Introdução: O acesso à terra para produção agrícola
Este artigo pretende ser um primeiro contributo para o fortalecimento das iniciativas de acesso à terra para produção agrícola em Portugal. Para suportar este desiderato responderemos à seguinte questão: No contexto internacional das agendas e planos de desenvolvimento sustentável, quais são os temas-chave para defender uma política pública de acesso à terra? Argumenta-se que dar visibilidade ao tema do acesso à terra, a partir dos planos de ação e monitorização internacionais, nomeadamente os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 [ODS], e outros planos de monitorização desenvolvidos por organizações internacionais como a FAO - Organização das Nações Unidas para a Agricultura, a Fundação RUAF - Resources Centres on Urban Agriculture and Food Security e o Pacto de Milão - Milan Urban Food Policy Pact, são uma oportunidade para sensibilizar os decisores políticos para a relevância da consolidação e replicação dos Bancos de Terra no território nacional e a inclusão do tema no planeamento territorial.
Uma análise não exaustiva da literatura existente revela que o tema do acesso à terra1 para produção agrícola alcançou alguma notoriedade no seio da academia (Delgado, 2015, 2021, 2023; Perrin et al., 2020; Viana et al., 2022) e das organizações não governamentais (Rodrigo et al., 2017). E que coexiste com outras problemáticas como: a preservação da terra para fins produtivos e de soberania alimentar (Rioufol et al., 2020); a degradação da qualidade dos solos; a perda de biodiversidade; a fragilidade dos ecossistemas locais; ou a luta contra as alterações e mitigação climática (Daher & Hora, 2020). Alguns autores como Perrin & Nougaredes (2020) ou Tornaghi (2017) têm discutido o acesso à terra para a produção agrícola sob a ótica da justiça social. Outros, como Petrescu-Mag et al. (2019) trabalham a perspetiva da acessibilidade e segurança. Ainda que menos presente na literatura alguns autores como Manganelli & Moulaert (2019), Wubben & Isakhanyan (2011) ou Marat-Mendes et al. (2021) abordam o papel das autoridades locais no acesso à terra pública.
A pandemia Covid-19 e a invasão da Ucrânia vieram acelerar a pertinência do debate sobre o acesso à terra para produção local a partir da constatação das fragilidades do sistema alimentar global e da urgência de aumentar a resiliência dos sistemas locais (Marocchino et al., 2020; Poch et al., 2020), que dependem do acesso à terra para garantir a produção agrícola. De acordo com a meta 2.3 do ODS 2 - Acabar com a Fome implica, “até 2030, duplicar a produtividade agrícola e o rendimento dos pequenos produtores de alimentos (...) nomeadamente através de garantia de acesso igualitário à terra e a outros recursos produtivos tais como conhecimento, serviços financeiros, mercados e oportunidades de valor acrescentado e de emprego não agrícola”. Uma estratégia de desenvolvimento local que considere a criação de espaços produtivos agrícolas deverá contemplar esta classificação de solos no regulamento do seu Plano Diretor Municipal. Não obstante o referido, a prática de agricultura de forma informal será sempre possível, mas a sua manutenção em situação de conflito é dificultada pela ausência de “enquadramento legal” nas políticas de Ordenamento Territorial e/ou política de solos2 que legitimem essa ocupação e prática. Infelizmente o tema tem sido negligenciado pelos urbanistas que consideram os terrenos agrícolas como áreas potencialmente construtivas, e os agrónomos que balizam a sua intervenção aos espaços rurais (Lohrberg, 2016). Esta ausência de debate intersectorial foi assinalada por Pothukuchi & Kaufman (2000) no início do século XXI e mantêm-se atual. De acordo com Cabannes & Marocchino (2018) a integração da alimentação no planeamento urbano é um tema emergente, como se comprova por publicações recentes de autores como Delgado (2023) ou Marat-Mendes (2021).
No âmbito internacional há um conjunto significativo de cidades, nomeadamente, nos Estados Unidos da América, tais como Pittsburg (Pittsburg, n.d.), Ohio (Ohio, n.d.) e Detroit (Detroit, n.d.) a desenvolver políticas e programas com o objetivo de facilitar o acesso à terra, pública e privada, para fins produtivos agrícolas. Na América Latina, a cidade de Rosário (Argentina) iniciou em 2002 um Programa de Agricultura Urbana (PAU) que contempla um banco de terras pública e privada. Na Europa, cidades como Paris (França), Bruxelas (Bélgica) ou Barcelona (Espanha) incluíram a dimensão do acesso à terra nas suas estratégias alimentares. Em Paris, o município, desenvolveu o programa Parisculteurs (Paris, n.d.) com o objetivo de mapear espaços produtivos na cidade e municípios limítrofes, promovendo o seu uso por Agricultores Urbanos. O objetivo foi alcançado em 2020 com 33 hectares de agricultura urbana. Algumas destas cidades são apoiadas por organizações não governamentais como a “Terre-en-vue”(Terre-en-vue, n.d.) sediada na Bélgica, ou a “Terre de Liens” (Terre de Liens, n.d.), sediada em França. O projeto-piloto BoeenBruxselPaysans (BoerenBruxselPaysans, n.d.) nos arredores de Bruxelas já garantiu o acesso a mais de 5 hectares de terra privada e pública para formação de novos agricultores urbanos. Em Portugal, alguns municípios, como Cascais (Cascais E.M., n.d.), Santo Tirso (C.M. Santo Tirso, n.d.) ou Sintra (C. M. Sintra, n.d.) entre outros, criaram Bancos de Terra, para a prática de agricultura profissional3, facilitando a ligação entre os proprietários de terras devolutas e agricultores interessados. Numa ótica de fixação de novos habitantes e, simultaneamente, de uso de terras devolutas, o município de Mértola em Portugal facilita o acesso à terra e formação em agricultura regenerativa aos interessados que se queiram fixar no município .
Em síntese, este artigo é um estudo exploratório baseado na análise crítica da Agenda 2030 (UNDP, 2021) e respetivos ODS e três planos de monitorização: “Sustainable Assessment of Food and Agriculture Systems” (FAO, 2013); “Collaborative Framework for Food Systems Transformation” (UNEP, 2019); “Milan Urban Food Policy Pact Monitoring Framework” (FAO, 2019) os quais serão apresentados de forma detalhada nas secções seguintes. Na próxima secção apresentam-se alguns exemplos de práticas locais de acesso à terra em Portugal à escala local, para ilustrar a pertinência da temática. Na secção seguinte justifica-se a seleção da agenda e planos selecionados, e a metodologia adotada para aferir os indicadores que abordam a temática do acesso à terra. Na terceira secção faz-se uma breve apresentação crítica dos planos de ação e monitorização utilizados. Na quarta secção apresentam-se e debatem-se os resultados da pesquisa dos indicadores e metas de acesso à terra aferidos nos ODS e nos planos de monitorização. O artigo termina com a apresentação de um conjunto de propostas de linhas de desenvolvimento de políticas públicas alimentares territoriais que considerem o acesso à terra, com base nos temas e indicadores dos planos de ação e monitorização analisados.
Instrumentos e práticas de acesso à terra em Portugal à escala nacional e local
Em 2012 foi criada através da Lei 62/2012 de 10 de Dezembro, a Bolsa Nacional de Terras em Portugal. Pretendia-se facilitar o acesso à terra rural sob propriedade do estado através do seu arrendamento aos interessados. O processo não teve o sucesso esperado por um conjunto de razões entre as quais, a oferta inicial de prédios do domínio público do estado ser reduzida; a reduzida angariação de terrenos juntos dos proprietários privados; a ausência de documentos que comprovem a titularidade dos terrenos por parte dos particulares; uma dinâmica pobre de reconhecimento da Bolsa de Terras pelos interessados; a terra não corresponder aos requisitos procurados pelos futuros agricultores (abordaremos este tema de seguida), uma grande parte dessa terra ser floresta, ou seja, não apropriada para cultivo. Por fim, mas não menos importante, o não ter sido previsto um orçamento financeiro para aquisição de terra que permitisse a execução da Lei. Os limites apresentados pela Lei 62/2012 de 10 de Dezembro estão na origem da recente Lei 49/2023, publicada em Diário da República a 24 de agosto de 2023 e em vigor desde 1 de Dezembro de 2023. Além da criação de um Banco de Terras nacional, a Lei estabelece também o Fundo de Mobilização de Terras, instrumento financeiro de gestão deste Banco4. O impacto desta lei como instrumento dinamizador do acesso à terra para produção agrícola será abordado em futuros estudos.
Na ausência de respostas por parte do governo central durante uma década, os municípios sensíveis à temática, por um conjunto diverso de razões, onde se incluem: o reforço da biodiversidade; o equilíbrio paisagístico; o combate aos fogos florestais; o desenvolvimento da economia local, ou; a urgência de travar o êxodo rural e o abandono das áreas agrícolas - desenvolveram à escala municipal Bancos de Terra para produção agrícola. Posto isto, existe em Portugal um conjunto limitado mas consistente de Bancos de Terra a nível municipal, mas apenas três têm estado a operar em continuo. O município de Sto. Tirso, na região Norte de Portugal, iniciou o seu projeto em 2015, tendo já sido disponibilizados 10 hectares de terra, para atividades produtivas de caracóis, pequenos frutos, e hortícolas (C.M. Santo Tirso, n.d.). O município de Sintra na Área Metropolitana de Lisboa, iniciou em 2017 o seu Banco de Terras disponibilizando 11 terrenos, mas tendo apenas recebido propostas de utilização para quatro destes. O município de Mértola, na região do Alentejo, iniciou o seu projeto em 2020. Aqui, o acesso à terra é um pretexto para fixação de habitantes num município rural com forte perda populacional (Terra Sintrópica, n.d.). Para além da terra é garantida formação, apoio financeiro inicial e ligação às restantes iniciativas do sistema alimentar a decorrer no município. O sucesso do projeto contabiliza-se pelo número de pessoas que se fixaram na região (13) até à data (2023).
Os projetos de acesso à terra promovidos pelos municípios enfrentam um conjunto de desafios que são contrabalançados por uma clara vontade política e empenho das equipas técnicas envolvidas. De acordo com o depoimento dos responsáveis por quatro Bancos de Terra em Portugal (C. M. Sintra, n.d.; Cascais E.M., n.d.; C.M. Santo Tirso, n.d.; Terra Sintrópica, n.d.) existe um conjunto de constrangimentos que são transversais aos quatro municípios. Em primeiro lugar o receio por parte dos proprietários (quase sempre pessoas idosas) em disponibilizar os terrenos pela perceção de perda da posse e expectativa de que, a curto-prazo, os terrenos possam ser urbanizados, o que implica maior retorno financeiro. Para este receio contribuem também os prazos de arrendamento para a prática agrícola (entre 7 e 15 anos) que são percecionados como demasiado longos pelos proprietários. O segundo desafio prende-se com a identificação dos proprietários da terra o que nem sempre é possível. A situação complica-se nos casos de heranças quando os terrenos passam a ser propriedade de vários herdeiros, nem sempre conhecidos ou disponíveis para dialogar. O terceiro desafio elencado pelos técnicos autárquicos prende-se com a falta de infraestruturas. Procuram-se lotes servidos por água e com bons acessos rodoviários aos núcleos urbanos. Em zonas rurais como o município de Mértola, procura-se também habitação (nem sempre disponível) e serviços como escolas. Por fim, quarto desafio, regista-se a falta de formação técnica dos futuros agricultores e as limitações financeiras destes o que em alguns casos inviabiliza a implementação dos projetos. Desafios que são enfrentadas com dedicação pelos técnicos autárquicos, como descreveremos seguidamente, mas que impactam negativamente o futuro das iniciativas, ainda mais se num cenário de falta de vontade política.
A desconfiança dos proprietários é contornada pelo município de Sto. Tirso através de um serviço de acompanhamento. A equipa do município procede à identificação das terras com aptidão agroflorestal que não estão a ser usadas, estabelece conversações com os proprietários para os motivar à disponibilização da terra e apoia o arrendatário (futuro agricultor) na seleção do terreno mais apropriado para o seu projeto. É de sublinhar que existem vantagens para os proprietários na disponibilização da terra, nomeadamente: o rendimento adicional obtido; não ter encargos a cumprir a lei nacional (nº2 do artigo 15º do Decreto-Lei nº124/2006, de 28 de junho, alterado pelo Decreto-Lei nº17/2009, de 14 de janeiro), o qual obriga à limpeza dos terrenos anualmente; ou o incremento do valor do terreno decorrente do investimento agrícola.
O problema da falta de identificação dos proprietários da terra é um desafio que se coloca à escala nacional. Para lhe dar resposta o governo central criou em 2017 o programa BUPi - Balcão Único do Prédio. O BUPi na sua fase piloto (Lei n. 78/2017 de 17 de Agosto), pretendia conhecer o território português de forma simples e inovadora e responder a quatro objetivos: ordenamento do território; valorização de recursos; identificação dos proprietários; prevenção de incêndios. O conhecimento dos limites e da titularidade das propriedades é fundamental para que o município possa planear e gerir o seu território, assim garantindo a valorização e desenvolvimento sustentável destes e a qualidade de vida dos seus munícipes. Em 2019 o BUPi estendeu-se a todo o território (Resolução do Conselho de Ministros n. 13/2019 de 21 de Janeiro) estando à data (2023) a decorrer um processo nacional obrigatório de identificação da titularidade de todas as parcelas rurais.
A falta de infraestruturas dos lotes, nomeadamente, água e acessos rodoviários, é uma limitação difícil de ultrapassar a curto-prazo. Já a falta de serviços e equipamentos ou mesmo habitação é sobretudo um problema nas zonas rurais. Na falta de uma visão holística da problemática, que inclua o acesso à terra e à habitação, a equipa do projeto Bolsa de Terra de Mértola ultrapassou este constrangimento através do contacto direto e persuasão dos proprietários das habitações vazias na localidade, para as disponibilizar em mercado de arrendamento.
Para a falta de capacitação técnica e financeira dos aspirantes a agricultores, Mértola criou um programa de formação e um pequeno financiamento aos agricultores, justificado na ótica de prestadores de serviços para o ecossistema. Em Sintra, onde não é exigida capacidade técnica e financeira por parte dos aspirantes a agricultores, já se verificou desistências após a cedência de terra. Em Sto. Tirso a capacitação técnica e financeira dos futuros agricultores é um requisito de seleção. A solução não resolve o problema, mas contorna situações de abandono a posteriori.
Por fim os quatro municípios concordaram que é preciso cativar mais proprietários para a cedência de terrenos e simultaneamente fazer uma aposta no alinhamento de interesses das partes, o que implica uma equipa dedicada a acompanhar os processos de negociação e posteriormente os projetos. Concordaram também que é necessário articular o “acesso à terra” com as restantes etapas do sistema alimentar, e.g. abastecimento das cantinas escolares e restauração coletiva, mas também com outras políticas como o acesso à habitação. Por fim, concordam sobre a importância de dar maior visibilidade aos Bancos de Terra, no sentido de os mesmos poderem ser replicados, escalados e obter o necessário apoio político à sua continuidade.
Metodologia e amostra: Há “terra” nas agendas e planos internacionais?
Para garantir a continuidade, replicação e escalar as iniciativas, é importante agarrar estes projetos às agendas de ação assinadas pelos governos nacionais e locais e respetivos planos de monitorização. Na sessão seguinte justifica-se a seleção das quatro agendas e planos utilizados e explica-se a metodologia aplicada.
Na seleção dos quatro planos de ação e monitorização foi considerada a diversidade de organizações envolvidas na sua elaboração, nomeadamente a Organização das Nações Unidas (ONU), a FAO, Agência da ONU dedicada à Alimentação e Agricultura, bem como o Programa Ambiental da ONU. Ao que acrescem organizações não governamentais como a fundação RUAF (RUAF, n.d.) e o “Milan Urban Food Policy Pact” (MUFPP, n.d.). Adicionalmente foram valorizadas as diferentes escalas territoriais, como a escala global dos ODS, a escala nacional e local do “Collaborative Framework for Food Systems Transformation”, a escala municipal do “Milan Urban Food Policy Pact Monitoring Framework”. Por fim, embora os ODS não correspondam a um plano de monitorização, mas de ação, a sua inclusão justifica-se como o chapéu que orienta os restantes planos de monitorização.
No que se refere à metodologia, procedeu-se à análise da literatura existente e seleção de quatro planos de ação e monitorização. Posteriormente fez-se uma leitura crítica dos documentos selecionados tendo-se identificado as temáticas estruturais de cada plano de ação e monitorização. Seguidamente procedeu-se à identificação dos indicadores e metas (apenas para os ODS) selecionando os que mencionavam a palavra “terra (s)”, “solo (s)”, “horta(s)” e “espaços agrícolas” no seu articulado, com a finalidade de selecionar apenas os indicadores e metas referentes à terra, lato sensu. Numa terceira fase analisou-se se a “terra” e restantes palavras e expressões selecionadas correspondiam, ou não, à problemática do acesso à terra. Por fim, e apenas para os ODS, analisou-se a coerência entre as metas e os indicadores estabelecidos.
Revisão da literatura: contextualização dos planos de ação e monitorização analisados
Para cada plano de ação e monitorização apresenta-se uma breve contextualização e análise crítica que justifica a sua seleção.
A Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável foi definida em 2015 no âmbito da cimeira da ONU. Corresponde a um plano de ação ambicioso para o desenvolvimento económico, social e ambiental à escala global. A agenda estabelece um conjunto de 17 objetivos - os ODS - dos quais oito, de acordo com a FAO, estão diretamente relacionados com a alimentação e a agricultura, i.e.: 1, 2, 5, 6, 10, 12, 14 e 155 (FAO, 2020). Cada objetivo é corroborado por um conjunto de metas, totalizando 169 metas a ser alcançadas por todos os países signatários até 2030. Para monitorizar o progresso dos ODS foi aprovado em 2016 um quadro de 241 indicadores. A agenda foi assinada pelos 193 Estados-Membros que compõem as Nações Unidas, entre os quais Portugal.
O plano de monitorização “Sustainable Assessment of Food and Agriculture Systems” [SAFA] foi desenvolvido pela ONU e FAO em 2013, ou seja, antecede os ODS. O plano apresenta-se subdividido em quatro temáticas: Boa Governança (19 indicadores); Integridade Ambiental (54 indicadores); Resiliência Económica (26 indicadores); e Bem-estar Social (19 indicadores). Os 118 indicadores foram desenvolvidos por atores da prática e especialistas a partir da análise dos pontos críticos de cada sub-tema. Cada indicador é descrito através de uma folha metodológica, à semelhança do “Milan Urban Food Policy Pact Monitoring Framework” [MUFPPMF].
O plano de monitorização “Collaborative Framework for Food Systems Transformation” [CFSS] corresponde a um produto do programa “One Planet Network - Sustainable Food Systems” do programa ambiental da ONU. O plano propõe um quadro colaborativo para a transformação dos Sistemas Alimentares dirigido aos governos e partes interessadas, a nível nacional ou local composto por quatro ações. O plano foca-se nas ações de Governança dos Sistemas Alimentares propondo, em paralelo, um conjunto de indicadores dos ODS para apoiar direta ou indiretamente o monitoramento dos resultados das políticas. Os indicadores são subdivididos em três temáticas: Segurança alimentar e nutricional (3 indicadores); Ambiente (11 indicadores); e Socio-economia (8 indicadores). Embora estes indicadores correspondam a uma seleção dos indicadores estabelecidos pelos ODS, não são necessariamente os mesmos que a FAO protagoniza.
O Pacto de Milão foi criado 2015 no âmbito da Expo 2015 dedicada à temática “Alimentar o nosso Planeta, Energia e Vida”. O pacto consiste numa declaração política que se estabelece através da assinatura do responsável municipal, assumindo o município signatário o compromisso de desenvolver sistemas alimentares sustentáveis e resilientes, nutritivos e acessíveis para todos, proteger a biodiversidade e lutar contra o desperdício alimentar. À data (2023) mais de 270 cidades de todo o mundo assinaram esta pacto, nomeadamente duas cidades Portuguesas, Funchal e Torres Vedras, e a Área Metropolitana de Lisboa. Em 2019 uma parceria composta pela FAO a RUAF e o Pacto de Milão desenvolveu o MUFPPMF, um documento de suporte às cidades signatárias que propõe 6 temáticas e 44 indicadores de monitorização i.e.,: Governança (seis indicadores); Dieta e Nutrição Sustentáveis (10 indicadores); Equidade social e económica (7 indicadores), Produção Alimentar (9 indicadores); Abastecimento e Distribuição Alimentar (7 indicadores) e por fim; Desperdício Alimentar (4 indicadores). Cada indicador é descrito através de uma folha metodológica. O MUFPPMF suporta-se em 37 recomendações/ações que compõem a declaração de compromisso assinadas pelos municípios.
Em síntese, embora a amostragem não permita um estudo exaustivo e representativo de todos os planos de monitorização existentes e respetivos indicadores de acesso à terra, considera-se que esta amostragem é suficiente para um exercício exploratório. Por fim, embora o não alinhamento dos ODS utilizados nos diferentes planos de monitorização mereça uma análise crítica, esta não será considerada por ultrapassar o objetivo do presente artigo.
Resultados e discussão: O acesso à terra nas metas e indicadores dos planos
A tabela 1 permite comparar as diferentes temáticas presentes em cada plano. Há, como seria expectável, uma maior similitude nas temáticas apresentadas nos planos SAFA, CFFS e MUFPPMF. Por outro lado, os ODS apresentam um conjunto de temáticas bastante mais abrangente. Na coluna 2 assinalámos apenas os ODS que são identificados pela FAO, como relevantes para a alimentação e agricultura. Como veremos na tabela 2 não existe necessariamente uma correspondência entre temáticas e conteúdos. Ou seja, a “terra” no seu sentido mais amplo está presente em temas tão diversos como a igualdade de género ou a integridade ambiental.
A tabela 2 considera apenas as temáticas, objetivos e respetivos indicadores ou metas onde a palavras “terra”, “solo”, “horta” e “espaços agrícolas” estavam presentes no articulado. É possível verificar a diversidade de temáticas associadas às palavras listadas, as quais não são coincidentes nos quatro planos analisadas. Nos ODS a “terra”, no seu sentido lato, aparece nos ODS 2, ODS 5 e ODS 15, sendo de sublinhar a sua ausência no ODS 12 - “produção e consumo sustentável”.
A partir da análise crítica dos indicadores ou metas listadas é possível verificar que as palavras “terra”, “solo”, “horta” e “espaço agrícola” surgem fortemente associadas a duas perspetivas: solo como recurso que tem de ser preservado, notavelmente direcionado para a importância da prevenção da degradação da terra; ou, como direito de “acesso à terra” stricto sensu. Por fim, constatamos que estas duas perspetivas não estão cumulativamente presentes nos planos de ação e monitoramento. Regista-se a presença de ambas as perspetivas nos ODS e no CFFS. No SAFA a vertente da preservação do solo é preponderante. No MUFPPMF o enfase é quase total na perspetiva do acesso à terra.
As metas dos ODS são complementadas por um conjunto de indicadores específicos, a saber: Meta 2.3 (2 indicadores); Meta 5.a. (2 indicadores); Meta 15.1. (2 indicadores); Meta 15.3. (1 indicador). Nesse sentido, procedeu-se igualmente à análise do conteúdo dos indicadores.
Como poderá ser observado na tabela 3 existe alguma incoerência entre as metas definidas e os indicadores utilizados nos ODS. Por exemplo, a meta 2.3, respeitante ao ODS 2, prevê a “garantia de acesso igualitário à terra”. No entanto, os dois indicadores associados apenas medem o volume de produção por unidade de trabalho e rendimento médio dos pequenos agricultores, ignorando a necessidade de medir o acesso igualitário à terra conforme definido na meta correspondente. Relativamente ao ODS 15 a “terra” enquadra-se numa perspetiva de preservação do solo. Assim, apenas o ODS 2 é suportado em indicadores de acesso à terra, e numa vertente de igualdade de género.
Registe-se ainda, a não inclusão do “acesso à terra para produção” no ODS 11 - “Cidades e Comunidades Sustentáveis” e ODS 12 - “Produção e Consumo Sustentáveis”. Este cenário limita o impacto e potencialidades destes ODS, nomeadamente como instrumento para a definição de políticas de planeamento territorial que considerem a produção alimentar local. Por outro lado, a incoerência entre as metas estabelecidas no ODS 2 - “Erradicar a Fome” e ODS 15 - “Proteger a Vida Terreste”, e os indicadores respetivos, representa um constrangimento que limita o alcance de uma política do acesso à terra para a produção agrícola, apesar de este desígnio estar subjacente às metas estabelecidas nos respetivos ODS.
Não obstante, existe um cenário promissor para a concretização de políticas de acesso à terra. O acesso à terra está contemplado em três dos quatro planos analisados, o que demonstra que a temática faz parte da agenda de trabalhos das organizações internacionais e nacionais. Contudo, a perspetiva da preservação do solo representa metade das ocorrências nos indicadores dos ODS e metas do CFFS, e a totalidade das ocorrências nas metas do SAFA. Sendo o SAFA anterior aos ODS, admite-se que a sensibilidade em relação à temática do acesso à terra tem vido a aumentar na última década. A grelha de indicadores MUFPPMF é precisamente o documento mais recente, e o que mais enfatiza a relevância do “acesso à terra” para produção de alimentos.
Conclusões: oportunidades e constrangimentos para uma política de acesso à terra
Este artigo pretende contribuir para a consolidação e replicação das iniciativas de acesso à terra para produção agrícola em Portugal através da sensibilização dos decisores políticos para a relevância e posicionamento do tema nas agendas e planos internacionais.
Para o fazer, foi efetuada uma análise crítica dos temas, metas e indicadores dos ODS - Agenda 2030, e de três Planos de monitorização, o “Sustainable Assessment of Food and Agriculture Systems”, o “Collaborative Framework for Food Systems Transformation”, e o “Milan Urban Food Policy Pact Monitoring Framework”. A análise demonstra claramente que o acesso à terra para produção está previsto nas agendas e planos internacionais e respetivas metas e indicadores, o que consubstancia um relevante instrumento de sensibilização política para alavancar o fortalecimento e replicação das iniciativas de acesso à terra para produção agrícola em Portugal.
Sabemos ainda, o que responde à questão inicial, que no contexto internacional das agendas e planos de desenvolvimento sustentável, os temas-chave para defender uma política pública de acesso à terra são: a Igualdade de Género, correspondente ao ODS 5, que apresenta dois indicadores sobre a proporção de proprietários de terra agrícola por sexo e de países com um quadro jurídico favorável ao direito de posse pelas mulheres; a perspetiva Socioeconómica presente no plano - Collaborative Framework for Food Systems Transformation, que inclui como indicador a titularidade ou direitos sobre a terra por sexo; e, finalmente, a Produção Alimentar, uma das dimensões do Milan Urban Food Policy Pact Monitoring Framework que apresenta um indicador relativo ao número de habitantes com acesso a hortas e outro indicador respeitante à proporção de terra agrícola utilizada para agricultura sustentável, no perímetro do município.
Como operacionalizar estas temáticas no terreno? Numa primeira etapa, incorporando os três temas-chave supra mencionados, nos regulamentos dos Bancos de Terra em Portugal. Por exemplo, numa perspetiva de igualdade de género, através de incentivos positivos para que o género feminino possa ser titular da terra; ou, numa perspetiva socioeconómica e de produção alimentar, estimulando a produção agrícola sustentável através da criação de empregos locais (com perspetiva de género), nomeadamente no sector de fornecimento dos mercados agroalimentares, feiras, restauração e cantinas públicas.
Numa segunda etapa, defende-se que o acesso à terra numa perspetiva socioeconómica e de género, e em paralelo com uma visão de fortalecimento do sistema alimentar local, deve ser incorporado nos instrumentos de planeamento territorial à escala municipal de forma a legitimar as iniciativas de facilitação e acesso à terra promovidas tanto pelo poder público como por outras entidades legitimadas para o efeito. Com base nos indicadores definidos pelo Milan Urban Food Policy Pact Monitoring Framework, os instrumentos de planeamento territorial deverão considerar a superfície existente de espaços agrícolas dentro das fronteiras municipais com potencial para produção agrícola, mas também o número de habitantes com acesso, dentro das fronteiras municipais, a uma horta urbana. Fazendo eco aos indicadores definidos pelos ODS e pelo Plano Collaborative Framework for Food Systems Transformation a perspetiva de género relativa ao quadro jurídico de direito e controle da terra deve igualmente ser contemplada.
Defendemos ainda que o impacto positivo das políticas publicas será fortalecido se existir uma aposta clara na articulação do “acesso à terra” com as restantes etapas do sistema alimentar, e.g. abastecimento das cantinas escolares e restauração coletiva, mas também com outras políticas setoriais, como o acesso à habitação, relevante para a fixação da população como espelha o Banco de Terras de Mértola. Ou, o ordenamento territorial numa perspetiva de garantia das infraestruturas necessários, tais como estradas e água, passando igualmente pelo envolvimento das populações, fatores cruciais nos municípios de Santo Tirso e Sintra.
Por fim, sugere-se que os indicadores de acesso à terra definidos nas agendas e planos internacionais sejam mais visibilizados através de campanhas de sensibilização e capacitação dos decisores políticos e técnicos dos governos nacionais e locais, apoiando assim a expansão e replicação das iniciativas existentes.