” refere-se à satisfação e ao bem-estar dos cidadãos; “economia inteligente” refere-se à capacidade da cidade atrair investimentos e gerar empregos, bem como ao seu grau de competitividade em nível global; “pessoas inteligentes” é a dimensão que abrange a qualificação dos cidadãos e a sua capacidade de acesso aos serviços e oportunidades oferecidos pela cidade; “governança inteligente” refere-se à capacidade da cidade de tomar decisões estratégicas e implementar políticas públicas eficientes; “meio ambiente inteligente” diz respeito a sustentabilidade e a resiliência da cidade em relação aos desafios ambientais; e “mobilidade inteligente” refere-se à capacidade da cidade de garantir a acessibilidade local e (inter)nacional, bem como a eficiência dos sistemas de transporte.
Cada uma destas dimensões possui características próprias e o modelo proposto por Giffinger et al. (2007) não se restringe apenas à infraestrutura tecnológica e digital das cidades, mas baseia-se no desenvolvimento de uma economia competitiva, centrado no interesse e atividades de cidadãos que estejam aptos a tomar decisões, bem como baseia-se em sistemas de transporte acessíveis e sustentáveis, na preservação de recursos naturais, com vista à qualidade dos serviços prestados aos cidadãos. Logo, o uso de tecnologias e as infraestruturas são pré-requisitos para uma cidade inteligente, mas não são suficientes, pois de nada servirão essas infraestruturas e tecnologias se os cidadãos que delas deveriam se beneficiar não as utilizarem (Capdevila & Zarlenga, 2015).
Portanto, não existe uma definição padronizada de cidade inteligente. Mas, para serem inteligentes, as cidades precisam fazer uso de tecnologias de informação e comunicação e outros meios para melhorar a qualidade de vida dos cidadãos, promover serviços urbanos eficientes, assegurando, ao mesmo tempo, que as necessidades das gerações presentes e futuras sejam atendidas, respeitando aspectos econômicos, sociais e ambientais (Neirotti et al., 2014). Além disso, ao investirem em “ser mais inteligentes”, as cidades supostamente irão atrair indivíduos talentosos, empresas, a criação de universidades e centros de pesquisa e, assim, irão contribuir para desenvolver um caráter empreendedor (Capdevila & Zarlenga, 2015).
Assim, uma cidade inteligente é aquela onde há equidade, isto é, em que a infraestrutura da cidade é acessível a uma ampla gama de interesses e grupos, de forma que todos os cidadãos estejam envolvidos (Batty et al., 2012). E, portanto, o papel ativo e consciente dos cidadãos se torna importante para que as cidades se tornem mais inteligentes (Zubizarreta et al., 2016). Além disso, as cidades inteligentes, ao terem como característica principal a utilização de tecnologias de informação e comunicação para aumentar a qualidade de vida de seus habitantes (Genari et al., 2018), devem ser capazes de oferecer ambientes inclusivos e adaptados para todas as pessoas (Oliveira Neto; Kofuji, 2016; Rebernik et al., 2017; Oliveira Neto, 2018), incluindo aquelas com condições neurodivergentes (Kenna, 2023).
Neste sentido, uma cidade inclusiva “é um lugar onde todos, independentemente de seus meios econômicos, gênero, raça, etnia ou religião, possam participar positivamente das oportunidades que as cidades têm a oferecer” (UN-Habitat, 2002, p. 3). As cidades inclusivas devem servir a todas e a todos, assegurando que os habitantes, de gerações presentes e futuras, sem discriminação de qualquer ordem, possam habitar e produzir cidades justas, seguras, saudáveis, acessíveis física e economicamente, resilientes e sustentáveis para fomentar a prosperidade e a qualidade de vida para todas e todos (UN-Habitat, 2016).
Para que uma cidade inclusiva seja resiliente, saudável e vibrante, ela precisa ir além de uma visão orientada para os direitos e abraçar o lado da inclusão orientado para as oportunidades (Anttiroiko & Jong, 2020). Deste modo, uma cidade inclusiva precisa oferecer aos seus habitantes serviços básicos e sociais inclusivos, assegurar condições de vida seguras e saudáveis, garantir transporte e energia acessíveis e sustentáveis, oferecer espaços verdes, além de dar acesso à habitação digna e gerar empregos (Clos, 2014).
Segundo Korngold et al. (2017), em uma era de tecnologias conectadas, as cidades têm potencial para serem construídas para responder às necessidades das pessoas e facilitar o caminho enquanto as pessoas conduzem as suas vidas. Os autores oferecem uma série de recomendações práticas para ajudar as cidades inteligentes a se tornarem mais inclusivas, como: envolver pessoas com deficiência e outras condições atípicas no processo de desenvolvimento de soluções de cidades inteligentes, por meio de consultas públicas; garantir que o uso de tecnologias seja acessível a todos e; desenvolver políticas e regulamentações que garantam a acessibilidade e a inclusão nas cidades inteligentes.
No entanto, Lee et al. (2020) argumentam que apesar de as cidades tentarem manter o foco no cidadão, o urbanismo inteligente permanece enraizado no discurso de que as infraestruturas digitais podem melhorar os problemas urbanos nas cidades, ao invés de focar em direitos sociais, na cidadania política e no bem-estar comum. Os autores argumentam que o engajamento no cidadão inteligente é, muitas vezes, apenas estratégia de marketing de cidades tidas como inteligentes para criar a imagem de inclusivas. Além disso, Oliveira Neto (2018) entende que a inclusão integra aspectos de inclusão social e cidadania e que são questões que fazem parte da agenda social das cidades inteligentes, sendo um dever destas cidades garantir acesso aos diversos serviços.
Desse modo, construir uma cidade inclusiva é um exercício complexo, pois requer a formulação de políticas, governança e gerenciamento de processos de desenvolvimento urbano orientados para a inclusão (Anttiroiko & Jong, 2020). Diante desta dificuldade, grupos vulneráveis, com um conjunto de necessidades que diferem do “padrão” social, frequentemente são excluídos (Rebernik et al, 2020).
Neste contexto, embora haja um grande esforço em combinar inclusão com o desenvolvimento de cidades inteligentes, não houve um exame sistemático do conhecimento sobre o que exatamente envolve uma cidade inclusiva, como ela pode ser definida, quais são suas várias dimensões, que demandas políticas ela representa e como ela pode ser alcançada (Liang et al., 2022). Desse modo, os autores realizaram uma revisão sistemática da literatura e formularam um modelo conceitual de dimensões de cidades inclusivas o qual compreende as seguintes dimensões: social, econômica, política, ambiental e espacial. Interligadas a essas cinco dimensões estão presentes características de participação, equidade, acessibilidade e sustentabilidade.
No modelo de cidade inclusiva de Liang et al. (2022), a dimensão “inclusão social”, que também abrange as subdimensões migração sustentável, participação e cidadania inteligentes, engloba melhores condições de vida, o direito do cidadão à cidade e a participação em atividades sociais. A “inclusão econômica”, que também agrega as subdimensões comunidade e finanças; regeneração e segregação econômica, abarca a ideia de eliminação das desigualdades materiais e aumento do acesso a oportunidades de emprego. A “inclusão política” prevê que os cidadãos tenham direitos e obrigações políticas iguais perante a lei, participação política e sentimento de pertencimento com o local onde residem. A “inclusão ambiental” exige que o ser humano contemporâneo não exerça seu modo de produção e consumo de forma que sacrifique as necessidades e interesses das gerações futuras. Por fim, a “inclusão espacial” aborda que todos tenham acesso igualitário a habitação, transporte e infraestrutura pública.
Deste modo, a inclusão é um elemento fundamental em cidades inteligentes (Korngold et al., 2017) e há a necessidade da realização de estudos empíricos sobre o tema (Liang et al., 2022; Kenna, 2022), estudar a inclusão da neurodiversidade nas cidades inteligentes é fundamental, pois:
As pessoas neurodivergentes muitas vezes enfrentam barreiras e desafios significativos para se envolverem em atividades sociais (Kenna, 2022, 2023) e, deste modo, estudar a neurodiversidade nas cidades pode tornar os ambientes urbanos mais inclusivos e acessíveis para todos os cidadãos;
À medida que as cidades crescem e se tornam mais complexas (Liang et al., 2022), a compreensão da diversidade humana, incluindo a neurodiversidade, pode ajudar a garantir que o desenvolvimento urbano seja inclusivo e sustentável (Kenna, 2022), promovendo a resiliência urbana e a equidade social (Anttiroiko & Jong, 2020);
As cidades podem ser locais estressantes e desafiadores para pessoas neurodivergentes, considerando que alguns são sensíveis a ruídos, estímulos visuais e outros fatores ambientais (Kenna, 2023; Vanolo, 2023) e, dessa forma, é possível identificar estratégias para melhorar o bem-estar mental e físico desses indivíduos;
As pessoas neurodivergentes muitas vezes têm habilidades e perspectivas únicas (Miyazaki et al., 2020; Silva-Schröeder, 2020) que podem ser valiosas para a inovação e criatividade na cidade e, assim, é possível identificar oportunidades para envolver e empoderar essas pessoas na criação e implementação de soluções inovadoras para desafios urbanos;
As cidades podem fornecer recursos educacionais e culturais que sejam benéficos para o desenvolvimento das habilidades desses indivíduos (Koifman, 2022). e;
O desenvolvimento de cidades inteligentes requer o fortalecimento da construção de cidades inclusivas (Korngold et al., 2017).
Portanto, a cidade inclusiva é um conceito de política voltada para o desenvolvimento que pode desempenhar um papel importante ao agregar uma perspectiva social à promoção do desenvolvimento econômico e, inversamente, uma perspectiva econômica ao desenvolvimento social (Anttiroiko & Jong, 2020). Quando desenvolvidos de maneira integrada e holística, direitos e oportunidades podem se complementar mutuamente, pois a inclusão tem potencial para fortalecer o capital local e sua utilização para o desenvolvimento, enquanto o crescimento econômico por sua vez tende a fortalecer as demandas por democracia e inclusão. Relacionado a isso, a inclusão efetiva reduz a necessidade de políticas de identidade baseadas em grupo, o que novamente ajuda a reunir as pessoas como indivíduos, e não como representantes de identidades particulares (Anttiroiko & Jong, 2020).
Assim, a cidade inteligente e inclusiva deve ter a capacidade de reconhecer, acomodar e celebrar a diversidade humana, incluindo a neurodiversidade, pois a tecnologia só pode ser utilizada de forma inteligente se for acessível a todos os habitantes, independentemente de gênero, idade, etnia ou habilidades físicas e neurológicas (Korngold et al., 2017). Além disso, uma cidade inteligente e inclusiva deve garantir que todas as pessoas tenham acesso aos recursos e serviços públicos, independentemente de sua condição (ONU, 2015; UN-Habitat, 2016).
Ao reconhecer e celebrar a neurodiversidade, a cidade inteligente e inclusiva pode se tornar um lugar mais acolhedor e integrativo para todas as pessoas, promovendo a igualdade social, a igualdade de oportunidades e melhorando a qualidade de vida e a sensação de pertencimento à cidade (Korngold et al., 2017).
Além disso, à medida que as cidades crescem é importante garantir soluções de design que ajudem a acomodar mais pessoas, mas também que melhorem a experiência sensorial da vida urbana, principalmente para as pessoas neuroatípicas. Neste ponto entra o urbanismo sensorial que é um campo interdisciplinar que explora como as pessoas percebem seu ambiente construído (Sharma, 2023). Conforme Sharma (2023) o objetivo do urbanismo sensorial é criar não apenas um ambiente esteticamente agradável que apele aos cinco sentidos conhecidos, como visão, audição, tato, paladar e olfato, mas também aos sentidos menos comumente considerados, como a consciência do próprio corpo no espaço e a consciência da temperatura.
Quando se trata de neurodiversidade, o urbanismo sensorial torna-se particularmente relevante, pois para indivíduos neurodivergentes a cidade pode ser um ambiente desafiador devido a estímulos sensoriais excessivos, como luzes brilhantes, ruídos altos ou texturas desconfortáveis. Portanto, o urbanismo sensorial pode ajudar a criar ambientes urbanos mais inclusivos, projetados para acomodar uma variedade de necessidades sensoriais.
Isso pode incluir a criação de espaços tranquilos em meio ao tumulto da cidade, o uso de materiais que absorvem o som para reduzir o ruído, a implementação de iluminação mais suave e difusa e a incorporação de elementos naturais para proporcionar estímulos calmantes. Assim, ao considerar as necessidades sensoriais das pessoas neurodivergentes, o urbanismo sensorial não apenas torna as cidades mais acessíveis para esses indivíduos, mas também beneficia toda a comunidade, promovendo ambientes urbanos mais agradáveis e inclusivos para todos.
Conclusão
Este ensaio teórico se propôs a discutir a necessidade da inclusão da neurodiversidade nas cidades inteligentes, tendo em vista que a inclusão é elemento fundamental em cidades inteligentes (Korngold et al., 2017). A convergência entre os princípios de cidades inteligentes e inclusivas, em que as necessidades das pessoas devem ser colocadas em primeiro plano, e a urgência de incluir a neurodiversidade nesse contexto revelou uma perspectiva crucial para o desenvolvimento urbano contemporâneo. Ao considerar que as pessoas neurodivergentes muitas vezes enfrentam desafios significativos de inclusão social, a investigação da neurodiversidade nas cidades emerge como uma oportunidade para promover ambientes urbanos mais acolhedores e acessíveis para todos os cidadãos.
Além disso, a compreensão da diversidade humana, incluindo a neurodiversidade, torna-se importante para garantir que o crescimento urbano seja equitativo, sustentável e resiliente. Portanto, a incorporação da neurodiversidade nas agendas de cidades inteligentes e inclusivas não apenas promove a justiça social, como também enriquece a estrutura urbana com a diversidade de experiências e contribuições individuais.
Para estudos futuros, sugere-se uma investigação qualitativa a qual pode ser por meio de entrevistas ou grupos focais em que seja possível entender como as tecnologias de cidades inteligentes podem ser adaptadas para atender às diversas necessidades sensoriais das pessoas neurodivergentes. Ou, ainda, analisar as oportunidades de emprego e empreendedorismo para indivíduos neurodivergentes em ambientes urbanos, incluindo programas de capacitação, políticas de inclusão e suporte à empregabilidade.